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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.19 no.19 São Paulo  2011

 

O conceito de amizade na infância: uma investigação utilizando o método clínico

 

The concept of friendship in childhood: a research using the clinic method

 

 

Lorena Santos RicardoI; Claudia Broetto RossettiII

IPsicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo
IIPsicóloga. Professora Doutora do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. Contato: cbroetto.ufes@gmail.com

 

 


RESUMO

A presente pesquisa objetivou investigar o processo de construção do conceito de amizade na infância, visando ampliar os estudos sobre amizade realizados no país até o presente momento. Participaram da pesquisa 12 crianças com idades entre sete e 11 anos, de ambos os sexos, estudantes da rede pública de um município do interior do Espírito Santo. Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram um desenho temático e uma entrevista utilizando o método clínico, contendo 13 questões. Os resultados permitem observar que o conceito de amizade vai se alterando ao longo do processo de desenvolvimento, partindo de uma ideia mais simplista e egocêntrica e chegando até um ideal de empatia e companheirismo. Contudo, é necessário que mais pesquisas sejam realizadas, com um número maior de participantes e faixa etárias diversificadas a fim de se investigar a evolução de tal conceito ao longo da vida.

Palavras-chave: Amizade, Infância, Método clínico.


ABSTRACT

This study investigates the process of building of the concept of friendship in childhood, to broaden the study of friendship made in Brazil so far. The participants were 12 children aged between seven and 11 years, of both sexes, students of a public school in the north of the State of Espirito Santo. The instruments used for data collection were a thematic draw and an interview using the clinical method, containing 13 questions. The results allow us to observe that the concept of friendship will be changing throughout the development process, starting from a more simplistic and self-centered Idea and reaching an ideal of empathy and fellowship. However, it is necessary that more research is done with a larger number of participants and varied age groups in order to investigate the evolution of this concept throughout life.

Keywords: Friendship, Childhood, Clinical method.


 

 

Introdução

Desde o nascimento a criança está em contato com o meio social e a relação que estabelece com esse meio influenciará em seu desenvolvimento. Ao longo desse processo, contudo, diferentes graus de socialização ou diferentes maneiras de interação com o mundo são possíveis ao indivíduo (LA TAILLE, 2002).

Embora o homem já nasça com a necessidade e a capacidade de viver em sociedade, ainda assim a real possibilidade de "fazer amigos" só é possível a partir do estágio operatório (TORTELLA, 1996), por volta dos 7 anos, quando ocorre uma descentração e a criança se torna capaz de desprender-se de seus sentimentos e opiniões e perceber os sentimentos e opiniões do outro. Aí sim a criança começa a conciliar sua vontade com a vontade do outro e experimenta um grau de socialização diferente do que o experimentado nos primeiros anos de vida.

É importante considerar que todas as situações sociais podem ser reduzidas a interações entre indivíduos. Interações essas que lhes permitem "trocas" e que podem modificá-los permanentemente. Para Piaget (1965/1973), uma troca é uma sequência de ações entre indivíduos, onde as ações de um, repercutem sobre os outros.

Apesar de parecer que as relações de amizade sejam orientadas somente pela afetividade, deve-se levar em conta que essa noção será construída progressivamente durante os primeiros anos de vida até que a criança possa, realmente, experimentar uma relação desse nível. Isso porque à medida que decresce o egocentrismo, há uma evolução do pensamento operatório. Dessa forma, pode-se supor que, além do aspecto afetivo, a construção da noção de amizade também depende do aspecto cognitivo (TORTELLA, 1996).

Ter amigos, fazer amigos e manter amizades representam fatores fundamentais para o desenvolvimento saudável do ser humano. As trocas ou as inter-relações entre amigos contribuem para o desenvolvimento intelectual e afetivo do indivíduo, pois visam relações ricas onde os envolvidos podem estabelecer trocas afetivas, cognitivas, dar opiniões e contribuírem para o desenvolvimento do companheiro.

Para Piaget (1965/1973), interações sociais ricas são aquelas onde há reciprocidade e cooperação. Nesse sentido, ele afirma que o ser social de mais alto nível é aquele que consegue relacionar-se de forma equilibrada, ou seja, de manter amizades saudáveis.

