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Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954On-line version ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.13 no.10 São Paulo  2005

 

ARTIGO

 

Em busca da distância segura

Relatório baseado em estágio de observação da entrada de bebês na creche central da Universidade de São Paulo

 

 

Mariana Peres Stucchi*

 

 


RESUMO

A idéia deste estágio era ter uma experiência com família dentro da Psicologia, diferente do atendimento clínico. A proposta de observação dos bebês que chegavam à creche envolvia muitos pontos de meu interesse: a entrada numa segunda instituição, depois da família, a separação da mãe e da segurança de locais e pessoas conhecidos, a necessidade de lidar com o ambiente novo e com pessoas novas, de explorar, de se frustrar e de conquistar. Enfim, a entrada na creche é um momento de mudança e muito crescimento na vida, tanto da criança quanto dos pais. Da mesma forma pode-se pensar na imensa diversidade de estímulos que a criança tem quando entra na escola e nos diversos ambientes que começa a freqüentar, estímulos esses dos quais os pais, na maioria das vezes, querem proteger o filho. Acontece que nem sempre eles podem estar junto dos filhos. Neste trabalho, apresenta-se a observação das dificuldades da criança, dos pais e da educadora, de entrarem num acordo conjunto para a freqüência da criança na creche – acordo que tem seus percalços e mostra muito das relações entre as personagens. Relações que estarão marcadas na experiência da criança e em seu desenvolvimento na primeira infância – considerado muito importante na psicologia.

Palavras-chave: desenvolvimento infantil, relação mãe-bebê, relação educador-bebê, separação.


ABSTRACT

The idea of this trainee work was having an experience with family’s psychology on a different way than the clinic. The proposal of observing the baby’s ingress on the day nursery involves some points of my interest: the ingress on a second institution, besides family, to disconnect from mother, people and places already known, the necessity of meeting new people, new places, dealing with them, exploring, being frustrated and wining. Entering in a new institution is a time of changes and growing, for the child and her parents. At the same time, it’s possible to think about the enormous diversity of things the child will be in contact with just by staying at school, or other new places, things that parents want to protect their children from. But they can not stay together all the time. This essay intends to show the observation of the work of the child, her parents and the educator to reach some kind of harmony on the child’s ingress on the institution. Harmony that pass by problems and shows the relations among the people involved.

Key words: child development, mother and son relationship, educator and child relationship, separation.


 

 

Pensar em Educação, de um ponto de vista baseado na |Psicologia do desenvolvimento e da Psicanálise, é tratar do desenvolvimento da criança desde seus primórdios, pois é aí que começa a se desenhar a pessoa que irá para a escola, para a faculdade, para o trabalho, para espaços sociais, culturais, etc. Para um bom desenvolvimento, com qualidade física, afetiva e cognitiva, a relação com a família é muito importante.

Para a Psicanálise, e especialmente para Winnicott (1980), a relação mãe-bebê é fundamental para a formação do ser psíquico. O bebê não tem qualquer condição de sobreviver sem cuidados de uma outra pessoa, e é a qualidade desse cuidado que vai permitindo à criança o contato com a vida, com suas sensações, com o mundo, com o outro e a formação de suas representações. No início, a mãe e seu filho são como um; ela é capaz de suprir todas as necessidades da criança, pois está ali em sintonia com seu filho (ao menos na maioria dos casos); o bebê não se distingue do mundo, tudo é extensão de seu corpo. Com o tempo, a mãe vai sendo exigida em outras instâncias da vida, e o bebê precisa esperar para ter suas vontades atendidas. Nesse processo de contato com a realidade, que não lhe dá tudo quando e como ele deseja, o bebê vai aprendendo a lidar com as frustrações e percebendo uma diferenciação entre ele e o mundo externo. Este é um momento muito importante no desenvolvimento infantil: a diferenciação eu e o outro mundo interno e mundo externo, que vem do confronto entre fantasia/ilusão e realidade. O bebê vai percebendo que não é onipotente.

Portanto ele passa por uma separação inicial da mãe que lhe dá noção de ser. A presença do pai, ou de um “terceiro outro”, é importante para que haja essa separação, para que o bebê vá percebendo que a mãe não é seu objeto de posse exclusivo. A família se apresenta como instituição de socialização para a criança, que poderá, dentro de um grupo próximo, ampliar suas experiências e contatos. É a escola, ou creche, que caminhará ainda mais nesse processo de conhecimento do mundo pela criança. Será uma segunda instituição proporcionando-lhe contatos diferentes, com pessoas, objetos e espaços desconhecidos, experiências novas e exigências diferentes, a começar pela separação dos pais, que são os elementos mais fortes de sua referência ao mundo que conhece, de segurança e afeto.

