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Print version ISSN 1415-1138

Psyche (Sao Paulo) vol.12 no.23 São Paulo Dec. 2008

 

ARTIGOS

 

A relação mente-cérebro na metapsicologia freudiana

 

The mind-brain relation in freudian metapsychology

 

 

Fátima Caropreso

Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir a concepção freudiana sobre a relação mente-cérebro. Argumentaremos que esta relação tem que ser pensada em duas etapas na teoria freudiana. Por um lado, há que se pensar a relação entre a mente inconsciente e o cerebral e, por outro, a relação entre a mente inconsciente e a consciência. A segunda dessas relações permanece bem mais obscura do que a primeira, o que nos permite dizer que o grande enigma, em Freud, é a consciência.

Palavras-chave: Freud; Metapsicologia; Problema mente-cérebro; Inconsciente; Consciência.


ABSTRACT

This paper discuss the Freudian views on the mind-brain relation. We shall argue that, in Freudian theory, this relation must be considered in two stages: first, the relation between the brain and the unconscious mind, and then the relation between the unconscious mind and the consciousness. The latter remains far more obscure than the former, which allow us to conclude that, for Freud, the ultimate enigma is the consciousness.

Keywords: Freud; Metapsychology; Mind-brain problem; Unconscious; Consciousness.


 

 

A questão da relação mente-cérebro se coloca, para Freud, desde suas primeiras especulações metapsicológicas. Em Sobre a concepção das afasias (1891) – texto que pode ser considerado o passo inaugural da metapsicologia –, encontramos a primeira reflexão freudiana sobre essa questão, que poucos anos depois, no Projeto de uma psicologia (1895), é repensada e modificada, como conseqüência da introdução do conceito de psíquico inconsciente. Após esse texto, não parece haver modificação substancial na concepção freudiana sobre a relação entre o mental e o cerebral. Neste artigo, procuraremos argumentar que, a partir de 1895, a relação mente-cérebro tem que ser pensada em duas etapas na teoria freudiana, e que o grande impasse, que permanece sem resolução nessa teoria, diz respeito à consciência.

Em Sobre a concepção das afasias (1891), Freud se opõe às principais teorias sobre as afasias predominantes na época, em especial àquelas defendidas pelos neurologistas Carl Wernicke e Ludwig Lichtheim, e se opõe também às hipóteses neurológicas mais gerais nas quais se baseavam a teoria desses autores: as de Theodor Meynert. Entre outras coisas, Freud argumenta que a maneira como esses neurologistas concebiam a localização de funções cerebrais não podia ser correta. Para eles, cada área do cérebro abrigaria uma função específica, e as várias funções seriam independentes umas das outras. No caso da linguagem, haveria uma região cerebral delimitada, que seria responsável por sua função sensorial, outra pela função motora, e assim por diante. Os sintomas das afasias, segundo o que eles propunham, poderiam ser inteiramente explicados pela localização da lesão no cérebro. A partir de uma série de argumentos, que revelam a inadequação da teoria aos dados clínicos de pacientes afásicos e apontam incoerências internas da teoria, além de outros problemas, Freud defende que a relação entre a anatomia e a fisiologia da linguagem é mais complexa do que supunham Meynert, Wernicke e seus seguidores. Ele argumenta que uma mesma área cerebral pode abrigar várias funções, e que as diversas funções não são independentes umas das outras. Por isso, não é possível estabelecer a localização precisa das várias funções, mas apenas uma localização geral. Para representar o funcionamento da linguagem, Freud propõe, então, a noção de aparelho de linguagem".

O aparelho de linguagem consistiria em vários níveis de processos associativos similares, os quais se sobreporiam uns aos outros. Esses processos associativos seriam os concomitantes das representações-palavra. Freud assume claramente, em 1891, a doutrina da concomitância entre o mental e o cerebral, defendida pelo neurologista inglês Hughlings Jackson (1884). Ele afirma:

A relação entre a cadeia de processos fisiológicos que se dá no sistema nervoso e os processos psíquicos provavelmente não é de causalidade. Os processos fisiológicos não cessam quando estes começam; tendem a continuar, porém, a partir de certo momento, um fenômeno psíquico corresponde a cada parte da cadeia ou a várias partes. O psíquico é, portanto, um fenômeno paralelo ao fisiológico (um concomitante dependente) (Freud, 1891, p. 98).