De acordo com Garcia (2005), a amizade na infância representa uma importante forma de socialização, não se podendo negar que ela contribui para o desenvolvimento intelectual e afetivo. Assim, se uma criança for privada de estabelecer relações, comparar, dar opiniões e estabelecer trocas quer afetivas, quer cognitivas, provavelmente ela será emocionalmente instável.

Alguns estudos sobre a amizade na infância (GARCIA, 2005; GARCIA; PEREIRA, 2008; TORTELLA, 1996), mostram que essa é uma importante ferramenta para a saúde emocional das crianças. Também demonstram que possuir amigos pode significar maior estabilidade, desenvolvimento de empatia e de autoconfiança.

A amizade também age como um fator de proteção social, que traz benefícios a auto-estima e ao bem-estar da criança. No âmbito da escola, por exemplo, ela facilita, entre outras coisas, um melhor ajustamento da criança nesse ambiente, além de trazer benefícios para o rendimento escolar. Segundo Garcia (2005), a qualidade positiva das amizades no ambiente escolar também gera atitudes mais positivas em relação à escola, tanto em seu domínio físico quanto simbólico.

Contudo, sabe-se que o conceito de amizade vai se alterando ao longo do processo de desenvolvimento, na medida em que a criança vai se tornando cada vez mais capaz de pensar sobre seus relacionamentos, ou seja, de pensar sobre o outro numa perspectiva mais empática. Isso porque, como já explicitado, só no decorrer da evolução do pensamento operatório é que será possível estabelecer uma relação com o outro não mais governada pelo egocentrismo dos primeiros anos de vida.

Os estudos sobre amizade na infância são bem diversificados e enfocam diversos aspectos: sociais, emocionais, cognitivos, entre outros. No Brasil, ainda são poucos os estudos que investigam essa temática. Um exemplo é uma pesquisa realizada por Garcia e Pereira (2008) na qual os autores se propuseram a investigar diferentes aspectos da amizade de crianças entre sete e 10 anos por meio de uma entrevista semiestruturada, onde as crianças foram incentivadas a falar sobre a rede de amigos, as atividades e a comunicação com os amigos e o desenvolvimento da amizade, entre outros aspectos.

Outro estudo sobre o tema foi realizado por Silva e Garcia (2008). Os autores procuraram investigar a perspectiva materna sobre as primeiras amizades dos filhos, realizando entrevistas com mães de crianças com idade entre um e três anos. Um terceiro exemplo é o trabalho realizado por Tortella (2006) que teve por objetivo estudar as representações de amizade de crianças entre cinco e seis anos de idade utilizando o método clínico de Piaget, sem, contudo, investigar o processo de construção dessa representação, que constituiu o objetivo da presente pesquisa.

O método clínico, de acordo com Delval (2002) é um procedimento que serve para investigar o processo pelo qual as crianças pensam, percebem, agem e sentem o mundo a sua volta. Procura descobrir aquilo que não está evidente no que os sujeitos fazem ou dizem, ou seja, o que está por trás da aparência de sua conduta, seja em ações ou palavras.

Dado que o método clínico consiste em conversas com o sujeito, tende-se a identificá-lo como um método de entrevista verbal, de puras conversas com as crianças. Contudo, isso não é verdade já que a essência do método não está na conversa, mas no tipo de atividade do experimentador e da interação que estabelece com o sujeito (DELVAL, 2002).

A utilização do método clínico baseia-se na hipótese de que os sujeitos tem uma estrutura de pensamento coerente, constroem representações da realidade à sua volta e, de certa forma, revelam isso ao longo da entrevista ou de suas ações.

Portanto, utilizando o método clínico é possível conhecer o processo de construção do conceito de amizade - que é a proposta deste estudo - ou seja, o que as crianças entendem por amizade ao longo de sua infância. A compreensão de tal processo pode contribuir para a elaboração de estratégias e criação de ambientes que propiciem amizades saudáveis, nos diversos estágios do desenvolvimento infantil, o que beneficiaria não só a criança em seu desenvolvimento cognitivo, mas também a escola e a todos os outros ambientes no qual está inserida.