Assim como a primeira separação, aquela entre mãe e bebê, que deve ser muito cuidadosa e transitória, esta segunda também exige atenção, caso contrário pode ser uma experiência bastante difícil e marcar de forma negativa o desenvolvimento infantil.

No artigo “O Ingresso e Adaptação de Bebês e Crianças Pequenas à Creche: Alguns Aspectos Críticos”, de Andrea Rapoport e César Augusto Piccini (2001), encontramos uma discussão sobre a influência de cuidados alternativos no desenvolvimento infantil baseada na teoria do apego de Bowlby (1969/1990)1. Essa teoria coloca que há uma tendência ao estabelecimento de uma relação forte, de apego, tão básica quanto à necessidade de alimentação e de sexo. Essa relação gera cuidado, segurança, confiança, por meio do grau de sensibilidade e responsividade do cuidador. Ou seja, o apego não advém do suprimento das necessidades básicas, mas do carinho, atenção e solicitude. Bowlby coloca que o apego permite que o indivíduo se mobilize, reaja com medo a situações que podem oferecer perigo, para receber proteção. Assim, entende a ansiedade de separação dos bebês como disposição básica pela sobrevivência.

Pesquisas sobre esse assunto têm mostrado que há muita variedade de reações das crianças à separação dos pais, inclusive pelo período de vida em que esta se realiza. O estudo, apresentado no mesmo artigo citado acima, de Varin, Crugnola, Molina e Ripamonti (1996)2, chegou à conclusão de que crianças a partir de um ano já não sofrem tanto com a separação, uma vez que o apego já se estabeleceu.

Assim, sabendo da qualidade do atendimento na creche central da USP, tive interesse em conhecer como acontecia essa recepção de bebês e de crianças pequenas. Que cuidados são tomados, que tipos de problemas surgem ese o processo de adaptação, como eles chamam, acontece. Sempre que se atendem crianças, há necessidade de certa atenção aos pais, que, apesar de se preocuparem com o ambiente em que estão deixando seus filhos e serem responsáveis pela criança, podem colaborar ou não para o trabalho. Não há como desvincular os cuidadores da criança, o que dificulta o trabalho, mas o torna mais rico. O que gera confiança e segurança à criança é a coerência nos cuidados. Como diz Winnicott (1975), frustrações são inevitáveis e contornáveis, mas ser traído, não. Portanto, os limites são necessários, mas é importante que não haja contradições, para a criança não ficar perdida entre diferentes posicionamentos de diferentes pessoas, o que torna importantíssimos o contato e a troca de informações entre pais e educadoras da creche.

A partir disso, o presente estágio foi realizado com o intuito de ver como o processo era feito e se poderiam ser encontradas regularidades nas adaptações, para tentar chegar a alguma conclusão sobre o processo. No artigo “O Ingresso e Adaptação de Bebês e Crianças Pequenas à Creche: Alguns Aspectos Críticos” (2001) encontramos a discussão de como o essencial é a qualidade do cuidado e do contato que a criança vai encontrar na creche, pois cada criança é uma, cada família é uma, cada creche é uma e cada educadora é uma. Ou seja, no decorrer da presente prática de observação foi-se percebendo claramente que cada caso é um caso. E é a partir daí que surge a discussão que segue.

Cabe a observação de uma peculiaridade da experiência aqui relatada, que foi o intervalo de greve de dois meses durante o período de estágio. As expectativas de um retorno complicado eram grandes, baseadas na informação de que quando as crianças passam um tempo maior com os pais – como férias ou mesmo fim de semana – voltam com mais dificuldade, mais ligadas a eles e menos dispostas a se separar novamente. Ou seja, talvez fosse possível observar uma readaptação de todos ali, incluindo a estagiária.

O estágio foi realizado de duas maneiras diferentes, com o intervalo da greve da USP. Teve início em 05 de maio de 2004, quando começaram as entradas de crianças novas. Até dia 28 de maio, quando teve início a greve, as observações aconteciam quatro vezes por semana, no horário de 7h30 às 10h. Quando as atividades da USP foram retomadas, no dia 04 de agosto, as observações foram feitas três vezes na semana, no horário das 7h30 às 9h30, encerrando em 28 de agosto de 2004.

