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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.14 n.1 São Paulo dez. 2006

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Ética e estética na clínica da aprendizagem

 

 

Sonia Maria Berbare Albuquerque Parente*

Universidade Ibirapuera

 

 


RESUMO

O objetivo do presente artigo é discutir a importância de usar referenciais teóricos fundamentados numa concepção de Homem e visão de mundo que se aproximam, estabelecendo algumas reflexões sobre a identidade do psicopedagogo e as fronteiras entre a sua atuação, a do psicanalista e a do professor. Ao longo do trabalho será ressaltada, também, a importância da dimensão ética e estética na intervenção em crianças com inibição intelectual, traço presente em maior ou menor grau nas crianças com sofrimento psíquico ligado a queixas de problemas de aprendizagem. Para tanto, num primeiro momento, serão apresentados dados relativos ao processo psicanalítico de orientação winnicottiana de Eric, um garoto de 7 anos com sofrimento psíquico ligado a um quadro de inibição intelectual. Num segundo momento, Ana Lucia Calazans Pierri (Uxa)1 relata o processo psicopedagógico do menino , iniciado há quase dois anos depois. Os dois atendimentos continuaram paralelamente, com muita sintonia e apoiados em um diálogo enriquecedor entre as duas profissionais.

Palavras-chave: Psicopedagogia clínica, Psicanálise, Inibição intelectual.


ABSTRACT

The aim of this article is to discuss the importance of using theoretical references based on a conception of Man and worldview that are close to each other, establishing some thoughts about psycho-pedagogic identity and the limits of its action, of that of the psychoanalyst and of that of the teacher. Along this work, the importance of the ethical and the aesthetic dimensions in interventions with children with intellectual inhibitions, present at higher or lower levels in children with psychic problems linked to learning diffculties, will be highlighted. Firstly, we present the data regarding the psychoanalytical process from a Winnicottian standpoint of Eric, a boy aged 7 with psychic suffering linked to intellectual inhibition. Secondly, we describe the psycho-pedagogic process of the boy which started almost two years later and was undertaken. Both therapies carried on concomitantly, with a constant and very enriching interchange between both professionals.

Keywords: Psychopedagogic, Psycho-analysis, Intellectual inhibitions.


 

 

O Homem-aranha e a sala mágica

Sonia Maria Berbare Albuquerque Parente

Quando conheci Eric, ele tinha quase 7 anos, freqüentava a pré-escola e apresentava dificuldades de adaptação e de rendimento escolar. Foi descrito pela escola como um menino desligado, desatento, dócil, “fechado no próprio mundo”, com problemas de compreensão, expressão, comunicação e linguagem. Evitava contato com crianças, não acumulava experiência e não conseguia transferir os conteúdos aprendidos. Segundo a coordenadora da sua escola, na sala de aula, às vezes, fazia desenhos de monstros e em momentos inadequados. “Parecia viver num mundo imaginário e dentro de uma bolha.”

Na primeira sessão com Eric, encontrei um garoto desvitalizado com sérias dificuldades de fala. Ficou fascinado quando encontrou na sua caixa lúdica o Homem Aranha. Relato um fragmento da primeira sessão com o menino, como forma de apresentá-lo e, também, porque ele mesmo fará um relato de como foi esse seu primeiro encontro com sua psicopedagoga, ao final de dois anos do início desse seu atendimento.

Eric brincava, mas de forma defensiva num estado de isolamento e retraimento, o mais longe possível e de costas para mim. Às vezes, me observava à distância, parecendo evitar qualquer aproximação ou contato. Enquanto ele brincava, eu pensava no clima de preocupação do seu brincar e no significado dentro de sua história. Foi, então, que um momento significativo ocorreu e um encontro real foi estabelecido entre nós.

A tampa da caixa de brinquedos que estava perto dele caiu, fazendo um barulhão. Eu me assustei, mas Eric que estava de costas virou-se para mim, com uma expressão extremamente assustada e amedrontada. Naquele momento, senti que o que ele via em mim não era um ser humano, mas um monstro. Evitei até respirar. Por duas ou três vezes, ele me olhou virando-se de costas, como que para certificar-se de que estava tudo bem. Até que trocamos um olhar, levantei o polegar fazendo um sinal de “tudo bem?” lenta e cuidadosamente. Ele pareceu concordar através do olhar e de um leve sinal de cabeça. Senti que respirávamos aliviados e que era possível conversar. Eu disse, então, que achava que a gente tinha se assustado tanto, quando a tampa da caixa caiu, porque parecíamos estar em outro mundo.

“Qual mundo?” ele perguntou, enquanto caminhava na minha direção. “Talvez na 4ª dimensão porque, para mim, a 3ª é quando vou para o mundo da lua”, respondi.

Ele me disse, então, que às vezes ia para a 5ª dimensão, ao que respondi que nesta eu nunca havia estado, perguntando-lhe como era lá. Ele explicou que só havia monstros e fantasmas sempre em guerra. Disse também que, às vezes, ia para o mundo da lua e que lá era bom. Respondi-lhe, então, que a gente talvez pudesse se encontrar, de vez em quando, aí no mundo da lua. Seus olhos pareceram iluminar-se e ele sorriu levemente.

 

Considerações sobre a dimensão ética e estética no atendimento de Eric

Pode se observar que a experiência de encontro e comunicação significativa entre Eric e a analista se deu por meio de sinais não verbais e pela troca de olhares, quando a tampa da caixa de brinquedos caiu. Naquele momento houve uma reação de impacto, que surpreendeu e provocou no menino e na analista, uma ressonância corporal, psicossomática, mas de intensidades diferentes. A reação de pavor do menino pôde ser acolhida e transformada pela analista, permitindo a abertura do campo de comunicação significativa. Uma esperança brilhou no horizonte para Eric. A possibilidade de novos encontros no mundo da lua, descortinou-se para ambos.

