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Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954On-line version ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.17 no.14 São Paulo June 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A subjetividade na Psicopedagogia: algumas reflexões

 

 

Beatriz Judith Lima Scoz1; Sonia Saj Porcacchia2

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo tem como objetivo tecer algumas considerações sobre a questão da subjetividade na Psicopedagogia. A partir das contribuições teóricas de Beatriz Scoz, Edgar Morin e Fernando González Rey, com apoio na teoria da complexidade de Fritjof Capra, situamos a subjetividade em uma perspectiva teórica históricocultural que implica na idéia de movimento. Trata-se de compreender a subjetividade (individual e social) como algo em construção onde estão presentes uma série de configurações de sentidos. Em especial, buscamos enfatizar a importância da construção da subjetividade na atuação psicopedagógica, a partir da compreensão das trajetórias de vida do sujeito que aprende e ensina, visando um posicionamento ativo desse sujeito, na direção da abertura de novos espaços de subjetivação através da ação, para possíveis transformações. Logo, situamos a atuação do psicopedagogo em uma perspectiva mais ampla em que a construção da subjetividade não acontece num espaço interno e nem num espaço externo, mas na inter-relação, na intersubjetividade.

Palavras-chave: Subjetividade, Psicopedagogia, Aprendizagem, Atuação psicopedagógica.


ABSTRACT

This study aims to make a few observations on the issue of subjectivity in Psicopedagogy. From the theoretical contributions of Beatriz Scoz, Edgar Morin and Fernando Gonzalez Rey, with support in the theory of complexity of Fritjof Capra, we situate the subjectivity in a historical and cultural perspective which implies the idea of movement. It is to understand the subjectivity (individual and social) as something under construction which are present a series of settings senses. In particular, we emphasize the importance of construction of subjectivity in performance psychology, from the understanding of life trajectories of the subject who learns and teaches, seeking an active position that subject, in the direction of opening new spaces of subjectivity through action for possible changes. So, we situate the performance of psychopedagogic in a broader perspective in which the construction of subjectivity isn’t a space or a space internal and external, but in the inter-relationship and intersubjectivity.

Keywords: Subjectivity, Psycopedagogy, Learning, Processes of therapeutic psycopedagogy.


 

 

Introdução

“Nossas respostas ao meio ambiente são, portanto, determinadas... por nossa experiência passada, nossas expectativas, nossos propósitos e a interpelação simbólica individual de nossa experiência perceptiva. A tênue fragrância de um perfume pode evocar alegria ou mágoa, prazer ou dor, através de suas associações com a experiência passada, e nossas respostas variarão de acordo com isso. Assim, o mundo interior e exterior estão sempre interligados no funcionamento de um organismo humano; eles interagem e evoluem juntos”. Fritjjof Capra

A Psicopedagogia, como uma área de estudos e um campo de atuação em Saúde e Educação que lida com a aprendizagem humana, tem se preocupado com a complexidade que envolve essa questão. Trata-se de percebê-la a partir de um olhar multidisciplinar e interdisciplinar, a partir de conhecimentos sobre as bases orgânicas, psicológicas, cognitivas e sociais do sujeito.

Dessa forma, é necessário um maior aprofundamento de estudos científicos que fundamentem o diagnóstico e o atendimento psicopedagógico, considerando-se suas múltiplas relações. Nessa perspectiva, a Psicopedagogia também considera os processos de ensino/aprendizagem como duas instâncias que não se separam, ou seja, tais posicionamentos (aprendente-ensinante) podem ser simultâneos e estão presentes em todo vínculo (pai-filho, amigo-amigo, aluno-professor, etc).

Nas relações indissociáveis ensino/aprendizagem, Fernández (2001 c, pp. 54- 90) enfatiza a importância do reconhecimento da autoria de pensamento do sujeito que ensina e do sujeito que aprende. Para essa autora, o conceito de autoria de pensamento é próprio da Psicopedagogia e pode ser definido “como o processo e o ato de produção de sentidos e de reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante de tal produção”. Dessa maneira, aponta-se novamente na direção de uma perspectiva complexa e abrangente que deve estar presente na Psicopedagogia.

