SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.17 número15Aprendendo a aprender... juntos: o trabalho em grupo no atendimento a crianças com deficiência visual e deficiência neuromotoraEncontros entre arteterapia e psicopedagogia: a relação dialógica terapeuta e cliente, educador e aprendiz índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.17 n.15 São Paulo dez. 2009

 

PONTO DE VISTA

 

Ensino fundamental de nove anos: avanços e contradições

 

Nine years of fundamental teaching: advances and contradictions

 

 

Marlene Coelho Alexandroff1

Instituto Sedes Sapientiae

 

 


RESUMO

Diante da dificuldade de muitas crianças se alfabetizarem no primeiro ano do Ensino Fundamental e outras tantas não conseguirem acesso à escola na educação infantil, o MEC e o CNE propôs um aumento da escolaridade obrigatória de oito para nove anos, ampliando as possibilidades de aprendizagem e de inclusão das crianças brasileiras nesta faixa etária. Apesar de o governo ter publicado um documento riquíssimo (“ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS), trazendo discussões teóricas e práticas, a implantação do aumento da escolaridade está sendo muito mal interpretada. Ao invés de incluir a criança de seis anos e tratá-la como tal, respeitando-se o seu nível de desenvolvimento, as escolas, principalmente, as particulares, estão transferindo para as crianças da Educação Infantil, de três, quatro e cinco anos, atividades e exercícios que não são adequados nem para as crianças de sete anos. Por exemplo: Há escolas que estão exigindo que crianças de cinco anos aprendam a ler e a escrever, inclusive com letra cursiva, utilizando-se de materiais ultrapassados porque estas irão para o primeiro ano do Ensino Fundamental. Este trabalho, com certeza, trará prejuízos ao desenvolvimento da criança, podendo criar dificuldades de aprendizagem e de adaptação à escola. Desta forma, o artigo discorre sobre a necessidade de uma mudança de prática centrada num trabalho que articule a alfabetização e o letramento, num enfoque sócio-histórico, bem como indica a necessidade de alterações no currículo atual, na formação dos educadores e na sistemática de avaliação. Aponta também a necessidade de um amplo debate entre os profissionais da educação, incluindo-se aí, os psicopedagogos.

Palavras chave: Letramento, Alfabetização, Ensino fundamental, Dificuldades de aprendizagem.


ABSTRACT

Given the difficulty many children face to become literate in the first years of elementary school and many others who can’t access the school in early childhood education, the MEC and the CNE have proposed to increase compulsory education from eight to nine years, expanding the possibilities for learning and inclusion Brazilian children in this age group. Although the government has published a rich document ("ELEMENTARY SCHOOL NINE YEARS), bringing theoretical and practical discussions, the introduction of higher levels of education has been very misunderstood. Instead of including a child of six years and treat it as such, subject to their level of development, schools, especially private ones, are transferring children of early childhood education, three, four and five years-type activities and exercises that are not suitable for children of seven years. For example: There are schools that are requiring that children of five years to learn to read and write, including cursive, using outdated materials because they will move on for the first year of elementary school… This work, in a way, will damage the child's development and can create learning difficulties and adjustment problems into the school. Thus, the article discusses the need for a change in work focused on articulating the literacy in a socio-historical approach, and indicates the need for changes to the current curriculum in teacher training and evaluation system. It also points to the need for a broad debate among education professionals, including therein, the educational psychologists.

Keywords: Literacy, Alphabetization, Elementary school, Learning disabilities.


