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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.20 no.20 São Paulo  2012

 

Processamento temporal: sua importância para a aprendizagem da leitura1

 

 

Vera Márcia Gonçalves da Silva Pina

Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Distúrbios do Desenvolvimento pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, Especialista em Psicopedagoga pelo Instituto Sedes Sapientiae; Especialista na Interpretação dos Mitos e Contos de Fada, abordagem Junguiana; Coordenadora do Departamento de Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae; Orientadora Familiar; Atua em clínica no atendimento a crianças e adolescentes com dificuldades de aprendizagem e com orientação de pais - desde 1989. Docente do curso de Psicopedagogia; Supervisora e Orientadora de Monografias. Palestrante do Sieeesp - Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo; co-autora do livro: "As múltiplas faces do Aprender." Contato: verapina@ig.com.br

 

 


RESUMO

Apesar das vastas pesquisas que buscam compreender os problemas de leitura e as causas a eles subjacentes, ainda há alguns aspectos em aberto. Por essa razão, buscou-se com a presente pesquisa analisar a relação entre o processamento temporal e a leitura. Para tanto, inicialmente, foram avaliadas 184 crianças de 2º, 3º e 4º anos do ensino fundamental e, com base nos desempenhos em uma prova de leitura, foram selecionados dois grupos com 26 crianças cada: um grupo de bons leitores e um grupo de maus leitores. Esses dois grupos foram submetidos a testes individuais para avaliar três habilidades de processamento temporal, a saber, o ritmo (em termos de produção motora espontânea, reprodução de estruturas rítmicas e compreensão de notação simbólica); a velocidade (de leitura, de nomeação de figuras e números); o sequenciamento (memória de sons verbais e sequenciamento de atividades cotidianas). Análises de variância foram conduzidas para verificar possíveis diferenças significativas entre os grupos e os anos escolares. De forma geral, o grupo de maus leitores apresentou desempenho rebaixado em diversas tarefas de processamento temporal quando comparadas com o grupo de bons leitores, sendo tal rebaixamento mais evidente nas tarefas de velocidade de leitura e de nomeação. Houve, também, correlação entre leitura e vários aspectos do processamento temporal. Tais resultados sugerem que problemas de leitura estão relacionados a déficits temporais, principalmente em tarefas que envolvem material verbal, tais como a velocidade de leitura e de nomeação.

Palavras-chave: criança, leitura, processamento temporal.


ABSTRACT

Despite extensive research seeking to understand the problems of reading and the causes underlying them, there are still some open aspects. Therefore, it was with this research examining the relationship between temporal processing and reading. For both were initially evaluated 184 children of 2, 3 and 4 grades of elementary school and, based on performance on a reading test, it was selected two groups with 26 children each, a group of good readers and a group of poor readers. These two groups were subjected to three tests to assess individual abilities of temporal processing, namely the rhythm (in terms of spontaneous motor production, reproduction of rhythmic structures and understanding of symbolic notation), the speed (readinf speed, picture naming speed and number naming speed) and sequencing (memory of verbal sounds and sequencing of daily activities). Analysis of variance was conducted to check possible differences between groups and school years. Overall, the group of poor readers showed lower performance on several tasks of temporal processing when compared with the group of good readers. This lower performance is more apparent in the tasks of reading speed and naming. There was also correlation between reading and various aspects of temporal processing. These results suggest that problems with reading are related to temporal deficits, especially on tasks involving verbal material, such as speed reading and naming.

Keywords: children, reading, temporal processing


 

 

Introdução

A Borboleta

Lembro-me de uma manhã em que eu havia descoberto um casulo na casca de uma árvore, no momento em que a borboleta rompia o invólucro e se preparava para sair. Esperei bastante tempo, mas estava demorando muito e eu estava com pressa.

Irritado curvei-me e comecei a esquentá-lo com meu hálito. Eu o esquentava impacientemente e o milagre começou a acontecer diante de mim a um ritmo mais rápido que o natural. O invólucro se abriu e a borboleta saiu se arrastando.

Nunca hei de esquecer o horror que senti então: suas asas ainda não estavam abertas, com todo seu corpinho que tremia, ela se esforçava para desdobrá-las.

Curvado por cima dela, eu a ajudava com meu hálito. Em vão. Era necessária uma paciente maturação e o desenrolar das asas devia ser feito lentamente ao sol. Agora, era tarde demais. Meu sopro obrigava a borboleta a se mostrar toda amarrotada antes do tempo.

