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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. v.18 n.16 São Paulo jun. 2010

 

ARTIGOS

 

Os entraves da autoridade paterna no processo de aprendizagem: uma abordagem psicanalítica1

 

The barriers of paternal authority in the learning process: a psychoanalytical approach

 

 

Ana Lisete Frontini Pereira Rodrigues2

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo visa contribuir para a reflexão sobre o processo de aprendizagem, bem como sobre o atendimento clínico-psicopedagógico com abordagem psicanalítica. Tendo como referencial teórico a psicanálise freudiana, foi realizado o estudo de caso de uma criança de oito anos, com dificuldades para aprender. Na apresentação do material clínico, são relatadas a situação familiar, a queixa e as insatisfações que levaram os pais a procurar tratamento psicopedagógico, de acordo com encaminhamento feito pela instituição escolar. Na análise do caso foi possível então investigar, principalmente, as implicações da autoridade paterna no processo de apropriação de conhecimentos da paciente, especialmente da linguagem e do raciocínio matemático. Também outros fatores desfavoráveis ao crescimento puderam ser evidenciados, como os conflitos com a figura materna e a intolerância à frustração, marcantes na história da paciente em foco. Sendo assim, foi possível concluir que a autoridade paterna, dependendo da maneira como é exercida, acrescida de outros fatores, entre eles a construção da ética e da interiorização das leis, pode levar a entraves no desenvolvimento da capacidade de aprendizagem. Para compreendê-los e superá-los, faz-se necessário criar um espaço terapêutico acolhedor, facilitador do vínculo afetivo e com abertura para desenvolver a escuta não só do paciente, mas também de seus pais.

Palavras chave: Autoridade, Aprendizagem, Dificuldades, Realidade, Limites, Pai, Identificação.


ABSTRACT

The present study aims at contributing to a reflection on the learning process, as well as the psychopedagogical clinical treatment with a psychoanalytical approach. The case study of an eight-year old child with learning difficulties was carried out using the Freudian psychoanalysis as a theoretical reference. At the presentation of the clinical material, the family situation, the complaints and the dissatisfactions that led the parents to resort to a psychopedagogical treatment as directed by the school are also reported. Upon examining the case, it was possible then to research specially the implications of the paternal authority in the process of knowledge acquisition by the patient, in particular language and mathematic reasoning. Other unfavourable aspects to the growth could also be focused, such as conflicts with the maternal figure and intolerance and disappointment, which were strong in the history of the patient at issue. Therefore, it was possible to conclude that the paternal authority, depending on how it is exercised, plus other aspects, such as the ethical construction and the internalization of laws, might cause hindrances to the development of the learning ability. In order to understand and overcome them, it is necessary to create a welcoming therapeutical environment, which facilitates the affective link and with room to develop the listening ability, not only towards the patient, but also of her parents.

Keywords: Authority, Learning, Difficulties, Reality, Limits, Father, Identification.


 

 

Introdução

É importante ressaltar que o processo subjetivo na construção do conhecimento deverá ser observado pelo profissional que atua na área psicopedagógica. Essa subjetividade diz respeito, primordialmente, à relação que o aprendiz estabelece com os diversos campos do saber.

Estabelecer relação entre a cognição e outros aspectos do psiquismo não é tarefa fácil, pois, além dos conceitos referentes ao ato de aprender, há também representações inconscientes das emoções que interferem em todo o processo.

Privilegiei os estudos voltados para o psiquismo justamente por acreditar que a Psicopedagogia muito pode se beneficiar com eles, principalmente no que diz respeito ao entendimento da importância das representações que a teoria do inconsciente de Freud pode nos possibilitar. Percebi que ambas as áreas podem trocar conhecimentos, enriquecendo-se mutuamente, sem perder de vista suas especificidades.

De fato, com o diálogo que fui estabelecendo com a clínica psicanalítica comecei a desenvolver um outro olhar e uma outra escuta no que se refere aos sintomas de meus pacientes com dificuldades de aprender.