 

 

“Vivendo se aprende, mas o que se aprende mais é só a fazer maiores perguntas.”
Guimarães Rosa

 

Introdução

Mais de 40 milhões de crianças estão freqüentando o ensino fundamental nas escolas públicas e particulares de todo o Brasil. Por sua vez, os índices de aprendizagem têm se mostrado muito baixos. Estima-se que um número elevado de crianças apresenta grandes dificuldades quanto à alfabetização enquanto que os demais, mesmo aprendendo, o fazem em índices inferiores ao que seria esperado. Por detrás dessa realidade temos diversos fatores, tais como, desrespeito às características etárias, sociais e psicológicas das crianças como sujeitos do aprendizado e aos conhecimentos prévios sobre o sistema de representação e o significado da leitura e da escrita que elas trazem por viverem, desde que nascem numa sociedade cuja cultura dominante é a letrada.

Na tentativa de solucionar este problema, o Ministério da Educação e Conselho Nacional de Educação (CNE) propôs um aumento da escolaridade de oito para nove anos, ampliando as possibilidades de aprendizagem, mas tudo indica que somente está acentuando as dificuldades. É importante destacarmos que o objetivo da inclusão, mediante a antecipação do acesso, tinha como objetivo assegurar a todas as crianças um tempo mais longo de convívio escolar, dando-lhe maiores oportunidades de aprender, de ter acesso ao conhecimento, ampliando, assim, seu letramento e sua capacidade de expressão por meio das múltiplas linguagens. Portanto, não se trata apenas de transferir para as crianças de seis anos os conteúdos e atividades da tradicional primeira série, mas de se conceber uma nova estrutura de organização dos conteúdos em um Ensino Fundamental de nove anos, considerando o novo perfil de seus alunos.

No entanto, em vários depoimentos recolhidos entre professores de Educação Infantil, principalmente em escolas particulares, percebemos que a maioria não se debruçou sobre o documento oficial de implantação da proposta, cometendo assim, inúmeros equívocos, num flagrante desrespeito à criança e ao seu nível de desenvolvimento. Portanto, não basta o aumento da escolaridade, mas toda uma reformulação curricular que atenda às necessidades das crianças desta faixa etária. Segundo o documento do MEC “ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS (2006), verificamos que:

A criança de seis anos de idade que passa a fazer parte desse nível de ensino não poderá ser vista como um sujeito a quem faltam conteúdos da educação infantil ou um sujeito que será preparado, nesse primeiro ano, para os anos seguintes do ensino fundamental.

Por meio dos relatos percebe-se uma falta de coerência pedagógica priorizando-se o acesso ao código escrito em detrimento do letramento, sem se perceber a importância da relação das crianças com o mundo da escrita; da necessidade do investimento na formação de leitores e na relevância do papel do professor como mediador de leitura. Como isso, há muitos problemas na prática pedagógica que merecem uma discussão mais aprofundada por parte de professores e demais profissionais envolvidos com educação e aprendizagem, principalmente entre os psicopedagogos, cujo foco de atuação é na área de aprendizagem.

Para se ter idéia da complexidade do problema, há escolas que estão obrigando crianças de três anos a preencherem folhas e folhas de coordenação motora e crianças de quatro e cinco anos a escreverem com letra cursiva, pois entrarão no ensino fundamental aos seis anos e precisarão escrever com tal letra, num total desrespeito ao desenvolvimento psicomotor e neurológico destas crianças.

Trata-se de um retrocesso sem tamanho, pois as pesquisas apontam que este treino mecânico, além dos problemas já citados, não ajudará a criança em sua inserção no mundo letrado. Pelo contrário, são muitas as crianças que não querem voltar para a escola, pois se sentem cansadas, desmotivadas e incompetentes. Nem todas elas terão acesso a profissionais que saibam diagnosticar suas reais dificuldades, contribuindo assim, para a cristalização de suas dificuldades numa idade mais precoce do que antigamente.

Neste sentido, torna-se relevante o preparo adequado do educador e de todos os profissionais ligados à área da educação para que possa lidar com esta situação, buscando outras alternativas, uma vez que acreditamos que é por meio de sua ação reflexiva, e de prática efetiva, que a realidade poderá ser modificada. O papel do psicopedagogo torna-se aqui, de fundamental importância, pois precisa se conscientizar dessas dificuldades para propor saídas para os atores envolvidos: pais, escola e a própria criança. Nem todas terão acesso a um ensino de qualidade, bem como a um atendimento psicopedagógico que possa reverter as dificuldades deste período de transição em que muitos educadores se encontram.