Ampliando esse olhar, González Rey (2005) define epistemologicamente a produção de sentidos relacionando-a à questão da subjetividade. Para esse autor (2005, p.IX) “o sentido exprime as diferentes formas da realidade em complexas unidades simbólico-emocionais, nas quais a história do sujeito e dos contextos sociais produtores de sentido é um momento essencial de sua constituição”. Continua o autor:

As criações humanas são produções de sentido, que expressam de forma singular os complexos processos da realidade nos quais o homem está envolvido, mas sem constituir um reflexo destes. [...] esses processos são uma criação humana, os quais, integrando os diferentes aspectos do mundo em que o sujeito vive, aparecem em cada sujeito ou espaço social concreto de forma única, organizados em seu caráter subjetivo pela história de seus protagonistas (González Rey, 2005, p. IX)

Essa forma de conceber o estudo da subjetividade “concretiza no campo da Psicologia a visão de complexidade defendida por Edgar Morin” (GONZÁLEZ REY apud SCOZ, 2004, p.11), e que segundo Scoz (2004, p.11), “trata-se de considerar as ligações, as articulações, expressando aquilo que é tecido em conjunto, enfatizando, ao mesmo tempo, a complexidade da organização simultânea e contraditória dos espaços individuais e sociais”.

A partir dessas idéias, este estudo pretende fazer uma reflexão sobre a questão da subjetividade na Psicopedagogia, partindo de uma concepção de complexidade que engloba os sentidos que os sujeitos produzem em seus processos de aprender e de ensinar. Semelhante às concepções de Fernández (2001 b), anteriormente citadas, na perspectiva do pensamento complexo de Edgar Morin, esses processos serão considerados como uma unidade indissociável, que pode ser definida como um sistema dialógico e dialético, ao mesmo tempo constituinte e constituído. Esse autor explicita essa idéia em dois dos seus princípios do pensamento da complexidade:

[...] o princípio dialógico, unindo duas noções antagônicas que aparentemente deveriam se repelir, mas que são indissociáveis e indispensáveis para a compreensão de uma mesma realidade: e o princípio da recursão organizacional, representado por um círculo gerador, no qual os produtos e os efeitos são eles próprios produtores e causadores daquilo que os produz. (Morin, apud Scoz, 2004, p.11).

Neste estudo, coerente com as idéias anteriormente citadas, a fundamentação teórica sobre a questão da subjetividade será considerada na perspectiva sócio-cultural de Fernando González Rey, apoiada na concepção sistêmica de Fritjof Capra e na teoria da complexidade de Edgar Morin.

 

Algumas concepções para compreender a subjetividade

Um dos autores citados atualmente em algumas pesquisas acadêmicas é Fritjof Capra. Para esse autor (1982, p.259), a subjetividade do sujeito “baseia-se na consciência do estado de inter-relação e interdependência essencial de todos os fenômenos - físicos, biológicos, psicológicos, sociais e culturais”.

Segundo Capra (1982), existe uma concepção sistêmica de ver o mundo em termos de relações e de totalidades integradas, cujas propriedades não podem ser reduzidas às unidades menores, princípios básicos de organização. Assim, para a nova teoria dos sistemas, a evolução é uma aventura contínua e aberta que cria ininterruptamente sua própria finalidade num processo cujo desfecho é imprevisível. Suas características incluem o aumento progressivo de complexidade, coordenação e interdependência; a integração de indivíduos em sistemas de múltiplos níveis; e o refinamento contínuo de certas funções e tipos de comportamento.

Do ponto de vista sistêmico, o que sobrevive é o “organismo-em-seu-meioambiente” (CAPRA, 1982). Um organismo que pense unicamente em termos de sua própria sobrevivência destruirá, invariavelmente seu meio ambiente e acabará por destruir a si mesmo. Assim, no pensamento sistêmico, a unidade de sobrevivência não é absolutamente uma entidade, mas um modelo de organização adotado por um organismo em suas interações com o meio ambiente. Logo, para entender a natureza humana, estudamos não só suas dimensões físicas e psicológicas, mas também suas manifestações sociais e culturais.

