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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.17 n.15 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

A imprevisibilidade ou o pesadelo da matemática*

 

The unpredictability or the nightmare of mathematics

 

 

Ana Lucia C. A. PuglieseI,1; Marisa Irene S. CastanhoII,2

I Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional do Centro Universitário FIEO - UNIFIEO - Osasco - SP
II Instituto Sedes Sapientiae - São Paulo - SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo traz um recorte dos resultados obtidos na pesquisa “O sentido da Matemática: a voz do jovem”, apresentada como dissertação de mestrado. A pesquisa de natureza qualitativa teve como sujeitos jovens da favela de Heliópolis, São Paulo, e resultou na constituição de núcleos de significação da Matemática, dentre eles a sua imprevisibilidade, que se revela como um dos fatores que geram reações de afastamento e mal-estar diante de situações de avaliação. Há uma contradição entre as condições racionais exigidas para dominar o conhecimento matemático e as condições reais, sujeitas à emoção presente no processo de aprendizagem. A compreensão por parte dos educadores a respeito desse conflito pode clarificar as dificuldades de aprendizagem detectadas e auxiliar no diagnóstico psicopedagógico e nas intervenções clínicas.

Palavras chave: Matemática, Aprendizagem, Ensino, Sentido, Psicologia sóciohistórica.


ABSTRACT

The article provides a concise summary of the results obtained through the research “The Mathematics’s Sense: The Voice of Teenager”, presented as a Master's Dissertation. The research of qualitative nature had a group of adolescents between the ages of 13 and 17 years from a slam in Heliópolis, Sao Paulo, as subjects and it resulted in the constitution of Mathematics´s meaning cores, amongst them the unpredictability shown up as one of the factors generating negative reactions in evaluation situations. There is a contradiction between the rational conditions demanded in order to have dominion over the knowledge of mathematics and the real conditions as the subjects turn to their emotions in the process of learning. For educators with this understanding, it is important to respect the conflict and clarify further difficulties of learning because this will help the Psycho-pedagogical diagnostics and clinics intervention.

Keywords: Mathematics, Learning, Teaching, Sense, Socio-historical psychology.


 

 

Introdução

Provavelmente você já ouviu alguém dizer que a Matemática é um pesadelo, ou até mesmo já se expressou dessa forma. Será que alguém discordaria que a Matemática é uma disciplina que desperta sentimentos de rejeição em muitas pessoas e que o conhecimento matemático que os alunos adquirem durante a sua vida escolar tem se mostrado insuficiente e não os capacita a fazer matemática de maneira eficiente, fato que se confirma pelos resultados das avaliações oficiais feitas pelo governo?

A minha experiência de mais de 30 anos no atendimento a crianças e jovens com dificuldades de Matemática me trouxe muitas inquietações e questionamentos que me levaram a investigar cientificamente a natureza do conhecimento matemático e a relação que as pessoas estabelecem com ele.

Em minha pesquisa de mestrado (Pugliese, 2006), procurei encontrar respostas para o questionamento: “o que é a Matemática para os jovens?”. O estudo, fundamentado teoricamente em Vygotsky, investigou o sentido da Matemática para os jovens moradores da favela de Heliópolis em São Paulo.

A pesquisa investigou as vivências, as emoções, os sentimentos, as representações, os valores e a importância que os sujeitos atribuem à Matemática bem como os elementos da história individual e do contexto histórico-social em que estão inseridos. O resgate de elementos históricos intricados na constituição da atual Matemática Escolar e nos diferentes grupos sociais contribuiu na ampliação do entendimento dos fenômenos observados na relação dos indivíduos com esse conhecimento.