Posto isso, pretendemos, ainda neste debate, discutir dois aspectos fundamentais que se encontram no cerne de toda a questão: a compreensão do que seja letramento e alfabetização bem como a mudança de prática necessária para a real inclusão das crianças, a partir dos seis anos de idade.

 

Letramento E Alfabetização: diferenças e semelhanças

O mundo atual é movido pelas transformações da tecnologia e pela indústria de consumo. É o chamado Pós-Modernismo, em que há um forte predomínio da homogeneização e da massificação, impedindo as pessoas de interagirem mais umas com as outras. A repetição e a padronização têm trazido uma mesmice camuflada de novidade. Vivemos bem mais próximos dos nossos semelhantes, mas nunca estivemos tão distantes. Este fato pode ser observado quando se analisa o atual sistema de ensino infantil e fundamental. Há muitas novidades na área educacional, mas nem sempre elas chegam à sala de aula que ainda prioriza a repetição e a padronização.

Neste sentido, a escola tem optado por um caminho difícil para muitas crianças, principalmente para aquelas que, em seu meio, não têm acesso a atos de leitura e escrita. Por desconhecer os princípios desta apropriação, a escola tem dificuldade em trabalhar as funções sociais da escrita e em mostrar os diferentes lugares em que ela aparece. Quando se priorizam os aspectos perceptivo-motores, deixa-se de lado a natureza e a função da escrita, além da capacidade do sujeito que pensa e aprende. Muitas atividades mecânicas continuam sendo praticadas e valorizadas, pois ainda há uma preocupação de, em primeiro lugar, ensinar a ler e a escrever para depois, permitir que a criança leia e escreva.

No entanto, as crianças não aprendem a ler e a escrever apenas porque veem pessoas lendo e escrevendo, mas porque elaboram e transformam as informações que encontram em seu meio. O contato com diferentes portadores de texto permite que as crianças percebam que as letras não são apenas marcas no papel e sim objetos substitutos, isto é, que representam alguma coisa, que há diferentes modos de escrever e diferentes contextos funcionais para ler e escrever. Esse processo é favorecido por uma série de objetos físicos que contêm escritas, tais como: livros, revistas, bulas, embalagens, rótulos, cartas, receitas, mapas, cheques, listas telefônicas, notas fiscais, folhetos de propaganda, instruções de jogo, dicionários, carnês etc.

Ao observar a realidade mais de perto se percebe que a criança ainda tem sido vista fragmentadamente, sem que se considere a unidade dialética que faz parte do seu desenvolvimento. Realmente, não se pode ver esta criança fragmentadamente, mas como uma síntese de múltiplas determinações.

No entanto, o oposto também tem sido observado por meio de contato com as escolas, seus alunos e professores, quando se percebe que o conhecimento é apreendido à medida que o aluno tem oportunidade de vivenciar e ter acesso a situações reais de uso da linguagem escrita. Isso porque a “constituição do sujeito leitor/escritor se faz cotidianamente, movida pelos instrumentos disponíveis, constituídos pela herança cultural e reconstruídos, modificados, abandonados ou recriados pelo presente”. (GERALDI, 1993).

Os indivíduos são sujeitos concretos, segundo Wallon, com suas estruturas inconscientes construídas individualmente e em conexão com o mundo social e suas contradições, ou seja, as explicações e o entendimento da história de vida de um sujeito precisam ser feitos, levando-se em conta não apenas o seu psiquismo, mas a dialética de suas relações constitutivas sem que se considere a unidade dialética que faz parte do seu desenvolvimento. Quando há apenas preocupação com o seu desenvolvimento cognitivo, deixam-se de lado outros aspectos que o acompanham, como por exemplo, o desenvolvimento social, afetivo e físico.

