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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.18 n.16 São Paulo jun. 2010

 

EDITORIAL

 

 

O presente volume da revista Construção Psicopedagógica oferece aos leitores publicações significativas sobre pesquisas e reflexões em torno da seguinte associação temática: Ética - compromissos na construção do conhecimento e diálogo com as diferenças, no enfoque interdisciplinar.

Merece destaque, para iniciar estas reflexões, os pensamentos de Humberto Maturana (1995), biólogo e educador contemporâneo, que se aprofunda nas questões relativas à ética, na educação e na cultura, estabelecendo conexões entre a responsabilidade na construção do conhecimento científico, a consciência sobre os limites do saber e o respeito às diferenças. As publicações do presente volume apresentam, implícita ou explicitamente, este sentido de ética associado à consciência sobre “o conhecimento do conhecimento”:

“O conhecimento do conhecimento compromete”

“(...) Compromete-se a tomar uma atitude de permanente vigilância contra a tentação da certeza, a reconhecer que nossas certezas não são provas da verdade, como se o mundo que cada um de nós vê fosse o mundo, e não um mundo que produzimos com outros. Compromete-nos porque, ao saber que sabemos, não podemos negar o que sabemos (...) esse saber que sabemos conduz a uma ética inescapável.” (grifo meu) (MATURANA, 1995, p. 262).

Maturana coloca em destaque o necessário diálogo e respeito às diferenças culturais, a importância da linguagem na construção do conhecimento, que se apresentam sempre com limites (ponto cegos) que se ampliam devido à presença do outro. Estes pensamentos dizem respeito a um sentido de ética na construção do conhecimento e nas ações humanas.

“Todo ato humano ocorre na linguagem. Todo ato na linguagem produz o mundo que se cria com outros no ato de convivência, que dá origem ao humano: por isso todo ato humano tem sentido ético ( ...).” (MATURANA, 1995, p. 263).

As reflexões e pesquisas apresentadas nas publicações deste volume desenvolvem, segundo este sentido de ética, estabelecendo conexões com a interdisciplinaridade e a importância do diálogo com o diferente. Muitas das pesquisas apresentadas consideram as complexas conexões entre ética, conhecimento e linguagem, levando em conta os diferentes níveis de desenvolvimento humano, as diversidades e especificidades das dinâmicas interpessoais e os valores presentes nas culturas familiares, escolares e na aprendizagem individual e coletiva. Essas pesquisas e reflexões desenvolvemse em Universidades e Organizações de diferentes estados do Brasil - São Paulo (SP), Campo Grande (MS), Uberlância (MG) e internacionais - Buenos Aires (Argentina), Angola (África). São publicações que colocam em destaque a dinâmica complexa da construção do conhecimento em rede e o processo do aprender e do ensinar, com foco na ética associada ao respeito às leis, às noções de direitos, deveres e obrigações, ao diálogo com o diferente, ao compromisso social e a responsabilidade sobre o ato de conhecer e de aprender.

Os artigos serão apresentados, neste editorial, utilizando a “metáfora da viagem” para outros locais e centros de pesquisas em que se desenvolveram os estudos, em função da abrangência de publicações em diferentes estados e países, colocando em destaque o compromisso ético dos respectivos Núcleos de Pesquisas e Universidades, bem como a relevância dos compromissos educacionais e sociais dos referidos autores, responsáveis por estas produções científicas e publicações, respondendo ao sentido ético de construtores do conhecimento que possibilitam criações de novas pesquisas e condições de aprendizagem, tendo em vista o respeito às diferenças e a integração do homem e do conhecimento.

Iniciam-se as reflexões, em São Paulo (capital), com um artigo original que apresenta pesquisas e reflexões sobre a dinâmica familiar. Refere-se à Dissertação de Mestrado da psicopedagoga Ana Lisete F. Pereira Rodrigues (Universidade São Marcos-SP, 2004), uma das pioneiras psicopedagogas paulistas, atuante na Associação Brasileira de Psicopedagogia. A autora apresenta análises psicanalíticas sobre os entraves da autoridade paterna, aprofundando-se nos conhecimentos sobre a dinâmica inconsciente e consciente e na problemática da moral e da ética que ocorre na dinâmica familiar. Ana Lisete como psicopedagoga, com formação psicanalítica e mediadora e mestre em Psicologia, apresenta, em sua publicação, as análises e discussões com base na metodologia de “estudo de caso” e desenvolve discussões sobre dificuldades relativas à autoridade paterna presentes no início do desenvolvimento psíquico da criança. Considera as repercussões destas dificuldades no processo de aprendizagem e na construção do conhecimento dos aprendizes e apresenta valiosas considerações psicopedagógicas.