 

Metodologia

Participantes:

Participaram desta pesquisa 12 crianças, sendo duas meninas e dois meninos de sete anos, duas meninas e dois meninos de nove anos e duas meninas e dois meninos de 11 anos, todos estudantes da rede pública de um município do interior do Espírito Santo. A escola fica em um bairro carente, afastado do centro da cidade e todas as crianças que estudam nela, moram no mesmo bairro.

Instrumentos e procedimentos:

Os instrumentos utilizados para a coleta de dados foram um desenho temático (o que é o amigo) e uma entrevista utilizando o método clínico, contendo 13 questões sobre o conceito de amizade, bem como o contexto onde essas são formadas, seu início, meio e fim.

Inicialmente, foi feito um contato com a pedagoga da escola, apresentando os objetivos da pesquisa e solicitando que a escola cedesse o espaço e liberasse os alunos para a entrevista. Em seguida, foi realizada uma reunião com os professores para apresentação dos objetivos e procedimentos, para que colaborassem, visto que as entrevistas seriam realizadas durante o horário das aulas. Após essa reunião, a pedagoga e a diretora da escola assinaram o termo de consentimento institucional e permitiram, então, um contato inicial com os alunos.

As crianças foram selecionadas de acordo com a idade e o sexo e pela disponibilidade e interesse em participar da pesquisa. Quando confirmavam o interesse, o objetivo da pesquisa era apresentado e as dúvidas esclarecidas. Em seguida, essas crianças receberam o termo de consentimento livre e esclarecido para entregar aos pais e trazer uma das vias assinada. No dia seguinte foram recolhidos os termos de consentimento e iniciada a coleta de dados.

As entrevistas foram feitas individualmente. Foi pedido que a criança desenhasse "O que é o amigo" e depois explicasse o desenho. Em seguida era iniciada a entrevista com o método clínico, registrada com auxílio de um gravador digital. Posteriormente as entrevistas foram transcritas e analisadas.

 

Resultados e discussão

Ao falar de resultados ressalta-se que as categorias de análise foram criadas após o contato com os dados coletados e, em algumas questões, era possível dar mais de uma resposta. É importante destacar também que os nomes aqui citados são fictícios.

O tempo que cada uma das crianças utilizou para a elaboração do desenho foi em média de 20 a 30 minutos. Em todos apareceram mais de uma pessoa e em diversos contextos (escola, brincadeiras como pular corda ou jogar futebol, etc) e as crianças os explicaram basicamente dizendo que aquele grupo era de amigos porque as pessoas estavam desempenhando alguma atividade (de brincadeira) juntas.

Cada entrevista durou em média 15 minutos e quando perguntadas se tinham amigos, todo os participantes da pesquisa responderam que sim. Sobre o local (ou locais) onde conheceram seus amigos, três crianças de sete anos citaram a escola como o lugar ou um dos lugares de onde os conhece. Das crianças de nove anos, apenas as meninas se referem à escola; os meninos, por outro lado, mencionam locais perto de casa e mesmo outros bairros. Das crianças de 11 anos, apenas um menino cita a escola. A Figura 1 apresenta as respostas dadas a essa questão e a frequência delas em cada gênero.

 

 

Pode-se supor que a maior parte das crianças de sete anos cita a escola como o lugar de onde conhecem os amigos por ser esse contexto relativamente novo para elas, como afirma Weber (2007). Para a autora nessa fase dos 6-7 anos a escola é a principal fonte de relacionamentos novos, porque até então, os membros da família eram quase os únicos com quem a criança estabelecia contato. Mesmo as crianças que ingressam na escola ainda bebês é nesse período que dão uma relevância maior a esse contexto.

Além disso, é nessa faixa etária, em que a criança está no estágio operatório, que aparecem os afetos representativos, como a simpatia ou a antipatia, por exemplo (DELAHANTY; PERRÉS, 1994), habilitando a criança a ir estabelecendo amizades mais sólidas nos demais ambientes além do da família, inclusive no contexto escolar.

Sobre o que os amigos fazem, não houve diferença por faixa etária. Brincar foi a atividade mais citada por ambos os sexos (todos os meninos e quatro meninas a mencionaram). Já as brigas foram citadas pelos meninos (duas referências), mas não teve nenhuma menção feita pelas meninas. Na Figura 2, estão categorizadas as respostas encontradas nessa questão.