No início do primeiro período, era tranqüilo permanecer observando de modo mais distante. As crianças não notavam a estagiária como algo pertencente ao espaço, não a incluíam nele, aparentemente. Esta também estava se ambientando e ainda não tinha bem claro ao que atentar. Além disso, não sabia se estava ocupando os lugares certos e ficava sempre com medo de invadir o espaço das educadoras, que talvez também estivessem sem saber como lidar com a presença diferente ali (apesar de ter sido colocado pela coordenadora que as educadoras estavam acostumadas aos recorrentes estágios). Afinal, estava ali como observadora do trabalho delas, com o agravante de não ter bem definido o que seria observado.

O fato de as crianças brincarem todas juntas (G2, G3, G4) e de os bebês serem poucos no começo fez a estagiária perder a referência do G1 e tentar observar os momentos de despedida e as referências que as crianças davam sobre as mães em outros momentos.

Com o tempo, tanto os bebês quanto as crianças já incluíam a “observadora” em brincadeiras. Assim, sua relação com as educadoras foi se estreitando e a observação foi se tornando cada vez mais participativa e envolvida.

Mas depois da greve, quando a retomada foi feita lentamente, com certa apreensão de como crianças e educadoras iriam retornar após dois meses longe dali, qual não foi a surpresa ao perceber que pouca coisa mudou e o clima continuava o mesmo, a não ser por uns e outros, que ficaram mais distantes da estagiária. Toda a preocupação de que o retorno da greve fosse muito agitado, comentada pela coordenadora e sentida pela estagiária, não se fundamentou – o que poderá ser compreendido pelas colocações que seguem.

“Adaptação de bebês” foi o nome apresentado ao processo de entrada dos bebês na creche. A idéia por trás desse título fica clara, mas merece discussão na medida em que o próprio trabalho realizado ali não é uma adaptação de bebês. E do ponto de vista da psicologia, que foca o sujeito, com suas peculiaridades, ritmos e limites, assim não deveria ser mesmo. Coloco isso porque a creche observada não faz um trabalho de moldar a criança ao que acontece ali. Havia uma preocupação grande em receber as diferenças, as peculiaridades. Preocupação em construir uma relação nova com os elementos ali: pessoas, material, espaço.

Regras de convivência e uma rotina são importantes para o convívio em grupo, para o reconhecimento do espaço pelo bebê e pela criança, pela segurança e estabilidade que isso gera, além da importância que tem para o desenvolvimento o reconhecimento destas. E o interessante é que na creche central da USP a equipe é capaz de manter regras e rotina e ao mesmo tempo permitir que cada um se coloque, se expresse, procure o que deseja e que isso possa ser discutido. Foi observado inclusive que a rotina poder ser alterada quando todos assim o pedem, havendo reorganização de atividades (como um dia em que, no início da manhã, um dos alunos trouxe um vídeo e todos quiseram assisti-lo). O momento era de chegada, de ambientação, de interação das crianças com o espaço e os outros ali presentes. Mas foram autorizados a ver o filme, já que era vontade de muitos ali, sem deixar de ser conversado com eles que fariam uma mudança.

As observações levaram à hipótese de que a grande qualidade do trabalho da creche vem dessa flexibilidade e abertura para as diferenças, inclusive, e talvez especialmente, no período de adaptação – o que será entendido no decorrer da exposição. Nesse período, as educadoras se organizam de forma muito interessante. Há duas ou três educadoras oficiais para cada grupo e uma volante para cada módulo. Cada criança nova que entra terá uma educadora como referência. Essa referência é bastante forte no começo. Quando a mãe ou o pai sai, é esta educadora que vai ficar com a criança, distraindo-a e acolhendo-a se necessário. Entra como uma substituta, à qual a criança vai se ligar para poder lentamente reconhecê-la como uma pessoa confiável, perceber o vínculo como seguro, e então poder explorar espaço, objetos e relações naquele novo mundo. Aqui se apresenta um ponto importante: a educadora também deve se “adaptar” à criança. Ali, juntos, eles vão construir uma relação nova, em que ambos estão envolvidos. Assim como na maternidade, em que a mãe adota o filho e o filho adota a mãe, a educadora precisa adotar a criança e esta a adotar também. Não foi observado nenhum caso em que essa relação não tenha podido acontecer. Muito pelo contrário; é perceptível, especialmente entre os bebês, como alguns se vinculam fortemente a uma educadora, o que pode ser decorrente da maior necessidade que eles têm dessa cuidadora. Pôde-se observar casos em que essa ligação é muito forte em crianças que têm dificuldade de se separar da mãe. A partir disso, poderia-se refletir sobre a possibilidade de a criança, ao ter de se separar da mãe, com a qual tem uma relação muito próxima, muito forte (ou seja, seu modelo de vínculo é exclusivista, i.e., relação intensa com um), estabelecer uma nova relação forte, seguindo seu modelo, para dar conta de suas necessidades físicas e psíquicas daquele momento3. Nesse caso, a exigência sobre a educadora é bastante grande, e o processo de separação vai se estabelecendo lentamente, de acordo com o embate com a realidade, assim como na primeira separação mãe-bebê. Porém, há os bebês que mal reparam na saída da mãe e não se vinculam a uma educadora.