Na experiência clínica com crianças como Eric, venho observando que o fenômeno estético se dá, inicialmente, por uma vivência que varia em diferentes graus, entre a estranheza, o horror e o susto. Tal impacto pode ser transformador e transformado quando há o acolhimento do que emerge no campo intersubjetivo que pode, então, entrar numa experiência compartilhada.

Nas três sessões de avaliação que tive com Eric, observei que o Homem- Aranha era usado por ele para estabelecer uma ponte com o mundo externo, para não se perder de si mesmo e nem ficar à mercê do mundo que o ameaçava. Em trabalho anterior3, relatei fragmentos do processo terapêutico de Eric, exemplar do que geralmente ocorre com crianças que são encaminhadas para atendimento clínico por queixas de problemas de aprendizagem. Para definir o tipo de intervenção necessária, se psicopedagógica ou psicanalítica, é preciso fazer um diagnóstico que permita compreender o momento evolutivo em que a criança se encontra, ou seja, é preciso conhecer o seu nível de situação e organização de self.

Eric não havia constituído o sentimento de continuidade do ser, já que as vivências de ruptura parecem ter ocorrido muito precocemente na sua vida. Ele vivia na área dos fenômenos subjetivos, mantendo-se num estado de retraimento e isolamento. Seu potencial intelectual não havia se desenvolvido devido a não-possibilidade de constituição do self e ele padecia de ansiedades em relação à integração. Um padrão de reação às intrusões parecia ter ocorrido por meio do desenvolvimento exacerbado da dimensão da imaginação. Esta parecia ter vida própria alienando-o de um contato com o externo. A experiência clínica, com Eric e outras crianças, com este tipo de funcionamento tem mostrado que a inibição intelectual é fruto de um transtorno do desenvolvimento devido a falhas do ambiente no atendimento das necessidades básicas da criança e não de um problema de aprendizagem4.

Embora os pais de Eric fossem extremamente amorosos, não puderam, por motivos alheios a sua vontade, exercer determinadas funções necessitadas pelo garoto num estágio muito inicial da vida. Como Eric, eles também estavam perdidos. Assim, na devolutiva, o máximo que sua mãe pôde aceitar em relação às minhas orientações de iniciar um processo psicanalítico e um atendimento fonoaudiológico, foi a mudança do menino para uma outra escola que respeitasse mais as suas características e o seu ritmo. Os pais acreditavam que tudo se resolveria com a mudança de escola e de atitude da família em relação ao menino.

Frente à preocupação dos pais em relação ao aspecto intelectual, expliquei-lhes que uma avaliação intelectual quantitativa só poderia ser feita, se fosse o caso, depois que Eric pudesse brincar e estabelecer uma outra modalidade de relação com a realidade.

Aproximadamente após um ano, devido também à solicitação da escola, sua mãe o trouxe, agora sim, para começar um processo terapêutico. Eric tinha quase 8 anos, estava na 1ª série e havia iniciado um atendimento fonoaudiológico há quase seis meses. A orientadora da escola atual, dizia que ele estava um pouco mais participante, apesar da dificuldade de atenção, concentração, relacionamento e lentidão.

A questão com Eric era: como atender a sua necessidade de usufruir experiências que permitissem descongelar aspectos do self, que não tinham se constituído devido à ausência da presença real de um outro ser humano? Como ajudá-lo a desenvolver a capacidade de comunicar–se num mundo de realidade compartilhada, simbolizar e encontrar canais de expressão?

No início, Eric tentava comunicar-se e estabelecer pontes com a realidade externa por meio do Homem-Aranha. Garoto extremamente assustado, não brincava de forma espontânea, nem parecia se sentir confortável na própria pele. Nada do que lhe era oferecido por um outro era apetecível. Aliás, o outro era alguém que, além de estranho, não passava de um invasor.

Considero que a primeira necessidade de um ser humano é ser aceito, reconhecido e respeitado no próprio estilo, ritmo e modo de ser. É isso que outorga o sentimento de se sentir incluído num grupo humano, sendo o primeiro deles, o da família. É isso que traz o sentimento de se “sentir integrado e participante da história da humanidade5”.

Desfrutar de um lugar como morada e ser acompanhado por alguém capaz de respeitá-lo, permitiu que Eric pudesse estabelecer um outro tipo de relação com ele mesmo, com seu corpo, com o outro e com os objetos da cultura. Após um período de quase 2 anos de atendimento6, as dimensões do self, até então, congeladas puderam tomar o caminho do desenvolvimento. Na medida em que Eric foi caminhando da área dos fenômenos subjetivos para a do mundo compartilhado, através do brincar e jogar espontâneo e criativo abriu-se, também, o campo do conhecer e do aprender.

Eric estava na 2ª série e por reconhecer suas dificuldades, aceitou o encaminhamento feito pela escola para um trabalho psicopedagógico. Um aspecto de fundamental importância que acompanha e organiza todo o processo terapêutico com crianças como Eric relaciona-se à importância da dimensão do tempo. Mesmo depois que se abriu o campo do conhecer e aprender o garoto continuou a ser respeitado em relação àquilo que podia conhecer e assimilar, como veremos no belo relato de sua psicopedagoga.

Concordo plenamente com Jean Yves Leloup (2002) quando diz: “Desposar o tempo é fazer nascer a paciência” (p.123). Para quem trabalha, na clínica do desenvolvimento e da aprendizagem, na perspectiva winnicottiana, é imprescindível aguardar o tempo, esperar pelo gesto verdadeiro que brota da dimensão subjetiva da criança respeitando o seu estilo, ritmo e modo de ser.