O referencial teórico adotado nesta pesquisa – Psicologia Sócio-Histórica da escola soviética representada por Vygotsky e seus seguidores – atribui aos aspectos históricos fundamental importância para a compreensão dos fenômenos observados nas relações entre os indivíduos e o conhecimento – nesse estudo o saber matemático. Vygotsky concebe o homem como um ser histórico, social, ativo, sendo, ao mesmo tempo, construto e construtor da realidade, ou seja, o homem como ser concreto, cujas formas de pensar, sentir e agir vão se constituindo pelas interações sociais no contexto social, cultural e histórico.

O estudo teve como objetivo apreender o sentido que os jovens atribuem à Matemática. Para Vygotsky (2001), buscar o sentido é extrair dos elementos trazidos no discurso, nas expressões e nas manifestações emocionais a expressão da subjetividade. O sentido é atribuído pelo homem à realidade e é a resultante da contraposição entre as significações sociais em vigor e a vivência pessoal, produto da relação dialética que se estabelece entre a objetividade e a subjetividade (AGUIAR, 2002). O sentido se constitui e se transforma continuamente, nas vivências sociais percebidas e sentidas pelo sujeito, na interação com o outro que expressa e imprime nessas experiências suas ideias, crenças, emoções e sentimentos.

Para a apreensão do sentido que o conhecimento matemático tem para os jovens, foi necessário um olhar perscrutador que alcançou além da aparência e uma escuta que ultrapassou a palavra. Buscou-se apreender as contraposições entre a Matemática entendida socialmente e as experiências pessoais que articulam cognição e emoção. Foi necessária a busca do que estava por trás do significado, neste caso, do significado da Matemática, que segundo Vygotsky (2001) é atribuído socialmente como conhecimento e constituído historicamente.

 

Um pouco da história da Matemática

A opção pela Psicologia Sócio-Histórica como fundamento teórico da pesquisa orientou a busca de elementos históricos nas raízes da Matemática como conhecimento e na forma como se desenvolveu o seu ensino no Brasil. Desde o início de seu ensino no Brasil, a cargo dos jesuítas, a Matemática era considerada, para a maioria deles, pura perda de tempo, e as Letras e as Humanidades ocupavam maior espaço nas salas de aulas. Existia uma luta em prol da Matemática travada por uma minoria, que pretendia colocá-la em destaque no cenário da educação e desejava que o seu valor fosse reconhecido.

No ensino da Matemática hoje, estão presentes crenças, valores, atitudes, estruturas e sistemas que se enraízam na filosofia clássica, na história. A polêmica presente na Antiguidade entre as ideias de Platão e dos sofistas coloca Matemática ora como conhecimento abstrato, ora como conhecimento que se aplica aos problemas da realidade concreta. Acredita-se ainda que ela seja um conhecimento que não está ao alcance de todos os indivíduos, crença que se revela nas salas de aulas, principalmente nas últimas séries do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Orientados pelo pensamento platônico, alguns professores pensam que apenas uns poucos alunos privilegiados podem compreender o verdadeiro significado da Matemática. Parece haver, do ponto de vista do aluno, uma dicotomia no que se refere ao aprendizado da Matemática. Ou ele consegue compreender ou a possibilidade de a Matemática ser acessível a ele está descartada, pois apenas os “melhores” poderão compreendê-la. A motivação para o seu aprendizado se restringe na maioria dos alunos à necessidade de passar pelo seu crivo nos exames anuais e no final da vida escolar, nos vestibulares.

Outro aspecto histórico importante trata da estreita relação entre o ensino da Matemática no Brasil e a formação militar. Os professores de Matemática durante um longo período da história do seu ensino eram militares. Somente em 1874 o ensino civil separou-se definitivamente do ensino militar sob pressão das elites brasileiras. A disciplina férrea, a obediência cega, a rigidez, a intolerância a erros características da formação militar parecem estar de alguma forma relacionadas com a exigência de precisão e rigor comumente encontrada na atuação do professor de Matemática.

 

Procedimentos metodológicos

O contexto escolhido para o desenvolvimento da pesquisa foi a comunidade de Heliópolis, considerada hoje a maior favela de São Paulo e a segunda maior do Brasil e da América Latina.