Formulei então algumas questões, sendo as principais relacionadas às implicações da autoridade paterna no processo de aprendizagem e na constituição psíquica do sujeito. Quem dita as leis e interdita os desejos? Como ocorre a construção da ética no sujeito? Como a função da autoridade está implicada no processo de desenvolvimento psicológico do sujeito na infância? Como pode interferir no processo de aprendizagem até a adolescência? Essa interferência pode ser um complicador no que diz respeito ao pensamento lógico? Esse pensamento está imbricado na vivência do sujeito em relação aos seus sentimentos?

O pai, segundo a teoria freudiana, tem importância mais marcante na vida da criança após a fase da simbiose mãe/bebê. Essa premissa foi estudada também pelos pós-freudianos. A função do pai é, pois, favorecer a inserção do bebê no universo simbólico: na qualidade de pai imaginário que interdita e frustra seus desejos.

Assim, a função do pai e suas implicações apresentam determinadas características, sendo a principal delas o exercício de impor limites e regras. O superego, herdeiro das relações primitivas com os pais, e a censura, guardiã dos interditos, demandam, portanto, uma autoridade paterna.

Mas quais as implicações dessa autoridade e seus desdobramentos na formação da habilidade cognitiva da criança e no desenvolvimento de seu pensamento?

Para discutir essa questão, realizo aqui o estudo de caso de uma menina que me foi indicada pela instituição escolar para realizar um trabalho psicopedagógico, por apresentar bloqueios para aprender, mais especificamente no desenvolvimento do raciocínio lógico. Tenho como intuito indagar e analisar essas dificuldades, as quais diagnostiquei como advindas, entre vários outros fatores, dos entraves na relação da paciente com o pai.

Rey (2002) descreve a pesquisa qualitativa como um processo irregular e contínuo, “(...) dentro do qual são abertos, de forma constante, novos desafios” (p.ixx). Ainda segundo o autor, nessa perspectiva, o estudo de caso não significa, apenas, uma forma complementar de obtenção de informações; representa um momento essencial na produção de conhecimento.

É pela perseverança em observar o objeto de investigação, questionando alguns aspectos nem sempre explorados pela Psicopedagogia, obviamente sem a ilusão de esgotá-los em sua complexidade, que busco aqui um caminho para redimensionar o atendimento nessa área de atuação. Espero, com isso, colaborar com os profissionais que se interessam por essas investigações.

Na clínica de Psicopedagogia observa-se como o sujeito utiliza seu potencial nas diferentes situações que ocorrem durante as sessões de atendimento, relacionadas especificamente à aprendizagem. Ao realizar suas observações, o terapeuta analisa como o sujeito faz uso dos diferentes instrumentos psicopedagógicos, que podem ser jogos ou atividades lúdicas, e como os mesmos proporcionam uma aprendizagem satisfatória. Assim, identifica as implicações da dificuldade de aprendizagem nas representações cotidianas do paciente, buscando analisar possíveis patologias, desvios, impasses do aprendiz.

É possível observarmos na obra de Freud o desvelar dos fundamentos da relação pai e filho quando o autor estudou seu papel como pai, o que facilitou o processo de sua análise. Dentre as concepções freudianas, encontramos o complexo edipiano e seu significado na estrutura da personalidade.

De acordo com a teoria freudiana, a ambivalência dos sentimentos edipianos - amor e ódio - está na raiz de diversas manifestações da neurose obsessiva. Na análise do Complexo de Édipo, o autor nos mostra o desenvolvimento sexual da criança. Embora esse estudo tenha aparecido desde 1910, foi só em 1924 que Freud reforçou a importância da resolução do Complexo de Édipo na estrutura da personalidade, especialmente em relação ao superego no que se refere às proibições, isto é, como guardião dos interditos.

A formação superegóica esbarra no complexo edipiano, pois as renúncias dos desejos edipianos, amorosos ou hostis, revelam o princípio dessa formação. O pai real ou o pai ideal com seus poderes se instala para se interpor entre o bem e o mal, entre o amor e o ódio e, portanto, como representante da lei.