Ela se agitava desesperada e, alguns segundos depois, morreu na palma da minha mão.

Aquele pequeno cadáver é, eu acho, o peso maior que tenho na consciência, pois hoje eu entendo bem isso. É um pecado mortal forçar as grandes leis.

Temos que não nos apressar, não ficar impacientes e seguir com confiança o ritmo eterno. (Nikos Kazantzakis, 1883-1957).

As mãos que forçam o nascimento da borboleta de forma simbólica podem estar representando, no contexto escolar, os programas oficiais, os quais não respeitam o tempo que cada criança necessita para aprender nem levam em conta suas dificuldades individuais, apenas exigindo que todas elas passem pelo processo de aprendizagem da mesma forma e no mesmo tempo, de preferência sempre "acelerando" esse aprendizado.

A partir de minha experiência em clínica psicopedagógica, tenho observado que, se a criança não está lendo antes mesmo do segundo ano, ela tende a ser encaminhada para as salas de reforço ou especiais com a identificação de "incompetente" para a leitura. Muitos são os motivos desse desrespeito com o tempo de cada criança, entre eles a exagerada preocupação com o vestibular desde os primeiros anos escolares.

As crianças com dificuldades de leitura e escrita necessitam de um grande esforço para superar suas dificuldades perceptivas específicas, o que resulta em um grau elevado de fadiga. Isso pode levar, secundariamente, à falta de atenção à tarefa e à falta de motivação para a aprendizagem da leitura e da escrita. Com o passar dos anos, esse problema pode aumentar e o aprendizado pode ficar cada vez mais atrasado, pois as exigências escolares serão cada vez maior o que distanciará a criança mais e mais do que ocorre em sala de aula. O resultado disso pode ser o desinteresse pelos estudos, elevando o número de crianças com sérios problemas afetivos e cognitivos.

Para falar de crianças com dificuldades ou distúrbios de leitura é importante diferenciarmos aquelas que apresentam erros esperados nas primeiras etapas de aprendizagem, daquelas cujos problemas são mais profundos e permanentes.

Apesar das inúmeras e valiosas pesquisas já feitas sobre esse assunto, entendemos que ainda muito se tem para pesquisar, objetivando-se encontrar sempre mais informações que possam nos ajudar a compreender e, consequentemente, interferir de maneira mais adequada e eficiente junto às crianças que apresentam tais dificuldades.

Tentando ampliar o conhecimento sobre as causas do atraso de leitura, a presente pesquisa buscou analisar as dificuldades de leitura e sua relação com o processamento temporal.

Para tanto, inicialmente são apresentados os fundamentos sobre leitura, suas raízes históricas e sua aquisição. Posteriormente, são discutidas algumas das principais teorias a respeito do distúrbio específico de leitura ou dislexia, e das habilidades que se encontram comprometidas em tal quadro como o distúrbio de processamento temporal. Finalmente, apresentamos os resultados obtidos e a discussão.

 

1. Leitura e suas raízes históricas

Atualmente é quase impossível pensar o mundo e as ações humanas em geral sem a leitura e a escrita, pois grande parte da cultura conquistada pela sociedade está registrada sob a forma da escrita. A escrita simboliza a ausência de presença, ela chega quando a palavra se retira. Em verdade, a linguagem escrita foi um marco e uma das mais importantes e grandiosas conquistas humanas.

Segundo Hooker (1996), a espécie humana adotou basicamente quatro meios para fazer registros ou transmitir informações: os pictogramas, os ideogramas (ou escrita analítica), os silabários e o alfabeto. Segundo Walker (1996), o início do uso de registros parece ter ocorrido no Oriente Próximo, mar Mediterrâneo, devido à necessidade de regular as atividades comerciais crescentes. As primeiras representações eram feitas sobre argila úmida como representações pictórias do mundo, isto é, desenhos que representavam analogicamente objetos e eventos. O povo sumério, egípcio e chinês foram os primeiros a organizar os sistemas de símbolos. Em seguida, os pictogramas deram lugar à escrita analítica com seus ideogramas ou logogramas, que eram representações estilizadas e padronizadas, o que facilitava o processo de escrita e permitia as identificações dos sinais.