Ao se constituir, normalmente, a criança se apropria da cultura de sua época e a recria, recuperando o sentido real e provisório do mundo que a cerca. Aprende até, com muito mais facilidade, interagir com as tecnologias que estão surgindo, indo até além da aprendizagem e avançando no conhecimento. Portanto, a criança não pode ser vista como um vir-a-ser, mas como alguém que participa de sua época. A maneira de ver o mundo, de agir e reagir diante dos fatos têm muito a ver com o modo de como se deu esta constituição no seu meio social. Por isso, as oportunidades de vivenciar e ter acesso a situações reais de uso da linguagem escrita são tão importantes e necessárias para o desenvolvimento da criança.

Segundo Rego (1988), para se considerar alguém “alfabetizado”, é preciso que tenha o conhecimento intuitivo da língua (que pode ser obtido por meio da leitura de histórias e na interação com pares mais avançados) e o conhecimento consciente da língua (perceber o uso adequado das letras para determinados sons, o que pode ser feito por meio de poesias, parlendas, músicas, jogos etc.), ampliando-se assim, a noção de alfabetização. Para que a criança possa aprender a ler e escrever satisfatoriamente, é preciso a integração dos dois níveis de conhecimento, o intuitivo e o consciente.

Paralelamente à noção mais ampla de alfabetização, surge a noção de letramento que vai desde uma perspectiva mais individual a uma perspectiva mais social ou cultural. (KLEIMAN, 1995, p. 20).

Na dimensão individual, Brice-Heath (1982) define letramento (“literacy events”) como “eventos em que a linguagem escrita é essencial à natureza das interações e aos processos e estratégias interpretativas de seus participantes”. Pressupõe que a criança, ao entrar em contato com os diferentes eventos de escrita em seu ambiente, faça alguns recortes de escritas mais significativas a que tenha acesso. Para interpretar estes recortes, precisa de informantes, pois os contatos iniciais que a criança faz com a escrita são mediados pela oralidade. Dependendo do ambiente em que estão inseridos, esses primeiros contatos se confundem com a própria aquisição da linguagem oral.

Numa dimensão social ou cultural, letramento é o uso que se faz das habilidades de leitura/escrita para responder às demandas sociais (SOARES, 1995, p. 10).

Nesta visão, o letramento começaria muito cedo, isto é, quando a criança começa a ter acesso a eventos de escrita, e enquanto o indivíduo tiver este acesso, seu letramento terá continuidade. A alfabetização seria um momento do letramento. Assim, por meio da linguagem, a criança entra em contato com o conhecimento e constrói seus conceitos sobre o mundo que a rodeia, apropriando-se das experiências acumuladas pela humanidade. É também, pela interação social, da qual a linguagem é a expressão fundamental, que a criança constrói sua individualidade e sua intersubjetividade.

Dentro deste aspecto, o papel do informante, isto é, daquele que mesmo de forma não intencional responde às questões do aprendiz, é fundamental para o letramento, pois não basta a simples exposição aos eventos de escrita para que a criança consiga se apropriar dela. Se isso fosse verdade, não teríamos adultos analfabetos num meio letrado como o nosso. Neste aspecto, a escola e, principalmente, o professor se tornam muito importantes para as crianças de baixo letramento2, tornando-se seu principal informante. Daí a importância do aumento da escolaridade de oito para nove anos, pois amplia a possibilidade de acesso a eventos de escrita, desde que haja, como já afirmamos anteriormente, uma mudança curricular que contemple estas discussões.

O fato de valorizar em sala de aula os usos e as funções sociais da língua escrita não implica deixar de tratar sistematicamente da dimensão especificamente lingüística do “código”, que envolve os aspectos fonéticos, fonológicos, morfológicos e sintáticos. Do mesmo modo, cuidar da dimensão lingüística, visando à alfabetização, não implica excluir da sala de aula o trabalho voltado para o letramento.