Segundo a doutrina da concomitância de Jackson, os estados mentais, ou conscientes, e os estados nervosos ocorreriam paralelamente, mas não haveria interferência de um sobre o outro. Para cada estado mental haveria um estado nervoso correlativo. Citando um exemplo dado por Jackson: em uma percepção visual, há um circuito físico da periferia sensorial para os centros superiores, e destes, retornando à periferia muscular. A imagem visual, que seria um estado puramente mental, surgiria durante as" (e não das") atividades dos elos superiores dessa corrente puramente física. O evento físico e o psíquico possuiriam naturezas diferentes, como deixa clara a seguinte afirmação de Jackson: um estado psíquico é sempre acompanhado por um estado físico, todavia as duas coisas têm naturezas distintas" (1878-79, p. 160).

Em 1891, portanto, Freud assume uma posição bem clara a respeito da relação mente-cérebro. O mental é um fenômeno concomitante" ao cerebral. Seguindo também os passos de Jackson, Freud mantém, em 1891, a identificação do psíquico ao consciente: todo o psíquico – portanto, toda representação, fosse ela produzida por estímulos externos ou internos – seria necessariamente consciente. O processo cortical associativo deixaria atrás de si, diz Freud, uma modificação permanente, que representaria a possibilidade de uma recordação. Contudo, essa modificação seria um fato puramente neurológico, de forma que não seria possível se falar em uma imagem latente de recordação". Todo fenômeno psíquico seria necessariamente consciente:

É muito duvidoso que essa modificação esteja de algum modo associada com algo psíquico. Nossa consciência não contém nada que possa justificar, do ponto de vista psicológico, o termo imagem latente de recordação". No entanto, cada vez que o mesmo processo cortical volta a ser suscitado, o psíquico emerge novamente como imagem de recordação (Freud, 1891, p. 99).

Portanto, em Sobre a concepção das afasias, Freud recusa a possibilidade de haver algo psíquico que não seja também consciente. Contudo, com a introdução da noção de um psíquico inconsciente em sua teoria, a relação mente-cérebro torna-se bem mais complexa. Na verdade, com a introdução da noção de psíquico inconsciente, a relação mente cérebro passa a ter que ser pensada em dois níveis.

 

A duplicação da relação mente-cérebro a partir da introdução do conceito de psíquico inconsciente no Projeto de uma psicologia"

O conceito de psíquico inconsciente é desenvolvido por Freud pela primeira vez no Projeto de uma psicologia, texto escrito em 1895, mas publicado postumamente em 1950. Nos textos sobre as neuroses que antecedem a redação do Projeto de uma psicologia, Freud já reconhece que é preciso supor a existência de processos inconscientes" por trás dos sintomas neuróticos, mas ele hesita em atribuir uma natureza psíquica a esses processos. No texto As neuropsicoses de defesa (1894), por exemplo, ele manifesta sua dúvida quanto a considerar ou não os processos inconscientes envolvidos nas neuroses como sendo processos psíquicos, mas não chega a uma conclusão definitiva. Nesse trabalho, ele formula uma hipótese sobre o mecanismo psíquico das psiconeuroses, de acordo com a qual a gênese destas repousaria em um esforço do eu para defender-se de uma representação intolerável. Essa defesa consistiria na retirada do afeto atrelado à representação traumática, fazendo com que esta representação ficasse isolada dentro da consciência, e assim constituísse o núcleo de um grupo psíquico secundário. Freud argumenta que a representação patogênica estaria excluída dos processos associativos, mas permaneceria dentro da consciência, e que o divórcio entre a representação e seu afeto ocorreria sem consciência". Contudo, nesse momento, ele hesita em aceitar que esses processos que ocorrem na ausência da consciência sejam psíquicos:

A separação entre a representação sexual e seu afeto, e o enlace deste último com outra representação, adequada porém não inconciliável: eis aí processos que acontecem sem consciência, que somente é possível supor, e que nenhuma análise clínico-psicológica é capaz de demonstrar. Talvez fosse mais correto dizer: estes, de modo algum são processos de natureza psíquica, mas processos físicos cuja conseqüência se figura como se real e efetivamente tivesse acontecido o expresso mediante o circunlóquio separação entre a representação e seu afeto" e enlace falso" deste último (Freud, 1894, p. 67).

Percebemos, nesse momento, uma hesitação de Freud quanto a atribuir ou não uma natureza psíquica aos processos inconscientes determinantes das neuroses. No Projeto de uma psicologia, essa questão é esclarecida: o psíquico passa a ser pensado como sendo em sua maior parte inconsciente. A consciência – que, segundo o que Freud propusera em 1891, seria uma qualidade de todo o psíquico – passa a ser uma qualidade que pode ou não se acrescentar a apenas uma parcela dos processos psíquicos inconscientes. Na seguinte passagem do Projeto..., Freud admite explicitamente a independência do psíquico em relação ao consciente:

Temos tratado os processos psíquicos como algo que pode prescindir do conhecimento dado pela consciência, existindo independentemente de tal consciência (...). Se não nos deixarmos desconcertar por tal fato, desse pressuposto segue-se que a consciência não proporciona nem conhecimento completo, nem seguro, dos processos neuronais; cabe considerá-los, em primeiro lugar e em toda a extensão, como inconscientes e cabe inferi-los como as outras coisas naturais (Freud, 1895, p. 400).

Em Sobre a concepção das afasias, como comentamos, Freud sustentara a existência de uma relação de concomitância entre o mental e o cerebral. Parte dos processos corticais associativos seriam os concomitantes" fisiológicos das representações. Estas, como todo psíquico, emergiriam em paralelo a um processo cerebral específico, e seriam necessariamente conscientes. No Projeto..., Freud modifica essa hipótese: a representação passa a ser identificada ao processo cortical associativo, que em 1891 era concebido como consistindo apenas no concomitante fisiológico da representação. Dessa forma, para incorporar em sua teoria a noção de psíquico inconsciente, Freud passa a considerar como psíquicos aqueles processos cerebrais que eram pensados, em 1891, como sendo apenas os concomitantes fisiológicos do mental. Os processos neuronais descritos por Freud em 1895 são o psíquico e não, como interpretam alguns autores como Solms e Saling (1986) e Strachey (1998), apenas seus correlatos. Ao contrário do que sustentam esses autores, em nenhum momento, no Projeto..., Freud diz estar formulando uma teoria acerca dos correlatos neurais do psíquico; ao contrário, ele deixa claro que os processos envolvendo quantidade e neurônios que ocorrem no sistema de memória ? são processos psíquicos", e que estes são independentes da consciência. Esta, segundo ele, seria o lado subjetivo" de uma parte dos processos que ocorreriam no sistema nervoso, isto é, dos processos do sistema ?, que seria o responsável pelo surgimento das qualidades sensoriais:

Consciência é, aqui, o lado subjetivo de uma parte dos processos físicos no sistema nervoso, isto é, dos processos ?; e sua supressão não deixa inalterada a ocorrência psíquica, mas inclui em si a supressão da contribuição de ? (Freud, 1985, p. 190).

