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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.19 no.19 São Paulo  2011

 

Sintoma escolar: uma abordagem winnicottiana

 

Educational symptom: a winnicott-like aproach

 

 

Laiz T. Dietschi

Licenciada em Letras pela UNISINOS-RS, psicopedagoga pela PUC/SP, mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP. Rua Cardoso de Almeida, 313, conj. 102, CEP 05013-000, São Paulo-SP. São Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

Os impasses vividos pelo psicopedagogo no atendimento de crianças com dificuldades em sua relação com a aprendizagem escolar foram o ponto de partida para a elaboração da dissertação de mestrado em "Psicologia Clínica" na qual se baseia este artigo. Nesse sentido, o objetivo do presente artigo é o de expor de forma geral alguns aspectos da condução de um caso clínico, em psicopedagogia, a partir do qual foi possível estabelecer alguns parâmetros importantes na abordagem do sintoma "dificuldade de aprendizagem", entendido de forma generalizada como sinal de que algo não vai bem com a criança, refletindo em um rendimento escolar insatisfatório. Neste caso clínico específico, a queixa escolar abrangia a totalidade das disciplinas escolares, com ênfase nos aspectos de leitura, escrita e cálculo. A metodologia utilizada nesta pesquisa baseou-se no método clínico, privilegiando o estudo de caso, através do qual se buscou uma compreensão para a experiência de encontro vivida ao longo dos atendimentos realizados com uma criança oriunda da rede pública de ensino com queixa de ser caótica. Ao longo desse processo, foram feitas reflexões ancoradas no pensamento do pediatra e psicanalista inglês Donald W. Winnicott, a partir do movimento de crescente organização da criança, em contraste com o quadro clínico caótico inicial.

Palavras-chave: Dificuldade de aprendizagem, Sintoma escolar, Amadurecimento pessoal, Winnicott., Psicopedagogia.


ABSTRACT

The obstacles a psychoeducator has to go through while assisting children with difficulties in their relationship with the school learning were the starting point for the preparation of a master degree paperwork in Clinical Psychology in which this article is based on.
Thus, the aim of this paper is to describe in general terms some aspects of conducting a clinical case in psychopedagogy from which it was possible to establish some important parameters in addressing the learning symptom disability, widely understood as a sign that something is not going right with the child, reflecting a poor school performance. Concerning this clinical case, the school complains included all school subjects, focused in aspects of reading, writing and mathematics.
The methodology used in this study was based on the clinical method, focusing on the study case through which an understanding of a lived experience in meeting a child, seen as chaotic, derived from the public educational system was taken into consideration. Throughout the assisting process, reflections based on Donald Woods Winnicott thoughts were made, from the movement of the child's growing organization and in contrast to the initial chaotic picture.

Keywords: Learning difficulties, Educational symptom, Personal growing, Winnicott, Psychopedagogy.


 

 

Introdução

Minha intenção é a de apresentar a leitura feita de momentos significativos dos atendimentos em Psicopedagogia realizados com um menino com queixa de ser caótico. A proposta é a de apresentar um modelo de trabalho psicopedagógico clínico, a partir do atendimento de necessidades psíquicas dessa criança com algum tipo de queixa de dificuldade em sua relação com a aprendizagem formal. Optei por um recorte que apresenta momentos das sessões, e sua respectiva leitura, buscando referenciais na Teoria do Amadurecimento Pessoal de Donald W. Winnicott. Inicialmente, apresento alguns conceitos a título de introdução ao tema e, em seguida, pontuo dados expressivos do caso clínico. Finalmente, à guisa de conclusão, trago algumas reflexões que podem ser entendidas mais como indagações sobre o atendimento e a condução de casos de crianças com o quadro de dificuldades escolares levadas ao atendimento psicopedagógico clínico.

 

Rabiscos teóricos

Considero interessante começar com uma citação do próprio Donald W. Winnicott que diz que "... aquilo que é objetivamente percebido é, por definição, subjetivamente concebido" (1975, p.96).