Outro equívoco comum na prática cotidiana é pensar os processos de letramento e alfabetização como sequenciais, ou seja, vindo um depois do outro, como se o letramento fosse uma espécie de preparação para a alfabetização, ou, então, como se a alfabetização fosse condição indispensável para o início do processo de letramento. No entanto, é importante ressaltarmos que a ação pedagógica mais adequada e produtiva é aquela que contempla, de maneira articulada e simultânea, a alfabetização e o letramento.

Encontramos ainda, na maioria das escolas uma ênfase no ensino da língua como código descontextulizado, cujas convenções gráficas o aluno precisa aprender, de modo mecânico e repetitivo e, o que é pior, alienante. Ensina-se, a título de metalinguagem3, a gramática pela gramática, a ortografia e a pontuação de forma descontextualizada e não a epilinguagem4, isto é, a escrita viva e real que possibilita a emergência da autoria. Ou seja, ensina-se a grafia, o desenho da escrita e não a linguagem escrita.

Estas práticas têm por trás de si concepções de ensino variadas, mas contrárias à concepção sócio-histórica de ensino da linguagem. Consideramos que esta seja uma concepção mais atual e pertinente. No entanto, temos observado que mesmo quando a escola começa a usar uma prática mais significativa de aproximação da leitura e escrita, por vezes volta a ficar insegura e a crença no trabalho com sílabas, exercícios gramaticais descontextualizados e até mesmo treino de palavras e sílabas acabam ganhando força.

Por isso, estas atividades ainda são predominantes na sala de aula, impedindo o acesso dos alunos à linguagem escrita e a toda a riqueza que a cerca. Neste tipo de atividade em que não há um fluxo espontâneo do pensamento, pode-se perceber o que a criança sabe de escrita, isto é, de grafia, mas fica difícil saber-se como está o desenvolvimento da linguagem escrita.

Para Vygotsky, “o que se deve fazer é ensinar às crianças a linguagem escrita e não apenas a escrita de letras”. (1989). Nessa visão vygotskiana, o ensino da língua não se poderia centrar apenas na grafia das palavras, mas na escrita. Com esta posição, a leitura deixa de ser apenas decodificação para se tornar a busca do significado, e a escrita deixa de se centrar na aquisição de letras para se centrar na apropriação do discurso escrito, em todos os gêneros possíveis.

Esta concepção também se reflete no modo como o sujeito vai se constituindo leitor/escritor. Diferentemente das concepções em que ele é passivo e receptor do conhecimento acumulado, dentro dessa visão de ensino, o aluno, ao interagir com o outro e com a linguagem, vai-se apropriando do discurso escrito, abrindo espaços para se tornar autor de seus textos e coautor dos textos lidos.

 

Considerações Finais

Quando a criança é usuária de uma linguagem significativa e tem acesso à linguagem na sala de aula, acaba internalizando a linguagem escrita, isto é, esta se torna parte do seu comportamento independente. No entanto, quando a escola trabalha com material sem sentido, ou mesmo com textos fragmentados e artificiais, muito mais do que a formação do leitor e escritor está impedindo a formação do indivíduo.

Segundo Vygotsky (1989), a escola deveria se preocupar com o que fosse relevante, necessário e significativo para seus alunos. E este ensino deveria ser feito do modo mais natural possível e desde as séries iniciais, mas o que temos observado é muito diferente. O ensino da linguagem escrita é feito como uma transcrição da linguagem oral, o que é um grande equívoco. A linguagem escrita, segundo Luria,

se diferencia radicalmente da oral, ao se constituir, inevitavelmente, conforme as regras da gramática desdobrada (explícita), que é indispensável para tornar compreensível o conteúdo na ausência de gestos e entonações... a linguagem escrita é o instrumento essencial para os processos de pensamento, incluindo, por um lado, operações conscientes com categorias verbais, transcorre mais lentamente do que a oral; permitindo, por outro lado, retornar ao escrito, garante o controle consciente sobre as operações que se realizam. (LURIA, 1987, p. 170)

A aprendizagem da escrita, como se percebe, então é um processo mais complicado, pois a escola tem-se preocupado com o ensino de letras, de sílabas e de palavras para depois permitir que a criança realmente escreva. E quando isso ocorre, busca enquadrá-la dentro de esquemas extremamente dirigidos, desprovidos de sentido, não propiciando o acesso à magia da linguagem escrita.

