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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.13 n.10 São Paulo  2005

 

ARTIGO

 

A matriz discursiva da psicanálise na compreensão e na análise de uma instituição que se 'ocupa' da infância

 

 

Delia María De Césaris*

Clinica Laços, Sorocaba, SP

 


RESUMO

Pretendo apresentar o relato de uma experiência de análise institucional, articulando algumas reflexões sobre como a matriz discursiva da psicanálise pode contribuir para a compreensão e a análise das instituições que se “ocupam” da infância. A partir da afirmação de Lacan, de que a verdade, na experiência analítica, "tem estrutura de ficção”1 , e que o véu que a reveste, longe de disfarçá-la, em realidade faz aparecer “sua natureza de semblante”, tento, neste trabalho, desenvolver algumas teses de como as instituições acabam se identificando com um semblante de cuidados ou escolarização que, na realidade, só disfarça uma outra verdade. Da mesma maneira, as teorias, ou a adoção de algumas delas, além de nos permitir fazer inteligíveis a complexidade da realidade e suas múltiplas facetas, podem, paradoxalmente, ser um véu usado para ocultar ou para disfarçar seu serviço a uma ideologia.

Palavras-chave: análise institucional, analisadores, morte nas instituições.


ABSTRACT

I intend to present an account of an experience of institutional analysis, articulating some reflections about how the discursive matrix of psychoanalysis can contribute to understand and analyze the institutions which "look after" children. From Lacan’s statement that, in the analytic experience, truth has the "structure of fiction" and that the veil which covers it, far from disguising it, actually makes it show "its nature of semblance", I attempt in this paper to develop a few thesis on how institutions identify themselves with a semblance of care taking or schooling which, in reality, only disguises a different truth. In the same way, theories, or the adoption of one of them, beyond making us capable of understanding the complexity of reality and its multiple facets, can paradoxically be a veil employed to hide its service to an ideology.

Key words: institutional analysis, analysts, death in institutions.


1. INTRODUÇÃO

“Custa acreditar que a mentira tenha uma história

Quem se atreveria a contar a história da mentira?

E quem a proporia como uma história verdadeira?”“.

Jacques Derrida2

Tentarei escrever sobre as vicissitudes de uma experiência de análise institucional, procurando pôr em palavras os retalhos que ficaram registrados em meu caderno de notas e em minha memória. O tema do V Colóquio do LEPSI3 (Laboratório de Estudos de Educação e Psicanálise da Faculdade de Educação da USP) trouxe a lembrança de uma dessas experiências que balizaram minha prática.

Acredito que escrever em nome próprio sobre a intimidade de uma experiência significa se permitir deixar marcas e vestígios, por meio das palavras que, formando parte de uma corporeidade, desenharam os espaços e os tempos de um mundo subjetivo.

Tanto como participante quanto como assessora ou analista de organizações institucionais, escutei, e escuto com freqüência, diversas queixas em relação a algum membro institucional, cuja presença ou ausência faria variar substancialmente o destino do projeto e da vida institucional. Mas, quando se tenta escutar essas queixas, além das representações imaginárias, podemos inferir um acúmulo de “não-ditos” que, subterraneamente, contribuem para a ambigüidade das relações institucionais.

Sabemos, com Lacan, que há uma enorme distância entre o “dizer” e o “dito”, hiato que o “dizer” não consegue pontilhar. No falar há uma impossibilidade para dizer o que se quer dizer, mas é nessa falha que se filtra, em momentos especialmente fecundos, aquilo que ultrapassa o sujeito.

A partir dessa impossibilidade me pergunto:

 Como esses não-ditos atuam na trama simbólica das instituições?

 O não-dito tem o valor de uma verdade não revelada?

Proponho responder a essas perguntas a partir de um relato sobre um recorte de intervenção institucional em uma escola que atendia crianças chamadas “especiais”4 , sediada em uma cidade do interior da Província de Córdoba, na Argentina.

A abordagem teórico-prática foi realizada segundo o marco discursivo que nos proporciona a Análise Institucional5 , a qual estuda como as pessoas, no âmbito de suas atividades cotidianas, podem refletir por si mesmas acerca das forças que agem sobre sua personalidade, tomando “em” consciência suas representações inconscientes referidas a seus papéis institucionais, funções, responsabilidades e linhas de dependência, esclarecendo aspectos fundamentais de suas condutas individuais na organização e nos grupos.