 

O Homem-Aranha e o trabalho psicopedagógico

Ana Lucia Calazans Pierri (Uxa)

Passo a relatar a história de uma criança na qual pude enxergar a trajetória do herói em busca de si mesmo. Reflito sobre os vários símbolos trazidos por Eric, buscando apoio especialmente em Jung (1964) e Muller (1987). Embora o trabalho psicopedagógico desenvolvido tenha sido muito mais amplo e abrangente, enfatizo a utilização que Eric fez dos símbolos para abrir seu caminho.

Meu trabalho com Eric era o de acompanhamento das lições da escola a partir de um olhar psicopedagógico, ajudando-o na organização e expansão da expressão oral e escrita. Sua terapeuta me descreveu um menino de grande riqueza interior que vivia num mundo paralelo, cujo gancho para o mundo externo estava se fazendo através do Homem-Aranha com quem ele parecia se identificar. De acordo com ela, o campo da aprendizagem começava a se abrir para o menino. Até então, ele não tinha um conflito do tipo: “quero aprender isso, mas tem algo que me impede”.

Percebi que era preciso tentar ver o mundo através de seu ponto de vista para que um trabalho pudesse acontecer sem grande resistência da parte de Eric. E ele via o mundo através dos heróis, de lendas, de histórias fantásticas trazidas do Japão. Seguindo Neumann (1968), passei a usar o simbolismo presente nos mitos, na arte e no sonho para compreender os vários estágios humanos e o que ocorre nos processos psíquicos.

Desde o início do atendimento, ficou muito forte a impressão de que Eric vivia um momento de “mudança de fase”. Precisava de forças que só poderiam ser sentidas como suas, na medida em que aprendesse a reconhecê-las e a elas tivesse acesso. Concluí que ele teria de ancorar na terra primeiro, estabelecer contato comigo e, como ele não se dispunha a trabalhar com nenhuma lição, mas se interessava por jogos e histórias, era por aí que começaríamos procurando dar espaço para o projetivo. Ao mesmo tempo, buscaria que ele falasse e escrevesse sobre o que estava acontecendo.

Pareceu-me que Eric vivia um momento em que tentava discriminar as coisas. Não sabia bem diferenciar o Eu/tu, realidade externa/interna. Mas mostrava garra e sabedoria ao se identificar com o Homem-Aranha, pois este é um símbolo de imensa flexibilidade: alguém que se agarra ao solo esteja onde estiver, mas para alçar seus vôos. Para poder voar e poder aterrizar.

Numa de nossas primeiras sessões Eric descobriu um jogo que o interessou: Combate. Depois de jogarmos bastante, propus que escrevêssemos o que estava acontecendo no jogo para que pudéssemos continuar na sessão seguinte. Ele concordou com entusiasmo e começamos a escrever:

O Diário de Combate: Eu, General Ekido, conquistei 12 adversários na batalha do dia ... Porém, tive 16 baixas. Meu inimigo atacou muitas vezes, mas perdeu quase todos os seus homens. Eu queria acabar com todos os cabos-armeiros... naquele momento senti que a batalha já estava praticamente acabada. Meu inimigo parou de atacar... eu comecei o ataque final... emocionante! Do exército inimigo sobraram..., do meu ainda temos... etc..

Ao finalizar a escrita, fez toda uma parada dos exércitos, por patentes, mostrando sua capacidade de seriar e classificar o que lhe interessava.

Na sessão seguinte, pela primeira vez, Eric trouxe lições que precisava fazer para a escola permitindo que eu o ajudasse. Entendi esta atitude como se me dissesse: “Vínculo estabelecido, você me entendeu, podemos trabalhar juntos”. Senti que passei no teste como aliada.

Passados uns dois meses, parece que se iniciou um novo ciclo. Já sabia como funcionava basicamente e entendi que o jeito de me chegar a ele incluía muita fantasia. Isto era o seu forte. O jogo que escolheu naquele momento foi O Enigma do Labirinto, que é um jogo de estratégia para se conquistar figuras das mais sugestivas para uma criança como Eric: a espada do Rei Artur, um dragão, um anel, uma coroa, uma aranha, um escaravelho etc. Jogamos e ele começou a me ditar uma história sobre príncipes e princesas.

Jogando o Enigma do Labirinto, escrevemos uma série de diálogos entre o Rei Artur, com quem Eric se identificara e os demais personagens do jogo. Num deles, o rei Artur declara: “Vou usar a aranha para fazer um portão, assim os inimigos não vão conseguir entrar.”

Lembrei-me que sua psicóloga havia contado que muitas pontes haviam sido tecidas na terapia, fios se cruzando pelos vários cantos do consultório... E a aranha, como já vimos, é a intercessora entre os mundos das duas realidades, a humana e a divina - e simboliza, entre outras coisas um fio em direção à liberdade. Artur e aranha são símbolos afins. Eric usou a aranha num primeiro momento para conectar-se e agora, a usava para proteger-se. Estava criando um campo de intimidade consigo mesmo. Nesta altura trabalhávamos muito também com atividades que favoreciam o desenvolvimento do seu pensamento.

Havia uma sintonia. Eric pedia as façanhas do Rei Artur, que buscava concretizar o domínio de seu reino sem perder sua força espiritual, e eu respondia resgatando o grande poder do pensar, que também é qualidade do rei. Tínhamos um combinado: jogar sempre depois de trabalharmos alguma coisa da escola. Neste período passamos a jogar Batalha Naval. Ele parecia não se incomodar muito quando perdia. Sempre encontrava uma compensação: pelo menos, isto, pelo menos, aquilo.