Participaram da pesquisa 23 jovens de idades entre 13 e 18 anos, moradores da comunidade de Heliópolis, frequentadores do projeto social Se Liga Galera e alunos do Ensino Fundamental II, do Ensino Médio ou egressos do sistema escolar.

Os procedimentos adotados para a realização do trabalho de campo, de coleta e de análise de dados foram escolhidos de modo a garantir a coerência com os princípios norteadores da pesquisa qualitativa em Psicologia propostos por Gonzáles Rey (2002). O autor considera que o caráter construtivointerpretativo, o caráter interativo e a legitimação da singularidade regem a construção do conhecimento em Psicologia.

Os instrumentos utilizados na coleta de dados foram: questionário semiestruturado, dinâmicas grupais, frases incompletas, construções de personagens, relatos escritos, narrativas, dramatizações, conversas informais, entrevistas grupais e gravações em áudio e vídeo.

O procedimento de análise se baseou na Análise de Conteúdo preconizado por Bardin (1977). A metodologia apresentada pela autora propõe um roteiro de ações práticas, muito útil na organização das informações obtidas no trabalho de campo e na análise dos dados.

A Análise de Conteúdo segundo Gonzáles Rey pode ser orientada para produzir indicadores relativos ao material analisado que transcendem a codificação das informações recolhidas, transformando deste modo esse procedimento em um processo construtivo-interpretativo. Gonzáles Rey afirma que “[...] essa forma de análise de conteúdo é aberta, processual e construtiva e não pretende reduzir o conteúdo a categorias concretas restritivas” (2002, p.146). Os procedimentos para a obtenção dos núcleos de significação como instrumentos para a apreensão dos sentidos propostos por Aguiar e Ozella (2005) complementam e se integram aos procedimentos recomendados por Bardin e Gonzáles Rey, e possibilitam alcançar o objetivo deste trabalho, que é a busca do sentido da Matemática para os jovens.

O plano de trabalho de campo seguiu as etapas: primeira visita para apresentar o tema e objetivos da pesquisa; esclarecer sobre os procedimentos adotados na coleta de dados; obter o consentimento do coordenador na participação dos jovens do projeto como sujeitos da pesquisa; obter informações sobre a estrutura física, o funcionamento e objetivos da entidade.

Seguiu-se o primeiro encontro com os jovens, planejado com os objetivos de apresentar-lhes a pesquisa, obter de cada um a concordância em participar como sujeito e iniciar a coleta de dados familiares e pessoais através de questionário semiestruturado. No segundo encontro foram ouvidos relatos de experiências individuais com a Matemática. No terceiro encontro foram investigados pensamento e sentimentos dos sujeitos sobre a Matemática e em seguida foi pedido aos sujeitos que imaginassem a personagem Matemática e descrevessem suas características. As produções individuais foram socializadas em pequenos grupos e foi feita a proposta de construir uma única personagem “Matemática” para o grupo. No quarto encontro a personagem Matemática foi montada e, para possibilitar a expressão dos sujeitos frente a ela, foi feita a dramatização de uma cena planejada pelos jovens. O registro das conversas nos grupos durante a montagem da personagem e dos depoimentos finais foi feito em gravação de áudio e vídeo.

A última etapa do trabalho de campo foi entrevista com dois sujeitos, para aprofundar a investigação sobre as ideias, os sentimentos, as vivências e as emoções reveladas em relação à Matemática.

A organização de todo o material coletado constituiu a pré-análise, na acepção de Bardin (1997, p. 95). O segundo passo foi submeter todo o material organizado a repetidas leituras, procedimento denominado por Bardin de “leitura flutuante” (1997, p. 96). Desta leitura foi possível fazer a seleção dos documentos que foram submetidos aos procedimentos analíticos que se constituíram no corpus dos dados. A partir da palavra como unidade de significação, foram destacados pré-indicadores (AGUIAR, 2005). Algumas das palavras escolhidas foram professor / professora, Matemática, escola, prova / nota / avaliação, cotidiano / dia-a-dia.

