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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.21 no.22 São Paulo  2013

 

A arte de contar histórias e o conto de tradição oral em práticas educativas

 

The art of storytelling and the tale of oral tradition in educational practices

 

 

Alessandra Giordano

Instituto Sedes Sapientiae

 

 


RESUMO

Este trabalho é fruto da pesquisa que se iniciou com o estudo de especialização em literatura infanto-juvenil "sobre as histórias que se contam para as crianças" na Universidade de São Paulo - USP, talvez pelo fato de eu mesma ser uma contadora de histórias. Nessa condição, até onde me lembro, sempre estive na atmosfera que experimentei, desde a infância, quando as pessoas se reuniam em torno das histórias do contador. Convencida da importância de se contar e ouvir histórias, por experiência própria, realizei um aprofundamento nos estudos para o mestrado em Ciências das Religiões na PUC-SP, cuja dissertação versou sobre: "Contar histórias como um caminho para o sagrado" que culminou com a defesa da tese de doutorado em Psicologia Social pela PUC-SP, onde trabalhamos a identidade dos contadores de histórias contemporâneos e o impacto social e cultural da importância do contar e ouvir histórias nas cidades modernas. A metodologia de trabalho empregada foi o conto de tradição oral. A partir dessa experiência, traçaremos, neste texto, relatos da nossa compreensão e contribuição dos contos tradicionais para as sociedades modernas e seu emprego na educação e áreas afins.

Palavras-chave: Conto de tradição oral, Educação, Oralidade, Contar histórias.


ABSTRACT

This work is the result of research that began with studies of specialization in children's literature "on the stories that count for children" at the University of São Paulo (USP), maybe because I myself be a storyteller. In this condition, as far as I can remember, I was always in the atmosphere I experienced, since childhood, when people gathered around the stories of counter. Convinced of the importance of telling and listening to stories from my own experience, I realised a deepening in the studies for a master's degree in Sciences of religions at PUC-SP, whose dissertation focussed on: "storytelling as a way for the sacred" that culminated in the defense of the doctoral thesis in Social Psychology from PUC-SP, where we work the identity of contemporary storytellers and the social and cultural impact of the importance of the tell and listen to stories in modern cities. The methodology employed was the tale of oral tradition. From this experience, in this text, we will draw up reports of our understanding and contribution of traditional tales to modern societies and their employment in education and related fields.

Keywords: Oral tradition, Education, Orality, Story telling.


 

 

Introdução

"Nós queremos aprender tudo aquilo que nos ensinam na escola, mas, por favor, deixem-nos os sonhos." Paul Hazard2

O conto da tradição de transmissão oral é a forma primitiva da arte de dizer. A tradição perpetuou essas narrativas como uma forma de ensinamentos transmitidos oralmente. Sua idade perde-se na poeira dos tempos, como diziam os poetas, e seu lócus nascendi ninguém sabe, ninguém viu.

Examinando o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 465), temos que conto se refere tanto à narrativa falada como escrita. Os contos dos quais nos ocuparemos, neste trabalho, foram transmitidos oralmente, embora, muitos deles, hoje, encontrem-se em forma escrita. Deles, se diz: não têm autores; vieram da prática milenar da tradição oral, de boca para ouvidos. São conhecidos como "contos de boca."

Pensar o conto de tradição oral como instrumento de trabalho na área da educação, da psicopedagogia, da psicoterapia, da arteterapia, na atualidade, pode causar certa estranheza, já que estamos num tempo onde se procura sufocar qualidades como a memória e os saberes de antigamente, afinal estamos na era das máquinas, dos computadores e, consequentemente, a habilidade do ouvir e do contar histórias, ficou para trás. Mas, falar em memória, significa falar do encontro entre a memória e a tradição social efetuada pelo exercício da oralidade; significa também reavivar e atualizar a memória social de um povo, bem como abrir as vias de acesso a uma cultura autêntica do conto; uma cultura de transmissão de ensinamentos através da palavra falada. Esse é um desafio que vem nos cercando.

Nossas vidas estão cheias de máquinas, de mídia, de televisão e carentes de histórias, bem como de contadores, com eloquência para fazê-lo. Deixamos para trás esta arte, que na voz de W. Benjamin (1994) é uma troca de experiência do coletivo; uma transmissão de experiências, cujas condições de realização são bastante subjugadas nas sociedades modernas. O tempo do progresso não o permite, e, por isso, como ainda diz Benjamin (1994): no "momento em que a experiência coletiva se perde, em que a tradição comum já não oferece nenhuma base segura, outras formas narrativas tornam-se predominantes." (Idem, p.14), outras linguagens acabam por prevalecer como a linguagem midiática. Com isso outro paradigma se estabelece e nos obriga a outras realidades de trocas e de comportamentos.