Esta pode ser entendida como uma forma muito concisa de fazer referência ao vasto tema da criatividade e do caminho percorrido pelo ser humano desde um período em que não há diferenciação entre ele e o mundo até outro momento, em que essa diferenciação já é possível. É importante ter em mente que para o autor existe uma terceira área de experimentação, conhecida como "espaço potencial", localizado entre o mundo interno e externo. O espaço potencial vem a ser o herdeiro da ilusão de onipotência e, na relação com a realidade compartilhada, é inerente à cultura, à capacidade de brincar, de criar, de relacionar-se com os demais. A ilusão de onipotência refere-se à loucura concedida ao bebê, nos primórdios do desenvolvimento, para acreditar que ele cria o que já estava lá para ser criado.

D. W. Winnicott foi um psicanalista que nunca deixou de ser pediatra. O vasto trabalho realizado por ele no campo da psicanálise, ao longo de aproximadamente 40 anos, não abordou especificamente a questão da aprendizagem, mas é possível o uso de sua teoria para a reflexão sobre esse tema a partir da forma como ele entendeu o desenvolvimento humano. Sua crença na natureza humana o levou a afirmar que é o "potencial herdado" o responsável pelo desenvolvimento e amadurecimento do indivíduo desde o nascimento. No entanto, esse potencial herdado necessita de condições para atualizar-se e essas condições são oferecidas pelo ambiente que, no início, é a mãe. O autor enfatiza que:

o ambiente favorável torna possível o progresso continuado dos processos de maturação. Mas o ambiente não faz a criança. Na melhor das hipóteses possibilita à criança concretizar seu potencial. (1983, p.81)

Dessa forma podemos pensar que o potencial herdado engloba todas as possibilidades do ser humano no mundo, inclusive sua capacidade para a aprendizagem e, nesse sentido, a apreensão do conhecimento disponível na cultura.

Winnicott nos diz que, no início, o ambiente é a mãe, cujo estado especial, chamado por ele de preocupação materna primária, permite a ela exercer funções psíquicas essenciais para que o bebê ponha em marcha o potencial herdado que é ativo e criativo desde o início. Essas funções psíquicas foram chamadas de holding (sustentação), handling (manejo) e object presenting (apresentação de objeto). Esse estado especial, denominado de preocupação materna primária, essencial para o atendimento das necessidades do bebê, não é uma função intelectual da mãe; trata-se de uma disponibilidade que se desenvolve na maioria das mulheres durante a gestação para identificar-se com a criança e dessa forma, atendê-la conforme suas necessidades ao longo de diferentes fases. Sobre isso, o autor nos diz:

como sempre, a maturação (...) requer e depende da qualidade do ambiente favorável. Onde não dominam a cena nem a privação nem a perda, e onde, por isso, o ambiente facilitador pode ser tido como certo na teoria dos estágios formativos mais precoces do crescimento humano, gradativamente se desenvolve, no indivíduo, uma mudança na natureza do objeto. O objeto, sendo de início um fenômeno subjetivo, se torna um objeto percebido objetivamente (1990, p.164)

Winnicott utiliza o termo psicossoma recém-nascido para referir-se ao estado de imaturidade e vulnerabilidade do bebê ao chegar ao mundo. A resolução por parte do bebê das tarefas primitivas fundamentais conhecidas como integração, personalização e realização pavimentará o caminho de seu amadurecimento, desde que o ambiente dê as condições para isso. Quando tudo vai bem, mãe e bebê formam uma unidade que, de forma metafórica, dança em um ritmo que preserva o bebê de situações inesperadas. Nessa dança, o bebê conta com o potencial herdado para a consecução das tarefas primitivas. Já a mãe, segue o ritmo do bebê exercendo as funções psíquicas necessárias à continuidade da dança. A tarefa de integração no tempo e no espaço é favorecida pelo holding; a de personalização ou alojamento da psique no corpo é favorecida pelo handling; a realização que é o início das relações objetais ou contato com a realidade se constitui no object presenting e é favorecida tanto pelo holding quanto pelo handling. Essas tarefas têm início no nascimento e são concomitantes. Segundo Winnicott (2000) a mãe identificada com seu bebê pode apresentar o mundo em pequenas doses, "dando-lhe continuamente aquele pedacinho simplificado do mundo que ele, através dela, passa a conhecer". (ibidem, p.228).