O terceiro passo da análise dos dados foi, levando em conta o foco da pesquisa, a realização de uma nova leitura do material, que possibilitou a reorganização dos pré-indicadores por meio de um processo aglutinativo que levou em conta a similitude, a contraposição ou a complementaridade. Segundo Aguiar e Ozella “[...] um critério básico para filtrar estes préindicadores é verificar sua importância para a compreensão do objetivo da investigação” (2005, p. 13). Como resultados da nova organização foram obtidos os indicadores e seus respectivos conteúdos.

A quarta etapa consistiu no retorno ao conjunto de dados com o objetivo de destacar trechos de falas dos sujeitos, que possibilitaram exemplificar e esclarecer cada indicador. Os indicadores foram reorganizados com base nos conteúdos aos quais estavam associados, e desta reorganização houve a produção dos núcleos e subnúcleos temáticos. Na quinta e última etapa, a análise possibilitou a identificação de idéias-eixo que perpassaram os núcleos e subnúcleos e os integraram internamente e/ou transversalmente. Essas idéias nucleares construídas num processo interpretativo constituíram os núcleos de significação que possibilitaram a apreensão das zonas de sentidos que os jovens atribuem à Matemática.

 

Resultados e discussões

Entre os resultados trazidos no estudo, destacamos alguns. A maioria dos jovens tem as atividades esportivas e musicais como preferidas e a Educação Física como matéria mais apreciada. As preferências pelas disciplinas por parte dos participantes não se distribuíram homogeneamente. A escolha da Educação Física foi seguida da escolha pela Educação Artística, e as disciplinas relacionadas com as Letras e as Humanidades (História, Geografia, Português e Inglês) formaram o segundo bloco de preferência dos sujeitos. As disciplinas do terceiro bloco, de natureza exata e biológica (Matemática, Ciências, Biologia, Física e Química) receberam indicações reduzidas, denotando sua impopularidade entre os sujeitos. No bloco das Ciências Exatas e Biológicas, a Matemática se destaca como a líder em rejeição, seguida à distância pela Química e pela Física.

O quadro de rejeição à Matemática pode se tornar mais evidente com a análise dos dados sobre as facilidades e as dificuldades que os sujeitos sentem nas disciplinas. A Matemática foi considerada como disciplina fácil apenas por um participante. Coube, desta forma, à Matemática o destaque por ser a menos apreciada e também a mais indicada como difícil. A importância da Matemática para a maioria dos sujeitos reside na sua aplicabilidade nas ações cotidianas.

A Matemática foi apontada como difícil e complicada por grande parte dos sujeitos deste estudo. A Matemática se destaca no contexto das disciplinas escolares pelas dificuldades que ela oferece e pela pouca receptividade que os jovens demonstram em relação a ela.

Os sentimentos expressos frente à Matemática foram variados. Os poucos jovens que declararam sentir-se bem o fizeram com algumas restrições. O contato com o novo conteúdo e a possibilidade de não compreendê-lo, e as situações de avaliação geram nos sujeitos sentimentos momentâneos de nervosismo e preocupação. Mesmo sentindo-se bem frente à Matemática, os jovens declararam que nem sempre conseguem compreendê-la. O motivo do mal-estar é a dificuldade de compreensão e o medo de ter notas baixas.