 

 

De fato, Garcia e Pereira (2008) apontam que as atividades mais relevantes com amigos, na infância, geralmente se referem ao brincar. A comunicação com amigos gira em torno dessa atividade, visto que amigos são parceiros de brincadeira que ocorrem na escola, na rua ou nas casas.

Quando questionados se os amigos têm sempre que morar perto, todas as meninas afirmaram que sim. Quatro delas justificaram essa reposta baseando-se no fato de que a mãe só deixa brincar na casa do amigo se esse morar a uma pequena distância. Duas delas, contudo (9 e 11 anos), dizem que a importância de morar perto é estar próximo e disponível caso um precise do outro. A fala a seguir exemplifica o que é defendido por essas meninas:

"Tem que morar perto... porque quando um tem dificuldade na família, o amigo vai lá e conversa com ele. Se morar longe não dá." (Milena, 11 anos).

A maioria dos meninos acredita que os amigos não têm que morar sempre perto. Eles afirmam que, mesmo se o outro morar longe é possível manter a amizade e vêem a distância como algo bom, pois possibilita um passeio até a casa do amigo:

"Não tem que morar perto, por que a gente pode ir a casa dele. É só ir de bicicleta." (Elias, 9 anos).

Dois meninos deram resposta positiva a essa questão: um de sete anos (que não soube justificar) e o outro, de 11 anos, apresentou justificativa semelhante à menina da mesma idade:

"Eu acho que sim... Porque como você vai ajudar se estiver longe?" (Wesley, 11 anos).

A importância da proximidade é encontrada também no estudo realizado por Garcia e Pereira (2008). Mesmo os meninos que afirmam não precisarem morar perto do amigo, destacam a necessidade de, de certa forma, estar com ele (visitá-lo). Isso por que, na infância, os amigos representam uma fonte de apoio social importante, particularmente de apoio emocional (MOURA; GARCIA, 2008), como eles mesmo destacam em suas falas anteriormente citadas.

Na questão seguinte, as crianças deveriam responder se os amigos têm que ter sempre a mesma idade. As duas meninas de 7 anos responderam negativamente e justificam essa resposta afirmando que a idade não atrapalha brincar, como também afirmam os cinco meninos que responderam da mesma forma. Já as meninas de 9 e 11 anos, ao dizerem que os amigos não precisam ter sempre a mesma idade, justificam dizendo que as pessoas são diferentes e que esse fato não impede uma amizade. A fala a seguir exemplifica isso:

"Não. Porque os amigos são diferentes um do outro. As pessoas são diferentes, moram em casas diferentes, tem idades diferentes." (Rebeca, 9 anos).

Embora a similaridade seja reconhecida como um traço fundamental no relacionamento de amizade (FRENCH; JANSEN; RIANSARI; SETIONO, citados por GARCIA, 2005; MOURA; GARCIA, 2008), os participantes desta pesquisa não deram grande relevância ao aspecto "idade", especificamente, para se ter um amigo. Embora se saiba que esse não seja o único aspecto no traço da similaridade.

Quando perguntadas se uma menina pode ter amigos meninos, cinco responderam negativamente. Tudo indica que as participantes se apropriam de um discurso materno para explicar o porquê de não poderem ter amigos meninos. Ou seja, ouviram de suas mães que "menina deve ter amiga menina". Contudo, quando são questionadas se têm amigos meninos respondem que sim e justificam dizendo que se brincar sem brigas, não há problema em ter amizade com alguém do sexo oposto. O fragmento de uma das entrevistas pode exemplificar o que essas meninas defendem:

"Entrevistadora: Uma menina pode ter amigos meninos?

Graça (9 anos): Não.

Entrevistadora: Por que?

Graça (9 anos): Porque minha mãe fala assim que os meninos ficam com assanhamento. Aí, menina tem que brincar com menina.

Entrevistadora: Você tem amigo menino?

Graça (9 anos): Tenho, aqui na escola... mas a gente brinca sem brigar, brinca direitinho...se for assim não tem problema

Entrevistadora: Então uma menina pode ter amigos meninos?

Graça (9 anos): Não. Menina tem que ter amiga."