A teoria do Complexo de Édipo na obra freudiana contribui para o esclarecimento das fantasias e dos mitos da situação triangular entre a criança, o pai e a mãe. Ao analisar a escolha das relações afetivas da criança nas diversas fases de seu desenvolvimento inicial, Freud pôde esclarecer as fantasias infantis em relação à mãe e, posteriormente, em relação ao pai. Ao apresentar os fenômenos da formação desse complexo, da interrupção da simbiose mãe/bebê em tenra idade eda introjeção da lei, exercida principalmente pela autoridade paterna, Freud colabora para o entendimento da subjetivação, ou seja, da percepção da criança de si mesma como indivíduo único apto a se relacionar com o mundo externo.

Freud na obra Analisis de la Fobia de un Nino de Cinco Años (1909) nos mostra também como o desejo não pode ser satisfeito a todo o momento, tanto pela imposição da realidade frustrante como pelos mecanismos de defesa que são utilizados. Entre estes mecanismos podemos citar o deslocamento e a sublimação.

A dissolução do Complexo de Édipo pode ocorrer de forma satisfatória, sem traumas ou patologias. Freud (1905) percebeu que algumas crianças ultrapassam tal complexo de maneira satisfatória, desde que tenham pré-disposição, isto é, a natureza psíquica para isso, e recebam a necessária continência dos pais.

Na teoria freudiana, o pai designa a realidade social e é, portanto, o representante da lei e da autoridade, enquanto o conceito de pai é representado pela sublimação. Assim, a figura paterna idealizada na fantasia e a sublimação concernem à pulsão, uma modalidade a ser inibida.

Freud na obra El Yo y el “Ello” (1923) menciona que a estrutura da criança é constituída inicialmente pelas primeiras identificações, sendo uma das mais importantes àquela com os pais, que ocorre desde os primeiros anos de vida (na mais tenra idade). No início, desde o contato com o seio materno, a mãe tem uma importância fundamental; só depois o pai vai se aproximando, permitindo, assim, o processo de identificação paterna. Essa relação com o pai é inicialmente hostil e depois se transforma em desejo de excluir a mãe e ter o pai exclusivamente para si. Freud ainda considera que a menina resolve o conflito edipiano de maneira diferente do menino. No período de latência, ela se identifica com o pai, constituindo, assim, a função superegóica, sendo que a predominância da lei paterna favorece sua inserção na realidade. A autoridade paterna de ditar a lei e interditar o desejo contribui, assim, para o desenvolvimento da menina.

O pai se aproxima da criança quando a mãe o permite. A introjeção da lei está implicada no Complexo de Édipo e na formação superegóica que favorece a introjeção da lei e interdita os desejos amorosos em relação ao pai e na exclusão da mãe.

Freud, em Três ensaios sobre a Sexualidade (1914), nos remete ao desencadear do desejo e à realidade externa. Além disso, nos leva a observar o pai como representante da lei para a aquisição superegóica e a maneira como os objetos internos são adquiridos. A submissão à lei será uma renúncia inevitável aos desejos, bem como uma privação dos impulsos frente às necessidades sociais por meio da sublimação.

No texto Totem e Tabu, Freud (1912) refere-se à relação que o sujeito estabelece com o representante da lei, que é o pai; quando a criança confronta essa imagem idealizada do pai, adquire condições de elaborar a função superegóica.

Nessa mesma obra, Freud descreve, então, a palavra tabu segundo três noções diferentes: o caráter sagrado, portanto, impuro das pessoas; a natureza da proibição que esse caráter sugere; e a possível violação das regras. O tabu possui uma força misteriosa e inerente a cada sujeito, conforme sua inserção social. Portanto, dependendo da cultura, a violação às regras poderá ser uma purificação ou uma neurose. A transmissão dos tabus nos leva a crer que podemos nos iludir com algumas informações adquiridas na experiência diária. Muitas vezes, o tabu não nos fornece informações precisas, sejam elas religiosas ou não, mas significa um conjunto de fatores psíquicos, muitas vezes ininteligíveis.

A transformação histórica do tabu se estende no que diz respeito às ambivalências das diferentes relações humanas que o sujeito possa ter. A análise da natureza do tabu pode nos dar pistas dos resultados da possível transgressão do mesmo.

Paralelamente, contrabalançar perdas e ganhos afetivos nos interditos dos desejos impostos pela realidade é tarefa do mundo mental. O mesmo ocorre com o processo de aprendizagem, o qual também segue um percurso semelhante.