Complementando as idéias de Capra, Vasconcellos (2006) avança em três dimensões que são adotadas no novo paradigma da ciência: a complexidade, a instabilidade no mundo e a intersubjetividade. A complexidade leva o sujeito a ampliar o seu foco de observação sobre o fenômeno, passando a percebê-lo em suas relações intra-sistêmicas e intersistêmicas. Segundo esse autor (2006), o dinamismo das relações e as mudanças constantes presentes nos sistemas provocam evolução, auto-organização e, ao mesmo tempo, instabilidade, falta de controle e irreversibilidade dos fenômenos. Vasconcellos (2006) também enfatiza o reconhecimento da inexistência de uma realidade independente de um observador, ou seja, o conhecimento científico sobre o universo é uma construção social em espaços consensuais realizado por diferentes observadores – a intersubjetividade. Trata-se assim, do reconhecimento da impossibilidade de um conhecimento apenas objetivo no mundo.

Essa nova “visão transcende as atuais fronteiras disciplinares e conceituais e será explorada no âmbito de novas instituições” (CAPRA, 1982). É aí que situamos a questão da subjetividade nos processos de aprender e de ensinar e suas relações com a Psicopedagogia.

A Teoria da Complexidade de Morin também complementa as idéias de Capra (apud SCHNITMAN, 1996), mais especificamente quando esse autor traz parâmetros para a compreensão da subjetividade como um emaranhado de ações, de interações, e de retroações e que, nessa complexidade, os processos de ensino e aprendizagem se constituem. Morin afirma ainda que “cada indivíduo numa sociedade é uma parte de um todo, que é a sociedade, mas esta intervém, desde o nascimento do indivíduo, com sua linguagem, suas normas, suas proibições, sua cultura, seu saber”, ou seja, “não só uma parte está no todo, como também o todo está na parte” (MORIN apud SCHITMAN, 1996, p.275).

Além disso, Morin (apud SCHNITMAN, 1996), assim como Capra, nos traz a posição do observador que interfere no objeto, isto é, existe a junção do observador que observa e, ao mesmo tempo, está interferindo no objeto investigado, ressaltando-se a importância das interações Com outras palavras “nada está realmente isolado no universo, tudo está em relação”, ou seja, “tudo está em tudo reciprocamente”. Morin (apud SCHITMAN, 1996, p.275).

Morin (apud SCHNITMAN, 1996, p.280) afirma ainda que “todo conhecimento é uma tradução e uma reconstrução”, uma vez que “construímos a percepção do mundo, mas com uma considerável ajuda da sua parte”. Dessa forma, o pensamento complexo é um pensamento local, isto é, situa-se em um determinado tempo e momento, mas não é um pensamento completo, porque nele sempre existe a incerteza.

É no contexto de pensamento complexo, anteriormente citado, que González Rey (2005, p.IX), situa a construção da subjetividade do sujeito. Ou seja:

[...] em um complexo e plurideterminado sistema, afetado pelo próprio curso da sociedade e das pessoas que a constituem dentro do contínuo movimento das complexas redes de relações que caracterizam o desenvolvimento social. Esta visão de subjetividade está apoiada com particular força no conceito de sentido subjetivo, que representa a forma essencial dos processos de subjetivação. O sentido exprime as diferentes formas da realidade em complexas unidades simbólico-emocionais, nas quais a história do sujeito e dos contextos sociais produtores de sentido é um momento essencial de sua constituição, o que separa esta categoria de toda forma de apreensão racional de uma realidade externa.

Baró (apud GONZÁLEZ REY) também nos oferece uma contribuição para a compreensão da subjetividade quando expressa a existência de uma dialética entre o individual e o social. Ou seja, esse autor foi levado a pensar:

[...] em uma teoria da personalidade de base histórico-cultural e, por sua vez, a na psicologia social com base teórica dialética e complexa, na qual o individual e o social não constituíram uma dicotomia, nem se excluíram reciprocamente. Foi dentro desse esforço teórico que apareceu a categoria de subjetividade social (BARÓ, apud GONZÁLEZ REY, 2005, p. 201).