Não fazia as lições com prazer; ele as fazia porque isto era exigido dele, levava como parte das regras do jogo. Aprendia a adaptar-se, mas o que ia mesmo aprendendo, de forma a lhe fazer sentido e a lhe dar prazer, eram as conquistas dentro dos diversos jogos e os assuntos que apareciam paralelamente a eles. Aceitar as regras da luta é uma das tarefas do herói, ele estava podendo aceitá-las.

Eu seguia propondo atividades em que ele precisasse ler, seqüenciar, inferir, classificar, escrever histórias, o que fosse. Às vezes ele me surpreendia, escolhendo coisas inesperadas. Por exemplo: num jogo de alfabetização constituído por um quebra-cabeça de animais, começou a formar animais estranhos, usando peças de um e de outro compondo seres harmônicos que ele batizava com nomes divertidos. Um material que poderia sugerir um trabalho de construção lógica era usado por ele de forma intuitiva, sintética, buscando novas possibilidades. O que revelava a capacidade de Eric de ver as coisas por vários ângulos, encontrando alegria nesta nova e inédita construção.

Na seqüência, Eric construiu outro texto a partir de uma história "verdadeira" que me contou sobre um velho e uma velha. Foi possível trabalhar o pedagógico ao mesmo tempo em que outras elaborações inconscientes se processavam sincronicamente. Parece que Eric estava, neste momento, mobilizado numa pesquisa interna sobre o real e o imaginário.

Na sessão seguinte, ele fez uma outra história que chamou de “real”. Era uma cena entre pai e filho que ele precisou fazer para a escola e que estava realmente num padrão que podemos classificar de real, porque se passava nesta terra com pessoas ordinárias e era uma cena do cotidiano. O único senão foi a entonação dada às exclamações dos personagens inventadas por Eric que transparecia o quanto o contato com o mundo externo ainda o ameaçava. E assim ia este garoto tateando na sua construção do real, tentando discriminá-lo do imaginado, descobrindo o que pertence ao mundo objetivo e o que pertence ao mundo subjetivo.

Nas sessões seguintes, Eric demonstrou interesse por temas que se aproximavam mais da realidade objetiva. Quis ler sobre a verdadeira história do Rei Arthur, em oposição às lendas, e conhecer o que se dizia sobre sua espada. Como a consciência humana e a identidade pessoal estão amplamente ligadas à capacidade de distinção das coisas e à divisão em opostos, a espada é freqüentemente vista como um símbolo do pensamento e da consciência. Sem uma boa capacidade para distinguirmos as coisas racionalmente, nossa vida consistiria em um novelo embaraçado de percepções difusas, necessidades e sentimentos contraditórios. Portanto, a primeira e principal etapa do processo consiste em forjar a própria espada, que seria esta capacidade de resistir, de auto-afirmar-se, de sermos mais autônomos e termos uma agressividade criativa, que foca, que decide. Faz todo o sentido a necessidade de identificação de Eric com a espada do Rei Arthur naquele momento em que estava discriminando explicitamente o real e o imaginário.

Numa sessão subseqüente, trouxe um desenho que havia feito. Tratava-se de deuses e demônios do Japão, explicou-me ele. Este garoto tem um repertório riquíssimo sobre mitologia grega, nórdica e japonesa. Conhece muitas histórias e refere-se aos deuses com intimidade. Pois, neste dia ou na véspera, quem sabe, havia feito vários desenhos retratando deuses e demônios. Estavam todos misturados em uma ou duas folhas, feitos aleatoriamente, mas com grande qualidade. Fiquei encantada e propus que os separássemos de modo a ficar cada desenho em uma folha e assim cada um seria mais valorizado na sua individualidade. Além disso, sugeri que escrevesse alguma coisa sobre cada um para que pudesse levar para a escola, mostrar para os amigos e para a professora para que conhecessem ainda mais sobre o Japão e sobre ele, Eric. Era uma oportunidade para tornar mais conhecido o “diferente”.

Eric fez uma apresentação oral sobre o Japão, que foi aplaudida com entusiasmo pela classe. Era sintomático o fato de estar desenhando os deuses naquele momento numa tentativa de discriminação, de organização, de modo a colocar cada coisa no seu devido lugar e a si mesmo relativamente a isto tudo. Um dos textos que escreveu falava do nascimento do dragão, último filho da mitologia japonesa, em que ele descreve a ascendência do dragão: quem era seu pai, quem era seu avô, ambos soltando fogo pela boca.

Passei a pensar que, talvez, representando os deuses e tornando-os palpáveis, ele pudesse sair deste mundo imaginário em que se refugiara. Jogando na pele do Rei Arthur, ele poderia ir construindo sua identidade de herói, já humano, ficando mais livre para perceber como evoluem as coisas no plano da Terra. Não sei as respostas, fiquei com as hipóteses e segui trabalhando. Lembrei que para Jung (1970), o mito desencadeia o seu próprio processo nos povos sem precisar da explicação metacognitiva. Assim, às vezes, têm mais poder do que se submetido a explicações.

Voltando das férias demoramos a encontrar um projeto que o entusiasmasse. Pela primeira vez vejo Eric ficar chateado em perder o jogo e querendo mudar as regras. Paralelamente, seguimos lendo um gibi chamado Os doze trabalhos da Mônica, em que o autor a coloca como Hércules enfrentando os diversos trabalhos. Na mesma ocasião, também desenha um Godzilla vestido com a roupa que ele usava no dia, dando um golpe mortal num menino mais velho. Desta vez o dragão está num lugar não ameaçador em relação a ele, mas, incorporado nele, como se já pudesse arriscar-se, romper as regras e a submissão, e enfrentar o inimigo que até então parecia intimidá-lo.