Avalia-se que nesse ponto entra a influência da relação com a mãe, que é outro fator na adaptação. A mãe e o pai também precisam se adaptar a esse novo esquema. E lidar com as diferentes posturas, valores e sentimentos das mães não é tarefa fácil. Por isso, na creche, faz parte do processo de adaptação permitir que as mães e/ou pais estejam com seus filhos pelo tempo que quiserem. Acontece que há mães e pais que não conseguem se desligar, que ficam preocupados, que querem ficar brincando com o filho em todo momento. Faz parte também do processo auxiliar essa mãe a perceber que precisa e que pode deixar o bebê ou a criança, tarefa que deve ser feita com bastante cuidado, ou pode espantar a família. Pelo que foi observado, naturalmente a educadora vai se aproximando da dupla e tentando se fazer notar. Dá um toque de que a mãe ou pai pode sair por um tempo, para ver como a criança fica. É interessante perceber que há os filhos que entram na ligação quase simbiótica com a mãe e demoram muito para se adaptar e há os que ficam tranqüilos, até podendo deixar a mãe triste, por se sentir pouco amada, pouco necessária. Fazem, com certa freqüência, o comentário “Ele nem liga mais!”. Quer dizer, por mais que seja necessário deixar o filho, por mais que seja isso que a cuidadora queira sua grande dificuldade em realizá-lo pode ser percebida pela criança e pelos outros que a observam. E a criança pode receber isso como um indicativo de que aquele local pode ser perigoso, ou não. A charge utilizada na epígrafe do trabalho aponta essa relação entre mãe e bebê, que é trabalhada por Bowlby (1990) e Winnicott (1975), de que a criança vai procurar indicadores do que pode e do que não pode fazer. O olhar dos adultos, especialmente o materno, dá referência sobre a segurança daquele ato que a criança vai praticar. Quando ela começa a engatinhar, quando começa a buscar e usufruir certa independência, estes parâmetros são importantes.

Na charge a idéia mais forte é de que a presença do cuidador, ainda que distante, mas ao alcance dos olhos, é sinônimo de segurança. E isso é bastante observado na adaptação, quando a criança fica, em ritmos diferentes, testando o quanto pode sair para brincar e voltar à mãe ou pai quando quiser. E há ocasiões, especialmente alguns garotos que vão com o pai, em que essa figura representa segurança e orgulho. Considera o pai forte, aquele que vai protegê-los ou para o qual querem mostrar o que fazem ali. Alguns ficavam passeando de mãos dadas com o pai, mostrando-o aos outros. Especialmente se há complô dos antigos da creche contra os novos (o que não é difícil de acontecer), o pai é referência: foi presenciada cena de um grupinho de garotos antigos atrás da cerca de madeira, gritando a um garoto novo que fosse embora: “Sai!”. O garotinho ficou olhando a cena e logo depois se voltou para procurar o pai. Correu em direção a ele e ficou perto por mais tempo.

É perceptível a diferença na separação das crianças em relação à mãe. Simplificando, há os que são muito tranqüilos e não se exaltam nada, há os que choram um pouco, mas logo se soltam e há os que não param de chorar por um bom tempo. Porém, nota-se uma maior dificuldade de a criança se separar da pessoa que leva à creche quando esta é a mãe ou a avó (ou mãe de criação). Parece que essa figura feminina é símbolo de maior cuidado, de maior preocupação em deixar a criança. Eles percebem isso. Quando a mãe é mais sossegada, a separação parece sempre mais tranqüila. Ainda assim, é incrível como a separação dos pais parece mais tranqüila. Mesmo que a criança chore bastante assim que o pai sai, o choro é muito mais longo quando a mãe vai levá-lo. O desligamento da figura paterna parece mais fácil que o da materna. Procurou-se observar essa diferença nas crianças, e isso pareceu se comprovar, assim como disse uma das educadoras, no fato de que há preferência em alguns casos para que não seja a mãe que venha trazer a criança.