Em contraposição às aproximações psicossociológicas, onde predominam os esforços de adaptação, a regulação e a redução das tensões, Ardoino6 diz que, desde a perspectiva da Análise Institucional, a intervenção é metodologicamente “desordenante”, distinta daquelas que almejam o encontro do objeto perdido que “repare”, “cuide”, “ajude” ou “assista”.

2. TOMANDO O TOURO À UNHA

No primeiro contato, realizado por telefone pela diretora da escola, recebo o pedido de uma intervenção institucional, pois os membros da instituição tinham decidido solicitar uma avaliação sobre o que estava acontecendo na escola. De seus comentários posso recortar a seguinte queixa: “existe um jeito difuso de exercer os papéis profissionais e isso produz uma invasão no terreno dos outros”.

O plantel de profissionais consistia em aproximadamente 50 pessoas, incluindo psicopedagogos, psicólogos, professores de educação diferenciada7 e de artes plásticas, técnicos agrônomos e um professor de educação física, além dos funcionários administrativos e técnico-docentes.

Para elucidar qual poderia ser o campo de intervenção, tive de escolher entre “pensar para fazer”, caminho em que prevaleceria uma estratégia de reflexão prévia à intervenção, ou “fazer para pensar”8, o que significaria pôr as pessoas para trabalhar a partir de suas práticas e produções. Minha opção foi uma terceira, tentando encontrar um diálogo entre ambas as perspectivas, com o intuito de potencializar o pensamento e os meios de sua produção.

A hipótese foi a de que a produção de pensamentos e palavras poderia devolver aos atores institucionais uma conscientização dos estratos de saber que lhes pertenciam.

3. METAPSICOLOGIA DAS INSTITUIÇÕES

Elliot Jaques9 fala sobre a coexistência de quatro tipos de estruturas em uma mesma instituição:

a) formal ou oficial: a que consta nos papéis;

b) suposta: a que os membros percebem como real;

c) existente: a que efetivamente opera; e

d) requerida: a de que todos os componentes da situação precisam.

A partir desses pressupostos, e para indagar sobre as áreas de conflito, organizei uma série de entrevistas individuais e grupais, oficinas de expressão criativa e jogos de simulação psicodramática, tanto com o pessoal diretivo como com o corpo docente, com o objetivo de delinear os seguintes eixos:

° A estrutura da organização, definindo as relações de autoridade e as responsabilidades;

° O grau de autonomia nas decisões; e

° A percepção mútua entre os diferentes atores institucionais.

Durante as atividades propostas aconteceram múltiplas verbalizações, das quais posso grifar como significativas e recorrentes as seguintes: “Não conseguimos ter claro para que estamos aqui dentro, e, se o conseguimos, não sabemos se os outros aspectos se solucionariam”; “Não nos sentimos bem”; “Embora tenhamos um projeto educativo, só trocamos fraldas, limpamos vômitos”; “Produz mal-estar que às vezes precisemos de materiais didáticos e a Mantenedora não entenda”; “Trabalhamos mais como assistentes sociais”; “Para que venho à escola, para dar-lhes banho?”.

Podemos ver nesses ditos uma forte reclamação sobre a necessidade de reconhecimento de seu compromisso cotidiano como atores institucionais, o qual se repete no que os membros do Gabinete Psicopedagógico dizem: “Há muitos casos com problemas. É difícil trabalhar com as famílias”; “Há crianças desnutridas, maltratadas, com diagnóstico de ‘debilidade mental leve’. Não sabemos o que fazer. Encaminhamos para a escola comum ou ficam na escola especial?”; “As crianças psicóticas são para esta escola?”; “Há muita burocracia. A escola no período da manhã parece outra comparada à do período da tarde”; “Todos temos critérios diferentes ante a mesma situação”.

Os diretores expressam que “algumas professoras manejam toda a informação sobre seus alunos sem compartilhá-la”, que há membros que não respeitam o tempo ou o espaço de outros e também usam a metáfora “fantasmas” para denominar funcionários que “faltam por conta-gotas”.

Na reunião com as Professoras Integradoras10 aparece um dos aspectos fundamentais do mal-estar: a integração dos alunos à escola comum.