O homem moderno vive numa crise de sentidos, dizem Berger e Luckmann (2004), sociólogos. Crise essa, produto dos processos de modernização, pluralização e secularização das sociedades com consequentes perdas de referências estáveis e seguras; certamente isso gera anseios e desorientação (2004). Frente a isso, dedicamo-nos a pensar sobre as causas e efeitos do ato de contar e ouvir histórias na contemporaneidade. Nossas reflexões, envolvem as dimensões não apenas prática, mas as mítico-simbólicas desta atividade. Cabe ai, perfeitamente, o resgate da diversidade cultural, cabe valorizar as etnias, cabe manter a História viva do homem; cabe estimular o imaginário, cabe encantar e sensibilizar articulando a audiência para o mundo do sensório e, cabe, sobretudo, refletir sobre os significados da arte narrativa, já que esta presta-se como um canal para a experienciação e identificação da variabilidade de motivos e valores que acompanham o homem em seu crescimento e evolução. Este trabalho, portanto, presta-se a apresentar a inscrição do conto de tradição oral em práticas educativas e culturais e, dizer que a história tem uma utilidade na educação. É uma riqueza, insistimos, porque ela permite que o nosso cliente aprenda de um jeito só dele, um jeito que ele compreenda.

 

O que se ganha com a escuta de uma história

Não se pede ao contador um pedaço da vida Cotidiana, mas um grande pedaço de sonho... Como se a gente estivesse lá.
Henri Verneuil

Venho de uma família cuja tradição de contar histórias alcança a quarta geração. As histórias que tenho compartilhado são consequências de uma profunda intimidade com o conto de tradição oral, que aprendi a respeitar desde que era muito pequena. Ainda não sei se os contos ou as contadoras de histórias, naqueles momentos, me ensinaram a conviver, de fato, com minhas alegrias e tristezas. Hoje, posso dizer que as histórias eram cuidadosamente escolhidas e elaboradas pelas contadoras de histórias que repartiam o seu tempo comigo e com meus irmãos; minhas duas amadas fadas madrinhas: minha avó e a Nega Júlia. Nega Júlia era a velha contadora de histórias da fazenda de minha avó Sinhá, no Recife. Hoje sei que os contos de tradição oral na boca das duas eram como uma farmacopeia.

Minha prática como contadora de histórias, que vai desde hospitais a multinacionais, auxilia-me neste propósito, realidade que venho praticando a três décadas, por acreditar como Walter Benjamin que: "O conto de fadas, que ainda hoje é o primeiro conselheiro das crianças, foi outrora o primeiro da humanidade, permanece vivo, em segredo, na narrativa. O primeiro narrador verdadeiro é e continua sendo o dos contos de fadas (Walter Benjamin, 1994, p.197).

Contudo, estamos distantes das oportunidades da escuta dos contos tradicionais e ainda mais distantes de contadores de histórias com eloquência para fazê-lo, porque não é difícil perceber que o mundo da atualidade dá aos processos tecno-científicos, associados ao capitalismo, sua principal força. Sabemos que por isso, as transformações econômicas, sociais e políticas decorrentes das novas necessidades garantem a difusão das obras culturais, principalmente através da mídia. São tantas as transformações e tão radicais que hoje, por exemplo, nem pais nem mães substituem as avós - que na maioria das vezes não moram mais com a família - que contavam histórias para os netos ate que o sono chegasse. No lugar disso, temos a televisão com sua programação, sem a menor preocupação com a censura, sem o menor respeito para com as idades das crianças, cheia de ofertas para tudo, o que contribui, sobretudo, para que a tradição de contar e ouvir histórias desapareça. Sabe-se que esta rotina acaba por empobrecer a memória criativa das crianças enfraquecendo a motivação para e escuta de uma boa história. Acaba por embotar o exercício do extasiar pelo encantamento, pelo fascínio que as histórias promovem. Deixa também para trás a possibilidade de desenvolver a função simbólica bem como a função de iniciação tão importante para os jovens, que os contos de tradição oral promovem. Sabe-se que a arte narrativa favorece a oportunidade para a simbolização, para o desenvolvimento da capacidade de abstração, para o fantástico, para o maravilhoso, para o sonho, para trocas entre os iguais, para o desenvolvimento da imaginação criadora. Contrariamente à falta de experiências que façam sentindo ao universo em questão, à falta de experiências que ofereçam orientação e, ainda, à falta de aproximação entre as pessoas, deixam perturbados severamente os processos afetivos e os de subjetivação que, se sabe, dependem daquilo que nos é ofertado nas relações com o mundo e com o outro (Berger e Luckmann, 2004).

Ainda nesse quadro do século XXI, comportamentos antissociais, raivosos, vandalismo e descrença em tudo e o desrespeito pelos semelhantes revelam os resultados de uma sociedade onde as pessoas já não se encontram para conversar, para contar e ouvir histórias, para trocarem suas experiências. As crianças, principalmente, já não brincam mais, não conhecem as brincadeiras de convívio (roda, pega-pega, mãe-da-rua, cabra-cega, etc). Os jovens conversam por celulares e por computadores (isso é conversar?). Lembremo-nos do que Winnicot nos oferece sobre experiências, principalmente, para crianças pequenas, no livro O Brincar e a Realidade. Tudo começa no brinquedo, no fantástico, no sonho; por meio do contato com as artes, com a religião e com os trabalhos da mente criadora.