Se há tanto sentimento subliminar em jogo, da mãe, do pai, da criança, da educadora, só se pode pensar o processo de adaptação como de construção de possibilidades de relação, de confiança, entre todos esses participantes dentro da instituição creche. Mesmo que as educadoras estejam trabalhando, elas estão na relação com pais e filhos e precisam constantemente lidar com as exigências do seu cargo e de suas emoções como pessoas ali. Os títulos dos trabalhos sobre adaptação das crianças às creches demonstram pouco interesse sobre a adaptação constante das educadoras às novas crianças e aos novos pais. Talvez esse seja um indicativo do quanto se olha para este trabalho como uma adaptação de crianças mesmo, de sua inserção naquele espaço apenas. Claro que há essa vertente do processo, mas não há como deixar de pensar que um trabalho de qualidade vai exigir constante construção de relações, consideração de cada um como único e de cada um dos envolvidos no processo. Não é um trabalho de modelação da criança para que esta se encaixe na creche, mas sim um contínuo entrelaçamento de trocas afetivas, como o movimento e encontro de correntes marítimas.

Ao pensar em todos os sentimentos que os pais podem sentir ao deixar o filho na creche e até na sensação inicial da estagiária de estar atrapalhando, ocupando um espaço que não deveria que era das educadoras, é interessante colocar que o lugar de “substituto” do cuidador, da mãe, não deve ser um lugar fácil. Pode haver culpa se, em alguns casos, a estagiária acreditar que vai realmente ocupar o lugar da mãe; por exemplo, quando a mãe não é tão próxima do filho, ela pode ser realmente colocada nesse lugar. É clara a dificuldade de algumas mães em perceber seu filho se vinculando tanto a uma outra cuidadora – pode haver ciúme e culpa. Uma ressalva cabe aqui, no sentido de enfatizar a especificidade de relações. A educadora nunca será colocada no lugar da mãe pela criança, mesmo que se desenvolva muito boa e próxima relação – a criança consegue se vincular de formas intensas e diferentes com cada uma, assim como com a avó. E a qualidade de ambas as relações (com mãe e com educadora) vai permitir à criança se vincular de maneiras diferentes, mas muito profundamente nos dois casos. Winnicott (1980) trabalha com a idéia de que o cuidado deve ser estabelecido com a maior naturalidade, com espontaneidade, pois assim o encontro será estabelecido. Uma observação muito interessante foi com relação às diferenças de postura das educadoras ao lidar com as crianças e como todas são bastante verdadeiras nesse contato. Observam e fazem comentários muito vivos e atentos, de quem realmente está vinculada. É importante observar o respeito que elas têm com a relação entre pais e filhos na creche. Podem mostrar o carinho em relação às crianças, cuidam, se colocam em certos momentos para ajudar na despedida. Mas o fazem sempre observando e permitindo aos pais que opinem, que se coloquem. E essa noção de quando chegar, quando interferir, parece uma atuação de bastante sensibilidade, pois estão sempre atentas e, ao mesmo tempo, em alguns momentos, simplesmente não pareciam nem perceber que os pais estavam ali. Quer dizer, em alguns casos, em que a criança era mais manhosa ou os pais mais “carentes”, estes iam ficando por ali e a criança não se desligava. Continuava com o referencial paterno ou materno, demorando mais para “enturmar-se”, enfim sociabilizar-se. E as educadoras permitem que esse ritmo diferente seja estabelecido, pois acreditam que a própria relação pai-filho vai estabelecendo o limite com o tempo.

Observam-se as diferenças de postura das crianças nesse movimento de viver a coletividade, de brincar com o outro ou ao lado do outro, a divisão do espaço, dos brinquedos. Quando os pais estão por perto, elas têm uma segurança conhecida, que dá para algumas mais liberdade de se impor, ou mais liberdade de voltar ao colo protetor; há, ainda, aquelas que parecem ter essa figura tão internalizada que pouco olham para os pais. Os mais chorosos demoram um pouco mais para se enturmar e se vinculam mais à educadora de referência.