Dizem: “A escola desaparecerá ao passar os alunos à escola comum”; “O que queremos como escola?”; “É difícil encaixar na Reforma Educativa”; “A Comissão Diretiva não quer que a gente saia da escola para a Integração. Eles pensam que assim a escola ficará pequena, e que não podem controlar as pessoas que irão trabalhar nas escolas comuns, embora a DIPE11 queira que as escolas especiais sejam escolas de alternativa e nos dê muita autonomia”; “Isto à Mantenedora lhe incomoda porque querem uma escola grande e fechada”; “A Presidenta da Mantenedora (Representante Legal) é uma docente antiga que pensa que as crianças estão melhor aqui”; “A Supervisora das Escolas Comuns também pensa o mesmo, tem muita resistência contra a Integração”; “A escola sofre muitas pressões”; “A Presidenta acredita que as crianças estão melhor aqui e assim os professores não ficarão desempregados”.

Nesse momento aparece como outro aspecto do conflito a necessidade de mentir; isso é formulado da seguinte maneira: “Temos de transgredir para fazer, dissimulando que fazemos outras tarefas nas escolas comuns”; “Este ano nos aconteceu de não ter vontade de vir, somos vários que sentimos o mesmo, estamos muito mal pagos”.

Uma das psicopedagogas expressa seus sentimentos contraditórios sobre a Integração ao manifestar que gostaria de fazer algumas coisas na escola, mas não pode, porque tem de visitar as pré-escolas onde assiste os alunos integrados12.

À medida que se aprofundava o trabalho e se sucediam as entrevistas pude apreciar que se instituiu um discurso com estatuto de testemunha onde era necessário fazer-se cargo de sua palavra. Assim, com o aval do grupo que escutava, outorgava e participava, começaram a se potencializar queixas generalizadas em relação à competência profissional da diretora e da vice-diretora para o exercício de suas funções, vinculadas à divergência de opiniões que acontecia entre elas, seus estilos de condução, a percepção do conflito entre a diretora e a representante legal, etc.

No percurso do trabalho foi perfilando-se o que inferimos como a raiz do pedido de intervenção: o anseio de produzir um espaço de análise e reflexão sobre sua identidade como sujeitos, em uma instituição que parecia ter perdido a imagem utópica dos tempos de sua fundação.

A partir das expressões dos membros desta escola pode-se dizer que existe uma grande divergência entre as estruturas, segundo o proposto por Jaques13, contradição que favorecia, nessa situação, a aparição de conflitos e tensões entre os agentes institucionais. É necessário ter em conta esse substrato, tal como o afirma esse autor, para não interpretar no vazio. A estrutura oficial correspondia a uma escola especial que atendia a crianças e adolescentes carentes com diferentes tipos de déficits, contexto onde se inseria também a figura do representante legal. A essa estrutura se superpõe a suposta, percebida pelos membros como de assistência social e de substituição das obrigações familiares, as quais eram transferidas para eles, embora demandassem reconhecimento “profissional” em contraste com as atividades de cuidado, maternagem e limpeza. Sobre estas existe a requerida pelo sistema educativo e pela comunidade, a qual exige educação e atendimento às crianças com déficits motores, cognitivos e emocionais, proporcionando também formação para o trabalho e assistência alimentar. É a estrutura existente, a não-sabida, e que poderíamos denominar de real, usando um termo compatível com a psicanálise lacaniana, a que deve ser inferida por meio de uma análise sistemática.

Baseando-nos em três registros dos que fala Lacan14, poderíamos nos arriscar a pensar que, se os articulássemos com as estruturas mencionadas, poderia se estabelecer a seguinte combinatória:

a) entre simbólico e imaginário = formal–oficial;

b) entre simbólico e real = suposta;

c) entre imaginário e real = requerida;

d) entre simbólico, imaginário e real = existente;

Assim, podemos perceber que os atores desse drama institucional padecem de uma permanente tensão entre o que se requer deles e o real institucional, o qual se manifesta como uma grande dificuldade para empreender uma tarefa em comum e como total falta de autonomia frente às decisões e à desconfiança dos diretores. Isso desencadeia uma necessidade de mentir, uma cobrança mútua sobre os motivos do mal-estar institucional e o medo de perder o emprego frente à “integração” dos alunos na escola comum.