Em relação às leis, é na obra Totem e Tabu (1912) que Freud esclarece a função superegóica, explicando que esta pode ser exercida por diferentes pessoas na vida do sujeito e não apenas pelo pai, como de fato o é na maior parte dos casos. Os limites podem ser impostos por outras pessoas, que colaboram na aquisição dos valores sociais.

A obediência superegóica como submissão às leis impostas socialmente sem questionamentos, principalmente na criança, será uma renúncia aos impulsos, isto é, uma frustração. O superego é o representante dos pais e dos educadores que dirigem as atividades dos indivíduos no primeiro período da vida infantil. Lidar com as regras e os limites é poder processar a aprendizagem e obter, assim, uma modalidade diferenciada na escola.

Na medida em que a criança vai crescendo, os critérios superegóicos podem sofrer mudanças ocasionadas pelas vivências. Há muitos fatores que podem contribuir para os questionamentos, entre eles, preceitos religiosos e/ou sócioculturais. No texto O Futuro de uma Ilusão, Freud (1927) menciona as privações dos impulsos e das necessidades em relação à sublimação, no que diz respeito às vivências educacionais.

Freud menciona em El Malestar en la Cultura (1929) que o superego cultural possui regras, entre elas, a moral e a ética. O superego preserva os valores culturais, ataca o indivíduo nos seus impulsos, tornando-o agente da vida e/ou da morte, dependendo da relação que o sujeito possa ter. Ele ainda relaciona a estrutura psíquica do sujeito com o sistema social no qual está inserido, buscando clarificar algumas questões a respeito da autoridade paterna e sua contribuição na instância superegóica.

 

Discussão

Fazendo um paralelo com a aprendizagem, podemos pensar que, para escrever e ler, portanto, para o letramento, se faz necessária a aquisição de determinadas leis. As regras da escrita são arbitrárias, mas a criança se apropria delas para se comunicar com o outro, estabelecer relações, também, entre os diversos campos do saber, entre as diversas informações disponíveis, e para compor e divulgar suas idéias, seus sentimentos, suas percepções. Da mesma forma, ocorre a apropriação do conhecimento lógico-matemático e dos símbolos representantes das operações e da constituição do número. Quando esses processos acontecem com entraves, são levantadas várias hipóteses que possam justificá-los, entre elas, bloqueios de ordem psicológica.

A criança tem uma relação com o pai por meio da identificação e, assim, lhe é permitido um espaço entre a mãe e ela mesma.

A identificação é, no conceito freudiano, o modo como sujeito se constitui, ou seja, sua identidade com o outro, seja ela parcial ou na sua totalidade. Isso nos remete a pensar, ainda, que uma série de fatores pode refletir a identidade que o sujeito faz com o pai ou com a mãe. Alguns conteúdos dessa identificação permanecerão e outros serão modificados ao longo das experiências do cotidiano.

Inicialmente, a criança se relaciona com a mãe pela incorporação, e na medida em que se distancia da simbiose com ela, vai se diferenciando como sujeito na busca de outras relações. A partir dessa diferenciação, o pai se insere, impondo regras e limites, por meio dos quais a criança se identificará com ele. Ao se subjetivar, a criança reprime os desejos pela imposição da realidade externa e, portanto, pode abandoná-los na medida em que cresce, em busca de outras identificações, favorecendo o processo de aprendizagem.

Os entraves que podem ocorrer no processo de aprendizagem remetem também ao conceito de resistência, que Freud definiu (1894) ‘como uma força psíquica que reprime a ação e leva o sujeito à atuação das defesas para amenizar o desagrado do trauma’. Para o autor, trauma se refere às lembranças dolorosas carregadas da dor, as quais foram denominadas de feridas psíquicas e ligadas ao conflito que ocorre entre o impulso e a repressão.

A realidade se impõe ao princípio do prazer e poderá ocasionar o trauma quando for impossível ao paciente lidar com o conflito frente à realidade externa. Na aprendizagem, esse entrave dificulta o conhecimento que o sujeito possa vir a ter em diferentes áreas do saber.