Essa afirmação de Freud, segundo a qual a consciência seria o lado subjetivo" dos processos que correspondem ao sistema ?, sugere que, ao contrário dos processos psíquicos inconscientes, que são processos cerebrais – isto é que são os processos do sistema ? –, a consciência não é o processo ?, mas sim algo que o acompanha. Portanto, a partir do Projeto..., ou melhor, a partir da introdução do conceito de psíquico inconsciente, a concepção freudiana acerca da relação mente-cérebro passa a ter que ser pensada em duas etapas: por um lado, a relação entre a mente inconsciente e os processos cerebrais; e por outro, a relação entre a mente consciente e a inconsciente. No Projeto..., a hipótese de Freud sobre a primeira dessas relações é bem clara: há uma identidade entre os processos mentais inconscientes e uma parte dos processos cerebrais. Já a segunda permanece bem mais obscura, uma vez que Freud não esclarece o que significa ser o lado subjetivo" dos processos ?. Haveria uma relação de paralelismo entre a consciência e os processos inconscientes? Nesse caso, Freud teria, então, deslocado o paralelismo que ele defendera existir em 1891 entre o cerebral e o psíquico para entre o psíquico inconsciente (agora identificado ao cerebral) e a consciência? Vejamos se na metapsicologia posterior ao Projeto... há algo que esclareça essa questão. Mas antes disso, vamos comentar uma outra idéia de Freud, que também aparece pela primeira vez no Projeto...: o psíquico inconsciente deve ser abordado de uma perspectiva científico-naturalista, ao passo que a consciência estaria para além do alcance da ciência natural. Após elaborar parte das hipóteses fundamentais do aparelho desenvolvido no Projeto..., Freud diz:

Até agora, de nenhum modo discutimos que toda teoria psicológica, além das realizações decorrentes do lado científico-naturalista, tem de satisfazer ainda uma grande exigência. Ela nos deve explicar aquilo que conhecemos da forma mais enigmática por meio de nossa consciência" (Freud, 1895, p. 186).

Essa afirmação parece sugerir que os fenômenos conscientes não seriam passíveis de uma explicação científico-naturalista. Mas isso se deveria ao fato de eles não possuírem a mesma natureza dos processos inconscientes? Ou seja, a consciência não consistiria em processos materiais ou, mais especificamente, em processos cerebrais? Nesse caso, seria Freud defensor de um dualismo, e então teria ele trazido o dualismo de substâncias, com todos os problemas a ele associados, para dentro do campo do psíquico? Parte do psíquico – o inconsciente – seria material, e outra parte – o consciente – seria imaterial; e por isso, parte do psíquico estaria dentro do campo da ciência natural, enquanto outra parte estaria fora desta? Vejamos se a metapsicologia subseqüente ao Projeto... ajuda a esclarecer também essas questões.

 

A relação entre a mente e o cérebro na metapsicologia posterior ao Projeto de uma psicologia"

É comum a idéia de que, após o Projeto..., Freud abandonou totalmente suas especulações neurológicas e passou a se dedicar exclusivamente à psicologia. James Strachey (1998), por exemplo, afirma que a partir de 1900, o neurólogo Freud foi substituído pelo psicólogo Freud". Mas não parece ser possível afirmar que houve uma mudança tão drástica. Acreditamos que há justificativas para sustentarmos que nem no capítulo 7, nem em qualquer outro momento de sua obra, ocorreu uma total substituição do neurólogo pelo psicológo Freud. A hipótese de que os processos psíquicos inconscientes são processos nervosos, e portanto, a teoria metapsicológica que busca descrevê-los é, em última instância, uma neuropsicologia especulativa parece ter sido mantida por Freud ao longo de toda sua obra. A mudança que parece ter ocorrido é que, após o Projeto..., Freud desiste de tentar formular sua teoria metapsicológica em termos exclusivamente neurológicos, provavelmente devido à insuficiência do conhecimento sobre o cérebro, e passa a empregar metáforas psicológicas. Mas isso não quer dizer que ele deixou de acreditar que um dia a metapsicologia se tornaria explicitamente uma neuropsicologia. Vários autores, entre eles Pribram e Gill (1976) e Solomon (1976) defendem esse mesmo ponto de vista.

Na seguinte passagem da carta a Fliess, de 22 de setembro de 1898, época em que A interpretação dos sonhos estava sendo redigida, Freud faz o seguinte comentário:

Não estou de modo algum em desacordo com você, nem tenho a menor inclinação a deixar a psicologia suspensa no ar, sem uma base orgânica. No entanto, à parte essa convicção, não sei como prosseguir, nem teórica, nem terapeuticamente, de modo que preciso comportar-me como se apenas o psicológico estivesse em exame (apud Masson, 1986, p. 327 – grifo nosso).