O amadurecimento pessoal se dá ao longo de uma sucessão de estágios denominados dependência absoluta, dependência relativa e o caminhar rumo à independência, conforme Winnicott (1983, p. 80). O autor afirma que "a independência nunca é absoluta. O indivíduo nunca se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um modo que se pode dizer serem o indivíduo e o ambiente interdependentes" (ibidem). De início, a dependência é absoluta e, nesse sentido, o ambiente, representado pelo somatório de cuidados dispensados pela mãe, é perfeito. O oposto disso será um ambiente ruim e assim se caracteriza porque, ao deixar de adaptar-se, transforma-se em invasão a que o bebê terá de reagir. Winnicott (2000, p.334) observa que "...o ambiente perfeito é aquele que se adapta ativamente às necessidades do recém-criado psicossoma, esse que, enquanto observadores, sabemos ser um bebê que acabou de nascer." Sendo as condições satisfatórias, é nesse estágio que o bebê vive o que Winnicott denominou de experiência de ilusão de onipotência em que ele é o Deus criador do mundo que, paradoxalmente, já estava lá para ser criado. Mas o mundo deve ser apresentado em pequenas doses. "A criança procura algo e encontra o seio, e criou-se o seio". (ibidem, 2005, p. 16). As implicações disso são tremendas para o campo da aprendizagem formal, pois o autor afirma que "toda falha relacionada à objetividade, em qualquer época, refere-se à falha nesse estágio do desenvolvimento emocional primitivo".

À dependência absoluta, segue-se a relativa, em que o bebê começa a dar-se conta de sua dependência. De modo concomitante, a mãe começará a emergir de seu estado de devoção, entendido como preocupação materna primária, para iniciar uma retomada de seus interesses. O desenvolvimento mental começa a ter lugar para o bebê e, nesse sentido, libera a mãe para iniciar uma retomada de suas atividades. Um afastamento da mãe já é tolerado pelo bebê, desde que não exceda a capacidade da criança de mantê-la viva em sua mente. Um espaço começa a criar-se entre mãe e filho. De acordo com Winnicott, "de certo modo o lactente sente necessidade da mãe (...) o lactente começa a saber em sua mente que a mãe é necessária". (1983, p.84). O autor fala ainda desse momento do desenvolvimento sublinhando tanto a necessidade do bebê de separar-se da mãe, quanto dela perceber a nova necessidade do filho de separar-se dela.

De um estado de sentir-se fundido à mãe, o bebê passa para um estádio de separá-la do eu (self), enquanto a mãe diminui o grau de sua adaptação às necessidades do bebê.(1975, p.149)

Nesse percurso, tão importante quanto a ilusão é a desilusão. A desilusão dá lugar à descoberta de que o mundo já estava lá, mas a experiência de ilusão fica guardada como fonte de criatividade. A desilusão permite a transição para uma separação da unidade mãe bebê, necessária à continuidade do processo de amadurecimento pessoal.

O estágio rumo à independência encontra a criança capaz de fazer frente ao mundo. O círculo de relacionamentos sociais se amplia e complexifica, de forma que ela é capaz de identificar-se com a sociedade. "Deve-se esperar que os adultos continuem o processo de crescer e amadurecer, uma vez que eles raramente atingem a maturidade completa. (WINNICOTT, 1983, p.87)

 

Caso clínico

João, o menino caótico

Quando realizei a avaliação psicopedagógica de João, nome fictício do menino de 11 anos, à época do atendimento, confirmou-se o que a escola dizia dele: tinha dificuldade para a leitura e compreensão da mesma. Acrescia-se a isso a dificuldade para efetuar operações matemáticas. Os encontros revelaram uma forma de contato com os objetos que mais lembrava uma linha de produção, em que vários objetos eram confeccionados simultaneamente. Foi possível pensar na produção de João como algo sem sentido para ele, apenas como fruto de um fazer compulsivo, da mesma forma que, na escola, as tarefas pareciam destituídas de sentido.

Relativamente à corporeidade, havia a gagueira e os movimentos involuntários de pernas, acompanhados por caretas, enquanto trabalhava. Muito inteligente, sabia como mexer e executar tarefas complexas no computador. O contato com a família apontou para uma forma de ser invasiva do ambiente. A relação da família com o trabalho revelou que o caótico de João era antes uma característica da família em sua relação com o trabalho e a organização da casa. Não havia tempo nem lugar para o relaxamento.