As lembranças traumáticas podem produzir um sintoma na vida psíquica como uma ferida emocional ligada ao conflito advindo do reprimido. O reprimido é, nessa medida, um fator para a resistência. As dificuldades de aprendizagem podem, também, produzir diferentes sintomas, tais como desatenção, inabilidade na linguagem e conceitos matemáticos não-assimilados (como observaremos no caso aqui apresentado).

A intensidade do conflito dependerá de vários fatores, entre eles, da predisposição do sujeito em relação aos valores superegóicos, dos desejos nãorealizados e da tolerância à frustração que a realidade nos impõe, que, se for insuficiente, dificultará o ato de aprender.

Adicionalmente, a colaboração paterna no processo de subjetivação possibilita a inserção social do sujeito.

Segundo Aulagnier (1990), a tarefa do profissional é buscar as representações recalcadas e torná-las cognoscíveis para que o sujeito reorganize seus investimentos psíquicos de tal forma que o presente e o futuro possam ter novas significações. Todo aprendizado é necessariamente acompanhado de uma dose de frustração, pois implica no abrir mão de muitos desejos para se debruçar no fazer e no refazer necessários à construção de conhecimentos.

O desejo de adquirir novos conhecimentos é natural do ser humano e, no caso da criança, a curiosidade se dá em relação a tudo que é novo, desconhecido. Diferentemente do adulto, a criança tem a naturalidade para aprender em áreas diversas de conhecimento e não apenas naquela de seu interesse. O comum é, portanto, a curiosidade sobre novas informações. Quando essa curiosidade sofre uma ruptura, a questão pode passar tanto pela inadequação de quem ensina como pelo pouco interesse da própria criança, relacionado ao bloqueio e à resistência.

No caso clínico apresentado a seguir, será possível observarmos como os bloqueios e resistências para o aprendizado foram se configurando na história pessoal e familiar da paciente.

A criança escolhida para o estudo de caso foi encaminhada para um tratamento psicopedagógico pela escola que frequentava por apresentar dificuldades de aprendizagem. A indicação foi feita pela orientadora, que também levantou a hipótese de que, além da problemática escolar, a criança poderia ter problemas de ordem psicológica.

Nascida em uma família de classe média, a paciente morava em um bairro de padrão sócio-econômico típico dessa classe social. A mãe, então com trinta e nove anos, nasceu na cidade de São Paulo. Já o pai, na ocasião com 42 anos de idade, nasceu no interior do estado de São Paulo. O casamento aconteceu após alguns anos, quando o pai possuía estabilidade econômica para constituir uma família, tiveram dois filhos: um menino e uma menina.

No caso aqui em foco, a paciente me foi apresentada como uma menina que não queria aprender, não se interessava por novidades, não era curiosa, era insegura e só conseguia fazer escolhas no cotidiano após a aprovação da família. Optei, então, por realizar entrevistas com os pais, por considerar que a visão que tinham da menina, os sentimentos e as crenças sobre a maneira de ser e agir dela, seriam significativos para a compreensão da dinâmica familiar e, consequentemente, para o encaminhamento do trabalho clínico, com as possíveis mudanças na aprendizagem da paciente.

A autoridade do pai, como interdito dos desejos da menina, possivelmente levou-a a rejeitá-lo, mas também a negar a própria capacidade de lidar com o processo de aprendizagem, especialmente no que dizia respeito ao raciocínio lógicomatemático, sobre o qual o pai mostrava destreza e domínio. De fato, observei, no atendimento da menina, sua dificuldade para aprender matemática.

O pai acreditava que as mulheres não tinham condições de pensar, especialmente de fazer contas, como era o caso da mãe. Sendo então uma das mulheres dessa família, como a menina poderia aprender matemática? Como poderia escolher, selecionar as condições adequadas para um processo escolar satisfatório?

O sintoma de desatenção da menina se expressava na classe quando não conseguia entender as informações que lhe eram passadas. De fato, o ato de aprender necessita de um pré-requisito que é a atenção. A atenção seletiva é a capacidade de concentração em determinados aspectos relevantes ao processo de aprendizagem dos mais diversos conteúdos (história, geografia, matemática ou português, por exemplo), bem como a capacidade de suprimir estímulos irrelevantes e incidentais para a formulação de respostas ao fenômeno momentâneo. Porém, não é condição suficiente para o ato de aprender; ainda colaboram nesse processo, por exemplo, a concentração e a memória.