Havia uma mudança em Eric. Cada vez mais colocava seus limites e apresentava resistência a algumas de minhas propostas. Uma constatação que me levou a supor como talvez acertada a hipótese de que começava a enfrentar o dragão do TU DEVES.

Em meados de outubro, talvez devido ao medo de uma retenção na segunda série, Eric começou a vir com o desejo de usar todas as suas forças para vencer seus desafios. Logo ele entrou na imagem do herói lutando contra seus inimigos e declarou que seu inimigo principal era a preguiça. Propus que a representasse utilizando algum material plástico para fazê-lo. Escolheu massa de modelar e fez um ser que chamou de monstro, mas que foi, conforme ele falava, se transformando no Deus da Preguiça. Aos poucos, Eric tomou a decisão de matar a preguiça. Queria destruí-la explicitando que não queria destruir o sonho. Decidimos juntos que o monstro da preguiça, que ele havia feito usando a massa de modelar, deveria ser levado para a sua psicóloga para continuarem a conversar lá sobre o assunto, o que será comentado por ela mais adiante.

Nosso segundo ano começou. Os problemas continuavam assim como as grandes “sacadas”. A certa altura, Eric quis fazer um levantamento dos Doze Trabalhos de Hércules. Ele sabia exatamente onde encontrar o que procurava. Foi então que me ocorreu fazer uma pergunta: E quais seriam os seus 12 trabalhos, Eric?

Ele aceitou o desafio de escrever uma história que poderia ser feita de dois jeitos: uma, os trabalhos sendo mesmo do mundo da fantasia; outra, os trabalhos sendo do mundo real. Perguntou se não dava para juntar os dois, um pouco um, um pouco o outro. Achei a idéia boa porque nos permitiria, quem sabe, ver o quê de fantasia havia no real e o quê de real havia na fantasia. Era uma outra forma de discriminação. Ele ficou feliz. Continuávamos buscando a integração...

- “E qual seria o primeiro trabalho?” perguntei. “Matar a preguiça!” ele respondeu.

Então, chamei sua atenção para o fato de que colocando a escola como um monstro, podia-se esperar que desse preguiça de enfrentá-la. Continuei: “A escola é o lugar em que as pessoas vão para aprender coisas sobre o mundo e as coisas sobre o mundo não são monstros, são as coisas sobre o mundo. Talvez você precise experimentar mudar o jeito de olhar para a escola.” Ele me acompanhava interessado, o olhar fixo em mim.

- “Que ferramentas vou precisar para vencer a 3ª série?”

- “Ah! Podíamos pensar em trabalhos sendo as conquistas destas ferramentas, que tal?”

Então ele falou nas pessoas que o ajudavam, disse que gostaria de pôr os amigos na história, assim como eu e a sua psicóloga. E assim ficamos com este projeto meio engatilhado. Na sessão seguinte, veio entusiasmado para iniciar “Os doze trabalhos de Eric”.

Deu o título “O encontro com a sábia”, e passou a descrever o seu primeiro dia de terapia com sua psicóloga. A história fluiu numa rapidez impressionante, ele ia tendo uma idéia atrás da outra, eu precisando apenas ajudá-lo a ser mais específico para garantir a compreensão do texto e o enriquecimento do mesmo. Ficou assim:

O herói já tinha passado por uma vida, desde pequeno, tendo que vencer muitas tarefas.

Um dia, seus pais o levaram para um outro lugar. Era cheio de neblina e havia uma escada. Ele se sentiu muito arrepiado. Subiu a escada e começou a sentir um calor. Quando chegou ao topo da escada deparou-se com o paraíso: tinha nuvens, céu bem azul, flores e pássaros que ele nunca vira. Em frente a um morro, ele viu uma pessoa. Chegou perto e perguntou:

- Você é dono deste lugar?

- Não, sou seu anjo-da-guarda.

Ele reparou que era uma mulher que tinha falado aquilo e ficou bem assustado. De repente, ele percebeu que não precisava ter tanto medo, pois ela disse:

- Eu sei de onde você veio e todo o seu passado.

- Então, de onde eu vim? perguntou o herói amedrontado.

- Você vem do mundo do sol que não tem nada a ver com o mundo da lua. O mundo do sol é um paraíso.

- Mas como eu faço para voltar para este mundo do sol?

E a sábia responde:

- Vencendo doze desafios.

- Quais são eles, você sabe?

- Não sei, mas me siga que você vai descobri-los.

Então a sábia começou a caminhar e o herói a seguiu. Andaram em direção a um arco-íris, que se transformou numa ponte e depois apareceu uma longa estrada reta.

Como estaria Eric depois deste encontro?

Eu estava supercomovida com aquela história que achei de uma beleza incrível; vi-o se debatendo com a angústia que sentiu ao ser levado para a psicóloga e depois, o alívio ao perceber que ali poderia ser um paraíso. Achei surpreendente ele tê-la enxergado como um anjo-da-guarda, dizendo que sabia tudo sobre ele. A que será que ele se referia neste momento? E aquela história de voltar ao mundo do sol?

Símbolos poderosos se entrecruzando, se entrelaçando, denotando uma evolução nesta criança que saía do Mundo da Lua para entrar no Mundo do Sol que era sua origem, mais uma vez usando o caminho que une o céu e a terra e buscando a união dos contrários; a terapeuta, o anjo-da-guarda, é que vai ajudá-lo a voltar ao mundo do sol, da realidade compartilhada.