Nessa nova perspectiva nota-se a presença da subjetividade social nos processos sociais não como algo externo aos indivíduos, com status do “objetivo” diante do individual, mas como processos implicados dentro de um sistema complexo: a subjetividade social, na qual o indivíduo é constituinte e, simultaneamente, constituído.

Para González Rey (2005), a subjetividade social e a individual não se dissociam, ou seja, esse autor refere-se às formas de organização complexas da subjetividade social como “configuração” e utiliza essa categoria para definir a personalidade como forma de organização da subjetividade individual. A categoria configuração “constitui um núcleo dinâmico de organização que se nutre de sentidos subjetivos muito diversos, procedentes de diferentes zonas de experiência social e individual”, esclarece González Rey (2005, p.203-204).

A articulação da subjetivação de espaços sociais e individuais é um desafio teórico do conceito de subjetividade social. Para dar conta desse movimento, é necessário buscar explicações nos processos de subjetividade social e individual de maneira simultânea e inter-relacionada, em dois espaços que se constituem reciprocamente: o sujeito individual e as instâncias sociais em que tem lugar sua vida social. Nas concepções de González Rey (2005), nos espaços sociais construídos historicamente acontece a produção da subjetividade individual. Mas, a partir da sua entrada na vida social, a pessoa vai se transformando em sujeito e a própria socialização constitui-se como elemento de sentido na organização dos sistemas de relação social que acompanham o desenvolvimento humano. Por sua vez, o desenvolvimento da subjetividade individual dá lugar a novos processos de subjetividade social, a novas redes de relações sociais, que atuam como momentos de transformação na relação com formas anteriores de funcionamento do sistema.

Desse modo, compreendemos junto com González Rey (2005, p.206), que os processos de subjetividade social e individual ocorrem no decorrer dos momentos contraditórios que fazem parte da “constituição complexa da subjetividade humana, que é inseparável da condição social do homem”

Na definição dialética e complexa das concepções de subjetividade de González Rey (2005), compreendemos ainda a subjetividade individual como um momento da subjetividade social, algo que ocorre de uma forma recíproca, sem que uma se dilua na outra, ou seja, como uma dimensão processual permanente, que se desenvolve numa continuidade dentro do tecido social em que o homem vive. Tratase assim de uma “integração complexa e contraditória entre indivíduo e sociedade” (GONZÁLEZ REY, 2005, p.206). Como explica Cohen (apud GONZÁLEZ REY, 2005, p.206) “o sentido do si mesmo coletivo pode ser qualitativamente diferente que o sentido do si mesmo individual”. A ação dos sujeitos implicados em um espaço social, que compartilham os elementos de sentidos e significados nesse espaço, passa a ser elemento da subjetividade individual, e a partir daí, passa a ter a possibilidade de construir uma perspectiva dialógica, dialética e complexa, integrada na processualidade dos sistemas sociais em que o sujeito vive.

González Rey (2005, p.206) complementa essas idéias:

Essa subjetividade individual está constituída em um sujeito, cuja trajetória diferenciada é geradora de sentidos e significações que levam ao desenvolvimento de novas configurações subjetivas individuais que se convertem em elementos de sentidos contraditórios com o status quo dominante nos espaços sociais nos quais o sujeito atua.

Assim, pode-se compreender que a subjetividade social situa-se em um contexto de maleabilidade e flexibilidade que caracteriza os processos de produção de sentidos e significados gerados nas diversas áreas da vida social, possibilitando integrar as formas históricas e atuais de subjetivação produzidas nos espaços sociais nos quais o individuo atua.