O uso da argila configurou-se como material primordial ao longo de vários encontros. A evolução do trabalho levou à possibilidade de expressão do grande interesse de João pela vida pré-histórica. O mais significativo desse atendimento é que, em dado momento, João trouxe a proposta de construção de um projeto para a criação do "museu de história natural" que teria lugar em sua casa, no seu quarto. As esculturas de animais pré-históricos, confeccionadas por ele, seriam acompanhadas de uma cartela informativa a respeito dos hábitos de vida, características do animal e de sua localização no tempo. Segundo minha avaliação, a produção deixou de ser algo sem sentido para dar lugar a um exercício crescente de criatividade e uso de recursos pessoais. O corpo também ficou mais organizado e a gagueira desapareceu. Essas observações levaram-me a rever o percurso trilhado com João na tentativa de compreender o que havia acontecido.

Desse modo, foram distinguidos três momentos considerados significativos para a compreensão das mudanças ocorridas. Eles foram chamados de o espelho, a criação do mundo e a desilusão.

 

Descrição e comentários dos três momentos:

1. Sessão intitulada - O Espelho

João pegou uma folha de cartolina e dividiu-a ao meio com um risco a lápis. Convocou-me a sentar à sua frente1, solicitando que eu fizesse tudo como ele fazia, mas ao contrário. Assim, se ele iniciasse um traço no canto inferior esquerdo, eu deveria, segundo sua orientação, reproduzir o mesmo traço no canto inferior direito. Tinha início não só uma produção, mas um jogo no qual ele inscrevia seu gesto e eu repetia, na superfície do espaço que me cabia na cartolina, a mesma coisa que ele havia inscrito no seu lado da folha. Ao final, e com grande satisfação, ele me mostrou o que me pareceu uma produção em espelho. Ao refletir mais tarde sobre as mudanças no comportamento e no agir de João sobre os objetos e buscando no referencial winnicottiano uma forma de entender essa produção, pensei nesse espelho como expressão de uma busca pessoal de reconhecimento diante do olhar do outro.

Pode-se pensar na importância da presença do outro como possibilidade de reconhecimento do gesto criador que dá lugar ao reconhecimento da própria existência. Não encontrar no outro uma resposta ao próprio gesto, significa ter negada a própria existência. Em artigo publicado em 19672 intitulado O Papel de Espelho da Mãe e da Família no Desenvolvimento Infantil, Winnicott ressalta a complexidade das primeiras relações. Relativamente às experiências iniciais de amamentação em que, legitimado o direito à onipotência, o bebê diante do seio pode sentir-se criador desse objeto - objeto subjetivo - o bebê olha em volta e o que vê é o rosto da mãe. Para o autor, em condições favoráveis, o que o bebê vê é ele mesmo, dado que a mãe suficientemente boa, ao olhar o bebê, não reflete o próprio humor, mas expressa através do olhar, o reconhecimento da existência do bebê - o bebê vê a si mesmo.

2. Sessão intitulada - A Criação do Mundo

O segundo momento significativo ocorreu em um curto intervalo de tempo em relação ao primeiro. Chamei-o de criação do mundo porque o próprio João assim o denominou. O garoto pegou, em meio a objetos confeccionados em sessão anterior, alguns peixinhos modelados em gesso e pintados por ele com tinta. Essa atividade também tomou a sessão inteira. Os peixinhos de gesso foram distribuídos sobre o plástico azul que protegia o tapete da sala. Aguardei. João iniciou um jogo do qual eu fui mais uma vez convocada a participar. Atirou-se na "água" e iniciou movimentos de um nadador, ao mesmo tempo em que dizia "a senhora tá vendo? Eu criei o mundo submarino". Depois de alguns instantes, começou a contorcer-se dentro daquele diminuto espaço. Nesse momento, chamou-me para entrar no jogo ao dizer: "Socorro, tô me afogando, socorro, me salva!". Diante dessa convocação, eu me joguei na "água", "nadando" até ele e retirando-o dali. Na "praia" daquele mar de faz-de-conta ele disse rindo: "Brigadu, a senhora me salvô, eu tava me afogando" (sic). Ele voltou a entrar na "água", chamando-me para "nadar" com ele no mar que ele havia criado. Nada foi dito. Apenas jogamos juntos apresentando diferentes estilos de nado.