O pai colaborava para a menina viver as frustrações impostas pelo Princípio de Realidade. A mãe, como terceiro termo de uma situação triangular, seria excluída da relação nesse momento. Havia um sofrimento em todos os membros da família. A mãe, na execução de sua maternagem para suprir as necessidades básicas da menina, não conseguia seu intento e isso a entristecia. Seu modelo de mulher não se aproximava da filha.

Os processos de construção e desconstrução, necessários ao ato de aprender, tinham entraves imbricados nas atitudes paternas. Os processos do aprender e do lidar com os erros, decorrentes desse aprender, foram então permeando o trabalho clínico, permitindo a evolução do mundo mental e possibilitando à menina a percepção de suas potencialidades.

Pude notar essa situação também em sua fala, nas atividades lúdicas e nos jogos que realizava. Nas atividades lúdicas surgiram brincadeiras nas quais a menina excluía a mãe, ficando apenas com o pai. E com frequência, a menina me excluía das brincadeiras e gritava nas sessões, impondo ordens como chefe, reprimindo minha liberdade, mandando que eu ficasse em silêncio, e “ouvindo as broncas que eu precisava ouvir porque eu era muito teimosa e não obedecia”. A menina vivia uma situação transferencial. Na medida em que ia revivendo a situação familiar, as sessões iam acontecendo de tal forma que ela passou a aceitar sua família, não mais como submissão sem contestação, nem com a agressividade que em muitos momentos aparecia, mas com a clareza dos sentimentos que a percepção de si pôde proporcionar. Isso pôde ser visto em uma frase comumente dita por ela: “é assim a vida”.

 

Conclusão

Apresentar a multiplicidade de sentimentos que foram vividos pela dupla no atendimento clínico aqui apresentado não foi tarefa fácil. Lidamos, a menina e eu, com as dores que as artimanhas da frustração proporcionam. Mas as gratificações foram inúmeras, entre elas, chegar ao final deste trabalho e descrever o processo que durou dois anos e meio. Percebi, com isso, que a dor diminui quando é possível de ser narrada.

No presente estudo de caso, observamos que a menina apresentava entraves de natureza psicológica no que se referia à aquisição de conhecimentos linguísticos e matemáticos, sobre a qual a autoridade paterna interferia significativamente. De fato, as restrições e exigências do pai dificultavam a capacidade da paciente em lidar com as questões próprias de qualquer processo de aprendizagem, que necessita de uma dupla dimensão - afetiva e cognitiva - para que aconteça. O pai, crítico e inflexível, não acreditava na capacidade de raciocínio da filha. A dualidade entre essa percepção e o pai idealizado não colaborava para que ambos, pai e filha, pudessem viver o sentimento amoroso.

Além da pouca continência do pai, a pouca proximidade com a mãe também comprometeu a aprendizagem e a autoestima da paciente. A mãe não reconhecia na menina as possibilidades de ter vida própria, autonomia, além de não ser um modelo para a filha como mulher capaz de adquirir conhecimentos, e sim, apenas, pela qualidade estética. A menina resistia a ser parecida com a mãe porque lhe era impossível aproximar-se desse “ideal de beleza”. A menina tinha dificuldade em lidar com a mãe “bonita e cuidada”. Ao sentir-se frágil em seu corpo “obeso” para os padrões da família, não lidava com a raiva que tinha dessa situação. Sentir-se “bonita” seria competir com a mãe para adquirir o afeto do pai, e a menina negava esse sentimento. Considerar-se incompetente no estudo da matemática era, por outro lado, identificar-se com a mãe, que também tinha entraves nessa área.

A menina não aceitava as regras familiares, bem como as regras da escola. Ela era exigente e com pouca tolerância à frustração vivida na realidade escolar, pois as atividades necessitavam de persistência para aprender, quando ela ainda preferia brincar. Os sentimentos de amor e ódio que ela trazia em relação à escola, que podem ser vistos no seu desejo de realizar só o prazer, comprometiam a aquisição do conhecimento.