As vivências com a Matemática, as representações, os pensamentos, os sentimentos, as opiniões, as definições e as atitudes frente a ela trazidos pelos sujeitos nos diferentes momentos, individuais e grupais, produziram um corpo de dados que foi submetido a uma exaustiva leitura para a produção desta análise. A partir da leitura foram identificados elementos significativos em função da frequência, da importância atribuída pelos sujeitos, da ênfase dada e da relevância que adquire para os participantes, e classificados progressivamente em indicadores e núcleos temáticos. Foram constituídos três núcleos temáticos. O primeiro reuniu os conteúdos referentes à Matemática na escola e foi dividido em dois subnúcleos constituídos pelas referências ao professor e à Matemática em si como disciplina escolar. O segundo núcleo temático constituiu-se pelas referências à Matemática fora da escola e o terceiro pelas referências à Matemática desvinculadas de situações escolares ou do cotidiano social.

Os núcleos temáticos reuniram as vivências, as ideias, as opiniões e os sentimentos que os jovens têm sobre a Matemática e foram organizados com base nos indicadores levantados. Um olhar mais aguçado sobre os conteúdos dos núcleos permitiu identificar ideias comuns que os permeiam. Essas ideias, quando articuladas entre si nas aproximações e contraposições, produziram eixos de conexão entre eles, resultantes das aglutinações que se deram em torno de cada ideia central. Deste modo, os núcleos temáticos, após terem sido radiografados, esmiuçados na busca de sua expressão mais íntima, revelaram os sentimentos, os motivos e as necessidades presentes na relação que os jovens estabelecem com a Matemática e que estão expressos nos Núcleos de Significação.

Foram constituídos cinco Núcleos de Significação da Matemática: Concretude do Cotidiano; Inutilidade e Dispensabilidade; Inacessibilidade e Incompreensibilidade; Acessibilidade aos Mais Capazes e Imprevisibilidade ou o Pesadelo da Matemática, que será detalhado a seguir.

 

A Imprevisibilidade ou o Pesadelo da Matemática

Os sentimentos desagradáveis frente à Matemática foram manifestados de forma intensa e expressiva pelos participantes, que declararam sentir-se muito mal, nervosos, tensos, acuados, perdidos, péssimos e horrorizados. Foram identificadas algumas situações onde o desconhecimento do que é esperado do sujeito fez aflorar sentimentos e estados emocionais desagradáveis.

O momento de avaliação formal é uma dessas situações que geram malestar. Rodrigo afirmou: “Não, eu não fico calmo, eu fico supernervoso, tenso de tirar nota vermelha” e Evaldo contou: “Quando eu recebia as minhas provas, eu ficava muito mal” e “Toda prova de matemática eu fico muito preocupado”. Ernesto disse que se sente “acuado” por não saber o que vai cair na prova. Para alguns sujeitos, a Matemática é “uma caixa de surpresas”.

Carol afirmou que, ao ouvir a palavra Matemática, ela fica “horrorizada” e descreve a personagem Matemática como uma pessoa de temperamento instável, imprevisível, às vezes simpática, alegre, fácil, mas em alguns momentos antipática, ignorante. Ela, a Matemática, é também “uma charada, uma pessoa misteriosa”.

Evaldo também se sente surpreendido pela Matemática, a quem atribui como característica a de ser “cheia de surpresas”. A Matemática poderá trazer situações em que os sujeitos se sentem totalmente despreparados para enfrentá-las. A presença de exigências inesperadas faz com que os sujeitos de sintam inseguros e desprevenidos frente a ela.

Na atividade de dramatização, um dos assuntos discutidos pelo grupo de Carol, Evaldo e Ernesto foi se a Matemática é sincera ou não. Carol comentou: “Bom, em algum.... nem todos, e algumas vezes sim,... o resultado dela nunca dá certo, nunca, como se fala? Exato, mas por outro ela é... estranho!” Ernesto perguntou a Carol o que era estranho e ela respondeu: “O resultado dela é sempre... a maioria das contas dependendo da conta que faça dá certo!” Essa fala chamou atenção porque Carol se deu conta, no momento em que falava, da contradição entre a “sinceridade” da Matemática e a frequente produção de resultados inesperados. O conflito identificado por Carol teve origem na contraposição entre a exatidão esperada nos cálculos matemáticos e os resultados que fogem do previsível. Isso fica evidente na afirmação “o resultado... nunca dá certo”.