Os contos, as histórias, aqui tratadas como os contos de tradição oral, certamente desenvolvem competências psicoafetivas e, com isso, podem desenvolver as necessárias experiência de não ir além dos limites da destruição do nosso próprio semelhante. Contudo, na onda da vez, as angústias existenciais, que animam cada fim de século, contribuem para o distanciamento do lugar do conto de tradição oral nas rotinas das escolas e dos lares. Parece com isso, perder-se a informação de que o conto ocupa um lugar privilegiado e específico na infância, principalmente quando aparecem nas narrativas fadas, duendes, ogros, bruxas - aliás, feiticeiras, gigantes, fadas, duendes e anões não são apenas elementos indispensáveis ao conto de fadas, ao maravilhoso, mas, são também personagens da ordem do imaginário que têm sua função simbólica3 - , características das narrativas orais das reuniões familiares de antigamente. Nestes contos o desejo de viver e do bem viver, o desejo do sucesso em nosso destino faz parte primeiramente de um sonho, de um desejo, para depois tornar-se realidade e terminar com um final feliz. Nestes contos o maravilhoso nunca está no real e sim no simbólico, mas sem dúvida, nos fortalece e nos impulsiona para conquistas, isto porque nos liberta, ainda que momentaneamente, do banal da existência cotidiana.

Devemos tomar cuidado com a escolha de histórias para crianças e adolescentes, porque assim como as histórias podem libertar - porque trabalham especialmente com valores humanos - elas podem confinar. Observamos que muitas das histórias veiculadas, atualmente, estão destituídas de valores do social. São histórias que denotam reflexos da correria, do estresse e da luta por conquistas meramente materiais, influenciada, sobretudo, pela mídia; são valores que estabelecem o ter em detrimento do ser. Na vida moderna o sentimento do coletivo parece estar ausente e a valorização desse sentimento, que se tornou parcimonioso, diminui a cada dia, atolado pelas exigências da competitividade produtiva. Isto significa que os homens são solicitados - pelas ordens vigentes do capitalismo - , a se livrarem inevitavelmente de suas cargas simbólicas, aquelas que garantem as trocas significativas. O valor simbólico4 é, assim, desmantelado, como diz Dufour (2005), em proveito do valor monetário das mercadorias, de tal forma que outra consideração, como: moral, tradição, transcendência, dificilmente pode fazer frente a sua livre circulação.

Resgatar a realidade do exercício de contar a nossa história e da escuta de uma boa história é uma realidade capaz de produzir novas histórias, novos significados para levar à construções onde o objeto da aposta possa ser a fé em um mundo mais humanizado e mais harmonioso.

Estamos numa sociedade "multitela", como diz Manoel Pinto (2005) e, em decorrência disso, a perseguição incessante do novo, daí a importância de se contar e ouvir histórias para que nossas vidas possam ser ordenadas pelos significados dados pelos dilemas dos destinos eternos das histórias do mundo, o que nos oferece sentimentos como o de solidariedade e de pertencimento; essa atividade nos ajuda a não deixar para trás a lembrança do que vale a pena ser vivido. Tenhamos como norte uma tradição milenar que nos autoriza na tomada da palavra bem-dita calcada na experiência de quem conta. Que os contadores de histórias, da atualidade, tenham mais um tempo e um espaço naturalmente reservado para ele - como os contadores de antigamente, de maneira que, hoje, contadores e público não sejam tão passageiros quanto o tempo que os reúne. Entrementes, não nos esqueçamos de que é no decorrer da interação social que os objetos adquirem significado para os indivíduos.

Os contadores de histórias que trabalham utilizando os contos como instrumento, sabem sobre a importância de se contar e ouvir histórias e conhecem o fascínio que exercem em seu público. Talvez por isso Monica Fantin, educadora e autora do livro: Mídia-educação: Olhares e experiências no Brasil e na Itália (2004), diga que a velocidade nas mudanças, nos processos e nas tecnologias de comunicação, consequências da cultura contemporânea, acarreta desafios cada vez maiores, principalmente, para aqueles que trabalham com crianças e adolescentes. Mas o problema, além das questões atribuídas à mídia, é estar diante do apelo do consumo de mercadorias. Não sejamos ingênuos, isto dificulta, ainda mais, a garantia dos esforços (tidos como conservadores), para proteger noções tradicionais - de infância, principalmente - , que ficam predestinados ao fracasso.