Ao atravessar as fronteiras do Brasil, ainda com preocupações relacionadas à dinâmica familiar, entramos em contato com reflexões e pesquisas realizadas em Buenos Aires (Argentina). Maria Cristina Rojas, licenciada em Psicologia, membro titular da Associação Argentina de Psicologia e Psicoterapia de grupo, traz uma especial publicação sobre a ética associada aos segredos e verdades familiares. A autora, como docente de pósgraduação da Universidade de Ciências Empresariais e Sociais, desenvolve pesquisas e projetos, tendo em vista os problemas de aprendizagem e a dinâmica familiar. Coloca em destaque a “ética da diversidade”, em que são fundamentais o reconhecimento da originalidade dos grupos e culturas familiares, o respeito à singularidade de cada família e a liberação das avaliações comparativas restritas, quando usam como única referência um “único padrão conjugal moderno” considerado como ideal.

Em busca de outras reflexões socioculturais e históricas, com enfoque na Varona” (Havana-Cuba) e doutor ética, viajamos para Angola (África), por meio das reflexões apresentadas por Carlos Pedro Cláver Yoba, mestre em educação pelo Instituto Superior Pedagógico “Enrique José em Ciências Pedagógicas pelo Instituto Central de Ciências Pedagógicas de Cuba. Apresenta nesta publicação, considerada como especial, reflexões filosóficas sobre a ética, com enfoque sócio-histórico-cultural e considerações sobre a função ética das universidades e da atuação do professor. Na função de próreitor para a cooperação da Universidade Lueji A´Nkonde Lunda Norte (Angola), Yoba reflete sobre a responsabilidade social da universidade na realidade de Angola e destaca as funções do professor na sua missão de transmitir o conhecimento científico, valores e experiências culturais, comprometendo-se com as normas e princípios éticos nas relações interpessoais e na conquista da autonomia do pensamento e da ação.

Continuemos com nossas viagens, voltando ao Brasil com outro artigo especial sobre a ética, tendo em vista o respeito às identidades culturais Construção Psicopedagógica, São Paulo-SP, 2010, Vol. 18, n.16, pg. 1-8 4 indígenas. A autora, psicopedagoga e professora doutora em educação, Marta Brostolin, em parceria com Simone F. Cruz, mestra em educação, apresentam reflexões e projetos que desenvolvem no NEPPI (Núcleo de Pesquisa Psicopedagógica) da Universidade Católica Dom Bosco (Campo Grande-MS). Nesta publicação destacam-se questões éticas na aprendizagem e ensino dos índios Terenas, como aprendizes universitários, reconhecendo-se como educadores e facilitadores da aprendizagem, compromissados com suas comunidades. O sentido da ética leva em conta “o cotidiano da comunidade e o respeito às raízes culturais, onde todos são responsáveis e contribuem para as ampliações pedagógicas e psicopedagógicas, em relação ao processo de aprender e de ensinar”. (Citações dos autores).

Voltamos a São Paulo, para iniciar as publicações na categoria de pesquisas teóricas e empíricas. Norma Viscardi, mestre em Linguística (Campinas, Unicamp-SP) e psicopedagoga (PUC-SP), traz em sua publicação uma vasta pesquisa bibliográfica e propostas psicopedagógicas sobre o bilinguísmo, desenvolvido em sua monografia (Barueri, PUC-SP, 2009). A autora focaliza o sentido de ética associado à subjetividade, ao respeito à lingua materna, sem deixar de lado a diversidade das línguas e das culturas de um aprendiz, cidadão do mundo. Suas reflexões refletem as diversidades nas suas atuações como professora da escola pública (educação infantil, ensino fundamental e médio), atual diretora de escola particular, Internacional de Alphaville-SP, e consultora de projetos tendo em vista a educação internacional. A autora apresenta propostas psicopedagógicas para a educação bilíngue, tendo em vista um novo significado de globalidade e de responsabilidade universal da educação do século XXI: “As modalidades de ensino necessitam contemplar a complexa identidade cultural do bilíngue e a subjetividade na aprendizagem.” (Citação da autora).