A noção de conservação do objeto trabalhada por Piaget (1970) pode ser pensada como capacidade importante para a possibilidade dessa separação da mãe. Bowlby (1990) fala da importância de um contato seguro com o cuidador para o bom desenvolvimento do apego e a possibilidade de estabelecimento de outras relações de forma natural. A segurança que o apego gera fica internalizada, e a criança passa a não precisar do contato visual com o cuidador a todo o momento. Essa internalização lembra a noção de conservação do objeto, pois é perto dos 12 meses que a criança vai desenvolver esta capacidade: perceber que o objeto sai do campo de visão e pode voltar, não desapareceu, ou sucumbiu. Parece uma capacidade bastante importante para as crianças poderem se desligar dos pais na chegada à creche. É importante que elas saibam que a mãe vai e volta. Os mais velhos, do G4, entre 2 e 3 anos e que estão na creche desde bebês, falam bastante que a mãe foi trabalhar e incluem o tema em brincadeiras. Um garotinho vinha de motoca até mim, dizia “cheguei”, dava “tchau”, voltava e dizia “cheguei” e tornava a ir embora. Repetia isso várias vezes em diferentes dias, como se estivesse podendo viver o que vive a mãe, que vai e volta, e pode ser sempre a mãe, com o mesmo sentimento em relação ao filho, e com vontade de chegar e vontade de sair. Um dos bebês também falou claramente que o papai foi trabalhar, e um garotinho do G2, dos que estão completando dois anos, também, além de aparecer nas brincadeiras de outros. Poder falar no assunto indica o caminho de organização, o início da compreensão de que a relação se mantém, de que a mãe gosta deles, de que vai voltar para buscá-los.

Observou-se a entrada de bebês (G1), com idade próxima a um ano, e de crianças pequenas (G2), com idade próxima a dois anos. Foi interessante ver como os bebês costumavam ficar bem tranqüilos em sua adaptação. Poucas vezes choravam. Eram sete bebês. Havia porém um movimento de chegada mais aberto seguido de um retraimento, que parece acontecer com certa freqüência. Pôde-se observar algumas crianças que atuaram assim, e, segundo relato de uma educadora, isso é bastante freqüente: se a criança não chora no início não quer dizer que não vá chorar depois. Pode-se especular sobre as razões disso. Acredita-se, aqui, que o mais importante sejam as relações se adaptando a essa nova distância, ao vai e vem, à ampliação do mundo de todos os envolvidos.

As crianças pequenas, da mesma forma, apresentam muitas diferenças nas adaptações. Há os mais chorões, os que ficam doentinhos, os que choram mas logo se entretêm com algo, os que chegam mais fechados e os que já chegam querendo brincar. A cada um deles correspondem pais também muito diferentes, que ficam mais ou menos em cima, que querem ir embora logo ou que querem ficar ali, olhando de longe ou brincando junto.

Pôde-se observar o movimento de alguns que vão se ligando a um brinquedo específico na creche. Chegam e vão atrás daquele mesmo brinquedo. Outros levam de casa algo, objeto do qual não se separa em nenhuma hipótese, especialmente no início do dia e da adaptação. Um deles, um garoto bastante introspectivo, que pouco interagia com os outros, levava seu cobertor e com ele ficava todo o tempo. É interessante pensar o quanto um brinquedo pode manter uma presença familiar ali. Mas é claro que levar o brinquedo de casa implica ou dividir com os outros ou ficar de olho nele o tempo todo, o que gera conflitos. E, mais uma vez, respeitando o movimento e o ritmo de cada um, a creche permite que cada um faça como quiser. Podem levar brinquedos, dividir ou não com os colegas, querer um brinquedo específico na creche ou não, conversando-se para que todos aprendam a respeitar a vontade do outro.

Esses quadros trazem à necessidade de pensar o quanto a creche influencia na socialização dos bebês e das crianças. Parece que eles vão encontrando um grau adequado de abertura e retraimento, podendo se colocar com certo cuidado e ao mesmo tempo se abrindo a novas relações. É um limiar que vão encontrando cada um o seu, logicamente, a partir da necessidade de maior independência. Já não têm a mãe por ali. Assim, alguns vão se ligar e usar como referência as educadoras, e outros vão poder mais rapidamente se virar sozinhos.