Ainda segundo González Rey (2005, p.208):

Com o conceito de subjetividade social, os diferentes espaços sociais se perpassam entre si na constituição subjetiva de qualquer comportamento social e individual, o que aumenta as “zonas de leitura” das ciências sociais sobre as formas de organização mais complexas da sociedade às quais temos acesso por meio de sua expressão indireta como elementos constitutivos de fenômenos microssociais, como o sentido comum, a escola, o local de trabalho, as relações de gênero, as representações sobre saúde e doença, etc., assim como pela expressão desses e muitos outros fenômenos sociais no nível individual.

 

A subjetividade nos processos de ensino e aprendizagem

A subjetividade social como uma nova forma de constituição que se configura nos múltiplos aspectos da vida da pessoa e que se concretiza nos espaços de relação nos quais os indivíduos atuam, permite uma aproximação das inter-relações dos sujeitos aprendentes/ensinantes, sejam eles, pais/filhos; professores/alunos; psicopedagogos/clientes, ou outros. Todas essas relações inserem-se em um contexto complexo da configuração subjetiva individual e social presente nos processos de ensino/aprendizagem. Ou seja, trata-se de um espaço onde se fazem presentes as ações individuais dos sujeitos - as configurações subjetivas individuais - e, ao mesmo tempo, as diferentes configurações da subjetividade social.

Nos processos de ensino/aprendizagem, também estão presentes os pensamentos que não se dissociam das emoções do sujeito. Como diz González Rey (2005), o sujeito deve ser compreendido em seu sentido subjetivo, pelos pensamentos e pelas emoções que são por ele construídos na constituição de si mesmo e nos espaços sociais em que atua. Nessas inter-relações, outros espaços sociais podem ser afetados. Ou seja, é na produção de sentidos e significados que acompanham a ação do sujeito – onde estão presentes pensamentos e emoções - que emerge a processualidade do ensino e da aprendizagem e, conseqüentemente, a subjetividade como um sistema em constante desenvolvimento.

Com González Rey (2005, p.236), também percebemos que na categoria de sujeito está presente o indivíduo consciente, intencional, atual e interativo, condição permanente em sua expressão vital e social. As emoções, por sua vez, podem ser consideradas como condição permanente do sujeito pois, como afirma González Rey (2005,p.236-237):

O sujeito é portador de uma emoção comprometida de forma simultânea com sentidos subjetivos de procedências diferentes, que se fazem presentes no espaço social dentro do qual se situa em seu momento atual de relação e de ação. Este é um dos aspectos mais desafiantes do sujeito, assim como um dos aspectos que mais conseqüências provoca na organização das diferentes práticas sociais e profissionais.

Nesse sentido, a condição subjetiva do sujeito é fundamental nos processos de ensino e aprendizagem e deve ser percebida em diferentes espaços de sua vida social, como na sala de aula e nos demais espaços onde ocorrem relações de ensino e aprendizagem.

 

Subjetividade e Psicopedagogia

Nas concepções de Fernández (2001a, p.55) “a Psicopedagogia tem como propósito abrir espaços objetivos e subjetivos de autoria de pensamento; fazer pensável as situações... e, muito mais importante que os conteúdos pensados é o espaço que possibilita fazer pensável um determinado conteúdo”. Para essa autora, os espaços de autoria de pensamento não são construídos de uma vez e para sempre, e sim necessitam ser transformados e reconstruídos permanentemente. Os espaços que possibilitam essa constante construção e reconstrução, a autora denomina um lugar “entre” – que “está entre a objetividade e subjetividade – que portanto, não é somente intrapsíquico. É um espaço que torna simultâneas a objetividade e a subjetividade”. (FERNÁNDEZ 2001).

Para Fernández (2001 a), o enfoque psicopedagógico não se dissocia do conceito de autoria: em um entre a obra e seu autor. Scoz (2004, p.14):complementa essas idéias com a seguinte afirmação:

[...] o conceito de autoria implica considerar o espaço existente entre a obra e seu produtor, ou seja, o sujeito é reconhecido como autor da obra e, ao mesmo tempo, esse autor é produzido quando se reconhece criando, ou seja, quando sua obra mostra algo novo dele mesmo.