O trabalho com Eric continuou e foi “mudando de cara”, passou a se integrar cada dia mais à realidade compartilhada. Pudemos encarar mais de frente suas dificuldades escolares e o trabalho saiu da interseção do possível x impossível para habitar a intersecção do possível x provável, para usar as conhecidas expressões de Alicia Fernandez (2000). De minha parte, percebo cada dia mais a necessidade de respeitar e ampliar a escuta para com os meus clientes de forma a não atropelá-los com as minhas interpretações e teorias. Percebo que a qualidade amorosa na relação ensino-aprendizagem é a grande chave. Um amor que aceita o outro como é, desidealizado, no momento em que está, o que não é nada fácil.

A partir da minha experiência e de uma consciência mais ampliada, posso atualizar o meu trabalho e dar um significado diferente às minhas intervenções psicopedagógicas, buscando dar espaço tanto para o sonho quanto para o real, concreto, tanto para o pensamento quanto para o sentimento e o afeto, tanto para o que está consciente como para o que está na sombra.

Penso que as palavras de Neumann (1968) aproximam-se de uma forma bastante razoável da situação vivida por Eric e também por mim, num determinado aspecto. Ele estava em busca de quem era. Eu, em busca de uma compreensão mais precisa sobre a tarefa psicopedagógica. Ambos buscávamos uma diferenciação e caminhávamos para uma maior consciência do "quem sou eu". Cada um num momento diferente da vida, mas partilhando desta mesma experiência.

"toda coerção - seja sugestão, insinuação ou qualquer outro método de persuasão - no fim provam ser mais nada que um obstáculo às experiências do <i>self</i>, ou qualquer coisa que a pessoa escolha chamar o objetivo da psique. O paciente deve estar só, se se quiser que ele descubra o que o sustenta quando ele já não se sustenta mais. Só esta experiência pode lhe dar bases indestrutíveis.” (Jung, 1970, p.72: 32).

E, ainda Jung:

“Um analista pode ajudar seu paciente até o ponto onde tenha ido, nenhum passo adiante.”(p. 82: 545).

Algumas reflexões sobre a identidade e os limiares da atuação psicopedagógica

Sonia Maria B. A. Parente

Inicio ressaltando alguns pontos relacionados aos limiares da atuação psicopedagógica. Interessante observar que Ana Lúcia não tinha o objetivo de ensinar nada para Eric. Isso seria papel de um professor e não de um psicopedagogo. Ela não buscou adaptá-lo ao que poderia estar sendo esperado dele em termos de rendimento escolar, mas criou condições para que o menino pudesse transformar-se, a partir do seu estilo e da sua forma singular de aproximar-se dos objetos. Interessante observar, também, que em determinado momento, Eric levou o monstro - Deus da Preguiça para um trabalho com sua psicoterapeuta, o que permitiu manter a especificidade do trabalho psicopedagógico. Aprofundar-se no tema o desviaria e não favoreceria o caminhar do menino em direção ao mundo de realidade objetiva, nem ao desenvolvimento de uma atitude cientifica.

Usando o referencial de Paín (1985) aliado ao de Winnicott (1971) diria que Ana Lúcia ofereceu condições para que Eric pudesse realizar um casamento entre a dimensão cognitiva, lógica e a dimensão dramática, afetiva do seu pensamento trabalhando sempre a partir do que ele trazia e de forma transicional7.

Quando um psicopedagogo reconhece a origem e o desenvolvimento da matriz do conhecimento e o estilo de aprendizagem de uma criança, é possível apresentar objetos da cultura, mantendo a especificidade do trabalho psicopedagógico, sem precisar renunciar ao desfrute de passeios compartilhados pelos caminhos da ilusão, como vimos com Eric. Sua psicopedagoga inicia o relato, assinalando que o interesse do menino é “por jogos e histórias e que a fantasia é o seu forte”, o que a leva a “dar espaço para o projetivo”. Assim ela respeita o ritmo e o estilo de aprendizagem de Eric, trabalhando a partir do que o interessa e buscando sempre que ele fale e escreva sobre aquilo que a mobiliza.

Pode-se observar como ao longo do relato de Ana Lúcia, suas intervenções são assentadas numa postura ética, realizadas sempre a partir de uma aposta no desenvolvimento de Eric e de um encantamento pelo seu modo particular de ser e de relacionar-se com o mundo externo. No trabalho psicopedagógico realizado no registro da intersubjetividade, o profissional está tão envolvido quanto o paciente. A dimensão ética diz respeito àquilo que oferece condições para que um ser humano desenvolva seu potencial ativo e criativo, do qual faz parte a disponibilidade para o desenvolvimento e para a aprendizagem (Parente, 2003). É em Jung que Ana Lucia encontra o referencial para nomear suas intervenções, fazendo, assim, um uso transicional da teoria, o que é muito importante para um profissional que pretenda debruçar-se sobre sua experiência clínica e com ela dialogar.

Gostaria de estabelecer uma aproximação entre Jung e Winnicott, já que se pode observar no modo de trabalhar de Ana Lúcia o reconhecimento da importância de que Eric pudesse encontrar o familiar no estranho, para se envolver e se interessar de forma genuína por aquilo que, ao mesmo tempo seria fruto da criação dele e da apresentação dela. Vemos assim belamente ilustrada a noção de fenômeno transicional: ao mesmo tempo, é fruto da criação do indivíduo e também se encontra no mundo objetivamente percebido. Em várias passagens vemos isso, como por exemplo, quando ela oferece o jogo Enigma do Labirinto com símbolos tão significativos para Eric. É a criação desse campo de troca e comunicação significativa que permite o envolvimento do menino desde o início no processo e que favorece o seu caminhar em direção a externalidade do mundo.