Considerei esse momento análogo à experiência de onipotência do bebê cujo gesto cria o objeto que paradoxalmente já estava lá para ser criado. A conquista das primeiras tarefas habilita o bebê a iniciar a transição para o próximo estágio, cujo aspecto fundamental é a desilusão. No processo de desilusão, o desmame tem papel fundamental, pois inicia, tanto para o bebê quanto para a mãe, a separação da unidade EU-NÃOEU. Descrevo o momento seguinte como análogo à função psíquica da mãe identificada com seu bebê de sustentar a separação necessária, desde que respeitado o tempo da criança para suportar a separação.

3. Sessão intitulada - A Desilusão

O terceiro encontro, que passo a relatar, envolve uma situação já repetida por João em outras sessões em que ele determinava o que eu devia fazer, o que consistia basicamente em reproduzir o que ele estava fazendo. Até essa sessão, sempre que solicitada, eu fazia o que ele pedia. No encontro que passo a relatar, ele pegou a massa de modelar e iniciou a confecção de réplicas de bonecos pockemons. Eu o segui, como de costume, mas em determinado momento, ele se cansou do que fazia e pediu que eu concluísse o que ele não queria mais fazer. Eu recusei. Ele olhou-me surpreso e tornou a falar o que sempre dizia: "Vamos, não é difícil, a senhora pode?". Eu respondi que sabia disso, mas que não queria, porque preferia terminar o que eu tinha começado. Notei que ele ficou um pouco desconcertado. Dei-me conta de que eu tinha recusado um pedido seu, não me mostrei disponível como vinha me mostrando até então. Ele propôs outra atividade e eu concordei, apenas pedi um pouco mais de tempo para finalizar o que eu tinha começado, o que não levou mais que um minuto.

O fim da fusão se anuncia de forma a permitir um novo tipo de relacionamento. A sutileza do cuidado materno permite à mãe perceber uma nova condição do seu bebê. A mudança de atitude na mãe se dá na forma de uma compreensão de que seu bebê não espera encontrar um reconhecimento mágico de suas necessidades. A mãe, a fim de seguir satisfazendo as necessidades do seu bebê, passa a valer-se de sua capacidade de transmitir sinais que possam guiá-la nesse sentido.

Winnicott ressalta que é possível à determinada mãe identificar-se com seu bebê a ponto de ser capaz de satisfazer suas necessidades na fase de dependência absoluta, mas de falhar por não conseguir separar-se do bebê com a mesma rapidez com que ele precisa separar-se dela. Assim, as falhas da mãe, quando já existe uma percepção de que há no bebê uma nova capacidade de transmitir sinais quanto a suas necessidades, consistem em uma nova forma de adaptação, agora relativa, reconhecida pela mãe. Nesse sentido, surge uma adaptação à necessidade crescente da criança de reagir à frustração, de ficar zangada.

Uma compreensão intelectual do bebê começa a desenhar-se pela possibilidade de compreensão das ausências da mãe, que é de fundamental importância na abertura do campo simbólico com o surgimento do objeto transicional, primeira possessão NÃO-EU. Em geral é um objeto macio adotado pela criança na hora de dormir ou quando o humor depressivo ameaça manifestar-se. Quando o objeto transicional passa a ser utilizado, dois fenômenos estão em curso: o primeiro uso do símbolo e a primeira experiência de brincadeira. O objeto transicional é símbolo de união com a mãe. Ele representa a transição do bebê de um estado de indiferenciação com a mãe para outro de relacionar-se com ela como separada e externa a ele. Sua importância reside no fato de que ocupa um lugar no espaço e no tempo. Simboliza a união de duas coisas que podem começar a ser percebidas como separadas. Quando o ursinho ou a ponta de um cobertor começa a ser usado isso marca a jornada trilhada pelo bebê desde o subjetivo ao objetivamente percebido. "O importante não é tanto seu valor simbólico, mas sua realidade. O fato de ele não ser o seio (ou a mãe), embora real, é tão importante quanto o fato de representar o seio (ou a mãe)". (WINNICOTT,1975, p.19)

Os processos mentais, que tem início nessa fase, auxiliam o bebê a suportar as falhas maternas, tão necessárias ao seu desenvolvimento emocional e contato com a realidade externa, tornando as falhas compreensíveis, toleráveis e, até mesmo, previsíveis.

Para Winnicott, a desilusão não é um processo negativo. Ao contrário, para haver desilusão, tem de ter havido uma capacidade para a ilusão. A desilusão apenas possibilita o contato com a compreensão de que o mundo não foi criado pela criança e que estava lá antes de ela nascer. No entanto, essa experiência de onipotência, de que o mundo foi criado por ela, permanece como elemento da criatividade que será exercida vida afora em diferentes campos da cultura.