Ao definir a autoria de pensamento “como o processo e o ato de produção de sentidos”, anteriormente citado e “o reconhecimento de si mesmo como protagonista ou participante de tal produção” Fernández (2001 a, p.90) aproxima-se das concepções de subjetividade de González Rey. Ou seja, para esse autor a subjetividade se constrói a partir da produção de sentidos subjetivos do sujeito em suas trajetórias de vida, onde a subjetividade individual e social não se dissociam.

González Rey (2005, p.IX) afirma que “o sentido exprime as diferentes formas da realidade em complexas unidades simbólico-emocionais, nas quais a história do sujeito e dos contextos sociais produtores de sentido é um momento essencial de sua constituição”. Segundo esse autor:

As criações humanas são produções de sentido, que expressam de forma singular os complexos processos da realidade nos quais o homem está envolvido, mas sem constituir um reflexo destes. [...] esses processos são uma criação humana, os quais, integrando os diferentes aspectos do mundo em que o sujeito vive, aparecem em cada sujeito ou espaço social concreto de forma única, organizados em seu caráter subjetivo pela história de seus protagonistas. (González Rey, 2005, p.IX)

Dessa maneira, González Rey (2005) acrescenta às produções de sentido as criações do sujeito, os diferentes aspectos em que vive, seus processos e formas de organização, enfim sua configuração histórica e social.

González Rey (apud SCOZ, 2004, p.13) reafirma inúmeras vezes a existência de uma dialética entre o momento social e o individual na construção da subjetividade. Scoz (2004, p.13), esclarece essa idéia ao afirmar que “o sujeito não é a priori, nem é puro reflexo do social, mas representa um momento de contradição e de confrontação com o social e, ao mesmo tempo, com sua própria constituição subjetiva”. Dessa maneira, “o sujeito, a partir dessa confluência entre o social e sua própria constituição subjetiva, gera novos sentidos que vão modificando a si mesmo e às suas práticas” (GONZÁLEZ REY, 2005, p.240). Ou seja, a subjetividade implica idéia de movimento - configurações de sentido que ocorrem durante a trajetória de vida do sujeito - que refletem o caráter de integração do diverso: idéia central da constituição da subjetividade.

Nas configurações de sentidos, assim como nos processos de ensino e aprendizagem há a presença do pensamento do sujeito. Ou seja, “reconhecer um sujeito ativo é reconhecer sua capacidade pensante, reflexiva” (apud SCOZ, 2004, p.14) e, será, no exercício de sua capacidade pensante que o sujeito constitui-se como elemento central de caráter processual da subjetividade. Assim, a reflexividade é uma característica do indivíduo, que mobiliza a consciência de si e o engaja em uma reorganização crítica de seu conhecimento. Ela está comprometida com a produção de sentidos subjetivos em todas as esferas da vida do sujeito, levando-o a se questionar sobre seus pontos de vista fundamentais, possibilitando assim, novas construções que o levem a novas posições dentro se seu contexto social.

As emoções, anteriormente citadas, também representam um momento essencial na definição do sentido subjetivo dos processos de ensino/aprendizagem do sujeito. Uma experiência ou ação só tem sentido quando é portadora de uma carga emocional”(GONZÁLEZ REY 2003, p.250). As emoções são uma expressão inconsciente da síntese das histórias pessoais, constituídas nas configurações subjetivas do sujeito, ou seja, as emoções expressam estados que o sujeito pode ou não ter consciência, essencialmente afetivos, e que podem ser denominados como auto-estima, segurança, interesse, autonomia, etc. Esses estados é que definem o tipo de emoção que caracteriza o sujeito para o desenvolvimento de uma atividade - no caso deste estudo os processos de aprender e de ensinar - e desses estados, vai depender a qualidade da realização do sujeito nessa atividade.