A questão da similaridade relacionada ao gênero (GARCIA, 2005) nesta pesquisa, parece mais fortemente considerada como um requisito entre as meninas. Isso porque a maioria dos meninos (cinco deles) respondeu que meninos podem sim ter amigas meninas. Ao considerar a amizade com meninas, justificam que elas não atrapalham as brincadeiras, ou seja, o fato de serem meninas não impede que brinquem juntos:

"Pode. Eu tenho amiga. Menina também pode brincar." (Bruno, 11 anos)

Ao conceituarem amizade, as crianças de sete anos apontam para a falta de ações agressivas em relação ao amigo. Ou seja, vinculam a amizade à falta de atitudes que podem prejudicar o outro. Na fala deles:

"Não bater, não xingar o coleguinha..." (Elaine, 7 anos)

"Não brigar. Não mentir, não bater... só." (Michael, 7 anos)

Moura e Garcia (2008) descrevem que a agressividade geralmente é percebida pelas crianças como um fator de distanciamento, dificultando o estabelecimento de amizades.

Para as crianças de nove anos, amizade é fazer amigos, ou tê-los. Não descreveram ações vinculadas à amizade apenas ao fato de outra pessoa estar na relação. As falas que se seguem exemplificam as respostas dadas.

"Amizade é ter colegas." (Graça, 9 anos)

"Amizade é ter amigos." (Elias, 9 anos)

Já as crianças de 11 anos conceituam amizade referindo-se a atitudes positivas em relação ao amigo, ao fato de fazerem coisas juntos, de estarem juntos:

"É estar sempre perto de quem você gosta. Ajudar quando precisa" (Milena, 11 anos)

"É a alegria da vida... ficar sempre ali, um contando com o outro... Qualquer coisa que a gente faz com um amigo é bom." (Bruno, 11 anos)

Em relação ao início de uma amizade, não houve diferença por idade ou sexo. A grande maioria das crianças (11 delas) aponta que conversando e brincando é que se começa uma amizade. Já Michael, 7 anos, afirma que a amizade começa quando se "dá carinho e empresta coisas". Esses dados acordam com Souza e Garcia (2008) ao afirmarem que a amizade na infância em sua essência é caracterizada por brincadeiras, diversão e companheirismo.

Lembrando que era possível aos participantes dar mais de uma resposta, para eles a amizade se mantém respeitando os amigos (5 respostas), evitando briga (5 respostas), ajudando (3 respostas) e emprestando as coisas (2 respostas). Também nessa questão não houve diferença entre sexo ou idade.

Os participantes apontaram como motivos, para terminarem uma amizade, brigas e discussões (9 respostas), desrespeito (3 respostas) e parando de brincar (2 respostas) porque foi embora ou porque não quer mais. Uma criança, contudo, acredita que a amizade não termina porque "tem que ser amigo todo dia. Amigo é para sempre, porque a gente pode sempre começar a brincar" (Elaine, sete anos).

Quando questionadas se a amizade só tem coisas boas ou se pode ter coisas ruins também, as duas meninas de sete anos e um menino da mesma idade afirmaram que só existem coisas boas.

"A amizade? Só tem coisas boas, como brincar com o colega, dar carinho..." (Michael, sete anos).

O menino que considera as duas possibilidades justifica-se com o fato de que, como as pessoas fazem coisas boas e ruins, então, um relacionamento entre pessoas pode conter essas duas possibilidades.

"Pode ter coisas ruins também, porque a gente faz coisas boas e coisas ruins" (Pedro, 7 anos).

As duas meninas de nove anos e um menino da mesma idade afirmaram que a amizade tem ambas as características. Desses, dois apontaram que o que há de ruim é o fato de se fazer algo obrigado para agradar o amigo (ajudar em casa, brincar de algo que não gosta) e uma menina apontou que o que se ensina é que pode ser ruim.

Um menino e uma menina de 11 anos afirmaram que só tem coisas boas e os outros dois acreditam que também pode ter coisas ruins. Mesmo os que defendem que a amizade só tem coisas boas, acabam por apontar atitudes más em relação ao amigo, embora não considerem como algo ruim de uma amizade. O trecho a seguir exemplifica isso:

"Entrevistadora: A amizade só tem coisas boas ou pode ter coisas ruins também?