A leitura não pode ser restrita apenas ao ato de reconhecimento e reprodução de palavras nem à atitude passiva diante do texto, pois o leitor é um sujeito ativo que ao interagir com o texto produz significações, de acordo com sua história de leitor. Para tanto, é preciso que se invista numa leitura mais ampla, revestida de significado, criticidade e criatividade.

Esse processo é longo e não deve ser privilégio das séries finais do primeiro grau nem do ensino médio, mas deve começar na pré-escola e nas séries iniciais.

Não se aprende a ler primeiramente palavras, depois frases, depois textos e, enfim textos dos quais se tem necessidade”. Aprende-se a ler aperfeiçoando, desde o princípio, o sistema de interrogação dos textos que precisamos ler, mobilizando o ‘conhecido’ para reduzir o ‘desconhecido’. (FOUCAMBERT, 1994, p. 37 )

A apropriação da linguagem escrita é de natureza social, uma vez que o domínio do sistema de escrita não se reduz ao domínio gráfico nem à transposição da linguagem verbal. A linguagem escrita tem funções bem definidas e se manifesta por meio de diferentes registros. Não se escreve uma carta da mesma maneira que uma notícia, e uma narrativa para adultos não tem a mesma e o mesmo teor que uma história escrita para crianças.

Consequentemente, a linguagem escrita tem especificidades que precisam ser aprendidas e uma das melhores maneiras de fazer esse aprendizado é por meio do estudo detalhado de textos, de suas condições de produção5 e das estratégias utilizadas pelo autor. A leitura e a produção de textos são processos estruturados de construção de competências lingüísticas.

Na linguagem verbal, os participantes estão face a face e a linguagem fica apoiada em elementos extralingüísticos, tais como a entonação, os gestos e as expressões faciais. A linguagem escrita, por sua vez, sendo dirigida para o outro, é formal, exigindo o uso de uma gramática diferente da oralidade; é abstrata, precisando ser bem explicitada em todos os detalhes porque o interlocutor está ausente e é impessoal, exigindo um distanciamento do autor para que não haja mistura de papéis.

Então, quando a escola enfatiza o ensino de palavras isoladas, fora de um contexto significativo, está impedindo o desenvolvimento do leitor. A decodificação, ênfase que é normalmente dada a palavras isoladas, independentemente do seu significado, impede o desenvolvimento do leitor e, além de criar uma linguagem artificial, provoca no aluno a impressão de que a escrita é uma transcrição da fala.

Desta forma, quando a escola trabalha a língua de forma fragmentada, sem valorizar o conhecimento que a criança traz de seu grupo social, pode estar esvaziando o dizer da criança e passando-lhe a idéia de que todo o conhecimento está pronto e acabado ou, ainda, que ela só pode fazer o que o professor mandar, reproduzindo sua voz, podendo acontecer a cristalização das dificuldades da criança pela falta de um espaço de interlocução e de interação com pares mais avançados. Portanto, outra conseqüência séria que ocorre quando a escola não trabalha com textos é a não emergência da autoria.