Os primeiros sistemas silábicos parecem ter surgido aproximadamente 1500 anos depois da escrita analítica. De acordo com Hooker (1996), verificou-se que sinais ideográficos, que anteriormente eram usados apenas para representar certos objetos, passaram a ser usados na representação também do som inicial dos nomes desses objetos. Desse modo, os sinais passaram a representar sons, em vez do significado dos objetos. Devido a percepção de que a escrita poderia ser organizada se cada som individual fosse representado por um sinal específico, criou-se o sistema de escrito alfabético.

A compreensão de tal processo histórico é fundamental, pois, como será discutido adiante, um processo semelhante ocorre na aquisição da leitura pela criança.

1.1. A aquisição de leitura

Ler significa converter as palavras escritas em significados e em fala e, para isso, são utilizados processos mentais que permitem àquele que lê identificar, compreender e pronunciar as palavras escritas.

A leitura pode ser estudada sob diferentes aspectos, tais como o sócio-cultural, o afetivo, o pedagógico e o cognitivo.

Vallet (1990) aludiu que, para a criança poder ler, ela necessita de diferentes habilidades, como focalizar a atenção, a concentração e seguir instruções; compreender e interpretar a língua falada; ter memória auditiva e ordenação; memória visual e ordenação; ter habilidade no processamento das palavras; desenvolvimento e expansão do vocabulário e fluência na leitura.

De acordo com Frith (1985), a criança passa por três etapas na aquisição de leitura. São elas a fase logográfica, a fase alfabética e a fase ortográfica. Na fase logográfica, a criança usa como estratégia de reconhecimento das palavras, pistas não-alfabéticas, e utiliza para isso a cor, o formato da palavra e outras características visuais, ou seja, a criança vê as palavras como se fossem desenhos.

Na fase alfabética, a criança utiliza a estratégia fonológica, isto é, codifica e decodifica as palavras utilizando seus componentes, letras e fonemas. Assim, ela precisa conhecer as correspondências entre os grafemas e os fonemas para poder ler.

Na fase ortográfica, a criança utiliza a estratégia lexical, isto é, faz a construção de unidades de reconhecimento sem conversão fonológica (CAPOVILLA & CAPOVILLA, 2000).

Isto significa que, na fase ortográfica, os leitores tornam-se capazes de ler acessando diretamente o sistema semântico a partir da forma ortográfica das palavras.

Portanto, de acordo com o descrito acima, para tornar-se um leitor habilidoso, a criança deverá passar por essas três diferentes estratégias. Quando uma nova estratégia é adquirida, a anterior não desaparece, ela apenas vai diminuir a sua intensidade, mas continuam coexistindo de forma simultânea no leitor e no escritor competente (CAPOVILLA & CAPOVILLA, 2000).

Assim, a fim de compreender o que se lê, um indivíduo deve ser capaz de identificar as palavras contidas no texto, com fluência e precisão suficientes para permitir a computação dos significados incorporados no texto. É preciso também ter adequada compreensão da língua, e, finalmente, conhecimentos adequados e suficientes de domínio geral. No entanto, a investigação no estudo da deficiência da leitura tornou claro que as primeiras dificuldades na leitura da população de crianças, manifestam-se, principalmente, na insuficiente identificação da palavra impressa, bem como na falta de competências de habilidades afins, tais como a decodificação (SHAYWITZ ET AL., 1992; SNOWLING, GALLAGHER, & FRITH, 2003; STANOVICH, 1988; VELLUTINO ET AL., 1996).

A seguir, serão apresentados alguns modelos teóricos históricos a respeito dos distúrbios de leitura na criança.

1.3. Distúrbio específico de leitura

Aprendizagem, segundo Fonseca (1995, p. 127), é: "... uma mudança de comportamento resultante da experiência". É resultado de complexas operações neurofisiológicas, sendo função do cérebro que, no seu todo funcional e estrutural, é responsável por ela.

O termo distúrbio de aprendizagem pode ser compreendido como uma perturbação na aquisição e utilização de informações ou na habilidade para a solução de problemas (VALLET, 1977). "É um termo geral que se refere a grupo heterogêneo de desordens manifestadas por dificuldades significativas na aquisição e utilização da compreensão auditiva, da linguagem oral, da leitura (habilidade no uso da palavra, reconhecimento de letra, compreensão), da escrita e do raciocínio matemático" (FONSECA, 1995, p.71).