É interessante o que salienta Enriquez15 a respeito desse tipo de conflito, quando diz que os atores não percebem que a instituição não é mais que o que eles fazem; consequentemente os sujeitos se sentem culpados cada vez que são criativos, porque “têm a sensação de transgredir valores sagrados aos que aderem e temem”. As soluções que se lhes oferecem são relativamente simples, mas muito custosas: obedecer às intimidações vividas como externas, ou evitar as normas sem dizê-lo, instalando-se assim o segredo e a mentira por medo de serem negativamente avaliados. Cada qual teme, além de ser descoberto, que os demais sejam seus perseguidores ao advertir as contradições entre os ditos e os atos; dessa forma ficam aprisionados em uma mentira generalizada, de que todos acabam sendo cúmplices.

A esta altura, como maneira de valorizar a decisão dos atores de pensarem sobre si mesmos e de resgatar sua posição na instituição, proponho reconstruir o percurso desta no tempo, com o objetivo de favorecer a emergência das forças que pugnam entre si, tanto no imaginário como na fantasmática do devir institucional, sabendo que quem controla a história regula ideologicamente a instituição.

Mas me pergunto: como fazer para não transgredir os limites que impõe a intimidade institucional sem favorecer ressentimentos que destruam os potenciais efeitos de minha intervenção? Como conseguir que a instituição e seus membros possam exercer sobre si mesmos um pensamento crítico, inovador, com uma reflexão diferente? Como fazer para não particularizar os conflitos que os próprios vínculos institucionais geram, não caindo na ilusão de objetividade ou na pretensão de neutralidade?

Com esses questionamentos solicito que façam a narrativa da história da escola. Relatam que nasceu nos finais dos anos ’60, por iniciativa de um grupo de pais de adolescentes e adultos com Síndrome de Down, embora, em realidade, aceitasse alunos com qualquer tipo de deficiência, e que funcionava em uma antiga igreja. Dizem que os pais se intrometiam muito e que a comunidade da cidade, embora ajudando bastante, sempre teve muita resistência para enviar seus filhos a essa escola. No prédio funcionava o Cottolengo16 de Dom Orione, e no ano de 1976 o prédio foi doado à instituição atual, por intermediação da representante legal com a Cúria de Buenos Aires, já que ela, na época, participava do Cottolengo.

Aí é que começa a se perfilar um personagem central na dinâmica dessa instituição e no sofrimento que manifestam seus membros. Dizem: “Ela (a representante legal) arma e desarma, se dedica totalmente”; “Abala, ameaça. É uma patologia que ela tem!”; “Nossa escola foi pioneira da Integração desde o ano de ’84. Houve uma reunião da inspetora de educação especial com a mantenedora, mas parece que não compreenderam nada”. Contam que essa senhora controla todo o material, que é muito meticulosa na administração dos recursos. “Se opõe às mudanças e castiga o pessoal, não lhe proporcionando material didático para seu grupo”; “Exerce muita pressão sobre os funcionários”. Os membros da Comissão Diretiva “só estão bem dispostos para construir paredes”. Dizem que há pessoas que têm vontade de ir embora da instituição e há alguns que o conseguiram. Surge nesta entrevista outro dos problemas não totalmente manifestos: “houve uma longa disputa por mais de um ano sobre a integração dos alunos na escola comum”. Há problemas trabalhistas por sair para trabalhar fora da escola. Teme-se perder o emprego. “Quando se faz o que deve ser feito isso pode trazer problemas”; “Castiga tirando coisas aos docentes”; “Tudo o que se decide pedagógica ou administrativamente deve passar pela supervisão dela”.

Muitas vezes perguntei-me sobre o papel que cumprem alguns personagens que, em sua função de salvadores e conhecedores absolutos do que convém à instituição, fazem depender deles os vínculos, a dinâmica e a sobrevivência da instituição. Esses personagens, que são encontrados freqüentemente em instituições assistenciais, geralmente ocupam o lugar dos primeiros fundadores, forjadores de um mito que impregna o coletivo institucional (Enriquez, 1989). Esse mito, em sua relação fantasmática com a instituição, dá caráter de existência à suposição fundamental do papel dessas pessoas na organização.

Isso produz múltiplos efeitos: os novos integrantes se sentem culpados por não serem dignos desses antepassados; os fundadores mantêm o poder, o que lhes outorga a possibilidade de ocultar a realidade presente; não se põe em discussão o projeto inicial, o qual, se se analisasse em profundidade, mostraria as falhas e inconseqüências desde o começo, falhas que são a causa das dificuldades atuais; por último, é favorecida a existência de histórias, lendas e rumores sobre algum segredo a vozes que envolve uma falha inconfessada. Esses elementos contribuem para que a instituição tenha grandes dificuldades para abandonar o lugar de origem e para se preocupar com os problemas cotidianos que têm de ser resolvidos.