Diante deste quadro, falar atualmente, em contação de histórias, transmitidas oralmente, parece tão arcaico que chega a ser um assombro, aos olhos de muitos, já que é uma das características dos tempos modernos, conforme apresentamos. O conversar caiu em desuso, os jovens se falam pelo celular, pelo computador. O mundo das máquinas substituiu o fazer humano - as histórias são gravadas, na tentativa de substituir a voz do narrador. Mas, nem tudo está perdido porque por nossa pesquisa vimos que algo da natureza humana, com raízes bem plantadas no mundo mágico e encantado, parece guardar-se intocável. Podemos dizer que todos os seres humanos gostam muito de ouvir histórias, parece que como diz Bruno Bettelheim (1984) os contos tradicionais falam ao ego em germinação, oferece estrutura e força para a lida com as adversidades da vida cotidiana.

Com isso, apesar do panorama apresentado entendemos que pelo tempo - na verdade nem se sabe quanto tempo esse tempo tem - da prática narrativa, parece que há um sentido e um significado para a continuidade de sua existência até os dias de hoje5. Será que será como o poeta Guimarães Rosa dizia: "o homem necessita tanto de pão quanto de histórias" (?). São muitas as indagações: que tipo de "nutrição" pode oferecer o conto de tradição oral ao homem moderno? O ocidente caracterizado pelo mundo da racionalidade e materialidade com pressupostos puramente idealistas teria espaço para as experiências oriundas da escuta de um conto de tradição oral? Poderiam (os ctto) traduzir-se no emprego terapêutico para patologias6 sociais da modernidade? Essas e outras questões nos acompanharam em nossa pesquisa de doutoramento.

O que é muito claro, para nós, é que devemos considerar que numa época em que as pessoas podem, com tanta facilidade, perder o direito inato à imaginação, devemos encontrar maneiras de ajudar os indivíduos a descobrirem fontes criativas, com intuito de ressignificar o seu bem-viver. Portanto, a questão nos leva para escolhas de nossas ações e o que se ganha com essas escolhas. Então: que educação se quer?

Comprometimento com a educação libertadora leva educadores contadores de histórias (a não inventar a roda de novo, outra vez) a empenharem-se para ações cujos objetivos sejam formar seres humanos para que eles possam estar em harmonia consigo mesmos, com seus semelhantes e com o meio ambiente. Eles sabem com certeza, que é em sua dimensão formativa, que a educação através dos contos tradicionais, pode encontrar a força da "palavra" como um recurso poderoso.

 

A velha arte de encantar

Para nós o fundamento do conto é a oralidade, quer dizer: a palavra falada. Para transformar em arte, a palavra, aqueles que se pretendem contadores de histórias devem aproximar-se dos velhos contadores de histórias tradicionais. Assim, influenciada pelos estudos dos contos sufis7, na rota amiúde de uma compreensão mais ampliada sobre as possibilidades do conto de tradição oral e seus narradores rumei para o sul da Índia8, em 2007, já que, diz a lenda, os contos de tradição oral nasceram por lá, além do que, os mestres da tradição de contadores de histórias, dizem que é preciso:

(...) alguém que nos guie (alguém que saiba exatamente como e quando, em que quantidade e em que circunstâncias, nos aproximamos dos contos), porque nosso condicionamento não nos deixa enxergar além do limite do que é óbvio, visível, palpável. E muito menos nos permite perceber que a conduta dos personagens de um conto (homem, mulheres, crianças, animais) ou situações (horários, lugares e movimentos) simbolizam certa área da mente, ou a forma como às vezes a consciência humana se comporta. (Prefácio: histórias da Tradição Sufi, 1993)

Os tradicionais contadores de histórias repassam os procedimentos éticos de um contador de histórias como um conhecimento milenar, que garante a conservação e a transmissão de tudo o que deve ser aprendido, assim como o "aedo9" o faz.

A tradição da arte narrativa está por toda a parte na Índia. País simbólico, enigmático, cheio de encantos, desencantos e mistérios, cores e odores e muitas, muitas histórias. País dono de uma misticidade única, espalhada pelo aroma e pela sonoridade dos mantras - reza hindu. E lá, mesmo os mais distraídos podem notar o quanto, neste lugar exótico, cheio de múltiplas tradições, evidencia-se o conto na coexistência entre o pensamento mágico e o mundo da ciência progressista. O imaginário popular do povo indiano se apega às imagens de palácios suntuosos e coloridos, com marajás e súditos viajando em elefantes decorados com ricas joias e o mundo da tecnologia simultaneamente presente nas mais envolventes pesquisas. Porém o imaginário não é enganoso (como poderiam dizer alguns cientistas da linha positivistas), porque o que se sente é que a Índia é também isto: evoluir e participar do mundo, mas sem negar a tradição. Para os mestres e sábios, também da academia, é deste imaginário que nascem os saltos científicos da sua gente. Nesta parte da Índia a presença dos contos de tradição oral é uma constante na mediação das reflexões e trabalhos de cunho científico, porque acreditam que para quebrar a rigidez da razão é preciso disponibilizar uma rica fonte de metáforas. Sua função é elevar a mente criativa.