Ainda em São Paulo (capital), o autor João Palma Filho (mestre em Psicologia, Universidade São Marcos-SP) e doutorando em Psicologia Clínica (PUC-SP), em parceria com sua orientadora de projetos, Lucia Ghiringhello (psicolinguísta e docente da UNIP-SP), apresentam pesquisas teórico-práticas sobre o desenvolvimento da linguagem, letramento e interdisciplinaridade. Os fundamentos da pesquisa baseiam-se na teoria da Psicologia Sócio-Histórica e Construção Psicopedagógica, São Paulo-SP, 2010, Vol. 18, n.16, pg. 1-8 5 as práticas referem-se às mediações das relações interpessoais. Com base nas análises das respostas obtidas nos trabalhos em grupo, com crianças e orientação familiar, tendo em vista o apoio ao letramento, os autores destacam as análises sobre as alterações positivas das respostas e condutas dos pais, relativas ao respeito e cuidados que ocorreram entre pais e filhos, escola e família, durante e após as dinâmicas desenvolvidas. As mudanças positivas, portanto, não se referiam somente à qualidade do letramento das crianças e dos pais, mas à qualidade de vínculos relacionais e do respeito e cuidado entre mães e filhos, escola e família. Estes aspectos apresentam implicitamente os sentidos da ética associados à subjetividade, a escuta e responsabilidade social com os parceiros. Nas considerações finais levam-se em conta a interdisciplinaridade e as contribuições educacionais-pedagógicas destes procedimentos, sem deixar de considerar as complementações psicopedagógicas.

Deslocando-se de São Paulo para Uberlância (MG), aprofundamos na pesquisa desenvolvida pela psicopedagoga Paula Amaral Faria. Por meio de entrevistas desenvolvidas com psicopedagogos, a autora apresenta propostas de projetos psicopedagógicos de apoio aos aprendizes universitários. O artigo apresenta os fundamentos teóricos sobre diferentes formas de aprender e a subjetividade no conhecimento, dando destaque ao enfoque inter e multidisciplinar na aprendizagem do adulto-aprendiz e propostas psicopedagógicas para o ensino superior. As pesquisas e projetos desenvolvidos para a monografia (Uberlândia, Uniminas-MG, 2005) trazem implicitamente as questões associadas à ética, quando considera a importância da subjetividade, o respeito às diferenças e os cuidados relativos à escuta e ao apoio psicopedagógico do aprendiz adulto, nos cursos de formação profissional.

De volta às pesquisas e projetos desenvolvidos em São Paulo, a psicopedagoga Maria da Penha P. Nobre apresenta pesquisas e projetos sobre a aprendizagem e interações pessoais para a consciência de cidadania e desenvolvimento das funções de agentes de trânsito. Nas suas pesquisas e reflexões, a autora coloca em destaque a aprendizagem saudável dos adultos envolvidos com estas questões do transporte, levando em conta os seguintes Construção Psicopedagógica, São Paulo-SP, 2010, Vol. 18, n.16, pg. 1-8 6 aspectos relevantes, entre outros: a consciência sobre as relações de autoridade; a escuta e apoio psicopedagógico frente aos conflitos e tensões geradas no trânsito; a ampliação de percepções diante dos estereótipos sobre poder, autoridade e lei; a ampliação do diálogo respeitoso. Estes aspectos ressaltados são indicadores de um trabalho que focaliza um sentido de ética associado ao respeito às regras do trânsito e a escuta frente às diferentes reações geradoras de conflitos, aos estereótipos. Destaca novas formas de aprender associadas à conscientização sobre a importância do diálogo, o respeito à autoridade e o cumprimento das leis do trânsito. Nas considerações finais, a autora amplia essas propostas psicopedagógicas com estes profissionais do trânsito, valorizando as complementações do trabalho de outros especialistas, segundo um enfoque multi e interdisciplinar.

As publicações finais do presente volume destacam “pontos de vista” de grande significância, com reflexões e pesquisas de autores pioneiros da Psicopedagogia no Brasil: Salvador (BA) e São Paulo (SP). Seus artigos destacam a importância da interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e contribuições da Psicopedagogia.