Esse comentário parece indicar que se houve um abandono da neurologia por Freud, isso não resultou do fato de ele ter passado a conceber o psíquico de maneira diferente de 1895, mas sim da dificuldade, que ele acreditava provisória, encontrada para formular uma teoria explicitamente neurológica, como a que ele tenta desenvolver no Projeto1.

No capítulo 7 de A interpretação dos sonhos (1900), Freud descarta a tentativa de estabelecer uma correspondência anatômica, mesmo que geral, para o aparelho psíquico. Além disso, ele deixa de formular suas hipóteses sobre o aparelho psíquico em termos exclusivamente neurológicos. Mas ele parece manter a hipótese de que os processos psíquicos são processos nervosos, e parece manter a esperança de que um dia eles pudessem ser explicados como tais. Em várias passagens, no capítulo 7 e em outros textos metapsicológicos, ele se refere explicitamente a processos nervosos" ou à energia nervosa". Em vários momentos, ele deixa claro também que considera suas explicações em termos exclusivamente psicológicos como provisórias" e manifesta sua crença em que um dia elas pudessem vir a ser substituídas por explicações em termos fisiológicos ou químicos. Em Introdução ao narcisismo, por exemplo, ele diz: deve-se recordar que todas as nossas provisoriedades psicológicas deverão, alguma vez, se assentar no terreno dos substratos orgânicos" (1914, p. 46). Em Além do princípio do prazer, ele comenta: é provável que os defeitos de nossa descrição desapareçam se, em lugar dos termos psicológicos, pudéssemos já usar os fisiológicos ou químicos" (1920, p. 268).

Na maior parte dos textos metapsicológicos há indícios de que Freud manteve a identificação entre os processos psíquicos inconscientes e processos nervosos, mas é no Esboço de psicanálise que essa hipótese é apresentada da maneira mais explícita:

Muitos, situados tanto dentro como fora da ciência, se conformam em adotar o suposto de que a consciência é, só ela, o psíquico, e então, não resta a fazer, na psicologia, nada mais que distinguir, no interior da fenomenologia psíquica, entre percepções, sentimentos, processos cognitivos e atos de vontade. Contudo, há acordo geral de que esses processos conscientes não formam séries sem lacunas, fechadas em si mesmas, de modo que não haveria outra alternativa a não ser adotar a suposição de uns processos físicos ou somáticos, concomitantes do psíquico, aos quais parece ser preciso atribuir uma perfeição maior do que às séries psíquicas, pois alguns deles têm processos conscientes paralelos, e outros não. Isto sugere, de uma maneira natural, pôr o acento na psicologia sobre esses processos somáticos, reconhecer neles o psíquico genuíno e buscar uma apreciação diversa para os processos conscientes (1938, p. 155 – grifos nossos).

Nessa passagem, Freud deixa claro em que consiste o psíquico inconsciente: em processos físicos ou somáticos. Além disso, ele esclarece como a relação entre o psíquico inconsciente e a consciência é por ele pensada: os processos conscientes são concomitantes" ou paralelos" a uma parte dos processos somáticos que constituem o psíquico inconsciente. Essa afirmação parece corroborar nossa hipótese de que no Projeto de uma psicologia, de fato Freud tenha deslocado a relação de concomitância, que em 1891 ele supunha existir entre os processos nervosos e o psíquico, para entre o psíquico inconsciente e a consciência. Para incorporar em sua teoria a noção de psíquico inconsciente, Freud identifica os processos nervosos, que em Sobre a concepção das afasias eram pensados como sendo apenas os concomitantes físicos do psíquico, ao próprio psíquico inconsciente e mantém a relação de concomitância entre esses processos nervosos que compõem o psíquico inconsciente e a consciência. Então, quando ele afirma, em 1895, que a consciência é o lado subjetivo" dos processos do sistema ?, ele estaria apenas usando outro termo para expressar essa relação de concomitância ou de paralelismo. Na passagem que acaba de ser citada, ele parece usar esses dois termos como sinônimos.

