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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.19 no.19 São Paulo  2011

 

Sobre ser mãe/aprendente de sujeitos com necessidades educacionais especiais: acolhimento psicopedagógico do sofrimento materno

 

On being mother/learner of subjects with special educational needs: host psycho of maternal suffering

 

 

Márcia Siqueira de Andrade

Doutora em Educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; docente do Centro Universitário FIEO, Osasco, São Paulo; coordenando a área de Psicologia Educacional e Psicopedagogia, nos níveis de graduação, especialização e mestrado; Av. Franz Voegeli, 300, Vila Yara Osasco, CEP 06020-190; Tel. (11) 3651-9988 Fax. (11) 3651- 9700 e-mail: mandrade@unifieo.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta discussão sobre as bases teóricas da Psicopedagogia e considera o papel do psicopedagogo diante do sofrimento de mães de filhos com necessidades educacionais especiais. As ideias contidas neste artigo resultaram de discussões teóricas a partir de pesquisa sobre a atuação do psicopedagogo frente a crianças deficientes mentais na relação com suas mães. Finaliza concluindo que cabe ao psicopedagogo em determinadas situações acolher a angústia materna provocada quando se deparam com um filho diferente daquele que imaginavam ou esperavam.

Palavras-chave: Psicopedagogia, Autoria de pensamento, Aprendizagem.


ABSTRACT

This article presents discussion on the theoretical foundations of Educational Psychology and considers the role of psychopedagogists to the suffering of mothers of children with special educational needs. The ideas in this article resulted from discussions from theoretical research into the work of psychopedagogists front of mentally handicapped children in the relationship with their mothers. Ends psychopedagogists concluding that it is for the host in certain situations the anguish caused by maternal

Keywords: Educational Psychology, Authorship of thinking, Learning.


 

 

Este texto é resultado de parte de uma pesquisa que vem sendo realizada sobre dinâmicas institucionais e autoria de pensamento. A questão mobilizadora pode ser resumida na seguinte pergunta: como as dinâmicas institucionais relacionam-se com a autoria de pensamento?

Essa questão emergiu após resultados obtidos em duas outras pesquisas. Na primeira tentou-se interpretar as questões inconscientes relacionadas aos distúrbios de aprendizagem, em especial da língua escrita, concluindo-se que os problemas de aprendizagem da escrita estruturam-se, na maioria dos casos, como sintoma neurótico. Essa conclusão indicou a necessidade de uma intervenção diferente da que vem sendo realizada nas escolas brasileiras quando se defrontam com o alto índice de alunos que, após cinco a seis anos de escolaridade, permanecem analfabetos. Ao invés das aulas de reforço, ou das turmas de aceleração, devemos olhar para esse sujeito que mostra, pelo sintoma, a angústia que o assola.

Posteriormente, focou-se o professor, na tentativa de compreender como ele vivencia sua atuação profissional, convivendo com esse aluno angustiado, portador de sofrimento cristalizado no sintoma. Os resultados confirmaram o que as estatísticas já indicavam: esse professor, narcisicamente ferido, vê no aluno que não aprende o reflexo da sua incompletude e adoece. São inúmeros os nomes da sua doença: síndrome de bornout, depressão, stress. Mas, os resultados indicam a conversão histérica que no passado intrigou Freud. Hoje, essas mulheres/professoras cristalizam seu sofrimento no sintoma neurótico e, inúmeras vezes, tornam-se incapacitadas para sua profissão.

Diante desse quadro, o interesse voltou-se para as instituições: como as dinâmicas institucionais se relacionam com a possibilidade da constituição do sujeito autor? Das instituições que interessaram foca-se, aqui, a família, núcleo social das forças dialéticas.

 

Bases teóricas da discussão

Uma das questões básicas para que uma disciplina se constitua como tal é a delimitação do seu objeto de estudo. No caso da Psicopedagogia, a saudável falta de consenso sobre essa questão tem gerado discussões, e o fundamento de qualquer discussão científica é a produção de conhecimento.

Entende-se que toda nova teoria passa por, no mínimo, três estágios: num primeiro estágio trabalha-se com conceitos "emprestados", num segundo os conceitos são compartilhados e finalmente há a construção de um novo corpo teórico que transcende os momentos anteriores.