Todos vão conseguindo se encontrar ali de alguma forma. Vão construindo relações, vão crescendo e aprendendo a lidar com a realidade. Retomando Winnicott (1975), ele fala de uma área de fenômenos transicionais, uma área entre o mundo interno da criança e o mundo externo dela, “entre o subjetivo e aquilo que é objetivamente percebido” (p.15), na qual se estabelece certo equilíbrio para o lidar com a realidade – estabelecimento de relações objetais: “Para usar um objeto, o sujeito precisa ter desenvolvido capacidade de usar objetos. Isso faz parte da mudança para o princípio de realidade.

Não se pode dizer que essa capacidade seja inata, tampouco seu desenvolvimento num indivíduo pode ser tomado como certo. O desenvolvimento da capacidade de usar um objeto constitui outro exemplo do processo de amadurecimento, como algo que depende de um meio ambiente propício. As relações objetais são, para a Psicanálise, o reconhecimento do outro e a possibilidade de interagir com esse outro. A mesma capacidade é desenvolvida na separação inicial mãe-bebê, trabalhada no começo do artigo. Segundo Winnicott (1975), essa capacidade de relação com a realidade é algo que depende de um ambiente propício, algo que parece ser encontrado na Creche Central da USP, onde as crianças podem desenvolver sua independência. “É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)” (p. 79). Acredita-se ser possível apontar aqui, como indicativo da creche como fornecedora de ambiente favorável à transicionalidade, base da simbolização, o tranqüilo retorno depois da greve.

Uma pedagoga que desenvolve trabalho alternativo de educação infantil, na Escola Casa Redonda, zona Oeste de São Paulo, Maria Amélia Pereira (2002), trabalha a idéia do quanto a criança precisa de liberdade e espaço para desenvolver sua subjetividade, sua personalidade. É na brincadeira que a criança pode ser sujeito e não obedecer às ordens dos outros. É com a liberdade para fantasiar, correr, brincar, com os outros ou sozinho, que a criança vai se observando, vai podendo perceber o que quer, como lidar com seus pensamentos e sentimentos e interagir com a realidade. A criança sozinha vai podendo crescer e se formar. Os adultos devem ter cuidado para não atrapalhar. “Elas apenas querem seu lugar, seu habitat, com espaço e tempo suficientes para que brincando possam crer-ser, rodeadas por adultos inteligentes porque sensíveis, que saibam acolher o mistério da vida que se expressa dentro de cada uma delas”, coloca Maria Amélia Pereira (2002:4).

Essa idéia é bastante importante para pensar o respeito ao outro e conviver com as diferenças se respeitando também. E essa possibilidade de estar consigo, de se observar e poder se colocar no mundo, de poder ficar triste, chorar e com isso entender e organizar o mundo interno em relação com o externo é muito importante para o desenvolvimento de qualquer um. Poucos se dão o direito de ficar tristes. Temos sempre de mostrar as alegrias, e enfrentar a tristeza é sempre passar por cima dela, dar a volta por cima. Especialmente nos momentos de separação poder reconhecer a tristeza que isso provoca em si mesmo e no outro é muito importante. Poder chorar e ver que as coisas vão andando e que outras coisas interessantes vão aparecendo e acontecendo é um caminho saudável e de crescimento. Enfrentar é poder viver. Rainer-Maria Rilke trabalha essa idéia em seu livro Cartas a um Jovem Poeta (1937), falando da importância de estar consigo e viver os sentimentos para fazer poesia, para falar de emoções e de pessoas. Essa vivência e esse reconhecimento vão dando sentido aos acontecimentos, permitindo a elaboração dos sentimentos, o que possibilita melhor abertura e contato com novos acontecimentos e sentimentos que virão.