No Esboço de psicanálise, Freud volta também a afirmar que uma psicologia que tenha como objeto de estudo apenas a consciência não pode ser uma ciência natural, e que a suposição feita pela psicanálise de que o psíquico genuíno" é inconsciente permitiu configurar a psicologia como uma ciência natural. Ele argumenta:

Uma psicologia que se restrinja ao estudo dos fenômenos da consciência não pode ser uma ciência natural, uma vez que a consciência é lacunar e suas manifestações não podem ser explicadas em termos causais sem a suposição de processos inconscientes que as determinem. As leis que governam os processos psíquicos não podem ser apreendidas com base apenas nos fenômenos conscientes. Ao expandir o campo do psíquico em relação ao da consciência, a psicanálise abriu a possibilidade de construir uma psicologia como uma ciência natural, pois com a suposição do psíquico inconsciente, a série psíquica passou a mostrar-se como uma série causal completa, sem as lacunas apresentadas pela consciência. Tendo em vista que era isso o que Freud queria dizer ao afirmar que a consciência não pode ser abordada de uma perspectiva científico-naturalista, não se segue necessariamente dessa afirmação a hipótese de que a consciência consiste em um fenômeno de natureza distinta do físico, e de que é por isso que ela estaria para além das realizações científico-naturais", como diz Freud no Projeto.... Mas a hipótese freudiana de que haveria uma relação de concomitância entre a consciência e os processos somáticos inconscientes, ou de que a consciência seria o lado subjetivo desses últimos processos, implica em supor que se trata de processos de natureza distinta? Seria Freud um dualista cartesiano? O seguinte comentário de Chomsky é pertinente em relação ao problema em questão:

Nós não somos forçados, como o foi Descartes, a postular uma segunda substância quando lidamos com fenômenos que não podem ser expressos em termos de matéria em movimento (...). É uma questão interessante saber se o funcionamento e a evolução da mentalidade humana podem ser acomodados dentro do esquema das explicações físicas, assim como é entendido atualmente, ou se existem princípios novos, agora desconhecidos, que precisam ser revelados, talvez princípios que surgem apenas em níveis mais altos de organização do que os que agora podem ser submetidos à investigação física (apud Nagel, 1976, p. 35).

Talvez dizer que a consciência seja o lado subjetivo ou que seja paralela aos processos inconscientes tenha sido uma alternativa encontrada por Freud para não se comprometer em assumir uma posição a respeito de algo que ele não vislumbrava possibilidade alguma de explicar. Mas a impossibilidade de explicar a consciência em termos científico-naturalistas pode ser pensada como uma impossibilidade provisória, decorrente da forma como organizamos nosso conhecimento atualmente, que um dia será superada. O surgimento da consciência ainda hoje é um enigma que os cientistas e filósofos da mente estão tentando solucionar.

Atualmente, na filosofia da mente, há uma concepção sobre a relação mente-cérebro chamada de dualismo de propriedades" que afirma, conforme explica Teixeira (2000), que os estados mentais são uma propriedade especial" que emerge da substância material2. Ao contrário do emergentismo materialista, o dualismo de propriedades sustenta que tal propriedade especial não pode ser descrita em termos físicos. Os estados subjetivos seriam produzidos pelo cérebro, no entanto, eles nunca poderiam ser integralmente mapeados em relação a estados cerebrais. Trata-se, portanto, de uma posição materialista – pois não há postulação de uma substância adicional –, que contudo, nega a possibilidade de reduzir o mental às propriedades físicas do cérebro. O dualismo de propriedades não acredita na possibilidade de que uma descrição física do mundo possa ser tão completa a ponto de nela poderem ser incluídos também os fenômenos mentais, mas aceita a conexão causal entre o físico e o mental. Essa hipótese do dualismo de propriedades –, que como todas as outras formuladas para conceber a relação entre o cérebro e a consciência, não deixa de ser problemática – é interessante por manter-se dentro de uma postura materialista e, ao mesmo tempo, recusar a possibilidade de explicar a consciência em termos de processos físicos. Essa seria uma alternativa para pensarmos que, do fato de Freud afirmar que a consciência não pode ser abordada de uma perspectiva científico-naturalista, ou dele dizer que a consciência é concomitante a uma parte dos processos inconscientes, não se segue necessariamente que os estados conscientes seriam fenômenos de natureza distinta do físico. Mas é claro que não podemos afirmar que Freud tivesse em mente algo desse tipo. Suas afirmações a respeito da relação entre o psíquico inconsciente e a consciência são muito vagas para permitirem esse tipo de inferência. Sem dúvida, essa é uma questão em aberto.