Atualmente, a Psicopedagogia encontra-se numa etapa intermediária em que os conceitos compartilhados já transitam por novos caminhos, de uma área específica das ciências humanas que busca transpor a exégese cartesiana. Não se pretende, aqui, dar o passo final nesta empreitada, mas discutir, sobre outras bases, a relação entre inteligência/desejo, social/individual, linguagem/subjetividade. Os termos de cada distinção não são colocados em oposição ou em contradição, como síntese que os anula num terceiro ponto. Os pares são pensados numa relação, irreconciliavelmente, diferente. As fronteiras que separam os termos emparelhados são como vagas em fluxo contínuo. A cada movimento algo do que estava mudou, sem deixar a antiga forma, constituindo e sendo constituída a partir do movimento em si.1

Longe de referenciais teóricos que obriguem a pressupor a constância ou a preexistência de conceitos, pensasse essas dualidades a partir das contingências do paradoxo2, concebendo-as imersas num processo ininterrupto de constituição mútua.

As ideias contidas neste artigo resultaram de discussões teóricas cujo pano de fundo foi a pesquisa realizada para a obtenção do título de Mestre em Psicopedagogia3. O trabalho apresentado discorria sobre a atuação do psicopedagogo frente a crianças deficientes mentais na relação com suas mães. A autora postulava que o brincar poderia ser um instrumento de intervenção auxiliador no relacionamento do sujeito portador da deficiência com os outros e consigo mesmo. Em resumo o olhar desta pesquisadora centrava-se na criança portadora de deficiência mental, ou de acordo com nomenclatura atual "criança portadora de necessidades especiais". Voltando à questão, ao ler o referido trabalho compreendeu-se que, mesmo rapidamente, a autora discorria sobre a angústia vivenciada por essas mães quando se deparavam com um filho diferente daquele que imaginavam ou esperavam.

Diante disso, refletiu-se sobre o papel do Psicopedagogo numa situação como a estabelecida na pesquisa proposta e surgiu a seguinte questão: se a Psicopedagogia trabalha com as posições subjetivas ensinante/aprendente e com a autoria do pensamento, quem, efetivamente seria sujeito de sua intervenção direta: a criança deficiente mental ou a mãe paralisada pela angústia frente ao conhecimento da situação de seu filho? Esta é a questão que se pretende aqui desenvolver.

Pensar a Psicopedagogia como área de atuação para crianças e adolescentes portadoras de problemas de aprendizagem tem sido uma posição bastante frequente junto àqueles que estudam ou praticam a Psicopedagogia. Credita-se esse equívoco a diferentes fatores, mas, aqui, será considerado apenas o fato de a Psicopedagogia ter sido pensada, no Brasil, como a disciplina que vai dar conta de problemas de aprendizagem escolar. Para aqueles que concordam com essa posição, o público alvo, naturalmente aceito, são as crianças em idade escolar.

Ocorre que não é disso que a Psicopedagogia trata. Ela trata da autoria de pensamento do sujeito em situação de aprendizagem, a quem se denomina de sujeito aprendente. A autoria do pensamento permite ao sujeito opor, como diz Aulagnier (1990, p.268), a força de arrombamento do desejo materno:

Numa fase em que sua vida é ainda dependente de cuidados do exterior, e primeiramente da mãe, numa fase em que o mundo que cerca o Eu da criança começa a lhe remeter uma imagem de sua dependência afetiva, a prova do derrisório de seu poder e dos limites que circunscrevem por todos os lados seu desejo, a criança percebe que no entanto está a seu alcance criar objetos - os pensamentos - que só ela pode conhecer e sobre os quais consegue negar ao Outro todo direito de olhar. (AULAGNIER, 1990, p.269)

Mas o que significa dizer autoria do pensamento? Primeiramente, significa que o ser vivente e inteligente, que reflete em virtude da dualidade da vida - corpo e espírito - que o habita, descobre que, como ser vivente poderia não ser dotado de inteligência. Em segundo lugar, significa que a presença da inteligência, seu surgimento destituído de justificação na consciência do vivente, como enigma inexplicável, é perturbador, sobretudo quando esse ser inteligente finda por reconhecer quão prescindível é a inteligência para que a vida siga o seu curso.