Com a incipiente percepção do seu mundo mental, a menina confundia também satisfação material e psíquica. Essa maneira de lidar com suas necessidades era expressa quando comia sem nenhum controle e, com isso, brigava com o pai às refeições.

De fato, é possível concluir que o pai foi um obstáculo na autonomia e contribuiu para os bloqueios no ato de aprender. Além disso, a autoridade não era assimilada, pois o pai não negociava as regras pelo seu autoritarismo e não reconhecia a criança com condições de aprender. Porém, o pai foi também um facilitador quando pôde impulsionar as transformações da menina por meio de seu afeto. Além disso, o pai, junto com o trabalho psicopedagógico, favoreceu à menina se apropriar de si mesma, na apreensão do seu mundo interno, assumindo o objeto externo, o conhecimento e, assim, podendo desfrutar novas experiências. Aprender é aceitar o novo, o desconhecido, sentindo-se capaz para tal.

Ao longo do atendimento clínico, a menina passou a perceber a autoridade paterna com significações positivas e negativas. Assim, pôde se identificar com o pai e revelar as regras impostas por ele, favorecendo sua identificação. Dessa maneira, pôde fazer uso da atenção, da linguagem e do raciocínio lógico para processar a aquisição de diferentes conhecimentos.

A autoridade do pai na família, dando limites e regras, pôde assegurar à menina conviver com o Princípio da Realidade tanto em casa quanto em outros espaços que ela vivenciava. Foi com seu afeto, com sua capacidade amorosa, que a menina pôde soltar suas amarras do não aprender e tentar se apropriar do conhecimento, aceitando a ajuda do pai nas lições de casa, no andar de bicicleta e nas novas informações.

É o pai como figura que dita as leis e interdita os desejos, baseando-se nas crenças culturais e sociais, que possibilitam ao sujeito que aprende adquirir valores sociais que impossibilitarão que execute plenamente seus desejos. É com o desenvolvimento da instância psíquica superegóica que essa interdição se manifesta. O pai contribui, pois, no desenvolvimento do processo de aprendizagem e na instância psíquica superegóica. Em Totem e Tabu (1912), Freud mostrava que os interditos dos impulsos da natureza do sujeito representam um render-se à cultura. É na renúncia dos impulsos em benefício da lei, da interiorização da imagem paterna que o sujeito se constitui.

No caso aqui apresentado, o pai dominador, que tentava ter o controle da família, não deixava de exercitar, também, a função de pai protetor. Essa função de autoridade estava imbricada no processo de identificação da menina.

Com isso, ressalto as condições emocionais da menina e o modo como ela vivenciou a autoridade do pai, com suas características peculiares conforme suas possibilidades e com a especificidade da dinâmica da família, da escola que ela frequentava e como a dinâmica da relação da dupla no atendimento clínico pôde resignificar seu ato de aprender.

Além disso, apropriar-se do objeto interno ambivalente - amor e ódio - significava olhar para a mãe com qualidades e defeitos e olhar para si mesma como ser integrado com dificuldades e potencialidades. Essa percepção também foi proporcionada à paciente no atendimento clínico. Ao viver a transferência da função materna, essa menina adquiriu uma qualidade no seu mundo mental distinta daquela vivida até então, possibilitando a abertura de um caminho a ser trilhado a partir dessa ferramenta que ela adquiriu.

A obra freudiana colaborou para o entendimento da constelação familiar, do mundo mental e, especialmente, da função do pai no processo de aprendizagem. Compreender a autoridade do pai na infância foi relevante na busca da superação dos entraves no seu processo de aprendizagem.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Ana Lisete Frontini Pereira Rodrigues
E-mail: analisete@uol.com.br

 

 

1 Esse artigo é um recorte da dissertação de mestrado realizada na Universidade São Marcos, São Paulo, em 2004.
2 Pedagoga, Psicopedagoga, Formação em Psicanálise, Mediadora e Mestre em Psicologia pelo Universidade São Marcos. Email: analisete@uol.com.br

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