 

Considerações finais

Como argumentamos anteriormente, temos que pensar a concepção de Freud a respeito da relação mente-cérebro em duas etapas. Por um lado, há a relação entre os processos nervosos e a mente inconsciente, e por outro, a relação entre os processos cerebrais que compõem a mente inconsciente e a consciência3. A respeito da primeira dessas relações, Freud é bem mais explícito do que a respeito da segunda. Ele deixa claro que os processos psíquicos inconscientes são processos nervosos e manifesta sua crença em que um dia eles possam ser explicados como tais. Os processos psíquicos inconscientes seriam processos nervosos com certa organização específica: dada uma certa organização dos processos cerebrais, eles adquiririam propriedades que poderiam ser chamadas de mentais.

ou se ela seria um fenômeno paralelo, de natureza distinta. Enfim, o problema é que não sabemos em que Freud pensava quando dizia que a consciência é o lado subjetivo", ou é concomitante", ou é paralela" a uma parte dos processos que correspondem ao psíquico inconsciente. Seria a consciência um fenômeno emergente em relação à parte dos processos psíquicos inconscientes, mas que, assim como propõe o dualismo de propriedades, não poderia ser explicado em termos físicos? Dessa forma, teria Freud sempre mantido uma postura materialista?

De qualquer forma, com relação à consciência, tudo isso não passa de mera especulação. O que fica claro é que, para Freud, os processos psíquicos inconscientes seriam processos cerebrais e que a consciência seria algo que acompanharia uma parte desses processos. No entanto, o tipo de relação existente entre os processos inconscientes e a consciência permanece indefinida. Não fica claro se Freud acreditava que a impossibilidade de explicar a consciência em termos científico-naturalistas seria uma impossibilidade definitiva ou provisória, nem se a consciência é pensada como resultando de alguma forma de processo físico, ou se, ao contrário, Freud trouxe o dualismo cartesiano para dentro da esfera do mental. Diante disso, podemos dizer que, em Freud, o grande enigma é a consciência, o que o coloca ao lado dos neurocientistas e filósofos da mente atuais4.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
R. Flauzino Marques, 10 / 24 – 13562-002 – Jd. Alvorada – São Carlos/SP
Tel: + 55 16 3378-7455
E-mail: fatimacaropreso@uol.com.br

Recebido em: 30/11/2006
Aprovado em: 18/08/08

 

 

Fátima Caropreso

Psicóloga; Mestre e Doutora em Filosofia (Universidade Federal de São Carlos); Pós-Doutoranda em Filosofia (UNICAMP).

 

Notas

1 Esse tópico é desenvolvido mais ostensivamente por Caropreso (2006).
2 Os principais defensores do dualismo de propriedades no século XX são os filósofos Thomas Nagel e David Chalmers, segundo Teixeira (2000).
3 Simanke (2006) discute como a relação mente-cérebro e a relação mente-mente é pensada na metapsicologia freudiana, e aponta alguns pontos de convergência entre as hipóteses freudianas e as hipótese defendidas por cientistas cognitivos contemporâneos.
4 Agradeço ao Prof. Dr. Richard Theisen Simanke pela leitura e comentários deste texto.