Dispomos de muitas literaturas sobre os pensamentos fenomenológicos, transpessoais, religiosos e também mágicos, míticos etc., mas ir à Índia significou aproximação com um tipo de conhecimento que mescla razão e emoção. Essa busca me ajudou muito na compreensão do que um conto de tradição oral é capaz de desenvolver nas comunidades humanas. Primeiramente, descobrimos que os contos, para os hindus, estão num terreno fertilizado pelo desenvolvimento das emoções experienciadas. Lá, na Índia, acredita-se que essa prática - a de contar e ouvir histórias - move as percepções dos ouvintes para os aspectos mais subjetivos e sutis da mente. Mais do que isso: leva à distinção das formas objetivas e subjetivas, como constituintes de diferentes e importantes níveis da consciência e confirmam o que já sabíamos: prolonga a experiência de comunicação no domínio dos relatos das próprias experiências. De maneira que consideram esses encontros como primordiais com a palavra viva. Tudo promovido pela escuta e como consequência de encontros para contos de tradição da transmissão oral, devidamente guiada por um filho da tradição. Eles sabem que sua matéria prima (o conto que vem da palavra falada) é também experiência de vida de cada pessoa que integra a audiência. Sabem que a partir do prazer compartilhado e da assimilação do esquema narrativo pode-se adquirir novas competências no domínio da palavra. Lá no sul da Índia onde estivemos eles sabem que o encontro das pessoas mais velhas com as crianças e com os jovens é muito importante, para manter a saude da comunidade. Penso agora em autores brasileiros como Paulo Salles Oliveira (1999) e Eléa Bosi (1998) quando dizem:

Se o convívio com as crianças anima a vida dos velhos como uma aragem Matinal, também o relacionamento com os idosos cria uma perspectiva inusitada para as crianças. A cultura não chega a elas como um saber exterior. Autossuficiente, divorciado das coisas miúdas, sem nexo com o que é vivido. As avós explicam, Ecléa Bosi, não tem em geral a preocupação do que é próprio para as crianças, mas conversam com elas de igual para igual [...].

É Ecléa Bose quem nos ensina sobre os sabedores das experiências dos idosos. A força desse encontro, sem dúvida, tem a ver com a disponibilidade das duas faixas etárias, que correm à margem do tempo dos adultos jovens, que estão no tempo para ganhar a vida. Para o idoso e para as crianças, não há tempo passado nem futuro, apenas o presente.

Voltando à experiência da Índia, por que a Índia e não o velho mundo da Europa? Talvez porque, apesar das muitas controvérsias, hoje é ponto pacífico, entre os orientalistas, que a fonte mais antiga da literatura popular maravilhosa é oriental. E, essa mesma, está integrada no folclore de todas as nações do mundo. A aproximação com o jeito10 hinduísta de tratar a literatura oral leva ao desenvolvimento de um novo olhar para o que, para muitos, é concebido apenas como contos para crianças (uma forma pejorativa de pensar os contos infantis). Esse outro olhar ajuda a construir um paradigma e, por conseguinte, uma concepção diferenciada para a importância dos contos de tradição oral e seus narradores. Integra as inteligências racional, emocional e espiritual (Zohar, 2002), para além da aproximação das gerações de crianças e idosos. Podemos dizer, então, que a arte narrativa é a arte da relação. É a arte da educação que faz parte de um todo indivisível (educação é arte e arte é educação) que está a serviço da vida humana com qualidade: a arte de viver.

 

O que se ganha ao ouvir uma história

Trabalhar com os contos deve ser facilitador de encontros e de relações interpessoais, para isso é preciso o máximo de conforto pois trata-se de uma atividade que pretende despertar o desejo e o prazer nas pessoas. Educadores contadores de histórias devem ter uma relação baseada no prazer de poder apresentar um conto como uma porta para abrir o imaginário11 e também apresentar o mundo das diferentes culturas, pois se trata de oportunizar a apropriação (que o ouvinte faz) da palavra do contador, dando sentido a ela e integrando-a em seu universo pessoal psicoafetivo. Esse trabalho, é garantido, e é sempre gerador de boas coisas na vida.

Neste garimpo pode-se encontrar como usar um conto de tradição oral na prática interdisciplinar dos especialistas da educação e áreas afins tal como: Jean-Marie Gillig (1997), Amadou Hampatê Bâ (1996), Marie Louise Von Franz (1990), Bruno Beltheim (1985), Meyer (2010), Hans Dieckamann (1986), Clarissa Pinkola Estés, (1987), Allan Chinem (1998), Diana Lichtenstein Corso, Jacqueline Held (1980), G. Safra (2005), Sheldon Cashdan (2000), Giordano, A. (2007), que observaram os contos de tradição oral como uma rica possibilidade de trabalhar, interpretar e aliviar as dificuldades e os conflitos humanos.