Apesar de tais definições, ainda não há consenso na literatura em relação às definições de alterações na aprendizagem, principalmente por conta dos diferentes enfoques (neurológicos, pedagógicos ou clínicos), com consequentes variações na conceituação e caracterização dos mesmos no processo de ensino-aprendizagem.

Na presente pesquisa, será considerado que dificuldades de aprendizagem podem ocorrer devido a outros fatores, como condições inadequadas de escolarização.

Este trabalho focalizará, especificamente, problemas de leitura, sem intenção de diferenciar entre distúrbio e dificuldade devido à ausência de diagnóstico específico com a amostra aqui estudada.

Segundo Grégoire (1997), os erros cometidos por crianças com dificuldades de leitura podem incluir "inversão de letras, de sílabas, confusão sistemática de letras, sons, geralmente descritas como confusões auditivas (ex: a criança lê "v" por"f" ou "d" por "t"), confusão de letras cujas formas se assemelham, mas diferem pelo tamanho (e" e "l"), ou por um detalhe ("c" e "e"; "cl" e "ch"), ou ainda letras cuja aparência de uma pode ser vista como representação "em espelho" da outra ("b" "d", por ex.), omissões ou acréscimos de letras, de sons, de sílabas e, enfim, erros de transcodificação grafema-fonema".

Diferentes teorias tentaram explicar tais dificuldades específicas de leitura ao longo do século XX. Entre elas, a corrente organicista, a instrumental, a pedagógica, a afetiva e a sócio-cultural. Três delas desempenharam um papel mais relevante no histórico dos distúrbios de leitura ao longo dos tempos, a corrente organicista, a corrente instrumental e a corrente pedagógica.

O neurologista britânico Mac Donald Critchley (1974, p.70), falou de "imaturidade das funções cerebrais" introduzindo o termo "dislexia do desenvolvimento" e descreveu esse termo como uma síndrome neurológica inata.

A partir de 1960, a corrente organicista trouxe definitivamente a ideia da não existência de uma concepção unitária das dificuldades de leitura e escrita.

O crescente interesse de profissionais da área da saúde e educação a respeito da etiologia da dislexia contribuiu, grandemente, com descobertas posteriores acerca dos diferentes tipos de dificuldades na aquisição da leitura. Com a corrente instrumental, foram desenvolvidas baterias de avaliação dos desempenhos em leitura, sob a influência da psicologia genética.

Pesquisadores dessa corrente disseram que os leitores não-competentes apresentam dificuldades especialmente na leitura oral de um texto, identificando essa leitura como lenta, difícil e sofrida. (BONATO & PIÉRART, 1990).

A década de oitenta marcou a substituição da hipótese do Déficit Visual pela hipótese do Déficit Fonológico. Essa hipótese foi legitimada por um crescente número de pesquisas, demonstrando que habilidades fonológicas e metafonológicas seriam fundamentais para a leitura e a escrita, e que problemas nessas habilidades seriam devidos às dificuldades em discriminar pares de estímulos que diferem apenas em um fonema ou em um traço fônico. (BRADLEY, BRYANT, 1983; BYRNE, FREEBODY, GATES, 1992; CAPOVILLA, CAPOVILLA, 2000)

Segundo essa abordagem, se todas as outras habilidades estiverem preservadas, as crianças com bom desempenho em testes de consciência fonológica, ao início da alfabetização formal nos primeiros anos escolares, tendem a aprender a ler mais rapidamente do que crianças com uma consciência fonológica menos desenvolvida (HELFGOTT, 1976; STANOVICH, CUNNINGHAM & CRAMER, 1984).

Apesar da hipótese do déficit fonológico ter sido corroborada por diversas pesquisas, ainda nos deparamos com inquietações sobre as possíveis causas para as dificuldades dessas crianças.

Em 1995, Share nos apresenta outra hipótese dizendo que os distúrbios de processamento apresentados pelos leitores pouco competentes não pareciam ser especificamente fonológicos. Eles podem estar também relacionados ao sequenciamento dos estímulos, o que poderia sugerir um distúrbio de processamento temporal. Essa dificuldade resultaria da necessidade da criança precisar processar uma grande quantidade de informações, isto é, de fonemas num curto intervalo de tempo e, ao não fazê-lo, revelaria uma dificuldade para discriminar, coordenar e integrar eventos múltiplos em proximidade temporal.