Bruno (11 anos): Coisas boas.

Entrevistadora: Por que?

Bruno (11 anos): Porque tem gente que fica brigando, batendo no colega...

Entrevistadora: E isso é bom?

Bruno (11 anos): Não. Isso é ruim.

Entrevistadora: E na amizade tem isso?

Bruno (11 anos): Um pouco.

Entrevistadora: E quando tem, a amizade tem coisas ruins?

Bruno (11 anos): Não".

Aqueles que responderam que há as duas opções apontaram que o que há de ruim é aquilo que se pode ensinar/aprender em uma amizade, como pode ser verificado nas seguintes falas:

"Pode ter coisas ruins também. Pode, por exemplo, se prostituir por causa de amizades. Uma amiga pode ensinar a se prostituir... Pode ensinar brigar também." (Milena, 11 anos).

"Pode ter coisas ruins. Pode ensinar falar safadezas, coisas que não pode falar." (Wesley, 11anos).

Piaget (1972) defende que, em geral, a aprendizagem é provocada por situações, seja por um "experimentador psicológico", por um professor ou por uma situação externa. As crianças parecem levar em consideração que, nesse caso, coisas más podem ser aprendidas em uma determinada situação, ou seja, defendem que o aprender algo ruim pode estar relacionado à amizade.

 

Considerações Finais

A partir dos dados analisados é possível observar que todas as crianças que participaram da pesquisa consideram ter amigos e que esses amigos, em sua maioria, estão ligados ao cotidiano dos participantes. Ou seja, são amigos da escola, da vizinhança, de bairros próximos.

Também foi possível observar que a principal atividade realizada por amigos citada nas entrevistas foram as brincadeiras, que estão vinculadas diretamente à faixa etária dos participantes.

Para os meninos, os amigos não precisam morar sempre perto, porque consideram a possibilidade de irem à casa do outro. Já as meninas acreditam que os amigos devem morar sempre perto, pois as mães não permitem que se distanciem de casa e, sendo assim, não poderiam encontrar os amigos. Dessa forma, parecem vincular à amizade a necessidade de aproximação, pois, afinal, para serem amigos é preciso brincar juntos.

Isso é observado também no fato de que as meninas afirmam que não devem ter amigos do sexo oposto (provavelmente porque as mães dizem que não devem brincar com meninos). Os meninos, contudo, afirmam que podem ter amigas porque o fato dessas serem meninas não atrapalha as brincadeiras.

Com relação ao conceito de amizade, nota-se que as crianças de sete anos vinculam o fato de não fazerem mal ao outro com a amizade. Já as de nove anos definem amizade pelo fato de terem o outro incluído na sua vida. As de 11 anos, por outro lado, definem que não é só deixar de fazer o mal, nem só o fato de terem o amigo fazendo parte da vida, mas relacionam amizade à possibilidade de estarem próximos, de fazerem coisas juntos.

É possível observar, portanto que o conceito de amizade, vai se alterando ao longo do processo de desenvolvimento, partindo de uma ideia mais simplista e egocêntrica e indo até um ideal de empatia e companheirismo. Os participantes puderam então expressar não só o que entendem que é esse relacionamento com um amigo, mas como ele começa, se mantém e, eventualmente, termina.

Dessa forma, a utilização do método clínico nesta pesquisa foi eficaz na medida em que proporcionou investigar o pensamento das crianças no que se refere ao conceito de amizade. Contudo, é necessário que mais pesquisas sejam realizadas, com um número maior de participantes e faixa etárias diversas, a fim de se investigar a evolução de tal conceito ao longo da vida. Também há certa carência de estudos que mostrem como a amizade influencia, por exemplo, na aprendizagem do conteúdo transmitido pela escola durante os diversos estágios do desenvolvimento.

Nessas pesquisas, a importância social das amizades deve ser sempre levada em consideração, uma vez que transformações sociais, culturais, políticas e econômicas vêm abrindo uma nova dimensão para as relações desse tipo, desde a infância até a vida adulta. Portanto, a amizade como tema deve ser objeto não apenas de pesquisas, mas também de ações que visem à promoção de tais relacionamentos nas diversas áreas da sociedade.

 

Referências

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