A psicopedagoga Débora S. Castro Pereira, uma das pioneiras do curso de Psicopedagogia em Salvador (BA), ex-presidente da sessão Bahia e doutora em Educação, apresenta em seu artigo diferenciações sobre o ato de aprender e o sujeito que aprende, levando em conta a complexidade e singularidade da aprendizagem e a importância da Interdisciplinaridade. Como professora e coordenadora da Universidade Católica de Salvador (PUC-SAL) desenvolve suas reflexões a partir de pesquisas compiladas dos estudos desenvolvidos para a Tese de Doutorado e do seu trabalho atual, como professora e supervisora de aprendizes, dos cursos lato sensu de Psicopedagogia. A autora destaca, entre outros, os seguintes aspectos de grande relevância para o ensino e a aprendizagem: os fatores internos e externos que podem ou não favorecer a aprendizagem; o vínculo entre o sujeito que aprende e a aprendizagem; o respeito às formas de ser que cada sujeito se manifesta nas ações com o meio, consigo próprio e com o outro; e a importância da Interdisciplinaridade. A autora destaca a complexidade do ato de aprender que se movimenta “para além das ‘raias da cognição’ em direção Construção Psicopedagógica, São Paulo-SP, 2010, Vol. 18, n.16, pg. 1-8 7 ao afetivo-emocional, à dinâmica social, à diversidade e à singularidade de cada sujeito”. (Citações da autora).

Nessa viagem metafórica por meio das publicações, voltamos à cidade de São Paulo (SP) com a publicação sobre a importância da orientação familiar e a Interdiscipinaridade, fechando com “chave de ouro” o ciclo de reflexões e pesquisas que se iniciaram com o enfoque sobre a dinâmica familiar e a ética. Este volume finaliza, portanto, com um ponto de vista de grande relevância da psicopedagoga Maria Cecília C. Gasparian, uma das pioneiras da Psicopedagogia do Brasil (São Paulo, SP), ex-presidente da ABPp e docente do Núcleo de Transdisciplinaridade (PUC-SP). A autora apresenta seu estudo sobre a dinâmica familiar e a importância da orientação familiar numa visão sistêmica e aprofunda-se nas reflexões sobre a construção do conhecimento e a aprendizagem como enfoque na Interdisciplinaridade que implica numa visão ecológica, sistêmica, crítica e complexa do homem e do conhecimento: “A interdisciplinaridade emerge como uma metodologia de trabalho e pontua diretrizes para uma prática psicopedagógica mais eficaz, possibilitando enfrentar os desafios da contemporaneidade onde a escola e as famílias poderão adquirir mais habilidades e competências para lidarem melhor com seus problemas.” (Citações da autora).

Foram escolhidos, neste editorial, para o convite e abertura das leituras dos artigos, os sábios e contemporâneos pensamentos de Humberto Maturana e de Edgar Morin que definem a essencia do sentido de ética associada à consciência sobre os poderes e limites dos nossos saberes e o nosso comprometimento, enquanto construtores do conhecimento. Os pensamentos se completam quando falam sobre a importância da visão interdisciplinar que amplia a visão de campo, frente às limitações do saber, mas sem deixar de considerar as especificidades dos conhecimentos. A consciência do específico, dos limites e ao mesmo tempo a amplitude de campo que possibilita o diálogo com o outro e o diferente é o nosso desafio ético e interdisciplinar, tema escolhido para a seleção dos presentes artigos, que se apresentam neste volume da revista Construção Psicopedagogica (2010).

“Cegos diante da transcendência de nossos atos, fingimos que o mundo tem um vir-a-ser independente de nós, justificando assim nossa irresponsabilidade e confundindo a imagem que buscamos projetar, o papel que representamos como o ser que verdadeiramente construímos em nosso viver diário (...). Afirmamos que o cerne das dificuldades do homem moderno está no seu desconhecimento do conhecer (...). Não é o conhecimento, mas o conhecimento do conhecimento o que nos compromete”. (MATURANA, 1995, p. 264)

“As disciplinas são plenamente justificáveis desde que preservem um campo de visão que reconheça e conceba a existência das ligações e da solidariedade... se não ocultarem realidades globais”. (MORIN, 1999, apud FAGALI, 2000, p. 35)

 

Referências

FAGALI, Eloisa Q. A dinâmica relacional, a subjetividade, o múltiplo e o transitar na aprendizagem. Tese de Doutorado – PUC-SP, São Paulo, 2000.        [ Links ]

MATURANA, H. Varela F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995.        [ Links ]

 

Eloisa Quadros Fagali (editora científica)

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