Se as instituições dão figura e existência ao social e são o que são, porque, fundadas no passado, fazem possível a acolhida do que está no futuro, “a instituição não é nada senão forma, regra e condição do que ainda não é, tentativa sempre alcançada, mas sempre impossível de fazer coexistir, no presente, tanto o passado como o futuro” (Cornelius Castoriadis17), podemos nos perguntar que papéis desempenhavam para o futuro dessa instituição a pessoa que cumpria as funções de representante legal e a “integração” de alunos na escola comum. Esses dois aspectos se constituíam assim em autênticos analisadores do que estava operando como ameaça nos atores institucionais e que se manifestava no núcleo do conflito.

4. A MÃE FUNDADORA

Em vista da situação relatada, decido fazer uma reunião com a representante legal o mais rápido possível, legitimando-a e, dessa maneira, evitando um possível boicote ao trabalho.

Nessa entrevista essa senhora manifesta boa disposição para colaborar e diz que não concorda com o nome da instituição –(Associação de Pais e Amigos do Insuficiente Mental) porque estigmatizava os alunos: “todos somos incapacitados para algo, ninguém é perfeito. Está se tratando de eliminar esse termo para favorecer a integração”; “Gostaria muito que se conseguisse fazer a integração, a acho fantástica, mas..., a comunidade não ‘me integra’ os meninos, porque se ’minhas crianças’ sabem trabalhar como pedreiros, jardineiros, carpinteiros, a Prefeitura devia ‘me integrá-los’. Nessa parte me sinto um pouco frustrada”. Fala de suas atividades e diz: “numa palavra, eu cumpro todas as funções”. E acrescenta: “gostaria de ser substituída”. Diz que chegaram a ter 140 alunos, mas que naquele momento só tinham 100. No final da entrevista diz que a recordação de seu filho é o que a mantém ali, que ele morreu em um acidente e que doou uma sala em sua memória. Sua vida foi uma até sua morte e depois tudo mudou. Ela quer deixar a instituição, mas não sabe com quem. Quando sai da entrevista, para minha surpresa, toca uma placa que estava em uma das portas e faz o sinal-da-cruz, dizendo que aquela placa era a que lembrava seu filho falecido.

5. ANÁLISE DO CONFLITO INSTITUCIONAL

Nesse momento podemos ver que os analisadores aos quais nos referimos para pensar o que acontecia na instituição se referem de diferente maneira à morte e à mentira. A integração dos alunos à escola comum fazia a sobrevivência da instituição correr perigo. Os professores, por uma parte, temiam perder o emprego, e, por outra, a representante legal estava amarrada a uma situação que a impossibilitava de permitir que circulasse algo de novo, pois funcionava como uma mãe absoluta e onipotente, mantendo seu filho vivo, e fazendo da instituição seu mausoléu. Assim, não deixava que outros a substituíssem, já que ninguém como ela podia manter viva a memória do filho.

Nesse sentido a integração jogava um importante papel, pois o que poderia acontecer se ela fosse bem-sucedida? De que maneira estava atuando esse poder maternal-centrista, onde havia uma espécie de gozo ilimitado que fazia dos membros da instituição suas principais vítimas?

Para Eugène Enriquez a principal finalidade das instituições é a de colaborar com a manutenção das forças vivas da comunidade, permitindo aos seres humanos ser capaz de viver, amar, trabalhar, mudar e talvez criar o mundo à sua imagem, sendo sua finalidade de existência, e centrando-se na trama simbólica e imaginária na qual as relações humanas se inscrevem. Acrescenta que os coletivos educacionais e terapêuticos, entre outros, podem considerar-se legitimamente instituições, porque propõem a cada um dos atores sociais todos os problemas da “alteridade”, isto é, a aceitação do outro como ser pensante e autônomo, tendo de manter relações afetivas e vínculos intelectuais.