Com Scoz (2004, p.17), percebemos ainda a relação consciente/inconsciente presentes na construção da subjetividade do sujeito em seus processos de aprender e de ensinar, onde os elementos inconscientes apresentam-se como as configurações de sentido, que estão na consciência no momento da intencionalidade, reflexividade e vivência do sujeito em relação a seu complexo mundo psicológico. Desse modo, consciência/inconsciente não formam uma dicotomia, mas dois momentos diferentes da experiência subjetiva que se constituem dentro de uma nova unidade, que são os sentidos subjetivos”. Ainda para a mesma autora, “as relações consciência e inconsciente não podem ser compreendidas como um conjunto de elementos acabados, mas em uma dimensão de complexidade que participa da organização da psique humana”.

Observamos, portanto que as relações entre pensamento/emoção, consciência/inconsciente, sujeito/social, sentido/significado, são instâncias que não se separam, e que devem ser tomados como uma unidade. Para González Rey (apud SCOZ, 2004, p.20), “na organização subjetiva, integram-se o pensamento do sujeito, as emoções, as situações vividas por ele, as quais aparecem numa multiplicidade de sentidos subjetivos, processos que não podem reduzir-se à linguagem nem a discursos”, uma vez que, segundo Scoz (2004, p.20) a definição de subjetividade se estabelece como “um sistema complexo e dinâmico em que, simultaneamente, vários elementos entram em contradição, gerando um caminho de tensões múltiplas, dentro do qual um elemento nunca se reduz a outro”.

 

A Psicopedagogia na perspectiva teórica da atualidade

A Psicopedagogia tem o seu principal foco nos processos de aprender e de ensinar e nos problemas decorrentes desse processo que, para Fernández, decorrem principalmente da falta de reconhecimento por parte do sujeito de sua própria produção, de sua autoria de pensamento.

Fernández (2001b, p.152) enfatiza que “a alfabetização começa quando os pais e a sociedade facilitam à criança o direito de pensar, de ser autônomo, de ser autor de sua própria história”. Portanto, para essa autora, o reconhecimento da autoria de pensamento - possível e necessária para que um ser humano tome contato com a condição humana mais apreciada, que é a liberdade - constitui objeto da psicopedagogia. Idéia que permeia os estudos e a atuação de inúmeros psicopedagogos no Brasil.

Assim, na atuação Psicopedagógica é de fundamental importância a abertura de espaços para que o sujeito possa reconhecer-se autor de seu pensamento e conseqüentemente, capaz de produzir sentidos, idéia condizente com a definição de autoria de pensamento de Fernández, como anteriormente mencionado.

Embora a Psicopedagogia enfatize a importância da produção de sentidos e a autoria de pensamento, consequentemente, a construção da subjetividade nos processos de aprender e de ensinar, é necessária uma maior ênfase na idéia de movimento e de capacidade de transformação do sujeito que ensina e aprende. Ou seja, os processos de aprendizagem e de ensino devem ser percebidos não como algo que está fora do sujeito, mas “como um momento constitutivo essencial, definido pelo sentido que esses processos têm para ele, dentro de uma condição singular em que se encontra, ou seja, inserindo-se os processos de aprendizagem e de ensino em suas trajetórias de vida”. (SCOZ, 2004, p. 24) Compreendendo-se, ao mesmo tempo, que dentro de uma mesma configuração de sentidos aparecem elementos de sentido gerados em tempos e espaços diferentes na vida da pessoa (GONZÁLEZ REY, 2006).

Assim, trata-se de possibilitar a construção de uma perspectiva dialógica, dialética e complexa no decorrer do processo de atuação psicopedagógica, ou seja, esse processo deve ocorrer em um contexto de maleabilidade e de flexibilidade que considere os processos de produção de sentidos e significados gerados, ao mesmo tempo, nas diversas áreas da vida individual e social do sujeito.

Diante da idéias acima mencionadas, vamos tomar as concepções de González Rey (2007) acerca da subjetividade a partir de uma perspectiva históricocultural para, a partir daí, tentar refletir sobre a atuação psicopedagógica considerando-se os sentidos subjetivos produzidos nas trajetórias de vida do sujeito onde entram em jogo: pensamento-emoção, sociedade-individuo, consciênciainconsciente etc, como instâncias inseparáveis. Assim, como diz Scoz (2004, p.21) “talvez possamos dar um passo além, para tentar compreender a construção da subjetividade do sujeito que aprende e ensina”.