Para compreender mais especificamente a definição de processamento temporal e sua possível relação com a aquisição de leitura, o capítulo seguinte discorrerá sobre tal tema.

 

2. Processamento Temporal

Somos devorados pelo tempo, não por nele vivermos, mas por acreditarmos na realidade do tempo (MIRCEA ELIADE, 1968, p.118).

O tempo é apenas um ponto de vista numa perspectiva biológica. O tempo assemelha-se, segundo Augras (1981), à leitura de um livro: este está disponível, mas o leitor tem que percorrê-lo em sentido determinado e, também ao ler, o leitor interpreta o livro, recolhe e cria o seu significado.

O tempo do indivíduo constrói-se a partir do tempo biológico e do tempo social. O tempo social pode ser percebido com uma função mítica dos ritos e tradição. O tempo biológico é um processo orientado num único sentido para todas as espécies. "O indivíduo é uma seta apontada numa só direção, através do tempo, e a espécie também é orientada do passado para o futuro" (WIENER, 1992, p. 45).

Antes mesmo do nascimento, todos os ritmos biológicos do feto estão sincronizados pelos maternos. Essa ritmicidade uterina impede de dizer que o estabelecimento da ritmicidade biológica acontece apenas após o nascimento. Nesse momento o sistema de temporização do recém-nascido tem que se ajustar a uma nova realidade temporal, já não mais totalmente mediada pela mãe (MINKOWSKI, 1965).

Se observarmos essa transição de perspectiva temporal do bebê, veremos que ele tem que aprender a diferenciar entre dois momentos nos quais a principal pista temporal - a oscilação entre o dia e a noite - acontece concomitantemente com outros sinais não luminosos, como sons, movimentos e intervenções (SADEH, 2001). É dentro desse novo universo temporal que irá se reorganizar a ritmicidade do bebê. Por meio desses mecanismos de segmentação temporal é que começa a surgir na criança a compreensão da consciência do tempo (SIEGMUND, TITTEL & SCHIEFENÖVEL, 1995).

A noção de organização temporal é estabelecida pela compreensão da sucessão e periodicidade, a partir das mudanças que ocorrem ao longo do tempo (BERESFORD, QUEIROZ & NOGUEIRA, 2002). Segundo esses autores, no momento em que as crianças aprendem a ordenar os acontecimentos e a tomar consciência dos intervalos temporais entre eles, desenvolvem uma compreensão intuitiva de tempo baseada na sucessão dos eventos e na duração dos intervalos. Percebe-se a passagem do tempo a partir das mudanças que acontecem durante um período determinado e da sucessão que transforma progressivamente o futuro em presente e depois em passado.

No processamento temporal está envolvida a competência para processar aspectos sensoriais, visuais e sonoros e que variam com o tempo, compreendendo os processos de discriminação, coordenação e integração. A noção de tempo bem como todas as outras informações sobre coisas, lugares e eventos que nos cercam, são adquiridas e processadas através de uma habilidade básica que é a percepção, isto é, um processo de aquisição de informações e conhecimentos, que pode acontecer de forma auditiva, visual e sensório-motora.

2.1. Processamento Temporal e Aprendizagem

Atualmente, psicólogos, psicopedagogos e educadores afirmam que, para a aquisição da leitura e escrita, são necessários vários processos e habilidades como discriminação de estímulos sensoriais, capacidade para organizar e interpretar estímulos sensoriais em um todo significativo. Todo esse processo envolve organização, discriminação e seleção e, após esse primeiro momento, o indivíduo poderá se expressar por meio de várias maneiras, como respostas verbais, motoras e gráficas (CONDEMARIN, 1989).

Todos esses processos são fundamentais para se poder aprender a ler, pois para que isso aconteça, é preciso discriminar semelhanças e diferenças entre os sons das letras quando elas soam nas palavras, ou seja, é necessária discriminação auditiva. É preciso, ainda, aprender a reunir os elementos em uma determinada forma gráfica (discriminação visual), e isso significa poder perceber os sinais diferenciadores, dados por pontos claros ou obscuros, por linhas ou ângulos que modificam o contorno, diferenciando as formas, configurações, detalhes, cores, podendo até identificar traços distintos das letras, dos números e das palavras que permitem seu reconhecimento.

Além da percepção, a organização temporal é outro fator importante para a aquisição de leitura (CONDEMARIN, 1989). Segundo essa autora, tal organização requer uma construção intelectual por parte da criança, envolvendo seriação de ordenação de fatos no tempo, operações de inclusão e operações de classificação.