Se a primeira contingência lança no reconhecimento factual, a segunda proporciona uma desordem, um mal-estar. Essa desordem decorre do fato de que a inteligência busca causas, pensa as coisas dentro de uma ordem necessária e determinante; o aparecimento de um ser vivo inteligente, todavia, não se insere na esfera da necessidade, mas da contingência, deve-se em última instância não a uma determinação inexorável, mas a um acontecimento incompreensível.

Mais claramente: o mundo poderia existir tal qual é, se esse ser pensante não tivesse surgido. Esse saber propiciado pela inteligência e pela consciência da individualidade opera uma clivagem: separa o ser do todo, induz ao auto-reconhecimento como elementos estranhos a essa totalidade, ao mesmo tempo em que a consciência da própria finitude desperta um desejo, qual seja, o de ultrapassar a inteligência e reencontrar os vínculos que conectam o ser à totalidade perdida. Desejo de fusão e de retorno ao absoluto, móvel das pulsões de vida e das pulsões de morte. Assim, a consciência da finitude e o sentimento de absurdo emergem justamente na elucidação de que aquilo que fundamenta sua existência não emana dele mesmo, mas de fora.

Considera-se autoria de pensamento conforme a seguinte colocação de Aulagnier (1990):

Se é verdade que poder comunicar seus pensamentos, desejar fazê-lo, esperar disso uma resposta, fazem parte integrante do funcionamento psíquico e são suas condições vitais, é igualmente verdade que deve coexistir paralelamente para o sujeito a possibilidade de criar pensamentos que têm como única finalidade trazer ao Eu que os pensa, a prova da autonomia de um espaço que ele habita e da autonomia de uma função pensante que só ele tem poder de assegurar: donde o prazer que o Eu experimenta ao pensá-los. (p.264)

O pensamento é entendido como a transação entre o nível inteligente, que se ocupa do conhecimento, do mundo possível e o nível inconsciente que busca o saber e o mundo do impossível. A possibilidade de pensar é assegurada pela ignorância que permeia o saber, isolando-o do conhecimento, impedindo, dessa forma, o sintoma e a loucura. As experiências emocionais precoces, nas quais a relação com a mãe tem fundamental importância, influenciam a formação do pensamento nos processos de simbolização e discriminação da criança. Para Aulagnier (1990, p.270):

na relação mãe-filho, será no registro do pensar que se instituirá uma luta decisiva respeitante à aceitação ou recusa por parte da mãe de reconhecer a diferença, a singularidade, a autonomia desse novo ser que fez parte de seu corpo

Na elaboração da castração do pensamento o conhecimento reveste-se de um significado fálico. Para a Psicanálise o pensamento seria o substituto do desejo alucinatório, constituindo-se como tal na diferenciação entre realidade e fantasia. O pensamento surgiria da ausência de um seio, pois, se a capacidade de tolerar a frustração for suficiente, o não-seio se transforma em pensamento e desenvolve-se um aparelho para pensá-lo. Esse processo conduziria ao aparecimento de funções essenciais para a inteligência, tais como a atenção e a memória. Diante dessas colocações considera-se inerente à autoria de pensamento:

a liberdade de conhecer, tanto o bem vindo como o não querido, os pensamentos ansiosos, os pensamentos sentidos como maus ou loucos, assim como os pensamentos sentidos como construtivos e os sentidos como bons e sadios... Mas como todas as liberdades, também é sentida como um laço já que nos faz sentir responsáveis pelos nossos próprios pensamentos. (SEGAL, 1982, p.301)

 

Sobre a inibição sintoma e modalidade de aprendizagem

De acordo com Freud (1926) a inibição tem uma relação especial com a função, não tendo necessariamente uma implicação patológica. Segundo ele, podemos denominar inibição como uma restrição normal de uma função. O sintoma por outro lado, denota a presença de algum processo patológico. Assim, uma inibição pode ser também um sintoma: "inibição quando há uma simples redução da função e sintoma quando uma função passou por alguma modificação inusitada ou quando uma nova manifestação surgiu desta.". (FREUD, 1926, p.91)

A inibição pode ser uma expressão de uma restrição de uma função do ego, podendo ter causas diferentes. Quando o ego se vê envolvido em uma tarefa psíquica difícil, como ocorre no luto, ou quando se verifica uma tremenda supressão de afeto, ou quando um fluxo contínuo de fantasias sexuais tem de ser mantido sob controle, ele perde uma grande quantidade de energia em diversos pontos ao mesmo tempo. Torna-se relevante pontuar nesse caso a relação entre ansiedade e inibição:

Algumas inibições obviamente representam o abandono de uma função, porque sua prática produziria ansiedade (...) são restrições da função do ego, que foram impostas como medida de precaução ou acarretadas como resultado de um empobrecimento de energia; e podemos ver sem dificuldade em que sentido uma inibição difere de um sintoma, porquanto um sintoma não pode mais ser descrito como um processo que ocorre dentro do ego ou que atua sobre ele. (FREUD, 1926, p. 107)

Pain (1985) afirma que a inibição está relacionada com a diminuição da função, impedindo que essa se realize, enquanto que o sintoma acarreta a modificação dessa função. Ao contrário do sintoma, a inibição é um processo que se passa exclusivamente no ego, ela é, em termos, uma limitação do eu. A inibição ocorre no nível da consciência, ou seja, o ego para reduzir o desprazer evita a função. Podendo acontecer em três oportunidades:

a) quando há sexualização dos órgãos comprometidos na ação;

b) quando há evitação do êxito, ou compulsão ao fracasso diante do êxito, como castigo à ambição de ser;

c) quando o ego está absorvido em outra tarefa psíquica que compromete toda energia disponível, como pode ser o caso da elaboração de um luto.

A inibição aparece também como uma particularidade do fenômeno neurótico através de duas reações opostas, sendo uma o impulso da repetição da situação traumática ou a necessidade de evitação do lugar indicado pela cicatriz causada pelo trauma. Pain coloca que "este rodeio que impõe o sinal de angústia realiza-se de acordo com as diferentes modalidades de defesa, algumas das quais interessam diretamente ao problema de aprendizagem." (PAIN, 1985, p.31).

A evitação é uma defesa diante da angústia, ocorrendo um evitar pensar que pode prejudicar a aprendizagem, neste caso, a aprendizagem materna.

Tanto o problema de aprendizagem que constitui um "sintoma" quanto o que forma uma "inibição" instala-se em um indivíduo, afetando a dinâmica de articulação entre os níveis de inteligência, desejo, organismo e corpo, resultando em um aprisionamento da inteligência e da corporeidade por parte da estrutura simbólica inconsciente.

O sintoma funciona como um sedativo para o mal-estar, escutá-lo dá acesso a algo que determina o modo vigente de funcionamento de tal subjetividade, o sintoma é sinal de que alguma diferença se enreda na antiga figura. Ao mesmo tempo, o sintoma serve como resposta na tentativa de escapar do conflito que a diferença provoca quando quer emergir. Por fim, aponta a estratégia existencial construída a partir dessa resposta para aplacar a condição de seres não estáticos, que causa mal estar a cada mudança.

Inibição implica uma repressão exitosa, uma evitação ao contato com o objeto do pensamento, ou seja, o pensar em seu conjunto e o aprender serão evitados. Fernandez (2001, p. 87) coloca:

Cremos que quando está sexualizado o pensar, o conhecer, o aprender, é possível produzir-se um tipo de inibição que chamamos de inibição cognitiva. Pode estar sexualizado o objeto de conhecimento e a função, ou o processo que rodeie esse objeto, inibindo-se o aprender.

Ás vezes pode ser necessário a inibição-evitação reativa a um sistema exibicionista. A exibição de informação dificulta o conhecer, porque o ensinante será visto como se fosse o conhecimento. Isso dará lugar ao mecanismo de evitação, evitar tomar contato com o objeto de conhecimento, pois não há distância entre a pessoa que possui o conhecimento e o conhecimento. O ensinante não é o conhecimento, mas situa-se como se fosse.

A modalidade exibicionista de ensino, por si mesma, não é a causa de inibição cognitiva ao nível estrutural, mas pode provocar manifestações inibitórias do pensamento. Tais manifestações podem ser momentâneas e localizadas, como respostas reativas, frente a determinados ensinantes. Segundo Fernandez, (2001, p.151): "Uma das feridas mais dolorosas, produto de sofrer a violência do segredo, é o efeito que costuma ter a mutilação de autoria sobre quem dele padece e sobre quem o executa.".