Sendo a vocação das instituições a de encarnar o bem comum, isso favorece a manifestação de pulsões metaforizadas e metabolizadas em desejos socialmente aceitáveis e valorizados, desdobrados em fantasias e projeções imaginárias que trabalham no sentido do projeto ilusório da instituição (Enriquez, 1969). Em consonância com os fins de Eros, isso permitiria a emergência de signos que teriam a função de unificar a instituição, garantindo seu poder sobre seus membros e favorecendo a identificação mútua e a coesão.

Mas pode não se perceber a silenciosa e insidiosa entrada de Thanatos com seu trabalho de dispersão e dissolução. Isso é o que parece não ser percebido pelos membros dessa instituição cujo sofrimento adquire mil caras, sem poder chegar à conscientização de como o trabalho da morte está minando qualquer possibilidade de elaborar um projeto que permita olhar para um futuro mais fecundo e criativo.

Considero que também para as instituições é válida a idéia de Lacan de que “a verdade tem estrutura de ficção” e que o véu que a reveste, longe de disfarçá-la, faz, em realidade, aparecer “sua natureza de semblante”. O semblante de cuidado com que essa instituição acabou se identificando disfarçava uma outra verdade: a morte veio ocupar o lugar que parecia ser dominado por Eros. Perceber isso significaria aceder a uma verdade que talvez devolvesse a essa escola as forças criativas, mas as instituições, em geral, não costumam favorecer a indagação da verdade, senão que favorecem as lutas pelo poder, sendo difícil que seus membros consigam aceitar a separação e a desagregação, simbolizando-as. Contrariamente a isso, tendem a negá-las ou a fixá-las em lutas pelo poder e pela agressividade, brincando em um jogo de disfarces em que o insensato, o impensável, o inominável, o indizível terá sempre a última palavra (Enriquez, 1989).

Nos dizeres de Bleger18, uma dificuldade pode se conceber como “dilema”, como “conflito” ou como “problema”. No primeiro caso, os termos, paradoxais e ambivalentes, fecham toda tentativa para encontrar uma solução possível; no segundo, o que aparece é a presença contraposta de duas posições, geralmente encarnadas por grupos diferentes; e, finalmente, no terceiro caso, aparece um questionamento que envolve a dificuldade e suas possíveis significações. Daí que a dinâmica institucional19 seja definida como a capacidade de uma organização e de seus integrantes para propor as dificuldades como problemas e encarar ações para testar e ajustar as soluções.

Para os membros da instituição em questão, a chamada integração os defrontava com uma possível desintegração-decomposição ante a perda que implicava a saída dos alunos para a escolaridade comum. Isso tinha o valor de um verdadeiro dilema que potenciava uma grande ambigüidade e angústia. Por outra parte, começou a se manifestar o fato de que, nos problemas institucionais, a representante legal tinha parte da responsabilidade, mas não toda. Ela também funcionava como uma espécie de “bode expiatório”, a quem eram atribuídas todas a culpas. O trabalho de Análise Institucional tinha de ser direcionado para que pudessem visualizar o conflito em que estavam envolvidos e, assim, poder formulá-lo como problema com suas alternativas de solução.

Mas a imobilidade a que tinham chegado os membros dessa escola, culpando-se mutuamente pelo estado das coisas, estava sendo usada como uma “cobertura” para não captar que funcionavam como uma espécie de morto-vivos, fazendo pagar um alto preço aos destinatários formais de seus serviços (com quem estavam comprometidos a “cuidar”): seus alunos e suas famílias.

Era imprescindível trabalhar sobre as conclusões e hipóteses elaboradas nesta análise, devolvendo a informação que os mesmos agentes institucionais foram alinhavando sobre suas angústias e conflitos. Isso talvez pudesse permitir a instalação de formas coletivas de condução e resolução das dificuldades que dessem sentido à construção de intercâmbios novos, superadores dos burocraticamente estabelecidos.

A Análise Institucional teria como função permitir que o discurso do Amo (Senhor/Mestre) pudesse se tornar menos unívoco e totalitário, apontando o impossível de sua tarefa, não banindo o Nome-do-Pai, pois ele seria quem permitiria o laço social implícito em uma tarefa comum. Era preciso reservar ao Mestre o suporte de um discurso que, ao invés de encarnar esse lugar, fizesse semblante, sem se permitir todos os caprichos sob o nome de representante legal e sob o conflito de poderes de todos contra todos, o qual fazia verdadeira, uma vez mais, a afirmação de Freud de que governar é impossível (poderíamos acrescentar que governar educadores é duplamente impossível, e, pior, só se pertencessem a algum dos campos do “psi”).