Várias pesquisas demonstram que crianças e adultos com dificuldades de leitura tendem a apresentar as seguintes características: dificuldades em precisão e velocidade em tarefas de nomeação serial para números, letras, figuras de objetos e cores (BOWERS & SWANSON, 1991; FELTON, NAYLOR & WOOD, 1990); dificuldades de memória e de integração de estímulos fonológicos (Share, 1995). Aqueles considerados maus leitores e pessoas com dificuldades em consciência fonológica tendem a confiar na informação semântica. Consequentemente, ao ler tendem a trocar o que está escrito por palavras conhecidas e a cometer paralexias semânticas (LOVETT, 1987; VELLUTINO & SCANLON, 1987);

Dessa forma, esses estudos tão significativos parecem revelar que um distúrbio mais global pode estar subjacente às dificuldades nos vários aspectos linguísticos do processamento de informação baseado na fala, incluindo a percepção, a nomeação, a repetição, o armazenamento, a recuperação e o acesso à informação. Portanto, o próprio distúrbio fonológico poderia ser consequência de um distúrbio temporal mais geral, que pode ser de natureza verbal ou não-verbal. Tal hipótese auxilia, também, na compreensão do fato de que "pessoas com dificuldades fonológicas, especialmente os disléxicos, apresentam também dificuldades com o processamento visual temporal" (CAPOVILLA & CAPOVILLA, 2000, p. 211).

 

3. Método

Para realização desse estudo foi utilizada uma abordagem que combina os métodos quantitativos e qualitativos, chamada por Morse (1991, p.120) de "triangulação simultânea". Combinar essas técnicas torna uma pesquisa mais forte e reduz os problemas de adoção exclusiva de um desses grupos (DUFFY, 1987, p. 131).

 

4. Instrumentos

Tendo em vista o objetivo desse estudo, foram usados instrumentos para a avaliação de diversas habilidades, tais como: leitura e processamento temporal, nomeação rápida de figuras e de números; avaliação de velocidade, ordenação sequencial, memória para sons verbais em sequência.

 

5. Discussão

O presente estudo buscou analisar o desempenho de maus e bons leitores no que diz respeito aos aspectos do processamento temporal, buscando uma possível correlação com o desempenho na leitura. Os resultados revelaram que bons leitores tiveram desempenhos superiores aos dos maus leitores em grande parte das tarefas propostas.

No que diz respeito ao processamento temporal, em relação ao desempenho das crianças nos testes de velocidade de leitura e nomeação, observou-se que houve diferença significativa entre os dois grupos em todas as medidas.

No presente estudo, também foi encontrada relação entre precisão e velocidade de leitura.

A respeito da lentidão de processamento cognitivo serial, Tallal, Miller e Fitch (1993) sugerem que os maus leitores apresentam dificuldades com o processamento de estímulos apresentados em rápida sucessão, com curtos intervalos entre eles.

Nicolson e Fawcett (1994), ao investigar aspectos temporais em crianças com dificuldades de leitura, puderam concluir que dois fatores contribuem para a lentidão dessas crianças: "um déficit geral, refletido na velocidade da classificação de estímulos mais lenta e um déficit linguístico, refletido na velocidade de acesso ao léxico mais lento" (1994, p.29).

Nosso estudo indicou que as crianças que apresentaram baixo rendimento no processamento temporal demonstraram também dificuldades no desempenho de leitura. Esses dados sugerem possíveis relações com o fato de que quanto maior a velocidade apresentada pela criança para ler e nomear figuras e números, melhor resultado ela apresentará no desempenho de leitura.

O presente estudo fortalece as diretrizes já delineadas para a atuação junto a essas crianças, indicando a necessidade de se trabalhar com o processamento temporal nos seus aspectos velocidade, ritmo e sequenciamento. Porém, pesquisas futuras devem continuar a empregar novos instrumentos de avaliação temporal de modo a ampliar a compreensão sobre os fatores causais subjacentes aos problemas de leitura, permitindo desta forma, maiores conhecimentos sobre os processos envolvidos e o desenvolvimento de procedimentos preventivos e remediativos cada vez mais focais e eficazes.

 

Referências

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1 Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Distúrbios do Desenvolvimento da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Orientadora: Profa. Dra. Alessandra Gotuzo Seabra.