A imprevisibilidade da Matemática revelou-se a responsável por estados de preocupação e nervosismo nos jovens. As situações com a Matemática no contexto escolar, notadamente as de avaliação, apresentam-se como momentos nos quais os jovens se sentem despreparados e desprovidos dos recursos para vivenciá-las. Existe, na percepção dos jovens, sempre a possibilidade de, a qualquer momento, surgir uma situação, uma exigência a mais no seu trato com a Matemática que eles não se sentem capazes de enfrentar, além de desconhecerem estratégias que poderiam auxiliá-los para se prepararem.

As lembranças associadas a essas situações despertam sentimentos de mal-estar e distanciamento da realidade, como se estivessem vivendo um “pesadelo”. No pesadelo o sujeito perde o controle da situação e fica à mercê dos acontecimentos que fluem independentemente da sua vontade; o sujeito não consegue agir, se paralisa. A Matemática desperta, desse modo, certo clima de horror quando se apresenta em uma situação nova desconhecida, o que parece acontecer com frequência. A qualquer momento pode ser pedido, exigido, cobrado algo que não pôde ser previsto. Existe no ar, quando se trata da Matemática, a sensação permanente, a expectativa de que algo inesperado, e na maioria das vezes insuperável, pode acontecer.

As expressões dos jovens – “é uma caixa de surpresa”, “é misteriosa – revelam a constante espera de algo imprevisto e justifica o estado de alerta e tensão em que os sujeitos se encontram ao se deparar com a Matemática, principalmente nas situações de avaliação.

 

Considerações finais

O sentido de imprevisibilidade atribuído à Matemática nos auxilia a entender o temor que alguns alunos sentem frente a ela. No momento de avaliação é esperado do aluno que ele seja capaz de aplicar em uma nova situação o conhecimento adquirido durante as aulas, ou mesmo repetir exercícios feitos em sala. É nesse momento que muitos alunos se deparam com o despreparo, que no acúmulo dos anos gera sentimentos tão negativos e reações paralisantes.

Nas expressões dos sujeitos foram detectadas contradições entre a idealização que fazem da Matemática e a forma como ela se apresenta na realidade. A Matemática foi considerada uma ciência exata, porém na prática nem sempre se consegue alcançar resultados precisos. O conflito entre o mundo idealizado da Matemática e o mundo real despertou sentimentos contraditórios pelas condições racionais exigidas para dominar este conhecimento e pelas condições reais, sujeitas à emoção presente no processo de aprendizagem. Os resultados revelaram o distanciamento entre a Matemática e a realidade, as contradições que ela traz para os jovens e a passividade frente ao seu aprendizado.

Os resultados apresentados neste artigo delinearam uma das zonas de sentido atribuída à Matemática – a imprevisibilidade –, cuja compreensão pode clarificar as dificuldades de aprendizagem detectadas e auxiliar no diagnóstico psicopedagógico e nas intervenções clínicas.

 

Referencias bibliográficas

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Endereço para correspondência
Ana Lucia C. A. Pugliese
E-mail: analucia@educareensino.com.br

 

 

* Pesquisa : O Sentido da Matemática: A voz do jovem, apresentada como Dissertação de Mestrado no Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos. Linha de pesquisa: Fundamentos Psicossociais do Desenvolvimento Humano, orientada pela Professora Dra. Marisa Irene Siqueira Castanho – 2006.
1 Bacharel e licenciada em Matemática pela PUCSP; mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos, coordenadora da Educare Ensino e Pesquisa; docente do curso de Formação em Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae – São Paulo – SP.
2 Psicóloga; doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP; atualmente docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Educacional do Centro Universitário FIEO – UNIFIEO – Osasco – SP. E-mail: marisa.irene@unifieo.br.

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