Cabe salientar que a escola precisa se conscientizar de que quanto menor o acesso do aluno à linguagem escrita, mais intenso deve ser este contato, principalmente nas séries iniciais e quanto menor for a criança, mais leve e divertido deve ser este acesso, evitando-se a instalação de inúmeras dificuldades já citadas. Deve-se atentar também para a necessidade de aspectos estruturantes da escola, revendo seu projeto pedagógico, bem como a avaliação da aprendizagem, flexibilizando tempos e espaços, estendendo-se a prática cotidiana para uma real inclusão destas, evitando-se práticas discriminatórias e redutoras das possibilidades de aprender.

Assim, torna-se de fundamental a importância da revisão do trabalho cotidiano que contemple estão nova visão de currículo, incluindo além do trabalho com os diversos gêneros textuais, uma organização que contemple os projetos didáticos, as sequências didáticas e atividades ocasionais e permanentes, com a utilização de jogos e atividades prazerosas.

Algumas redes de ensino já estão utilizando em seus materiais estas modalidades, mas nem sempre as orientações se efetivam na sala de aula. A questão é complexa, mas acreditamos que todas as crianças brasileiras têm o direito a uma educação que garanta não somente a sua inclusão, mas a efetiva permanência e aprendizagem com qualidade.

Portanto, esta discussão precisa ser ampliada, pois o preparo adequado do educador e de todos os profissionais ligados à área da educação, principalmente os psicopedagogos, é urgente. Se quisermos que os educadores encontrem alternativas, é preciso que iniciemos um grande debate sobre o assunto, pois somente o debate, a formação e a reflexão poderão construir uma nova práxis.

 

Referencias Bibliográficas

BRASIL. Secretaria da Educação Básica: Ensino Fundamental de Nove Anos. Brasília, MEC, 2006.        [ Links ]

BRICE-HEATH, S. “What no bedtime story means: Narrative skills at home and school”, IN Language in Society, 11: 49-76, 198. Apud MAYRINKSABINSON, M. L. T. “Reflexões sobre a Psicogênese da Leitura”, XIV ANAIS DE SEMINÁRIOS DO GEL (Grupo de Estudos lingüísticos do Estado de São Paulo), Unicamp, 1987.        [ Links ]

FOUCAMBERT, J. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.        [ Links ]

GERALDI, J. W. A constituição do sujeito leitor. In: módulo I: Fundamentos de Estudos de Linguagem. Campinas, SP: UNICAMP, VITAG, SEE, 1993.        [ Links ]

JOBIM e SOUZA, S. Infância e linguagem: Bakhtin, Vygotsky e Benjamim. Campinas, SP Papirus, 1994.        [ Links ]

KLEIMAN, A. Os significados do letramento. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 1995.        [ Links ]

LURIA, A. R. Pensamento e linguagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.         [ Links ]

REGO, L. B. Descobrindo a língua escrita antes de aprender a ler: algumas implicações pedagógicas. In: KATO M. (org.) A concepção da escrita pela criança. Campinas, SP: Pontes, 1988.        [ Links ]

ROJO, R. H. R. (org.). Alfabetização e letramento: perspectivas lingüísticas. Campinas, S. P.: Mercado de Letras, 1998.        [ Links ]

SOARES, M. B. Língua escrita, sociedade e cultura: relações, dimensões e perspectivas. In Revista Brasileira de Educação: ANPED, No. 0, 1995.        [ Links ]

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.        [ Links ]

 

 

1 Pesquisadora do CENPEC. Professora de Pedagogia da UniABC. Professora de Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae e UniABC.
2 Baixo letramento - pouco acesso à linguagem escrita.
3 Metalinguagem é o trabalho da linguagem com a própria linguagem, exigindo desta uma análise consciente, como no caso do uso deliberado de regras gramaticais. Não se aprende a usar a linguagem, mas a falar sobre ela.
4 Epilinguagem refere-se ao trabalho em torno da linguagem, em reais situações de uso. Não exige uma análise consciente para seu uso, o que a torna acessível a qualquer usuário da linguagem.
5 Condições de produção - refere-se ao contexto sócio-histórico de produção, aos interlocutores e a quem se destina.

Creative Commons License