Interessante assinalar que o trabalho psicopedagógico se afina com o psicanalítico, especialmente se considerarmos, como vimos, a dimensão ética. Ambos respeitaram o ritmo, o modo de ser e a singularidade do garoto. Crianças como Eric, que sofreram uma falha no ethos8 e foram invadidas precocemente são extremamente sensíveis ao entorno ambiental, tendo um estilo singular de ser e de aprender. Por isso mesmo, depois que se abriu o campo da aprendizagem, Eric continuou a ser respeitado em relação àquilo que podia conhecer e assimilar pela sua psicopedagoga enquanto sua psicanalista continuou a dar sustentação ao desenvolvimento do seu processo psíquico.

Seria possível e interessante estabelecer outras aproximações entre os referenciais de Winnicott e Jung no atendimento de crianças com inibição intelectual. Entretanto, isso fugiria ao objetivo deste trabalho. Por ora, o importante é dizer que ambos carregam uma concepção sobre a natureza humana passível de aproximação. É necessário, também, buscando evitar ruídos na comunicação, marcar uma diferença entre eles. A noção de arquétipos de Jung que fundamenta todo o seu pensamento é inata. Já usando Winnicott, poderíamos dizer que o potencial ativo e criativo do ser humano e sua disponibilidade para o conhecimento e a aprendizagem, só se atualiza e se desenvolve na presença de um outro em quem se confia, respeita e atende às necessidades psíquicas.

Sem a presença de um outro confiável que dê sustentação aos gestos de busca ofertando situações de encontro e comunicação significativa, não há desenvolvimento integrado das dimensões do self.

Vale lembrar que qualquer coisa feita em estado de isolamento e solidão é triste e não enriquece o self. Imaginar, sonhar e, inclusive, ter medo e chorar sozinho é muito diferente de chorar com alguém que nos compreende e acolhe de forma genuína. Assim, acompanhamos como à medida que Eric foi podendo ampliar o seu mundo de realidade compartilhada, inscrevendo seu gesto, confiando e brincando nos seus diferentes espaços - os psi, o da família e o da escola -, foi podendo integrar esta dimensão no self enriquecendo e sendo enriquecido pelo diálogo com a realidade externa.

Outro aspecto importante a que não fizemos referência aqui é que, várias vezes, tanto Ana Lúcia como eu, mantivemos contatos com a escola e com a família de Eric já que o trabalho, especialmente com crianças com sofrimento psíquico ligado a um quadro de inibição intelectual, exige a inclusão dos mesmos.

Em relação ao funcionamento psíquico de Eric, como já disse, ele tinha um desenvolvimento exacerbado da dimensão imaginativa. Ao chamar de preguiça este seu modo de ser, ele provavelmente repetia o que ouvia dos adultos que, geralmente, fazem confusão entre esses dois aspectos colocando tantos rótulos nas crianças, tais como: desligado, desinteressado, só faz o que quer... e por ai afora. Eric, garoto extremamente intuitivo tem medo de que ao matar, o que equivocadamente chama de preguiça, mate também sua capacidade de sonhar. Medo totalmente justificado, pois uma é fonte da outra quando podem ser compartilhadas com um outro ser humano.

O curioso é que o desenvolvimento exacerbado da dimensão imaginativa, além de trazer certa alienação da realidade compartilhada, leva, também, crianças como Eric a adotar objetos da cultura9 que carregam a potencialidade de um encontro com um outro. É nesse objeto que reside a matriz da aprendizagem e do objeto de conhecimento10. É o encontro que permite a saída do labirinto da nostalgia e de um estado de isolamento psíquico. Nem sempre nos damos conta de que sentir-se parte, sentir-se incluído num mundo humano é condição para o desenvolvimento da posterior capacidade cognitiva de reconhecer as características dos objetos, podendo inclusive incluí-los em diferentes classes (por exemplo, reconhecer que uma laranja é uma fruta, um cachorro, um animal etc.). Assim, crianças, adolescentes e adultos com estados e/ou momentos de inibição intelectual, traço presente em pessoas com os assim chamados problemas de aprendizagem tem, a meu ver, não um modo de funcionamento patológico, mas, sim, um estilo de aprendizagem.

 

À guisa de Conclusão

Não sei se você, leitor, já se perguntou onde reside a sua identidade de psicopedagogo. Sugiro que o faça, pois pelo menos no meu percurso e no de Ana Lucia ele foi a mola propulsora para abrir um campo de comunicação significativa e aprendizagem criativa. Não sei também se já se perguntou sobre como recorta e adota abordagens teóricas para debruçar-se sobre sua experiência clínica e compreender suas intervenções e como elas operam não só na subjetividade de seu paciente e de sua família, mas também na sua. Isso é importante porque talvez seja a partir de um ethos, isto é, de uma concepção de homem e visão de mundo, que um profissional compreende um fenômeno, o que lhe permite identificar, escolher e usar determinada teoria, ou aspectos dela, justamente porque ilumina tal fenômeno11.

É importante lembrar que cada teoria possui um ethos, isto é, os fundamentos que a ancoram e que tem implicações no tipo de intervenções clínicas, pois operam a partir de determinada concepção de homem e visão de mundo dos autores que a construíram. Acredito que a escolha e o uso que fazemos desta ou daquela teoria é fruto de afinidades que temos com tais concepções. Daí a importância de estabelecer um diálogo com algum referencial teórico buscando lançar luz sobre a nossa experiência, como vimos no relato de Ana Lúcia.

Outras indagações importantes poderiam ser feitas ainda:

Qual o lugar existencial do profissional psicopedagogo? Como compreende a vida e se posiciona diante de uma criança que sofre por não conseguir fazer uso do seu potencial intelectual e aprender e que, às vezes, busca desesperadamente sentir-se incluída num grupo, ser vista e reconhecida? Ou que, outras vezes, disfarça esta busca, pois duvida que um encontro genuíno seja possível? Ou que, outras vezes ainda, não tem ou perdeu a esperança de ser compreendida, acolhida e respeitada?