As diferentes culturas desenvolvidas no mundo abordam das mais variadas formas o cuidar de bebês e de crianças, até mesmo pelo simbolismo que tem a infância em determinada cultura. Há culturas que mais rapidamente incluem a criança nos afazeres domésticos, ou na vida política, há os que protegem muito mais de qualquer desgaste, há os que acreditam que a criança é figura santa, há os que cuidam em grupo, há as amas de leite, há as creches e demais instituições, etc. Será que houve ou haverá algum modelo de cuidado mais favorável? Será que as mães, os cuidados e as instituições devem se adaptar às necessidades do desenvolvimento infantil ou será que este deve se adaptar às necessidades de sua cultura? Essa questão é cíclica, como a do ovo e da galinha, mas tem por objetivo fazer pensar no quanto as pessoas podem observar pouco e querem estabelecer modelos de trabalho para dar conta da demanda e do mercado. A idéia é conseguir uma receita supereficaz, que dê conta do maior número de demandas possível. Forbes (2003) fala do modo de vida atual: “O protocolo é uma tentativa de não ter erros. Trago a questão de propósito, pois estamos em uma faculdade de educação. Busca-se, através dele, inibir a subjetividade, como se fosse possível adquirir uma objetividade completa” (p. 05). E conclui: “Proponho esse mesmo modelo – clássico médico – para diagnosticarmos a nova era. Não na linha da ’localização da causa’ na suposta ’realidade’ – uma maneira de acalmar o suspense através do medo. Temos a necessidade agora de ver o que está sendo descoberto com outros olhos,...” (p. 11). Forbes coloca o desejo pelo protocolo como o desejo do “não erro”, da objetividade ao extremo, controlando totalmente a realidade, o que, segundo ele, está totalmente fora de propósito, especialmente na educação. E propõe que olhemos com outros olhos para descobrir a realidade em que vivemos. Propõe-se aqui que se olhe com diferentes olhos para cada criança e para cada família que chega à creche, pois apresenta-se aí uma nova realidade. Ou seja, não há regras de cuidado, mas um objetivo de abrir espaço à relação e ao desenvolvimento da criança.

Qualquer adaptação é de todos os envolvidos e poderá acontecer se for respeitado o que há de humano nela: a diversidade e a espontaneidade. A vida, com seus diferentes personagens, espaços e tempos, exige que lidemos com as possibilidades do contexto. Mas, para que isso não signifique autonegação, sofrimento, acomodação, indiferença, é preciso que estejamos em contato conosco, possamos fazer nossas escolhas, permitindo ao outro fazer as dele.

Estudos e pesquisas podem ser realizados buscando entender cada vez mais o desenvolvimento infantil e com isso instrumentalizar os cuidadores. Porém devem ser instrumentos que vão se adaptar às demandas observadas nas crianças e nos pais, no momento e na época em que o cuidado acontece. Penso que a educação, mesmo a de ensino fundamental e médio, tem como função formar pessoas que possam estar no mundo, em contato com ele e com os outros. Para tanto é muito importante que questões como o respeito ao outro, às diferenças, às imprevisibilidades, aos desconhecimentos, sejam trabalhadas. Especialmente quando as diferenças são muito grandes, a importância do convívio, da colaboração e cooperação, é extrema. E para isso é preciso que as pessoas tenham um olhar receptivo ao outro, precisam saber que esse outro pode lhe fazer bem também.

No fim do estágio, uma das educadoras disse que depois queria ver os relatos e as críticas da estagiária. Esta disse a ela que não havia muita crítica. Não mais do que depressa ela disse: “Ah, mas aqui não é nenhuma perfeição”. Foi dito a ela que isso é praticamente impossível. Claro que sempre buscamos acertar e fazer o melhor possível, mas é muito importante poder pensar que somos seres humanos e que o trabalho da creche é sempre com outros seres humanos, todos em relação. Há sempre os imprevistos, os conflitos, as frustrações, os carinhos, as satisfações...

Bia é uma tartaruga que mora num jardinzinho da creche, bem próximo à área dos bebês. Ela é uma importante personagem nos processos de adaptação, uma vez que é usada como atração especial aos chorosos. A Bia é símbolo da possibilidade de conhecer um mundo novo, de brincar, de se ver como diferente, de lidar com o choque entre mundo interno e mundo externo. Por tudo isso, é muito importante o trabalho que a equipe da Creche Central desenvolve, respeitando o humano, respeitando as individualidades, as relações, permitindo com isso o convívio, o desenvolvimento, a socialização de crianças, pais, educadores e creche e construindo distâncias, ou proximidades, entre esses atores da realidade, ou da transicionalidade.

 

Referências bibliográficas

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Notas

*Psicóloga pela Universidade de São Paulo - maristucchi@yahoo.com.br

1 - BOWLBY, J. (1990). Apego: a natureza do vínculo (trad. A. Cabral). In: J. Bowlby (Org.), Trilogia Apego e Perda. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes. v. 1 (original publicado em 1969).

2 - VARIN, D. et al.Sentisitive periods in the development of attachment and the age of entry into day care. European Journal of Psychology of Education, 11, 215-229.

3 - Ou seja, nesse momento inicial, quando a criança ainda é bastante pequena, busca uma relação intensa, que lhe dê segurança, supra suas necessidades mais básicas.

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