 

Conclusão

O processo vivido com João me levou a pensar no trabalho psicopedagógico clínico como lugar de aprendizagem sobre o outro. Ao longo desse processo, a suspensão do que se poderia chamar de desejo do terapeuta de fazer algo produtivo para atender a uma demanda pedagógica, favoreceu o surgimento de um clima de confiança dentro do setting. Dessa forma, e no devido tempo, esse clima de confiança, emoldurou o que se poderia chamar de gesto espontâneo da criança legitimado pela presença e olhar humanos. Nesse sentido, o que era entendido como caótico, deu lugar a uma produção rica, marcada pelo ritmo e criatividade de João. Os atendimentos foram suspensos pela família ao cabo de três meses. Nesse sentido, não foi possível avaliar de que forma o percurso de João entre o caótico e a organização de uma produção pessoal que emergia se refletiria em termos de aproveitamento escolar. A preocupação maior girou em torno, não do atendimento da demanda escolar e familiar por melhores resultados em termos de aproveitamento escolar, mas do oferecimento de um espaço que possibilitasse o desencadeamento de um processo pessoal de organização.

Esse processo possibilitou uma reflexão a respeito do quadro caótico do menino como uma expressão de uma parada do desenvolvimento e de um anseio dele pela retomada desse desenvolvimento (cf PARENTE, 2008). Entendo os movimentos de João no setting como reapresentação de necessidades psíquicas atendidas, quem sabe, de forma precária pelo ambiente no início do desenvolvimento do menino. Essas necessidades puderam ser exibidas ao terapeuta identificado com a criança. Dessa forma, o gesto de repúdio ao movimento invasivo do ambiente, simbolizado pelo oferecimento por parte do terapeuta de uma tarefa, quando do início dos atendimentos, inaugurou um clima de confiança que possibilitou uma retomada de aspectos do desenvolvimento que estavam congelados. É nesse sentido que o sintoma pôde ser entendido como sinal de esperança, de criatividade e de busca da retomada do desenvolvimento. Foi necessário abordar a questão sob o vértice de uma falha na construção da dimensão da objetividade por parte da criança, provocada por uma parada no desenvolvimento em decorrência de uma falha ambiental.

Àquilo a que me referi anteriormente como fazer destituído de sentido, adquiriu um sentido de comunicação no caso de João. Essa comunicação não se referiu apenas ao aspecto de que algo das primeiras experiências de constituição do psiquismo, a partir do encontro do bebê com a mãe, não foram satisfatórias, mas apontou para uma necessidade de João de reapresentar os desencontros em que a comunicação entre ambiente e bebê deixou a desejar, marcando, dessa forma, a relação de João com o objeto de conhecimento, representado nas relações com a aprendizagem formal.

Nesse sentido, a abertura de um campo para o gesto da criança pode dar lugar a um espaço de experiência significativa que indique ao terapeuta quais são as necessidades da criança. Pode ser muito gratificante esperar para saber qual o objeto sugerido pela criança e do qual se pode fazer uso no setting de forma a favorecer a retomada do caminho rumo ao amadurecimento pessoal, do qual a escola, na nossa cultura, faz parte.

 

Referências

WINNICOTT, Donald W. O Brincar e a Realidade. São Paulo: Ed. Imago, 1975.         [ Links ]

___________________ O Ambiente e os Processos de Maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.         [ Links ]

____________________ Da Pediatria à Psicanálise: Obras Escolhidas. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 2000.         [ Links ]

____________________ A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.         [ Links ]

DIETSCHI, Laiz T. Clínica Psicopedagógica: uma leitura winnicottiana do sintoma escolar. PUCSP: Dissertação de Mestrado, 2010.         [ Links ]

PARENTE, Sônia M.B.A. Pelos Caminhos da Comunicação Significativa: uso transicional das teorias na experiência clínica. São Paulo: Ed. Vetor, 2008.         [ Links ]

 

 

1 Ele se sentou em minha cadeira, o que me fez pensar que, de certa forma, sentava-se em meu colo.
2 Esse artigo encontra-se em O Brincar e a Realidade, cap. IX (1975).

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