Há uma questão crucial para o profissional especializado no campo da aprendizagem, pois as dificuldades da criança, que geralmente se evidenciam no início da vida escolar começaram muito antes do encaminhamento. A questão do sofrimento psíquico não ocupa a cena, pois geralmente fica encoberta pelas queixas e reclamações dos pais presentes na apresentação que fazem da situação de fracasso escolar do filho e na alta expectativa em relação à rápida melhora do desempenho da criança. É inegável que o caráter de urgência no trabalho psicopedagógico pesa sobre todos. Daí a importância de não transformarmos nosso trabalho em mais uma mercadoria, em um produto de consumo.

Finalizo a minha reflexão, respondendo à indagação:

Onde residem o ser e o fazer psicopedagógico?

Na minha experiência, repousam na capacidade de reconhecer, aceitar e principalmente, transformar situações de tensão e conflito em oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento. Ser psicopedagoga é colocar em xeque o meu próprio processo de aprendizagem. É poder entregar-me ao movimento presente no campo de relações abrindo-me para as indagações que surgem na e da experiência com as pessoas. Experiências estas que inclusive incluem a dimensão da comunicação que as palavras nem sempre alcançam. É poder reconhecer e ter acesso ao sofrimento psíquico das crianças que não podem fazer uso de seu potencial, o que só é possível para quem já pôde acessar suas próprias dificuldades de aprendizagem e o sofrimento a elas relacionado.

Retomo a afirmação de Jung (1970):

“Um analista pode ajudar seu paciente até o ponto onde tenha ido, nenhum passo adiante.” (p. 82: 545).

Acrescento outra, de Winnicott (1965):

“A ciência precisa tanto do pensamento lógico quanto da intuição para progredir...

Precisamos ser capazes de buscar símbolos e criar imaginativamente e em

linguagem pré-verbal; precisamos ser capazes de pensar alucinatoriamente.” (p.123)

As palavras de Adélia Prado me ajudam a finalizar este artigo, já que o desejo de publicar os dois trabalhos, escritos com diferentes objetivos, nos idos de 1999 e agora costurados numa única peça, nasceu em 200012, quando ele foi usado para mobilizar justamente uma reflexão sobre as especificidades da intervenção psicanalítica e a psicopedagógica no III Encontro com Sara Paín.

"Eu sempre sonho que uma coisa gera,

nunca nada está morto.

O que não parece vivo, aduba.

O que parece estático, espera."

 

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Notas

* Doutora e mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; psicanalista pelo Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo; especialista em Psicologia Clínica e Psicopedagogia, CRP-SP; professora e supervisora no Curso de Psicologia da Universidade Ibirapuera, São Paulo, Rua Sampaio Viana, 75, conjunto 1002, Paraíso, São Paulo e-mail: smparente@terra.com.br.,

1 Pedagoga, psicopedagoga.

2 Este relato é parte da Monografia orientada por Eloisa Fagali e apresentada no Curso de Especialização em Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae, em 1999.

3 Aprendizagem: Mais além do princípio (...) da realidade. Revista Construção Psicopedagogica,n.6,2001, p.26-31

4 Por isso discordo de Paín (1985) e Fernández (1990), que incluem a inibição no campo dos problemas de aprendizagem. Também não reconheço a continuidade defendida por Paín, para quem o caminho da inibição é converter-se em sintoma, o que justificaria uma atitude mais ativa e diretiva do psicopedagogo buscando “puxar” o olhar da criança para o conhecimento. Penso, ainda, que não se pode atribuir a inibição a uma relação conflitiva com o ensinante exibicionista e/ou com o mecanismo da desmentida, como defende Fernández (1990).

5 Reconheço aqui as contribuições de Safra, não apenas em trabalhos escritos, mas também em aulas e comunicações pessoais.

6 Ver “Estação 5 e 6” de Em busca da comunicação significativa: Transformações no olhar de uma analista na Clínica da Inibição Intelectual, PUC/ SP, 2005.

7 Se em trabalhos anteriores (2000 e 2003) estabeleci aproximações entre Paín e Winnicott, no Doutorado apontei algumas diferenciações entre eles. Na abordagem de Paín voltada para a patologia da aprendizagem, temos uma concepção de aprendizagem relacionada ao aspecto da autoria do pensamento. Na abordagem sobre comunicação significativa e aprendizagem criativa, desenvolvida por mim no Mestrado a partir de Winnicott,, a aprendizagem é entendida como processo de criação e apropriação criativa de conhecimentos, o que traz satisfação e desenvolvimento pessoal, permitindo a realização de um projeto existencial no mundo.

8 Segundo Figueiredo (1996) :”(...) ethos- o objeto da ética tomada como reflexão ou “teoria” – refere-se à morada (p.44). No contexto deste artigo, a palavra ethos, tanto pode ser usada para o que se constitui como morada de um ser humano ou para aquilo que fundamenta e dá sustentação a uma teoria.

10 A titulo de esclarecimento: para mim, o conhecimento não é uma característica do objeto, mas uma criação do indivíduo.

11 Concordo com Luis Cláudio Figueiredo, quando afirma que embora não possamos justificar nossas escolhas teóricas, isso não nos exime de nos debruçar e refletir sobre elas.

12 Na época, os dois trabalhos inspiraram a criação coletiva de uma peça de teatro intitulada: O Homem-Aranha e a Sala Mágica, com direção de Leslie Marko e encenada pelas psicopedagogas Ana Lúcia C. Pierri (Uxa), Elisa Mirian Katz, Maria Cristina del Nero Ferreira e Marilda Almeida.

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