O desejo de conhecer tem certo contato com a angústia. Não há criatividade possível sem contato, elaboração e representação dessa angústia. O desejo nutre-se do desconhecimento e, à medida que alguém vai cobrindo a falta, o espaço da falta amplia-se cada vez mais. Esse é o movimento do desejo de conhecer. Porém, quando um ensinante coloca-se como aquele que tem respostas para todas as faltas, como faz o exibicionismo, obviamente não haverá circulação de desejo de conhecer nos espaços que ele tenta abrir. Conectar-se com a própria carência permite nutrir o desejo de conhecer.

A modalidade de aprendizagem atingida por modalidades ensinantes exibicionistas evita pensar. O sujeito pode pensar, mas fazê-lo apresenta-se como perigoso, algo de que se deve defender, acreditando que o mundo é pouco interessante. A partir da defesa de evitar o pensar, ocorre um esvaziamento do pré-consciente. Assim, é como se o sujeito também evitasse tomar contato com suas próprias palavras e imagens significativas.

 

Sobre ser mãe/aprendente

Muito tem se falado sobre ser mãe. Fala-se sobre "padecer no Paraíso", sobre a sua missão quase divina, sobre o "coração de mãe", cujo amor incondicional pelos filhos aparece junto com o "instinto maternal" quando ainda são meninas e brincam com suas bonecas. Fala-se também sobre o amor indiferenciado que as mães nutrem pelos filhos, ou seja, na capacidade de amá-los todos da mesma forma e com a mesma intensidade.

Todos esses mitos acabam trazendo prejuízos às mães, principalmente quando, por algum motivo, não se encaixam nesse esteriótipo. Badinter coloca que:

Ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o instinto materno é um mito. Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura, ambições e frustrações. Como, então, não chegar à conclusão, mesmo que ela pareça cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e, como tal, essencialmente contingente? Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostrar-se forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno não é inerente às mulheres. É "adicional". (BADINTER, 1985, p.367)

Complementa-se essa afirmação colocando, ainda, que o amor da mãe pelo filho é construído na relação com ele, sendo o filho, portanto coautor desse sentimento.

Colocada esta questão retoma-se, a partir da Psicopedagogia, o pensamento de que a relação que importa para essa área de conhecimento é aquela pautada nas posições subjetivas de ensinante/aprendente4. É no vínculo construído entre mãe e bebê que esse último tem instaurada, pelo conhecimento, sua subjetividade. Nessa relação transferencial ambas as partes contribuem para a autoria do pensamento a partir de um suposto saber e da necessidade de suprir uma ausência. Nessa relação, o aprendente tem um lugar específico, surgindo num espaço transdisciplinar existente devido à fecundação entre sujeito desejante e sujeito cognoscente.

O sujeito autor do pensamento é aquele que, dentro da relação ensinante/aprendente representa, através da linguagem, as suas percepções inconscientes. Linguagem como "conjunto de sinais falados, escritos ou gesticulados que serve ao homem para exprimir suas idéias e sentimentos" (MICHAELLIS, 1998, p.1260) sendo, portanto, manifestação concreta da articulação do pensamento inteligente e pensamento desiderativo. Dessa forma, as manifestações linguísticas podem ser entendidas como pensamento em ação. Neste sentido, a linguagem produz subjetividade no mesmo movimento em que é por ela produzida. E com isso, o sentido de produção abala-se, pois em sua dupla natureza o elo entre linguagem e subjetividade ora reproduz, ora inventa os dois termos do par.

Diferentemente de fazer referência ao mundo, a linguagem intervém sobre ele, engendra os próprios fatos que supostamente descreve. Não mais apartada dos fatos, a linguagem age com eles e sobre eles. Por conta disso, a palavra advém não como unidade de significação tal qual aparece na psicanálise, mas como ato5 enunciativo, ação do sujeito que apreende as coisas do mundo e aprende sobre elas. São "as circunstâncias, tomadas como pressupostos implícitos da linguagem que, sem se confundirem com as palavras, determinam sua força produtora de real". (DELEUZE E GUATTARI, 1980/1995, p.144).

Por outro lado, toda e qualquer linguagem é simbólica, contém dados objetivos e parcela do mundo subjetivo daquele que a produz. Nesse sentido, articula dois níveis lógicos: a lógica da inteligência, que funciona pela classificação, ordenação, seriação etc e a lógica do inconsciente que funciona pela metáfora e metonímia. Esses dois níveis, apesar de se articularem, não podem se interseccionar sob pena de comprometer a produção linguística e, consequentemente, a compreensão da mensagem ali contida.