Ao que parece a prática psicopedagógica está situada na tensão de um arco que necessariamente vai da prática de um modelo pedagógico e de um modelo psicológico (as finalidades de ambas perseguem duas finalidades paralelas), contudo, caminham para o bem-estar da criança. Assim, uma teoria do uso do conto em trabalhos interdisciplinares é possível, pois se trata de operacionalizar um procedimento que se apoia sobre o conhecimento do que é o sujeito no trabalho psicopedagógico, por exemplo, e do que é o conto e, simultaneamente, das relações que eles estabelecem entre si e do uso desses saberes para levar uma criança em dificuldade a superá-las.

Melhor ser, melhor saber, para melhor ingressar na cultura da qual se faz parte, tais devem ser as perspectivas de ação de um trabalho interdisciplinar. Os contos nos ajudam a isso, nos ajudam a nomear (por meio da história) necessidades e conflitos e com isso abrir caminho para que os sentimentos possam ser vividos "com menos angústia e não tenham que se tornar sintomas" (Meyer, 2010, p.11). Hoje, sabemos todos, o quanto é imperioso libertar imagens de nós mesmos e restabelecer a realidade da imaginação como uma função procriadora e enriquecedora da vida conforme defende Shaun McNiff12:

(...) se podemos sair do nosso modo de pensar centrados em nós mesmos e imaginar nossos sonhos, quadro, poemas, dramas, nossa música e nossos movimentos como coisas vivas, com sua história para contar, poderemos estabelecer uma nova base de abordagem da arte dentro e fora do contexto terapêutico. (McNiff, 1992, p.180)

Contar, diz Cazaux, "é também encontrar-se, na escuta mútua, pela boca, pelo ouvido, pelo olhar, rostos e corpos" (1992, p. 56), mas o que ganhamos ao ouvir uma história? É hora de saber o que se ganha com a escuta de uma história e o que as histórias nos oferecem como no conto recolhido pelo indiano A. K. A. Ramanujan, do seu povo.

 

Uma história em busca de quem a escute

Era na Índia, num tempo, num lugar e num dia em que a carruagem do templo do deus sol, Adinarayana, era levada em procissão pelas ruas. Numa casa da cidade, uma velha senhora tomou um banho de purificação. O ritual mandava também que ela contasse a alguém a história do deus sol, naquele dia exato. A mulher pegou um punhado de arroz amarelado de açafrão e partiu em busca de alguém a quem pudesse dar o arroz santificado e contar a história. Mas todas as pessoas que ela encontrava estavam com muita pressa.

- Posso lhe contar uma história, meu filho? - disse a mulher.

- Ai. Minha mãe, agora não, estou atrasado para uma audiência na corte.

- Posso lhe contar uma história? Perguntou ela a nora.

- Ah, mãezinha, desculpe, mas eu estou aqui tão atarantada com o serviço da casa... Outra hora, está bem? - disse a jovem.

A velha senhora era muito devota e paciente. Mas era também muito persistente. Ela foi até a beira do rio e perguntou às mulheres lavadeiras que ali estavam:

- Olá, meninas, posso contar uma história para vocês?

Mas as lavadeiras tinham acabado de terminar o trabalho da manhã e estavam ansiosas por ir para casa, então também recusaram.

A velha senhora, com o punhado de arroz na mão respirou fundo e seguiu andando. Mas onde quer que fosse, quem quer que abordasse, ela não encontrava uma única pessoa disposta a ouvi-la. Bhamanês, lenhadores, fabricantes de cestas, oleiros - ninguém tinha uns poucos minutos de atenção para ouvir a história do deus sol.

A velha senhora estava um pouco desapontada, mas, como já sabemos, ela era muito persistente. Seguiu andando pela cidade e finalmente chegou à ruazinha pobre de um arrabalde onde morava a humilde casta dos vendedores de sal. De longe ela avistou uma moça grávida, sentada na calçada e cheia de calor, abanando-se com a mão; aproximou-se e fez a pergunta a jovem que disse que sim, ouviria a história. Mas ela tinha tanta fome! Ah se ela pudesse comer antes um pouco de pudim de arroz doce com leite de coco, baunilha, umas raspinhas de limão... com tanta atenção ela ouviria a história...!

A velha senhora nem pensou duas vezes: foi para casa fez o pudim e o trouxe à mulher grávida que ficou muito contente, e comeu tudo avidamente, mas vocês sabem como são as mulheres grávidas: quando não estavam com fome estão com sono...! e, antes que a senhora pudesse começar a contar sua história a jovem deu um longo bocejo acomodou-se no chão quente da calçada e caiu num sono profundo. E, enquanto ela dormia a velha senhora que era muito devota, paciente e persistente, esperava, com o punhado de arroz ritual na mão fechada.

De repente a mulher escutou uma voz que sussurrava: - conta a história para mim! Espantada ela olhou de um lado para o outro, mas não havia ninguém por perto, além da moça grávida adormecida. E a voz repetiu um murmúrio: - Conta pra mim a tua história, quero ouvi-la! Estou aqui dentro da barriga da minha mãe!

Era a criança no ventre da jovem, que falava. Se vocês que me leem estivessem no lugar da velha neste momento o que fariam?