Rabelais o sintetiza muito bem em Gargantua e Pantagruel quando diz: “Onde há um muro por diante e por detrás, abundam a murmuração, a inveja e a conspiração mútuas”20.

Antes da última reunião, a diretora, em um telefonema, me diz que tinham decidido suspender a avaliação para continuar trabalhando apenas nos conflitos individuais. Concluo que tudo o que emergiu tinha produzido aquele efeito desordenante de que falava Ardoino, tornando-se perigoso e insuportável.

Disto nada se queria saber, muito menos sobre o deslocamento que se manifestou no foco da demanda. Embora tivessem manifestado, em algumas das reuniões, que este trabalho estava sendo muito positivo porque lhes permitia pensar e falar sobre o que pensavam e como se sentiam, podemos concluir que, se como diz Lacan21, “a verdade depende de sua enunciação”, ao menos para alguns dos membros daquela instituição, era necessário evitar que ela emergisse.

 

Referências bibliográficas

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Notas

*Psicopedagoga e psicanalista; Clinica Laços, Sorocaba, SP; mestranda pela Universidade São Marcos, SP;
(11) 4019-3231 / (15) 3224-3425;
e-mail: dmdc@cepadi.com.br

 

1 - Jacques Lacan. “O desejo e sua interpretação”, 11 mar. 1959, inédito.

2 - J. Derrida. “Historia de la mentira: Prolegómenos”. Conferência na Univ. de Buenos Aires, 1995.

3 - Trabalho apresentado no V Colóquio do LEPSI sobre “A Psicanálise, as instituições e a infância”, 2004.

4 - No momento dessa intervenção eram chamadas especiais crianças, adolescentes ou adultos portadores de alguma deficiência física, cognitiva e/ou sócio-emocional.

5 - René Loureau. “Análisis Institucional”. Amorrortu, 1975.

6 - Jacques Ardoino. “La intervención institucional. Imaginario del cambio o cambio de lo imaginario?”. In La Intervención Institucional. Feliz.

7 - Na Argentina existe o Professorado em Educação Diferenciada, cujos egressos ministram aulas em escolas especiais.

8 - B. Kononovich e Osvaldo Saidón. “La Escena Institucional”. Lugar Editorial, Buenos Aires, 1991.

9 - Citado por Aldo Schlemenson: “Análisis organizacional y empresa unipersonal. Crisis y conflictos en contextos turbulentos”. Paidós, 1988.

10 - Professora Integradora: nesses anos se tinha implementado em Córdoba, e em outras províncias, um projeto de integração de crianças de escolas diferenciais com o acompanhamento de professoras especializadas. Essas professoras pertenciam ao plantel das escolas diferenciais, e tinham como objetivo facilitar a inclusão na escolarização comum daqueles que se poderiam beneficiar com esse tipo de ensino.

11 - Direção Provincial de Escolas Particulares.

12 - Poderíamos dizer que o que naquele momento era chamado de ”integração” é uma espécie de precursor arqueológico e deslocado do atual imperativo da “inclusão”.

13 - Schlemenson, op. cit., p. 40.

14 - Agradeço ao Professor Doutor Christian I. Dunker a sugestão sobre esta articulação.

15 - Eugène Enriquez. “El trabajo de la muerte en las instituciones”. In La Institución y las instituciones - Estudios psicoanalíticos - R. Kaës, J. Bleger, F. Fornari, P. Fustier, R. Roussillon e J. P. Vidal.– Paidós, Buenos Aires, 1989.

16 - Pequenos Cotolengos: instituições destinadas aos “mais sofredores e abandonados”, localizadas nas periferias das grandes cidades, criadas pelo sacerdote italiano Dom Orione, e que tiveram ampla difusão na Argentina e também no Brasil.

17 - C. Castoriadis. “La institución imaginaria de la sociedad” (M. A. Galmarini, trad. castelhano). TusQuets. Buenos Aires. (Texto da citação traduzido para o português pela autora deste trabalho).

18 - José Bleger. “Psico-higiene e Psicologia Institucional”. Paidós, Buenos Aires, 1964.

19 - Ibidem.

20 - Citado por René Loureau in “Análisis Institucional”. Amorrortu, 1975.

21 - Seminário 1969-1970.

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