Tem-se, aqui, a importância da comunicação no processo de autoria de pensamento, o qual, se não for articulado pela linguagem restringe-se ao caráter apenas pulsional. A linguagem é responsável pela articulação da pulsão e do pensamento, os quais incorporam um nível representacional.

Mesmo que, inicialmente, tenha-se a tendência de pensar na posição de ensinante ocupada pela mãe e na de aprendente ocupada pelo bebê, deve-se lembrar que essas posições se alternam dialeticamente. Pode-se dizer que mãe e bebê ocupam simultaneamente a posição de ensinantes e aprendentes uma vez que cabe ao bebê ensinar a essa mulher ser sua mãe, assim como cabe à mãe ensinar a essa criança a ser seu filho.

Voltando ao trabalho que provocou estas reflexões pergunta-se: como será para essa mãe, colocar-se na relação com seu filho deficiente mental, um filho não amado, não pensado, e não conhecido? Como será para esse filho ensinar essa mãe a pensá-lo e, assim tornar-se sua mãe? Tentando ilustrar o movimento destas mães, movimento de evitação, retomam-se depoimentos constantes na pesquisa focalizada: "Disseram-nos no dia em que nosso bebê nasceu que ela tinha uma deficiência. Ficamos chocados até para perguntar qual era a deficiência. Ao observá-la fomos capazes de adivinhar o problema." (Mãe A.).

A capacidade de pensar está dialeticamente relacionada com a capacidade de perguntar, pois a pergunta contata com o conhecimento a partir do outro. A impossibilidade dessa mãe de formular uma pergunta sobre seu filho indica o movimento de paralisação na construção do conhecimento sobre a identidade desse bebê e na aprendizagem de como ser sua mãe. Para Soifer (1982) a doença nos filhos remete, muitas vezes, à impossibilidade dos pais transmitirem determinada aprendizagem por não terem, eles próprios, conseguido incorporá-la em grau suficiente, em momento adequado.

Uma forma de evitar o sofrimento é evitar pensar, o que se denomina inibição cognitiva. Nesse caso a mãe paralisa, não consegue dar conta de questões simples. Para Fernandez: "Não há uma alteração do pensar, mas um movimento defensivo exitoso, no qual é evitado o contato com o próprio pensar. Isso dará lugar ao mecanismo de evitação: evitar tomar contato com o objeto de conhecimento". (2001, p.126)

Voltando ao depoimento das mães: "Foi certamente difícil contar para todo mundo. Foi difícil ficar observando outras famílias borbulhantes de alegria com seus bebês normais. Certamente nos sentimos isolados do restante dos pais. (Mãe B.)

O esconder, o segredo, transforma-se num mecanismo que remete ao pensamento anímico de tal forma que possibilita lidar com o conhecimento sobre a deficiência do filho de forma mágica, como algo que, se omitido, deixasse de existir.

"Somente posso dizer que foram os dias mais negros da minha vida. Eu ficava olhando para nosso menininho pelo qual havíamos esperado tanto e queria que tudo fosse embora. Uma tarde eu o estava embalando nos braços para dormir e ele parecia tão mansinho que desejei que tivesse algo para lhe dar que o fizesse dormir para sempre." (Mãe C.)

Pode-se pensar, a partir destes relatos, na situação destas mães/ ensinantes/ aprendentes. Aqui, identifica-se a impossibilidade de pensar/conhecer este filho, pois o conhecimento aparece como algo perigoso, algo que vai provocar a dor e o sofrimento. Remete-se, neste ponto, ao Mito da Árvore da Sabedoria e à sua interpretação à luz da Psicopedagogia.