Pois foi exatamente o que ela fez: levantou a bainha da túnica da moça, colocou cuidadosamente uns poucos grãos de arroz em seu umbigo e contou a história sagrada do deus Sol Adinarayana, diante daquela barriga redonda, para o bebê lá dentro. Quando terminou de contar, estranhamente a mulher se sentiu tomada por uma força desconhecida, e por uma voz, que através dela, num transe, cantava palavras vindas de um outro mundo:

Aonde quer que você vá vilas desertas enriquecerão

Pérolas florescerão

Dos ramos secos do algodão frutos doces brotarão de árvores mortas

Velhas vacas darão leite

Damas estéreis terão bebês

Joias perdidas se encontrarão e mortos reviverão.

Num grito de espanto, a velha senhora despertou subitamente do transe quando a canção acabou. A jovem grávida acordou com o grito da velha senhora, e disse educadamente: - pronto, agora a senhora pode me contar a sua história. Mas a velha senhora disse com olhar distante: - não é mais preciso. Por favor, me avise quando o seu bebê nascer. Quero muito conhecer essa criança! E foi para casa. Algumas semanas depois a velha senhora recebeu a noticia que a jovem tinha dado a luz a uma menina. Ela correu até a rua dos vendedores de sal levando um sári e um vidrinho com óleo de castor e ervas medicinais. Tudo o que se dá a uma mulher que acabou de parir. A jovem estava preocupada querendo saber como ia ganhar a vida agora que tinha um bebê para cuidar. A senhora disse:

- Não se preoucupe!

Com o sári ela fez uma rede para a nenê atou-a a um galho de árvore na floresta próxima, pôs a criança dentro e ensinou aos passarinho a estranha canção para que eles cantassem como um acalanto.

- Pronto, agora quando precisar, você já pode ir trabalhar descansada porque as árvores e os passarinhos cuidarão de sua filhinha, disse a boa senhora para a jovem mãe.

Um dia dali a algum tempo, o rei daquele país passou a cavalo por aquela floresta. Ele parou intrigado quando ouviu um canto de pássaros que soava de modo muito parecido com palavras humanas. O rei parou para escutar melhor e confirmou que o que ouvia na voz dos passarinhos, eram de fato as palavras de uma canção que começavam assim: "Aonde quer que você vá, vilas desertas enriquecerão...", Olhou em volta até encontrar a rede dependurada com a criança dentro, sendo embalada de leve pelos braços dançarinos das árvores. Os pássaros disseram ao rei: - leva esta menina contigo e quando ela crescer casa-te com ela.

Se vocês ouvissem isso da voz de pássaros o que fariam?

Pois foi isso mesmo que o rei fez. Levou a menina consigo amarrada a seu colo, depois de pedir aos passarinhos que avisassem a mãe dela de que deveria ir morar no palácio, para terminar de criá-la.

No caminho o rei passou por uma vila deserta, abandonada como uma cidade fantasma. Quando chegou ao fim da rua principal ele ouviu um vozeril atrás de si e maravilhou-se ao ver que a vila tinha se transformado; era agora uma cidade bela e próspera, onde os moradores vendiam sedas, tapetes e especiarias para uma multidão de compradores. O rei viajou mais um pouco, com a menina no colo, até que parou para que seu cavalo descansasse, num campo de algodão já meio seco. A menina estendeu a mãozinha para brincar com a haste de uma planta, e de repente, o rei precisou fechar os olhos para não ser ofuscado pelo brilho das incontáveis pérolas que brotaram de repente pelo campo inteiro, no centro de cada flor seca do algodoal.

E o rei, percebeu, encantado, que o acalanto dos pássaros era uma profecia, que ia se cumprindo a cada passo que dava em sua jornada levando a criança, quando passaram por um rebanho de vacas e bezerros magros num pasto amarelado pela estiagem, as tetas das vacas de repente transbordaram com leite, e os bezerros começaram a mamar avidamente. Folhas verdes brotaram das árvores secas, que logo ficaram carregadas de frutas.

Quando chegaram ao palácio, uma serva desceu correndo as escadarias para dar ao rei a boa notícia: sua primeira esposa que até então não conseguia ter filhos, tinha sido finalmente abençoada e ganharia um bebê até o final do ano!

O rei não contou a ninguém sobre as maravilhas que haviam acontecido em sua jornada da volta ao reinado. A filhinha da vendedora de sal ficou morando no palácio, com sua mãe e era a alegria de todos.

Tornou-se um menina e mais tarde uma jovem mulher. Trazendo ano após ano novas felicidades para os que viviam perto dela. Naquele tempo e lugar, era comum que o rei tivesse várias esposas e, lembrando-se do conselho dado pelos pássaros da floresta, quando chegou o tempo certo, o rei se casou com ela.