Na atuação psicopedagógica a abertura de espaços para a produção de sentidos subjetivos na perspectiva anteriormente citada, poderá ocorrer “quando o sujeito afetado pelos sintomas, transforma-se em sujeito diante de sua situação atual e é capaz de produzir novas emoções e processos simbólicos que lhe facilitem a produção de novos sentidos subjetivos e, conseqüentemente, novas produções em seus processos de aprender e de ensinar.

Dessa maneira, na atuação psicopedagógica nasce uma nova posição do sujeito em suas relações e atividades possibilitando portanto, novos momentos de produção de sentidos evidenciando-se um sujeito em constante movimento – um sujeito aprendente.

Nesse processo, é essencial a qualidade do diálogo que ocorre entre o psicopedagogo e o cliente e as opções que daí derivam. A partir da perspectiva teórica de González Rey (2007, p.160), a atuação psicopedagógica deve ocorrer essencialmente como um diálogo em que o psicopedagogo com base nas hipóteses sobre configurações subjetivas do problema relatado pelo cliente, participa e induz tópicos de conversação que, sem prejuízo para o momento dialógico, permitam ao outro conversar sobre áreas significativas produzindo sentidos subjetivos. Essa idéia reafirma-se fazendo uma analogia com o atendimento psicoterapêutico:

A psicoterapia não é um processo de descobrimento nem de soluções centradas na figura do terapeuta; é um processo de produção de novos sistemas de subjetivação. O terapeuta facilita a emergência de novos sentidos subjetivos, contudo, não tem controle sobre a forma que eles tomarão, tampouco dos desdobramentos que aparecerão no processo terapêutico, cujo curso é uma fonte permanente de novos processos de subjetivação que podem favorecer ou não a mudança (GONZÁLEZ REY 2007, p.161).

Na atuação psicopedagógica, trata-se também de possibilitar ao sujeito um espaço dialógico, com opções dele, facilitando o acesso à produção de novos espaços de subjetivação através de sua própria ação. Nesse espaço dialógico, como diz González Rey (2007,p.163): “outorgo ao outro o direito de me fazer perguntas, de querer conhecer coisas de minha própria vida, ou seja, processos essenciais em todo diálogo. Não existe diálogo sem a emergência do sujeito, que somente aparece em uma reflexividade autêntica, espontânea e ativa”. Dessa maneira, o papel do psicopedagogo seria “reconhecer o sujeito sem psicoterapia, enxergar o outro como pessoa reflexiva, capaz de avaliar a si mesma e ao outro” (GONZÁLEZ REY, 2007, p. 163). Ou seja, a possibilidade do sujeito avaliar o psicopedagogo e o próprio processo de terapia poderia se converter em importante processo de produção de sentido, contribuindo assim para uma mudança da atuação psicopedagógica.

Concluindo, a geração de novos sentidos subjetivos no espaço psicopedagógico só será possível se existir o resgate da intenção e o posicionamento ativo do sujeito, para que possa acontecer a mudança. Sem esse posicionamento, o processo de atuação psicopedagógica situa-se, como muitas vezes ocorre, em uma ação externa à pessoa, não sendo favorável à geração de novos sentidos subjetivos, conseqüentemente à construção da subjetividade e a melhoria dos processos de ensino e aprendizagem.

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Beatriz Judith Lima Scoz
E-mail: beatrizscoz@uol.com.br
Sonia Saj Porcacchia
E-mail: sonia_sp@terra.com.br

 

 

1 Psicopedagoga, Professora Titular do Programa de Pós Graduação Stricto-sensu em Psicologia Educacional - UNIFIEO/SP. E-mail: beatrizscoz@uol.com.br.
2 Psicopedagoga e Mestranda em Psicologia Educacional – UNIFIEO/SP; Professora e Supervisora de estágio de pós-graduação em Psicopedagogia Clínica / Institucional na Universidade de Santo Amaro - UNISA,/SP. Email: sonia_sp@terra.com.br.

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