A serpente era o mais astuto de todos os animais do campo que Javé Deus tinha feito. Ela disse para a mulher: "É verdade que Deus disse que vocês não devem comer de nenhuma árvore do jardim?". A mulher respondeu para a serpente: "Nós podemos comer dos frutos das árvores do jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim Deus disse: "Vocês não comerão dele, nem o tocarão, do contrário vocês vão morrer." Então a serpente disse para a mulher: "De modo nenhum vocês morrerão. Mas Deus sabe que, no dia em que vocês comerem o fruto, os olho de vocês vão se abrir, e vocês se tornarão como deuses, conhecedores do bem e do mal." Então a mulher viu que a árvore tentava o apetite, era uma delícia para os olhos e desejável para adquirir o discernimento. Pegou o fruto e o comeu; depois deu ao marido que estava com ela e também ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois, e eles perceberam que estavam nus. Entrelaçaram folhas de figueira e fizeram tangas. Em seguida eles ouviram Javé Deus passeando pelo jardim à brisa do dia. Então o homem e a mulher se esconderam da presença de Javé Deus entre as árvores do jardim. Javé Deus chamou o homem: "Onde está você?" O homem respondeu: "Ouvi teus passos no jardim: tive medo porque estou nu e me escondi." Javé Deus continuou: "E quem lhe disse que você estava nu? Por acaso você comeu da árvore da qual eu tinha lhe proibido comer?" O homem respondeu: "A mulher que me deste por companheira deu-me o fruto, e eu comi." Javé Deus disse para a mulher: "O que foi que você fez?" A mulher respondeu: "A serpente me enganou, e eu comi."... Javé Deus fez túnicas de pele para o homem e sua mulher e os vestiu. Depois Javé Deus disse: "O homem se tornou como um de nós, conhecedor do bem e do mal. Que ele agora não estenda a mão e colha também da árvore da vida, e coma, e viva para sempre." Então Javé Deus expulsou o homem do jardim do Éden para cultivar o solo de onde fora tirado. Ele expulsou o homem e colocou diante do jardim do Éden os querubins e a espada chamejante, para guardar o caminho da árvore da vida. (Biblia Sagrada, p.16-17)

Adão e Eva comeram o fruto proibido da Árvore da Sabedoria e a partir daí foram expulsos do paraíso, perderam a eternidade e tiveram que partir em busca da superação do conflito que aí se estabeleceu. O jardim do Éden, aqui, é metáfora de um conflito inconsciente que lança o homem na esfera do tempo/espaço, na dualidade dos opostos, no conhecimento do bem e do mal, do conhecer/desconhecer. Esse Mito ilustra como o conhecimento pode ser percebido, inconscientemente, como algo perigoso que vai lançar aquele que conhece, num mundo de incertezas e de luta pela sobrevivência.

Outros trechos dos depoimentos colhidos ilustram a percepção destas mães sobre o conhecimento como perigoso e passível de provocar sofrimento: "Tudo que eu podia pensar era nele sendo judiado pelos companheiros a vida toda." (Mãe D.). "Sentia que não tínhamos direção, ninguém a quem recorrer... desejei que tivesse algo... a fim de que ninguém pudesse magoá-lo um dia. "(Mãe E.) "Tive muita pena do bebê. Eu chorava todas as vezes que olhava para ele. Depois de alguns dias me dei conta de que eu é que estava sofrendo." (Mãe F.)

 

Sobre ser Filho/Ensinante

Como seria para esse filho, deficiente mental, ser ensinante de uma mãe paralisada pela angústia de conhecer, inibida na sua capacidade de pensar? Certamente, não seria uma tarefa simples para um adulto, muito menos para um bebê que precisa ser acolhido por essa mãe para poder sobreviver.

Para que o bebê possa chegar a pensar precisa comunicar-se com a mãe, comunicar suas angústias, seus sentimentos, projetando-os para dentro dela, para que ela os receba, os conheça e torne-os pensáveis. O pensar da mãe transformaria os sentimentos do bebê em uma experiência tolerável.

A incapacidade de a mãe digerir o sentimento e as angústias do bebê poderia comprometer o que Winnicott (1993) denomina de desenvolvimento emocional precoce. Para Winnicott a deficiência mental não se resumiria a um componente biológico, mas traria também um comprometimento desse nível de desenvolvimento inicial. Para este autor (WINNICOTT, 1993), a mãe desempenha o papel de ego-auxiliar, possibilitando que a criança passe gradativamente da dependência absoluta à dependência relativa. Da mesma forma, cabe à mãe encaminhar seu bebê do seu estado de onipotência ilusória para a desilusão adaptativa num processo em que a criança vai construindo a diferença entre mundo interno e mundo externo. Para Segal:

Se as circunstâncias forem de tal ordem que o bebê não pode tolerar a desilusão da realidade, a onipotência da fantasia aumenta e a percepção da realidade é negada e aniquilada. O bebê se vê obrigado a funcionar em termos de fantasia onipotente e o pensamento não se desenvolve. (SEGAL,1982, p.73)

A dificuldade desse bebê/ensinante torna-se imensa na medida em que, tendo a mãe inibida na sua capacidade de pensar e buscando esconder/omitir de si e dos outros o conhecimento sobre esse filho, não pode se colocar na posição de aprendente, até porque não outorga a ele a confiança e o direito de ensinar.

Concluí-se esta exposição com um pensamento que sintetiza a experiência advinda da sapiência: "O saber não foi feito para compreender, foi feito para fazer talhos." (Foucault, 1986, p.123).

 

Referências

AULAGNIE, P. Um intérprete em busca de sentido. São Paulo: Escuta, 1990.         [ Links ]

BADINTER, E. Um amor conquistado. O Mito do Amor Materno. Tradução: WALTENSIR, Dutra. Título original: L'Amour en plus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.         [ Links ]

Bíblia Sagrada São Paulo: Paulus, 1995.         [ Links ]

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. Mil Platôs. v.2, (A L. Oliveira trad.) Rio de Janeiro, Ed. 34. (trabalho original publicado em 1980), 1995.         [ Links ]

FERNANDEZ, A. Os idiomas do aprendente. Análise das modalidades ensinantes com famílias, escolas e meios de comunicação. Porto Alegre: ArtMed, 2001.         [ Links ]

FOUCAULT, M. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1986.         [ Links ]

FREUD, S. Inibições, sintomas e angústia, 1926. In: ESB, Rio de Janeiro: Imago, 1976, Vol. XX.         [ Links ]

PAIN, S. A função da ignorância. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.         [ Links ]

SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. São Paulo: Imago, 1982.         [ Links ]

SOIFER, R. Psicodinamismos da família com crianças com técnicas de jogo. Petrópolis: Vozes, 1982.         [ Links ]

WINNICOTT, D. Os bebês e suas mães. São Paulo: Martins Fontes, 1993.         [ Links ]

 

 

1 Temos representado esse movimento ininterrupto de constituição de subjetividade pelo prefixo acrescido de /, como em re/conhecer, trans/formar, des/velar. Dessa forma as palavras assim escritas devem ser entendidas como fluxo infinito de uma forma particular de mudança que de acordo com o pensamento de Aristóteles "vai do nada ao ser e do ser ao nada": o devir.
2 Para a lógica, os paradoxos são a consequência da tentativa de totalizar onde isso é impossível. Koyré e Russell colocam a impossibilidade da totalização como fonte de todos os paradoxos e propõem como solução estipular restrições de forma a impedir a produção de tais afirmações paradoxais. Para a psicanálise o surgimento do paradoxo é inevitável na medida em que é inerente à estrutura da linguagem.
3 ROSSATO, Rosana Maria. O brincar no mundo da criança portadora de deficiência mental Projeto apresentado para qualificação no Programa de Mestrado em Psicopedagogia do UNIFIEO, Osasco, 2001.
4 Ensinante e aprendente são conceitos nucleares para a Psicopedagogia. Nesse sentido não estamos falando de sinônimos de professor e aluno, na medida em que a aprendizagem que os vincula refere-se à aprendizagem sobre a castração de tal forma que o conhecimento é buscado como um substituto do falo.
5 O conceito de ato é, com o de potência, um dos conceitos centrais da filosofia de Aristóteles. Constituem ambos uma tentativa de explicar o movimento enquanto devir. A mudança de um "objeto" só é inteligível se houver nele uma "potência" de mudar: a mudança é a passagem de um estado de potência ou potencialidade a um estado de ato ou atualidade - a passagem da potência de ser algo ao ato de o ser. Utilizando exemplos de Aristóteles: uma estátua (ato) está em potência na madeira; o ser que não especula, embora tenha a faculdade de especular, é um sábio em potência. O ato é, então, a realidade do ser. Diz-se do que está em ato, por oposição ao que está em potência. A potência, entende-a Aristóteles sobretudo em dois sentidos: como o poder que uma coisa tem de produzir uma mudança noutra coisa e (o significado mais importante para a Metafísica de Aristóteles) como a potencialidade residente numa coisa de passar a outro estado.

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