Acontece que a primeira esposa, embora fosse um boa pessoa, era cheia de ciúmes da atenção dada por todos à jovem e alegre rainha, que chegara tão misteriosamente ao palácio, vinda sabe-se lá de onde. Aquele sentimento incontrolável corroía a rainha e a deixava sem ar e batendo os dentes de frio em pleno verão. Um dia desatinada, ela juntou todas as joias da família real, colocou-as dentro de uma caixa, enrolou-a num manto, foi até o mais alto penhasco e lançou a caixa ao mar. No palácio o desaparecimento das joias causou espanto e consternação e suspeitas por alguns dias, mas, como nada ficasse provado contra ninguém, o assunto acabou sendo esquecido.

Algum tempo depois, pescadores chegaram ao portão do palácio, carregando um enorme peixe prateado. Queriam dá-lo de presente à rainha, pois achavam que somente a nobreza era digna de tamanha dádiva dos mares. A primeira esposa veio até os portões, mas logo torceu o nariz diante do cheiro de maresia, e, agradecendo rapidamente, pediu que o peixe fosse levado à cozinha. Assim foi feito. Ora, mas quem é que estava na cozinha, naquele exato momento? Quem é que, aliás, passava horas do seu dia na cozinha todos os dias, entretida com as conversas das mulheres, com o despertar dos sabores e aromas, com a alquimia dos temperos? A jovem rainha, é claro, ficou tão maravilhada ao ver o peixe prateado, que logo exclamou, puxando da cintura a faquinha prateada que sempre levava consigo:

- Ninguém toca nele, eu mesma quero ter o prazer de limpá-lo!

E com um golpe, hábil e certeiro rasgou a barriga do peixe e adivinhem o que ela encontrou? Claro! A caixa com as joias perdidas!

A notícia logo chegou aos ouvidos do rei, que logo se lembrou do acalanto que ouvira dos pássaros muitos anos antes, listando as maravilhas que a moça faria acontecer em seu caminho pela vida. Ele vira, com os próprios olhos a maior parte delas realmente acontecerem: vilas abandonadas prosperando, sementes de algodão virando pérolas, vacas magras transbordando de leite, árvores secas dando frutos, uma dama estéril gerando uma criança. Agora joias perdidas tinham sido milagrosamente recuperadas.

Faltava só mais uma coisa. E o rei, movido talvez por uma fé cega nos mistérios, ou por um sentimento de onipotência comum aos monarcas, ou mesmo por curiosidade de criança, decidiu por à prova a última profecia, a que atribuía à jovem rainha - filha da vendedora de sal - o poder de dar a vida aos mortos.

Naquela noite, após o jantar, o rei subiu aos seus aposentos, tomou veneno e caiu morto.

Um lamento de dor em uníssono ouviu-se em todo o reino, já que aquele rei era justo e amado por seu povo. A jovem rainha ficou desesperada, mas não podia simplesmente atirar-se ao chão chorando, porque naquele tempo e lugar, quando um rei morria, suas esposas deveriam seguir com ele ao paraíso. Assim, tanto a primeira esposa quanto a jovem filha da vendedora de sal, deveriam preparar-se para subir ao céu nas chamas da mesma pira funerária onde logo arderia o corpo do marido. Por isso, a jovem fechou-se em seu quarto, a fim de se aprontar. Ela tinha perdido incompreensivelmente aquele que era a pessoa mais importante em sua vida, como deveria lançar-se ao fogo e ao desconhecido que se seguiria.

Teria de abandonar a vida, tão cheia de alegrias. Ela andava estonteada pelo quarto, sem saber por onde começar a se arrumar, quando ouviu baterem à porta.

- Quem será numa hora dessas? Pensou.

Era um bhamanê, uma sacerdorte hindu, que olhou para ela com olhos de um castanho-dourado através dos quais se via o além. Respeitosamente, ela o fez entrar. Ele então pediu à jovem rainha que lhe lavasse os pés. Pediu também que ela lavasse os próprios pés. Pediu um gole de água e que ela bebesse também. Pediu que ela lhe preparasse um banho dos pés à cabeça e que fizesse o mesmo. Pediu pasta de sândalo para perfumar o seu corpo e que ela fizesse o mesmo. Pediu que fosse servido de uma refeição e que ela comesse também. E prosseguiu fazendo com que ela cumprisse todo o ritual de purificação que uma bhamanê seguiria. A moça fez tudo o que ele pediu, apesar de todas as emoções que a sacudiam, e ainda por cima, com a inquietante sensação de que já estava atrasada.

Por fim, o bhamanê agradeceu e foi até a porta. Antes de sair, olhou para ela mais uma vez e disse:

- Toma em tua mão um punhado do arroz que preparaste e espalha os grãos sobre o corpo do teu marido.

Diante da perplexidade da jovem, o bhamanê sorriu e disse:

- Sabes qual é o meu nome? Adinarayana. Sabes por que vim aqui hoje? Porque tu foste a única pessoa que se dispôs a ouvir a minha história, muitos anos atrás, quando estavas ainda no ventre de tua mãe.

E, abaixando os olhos em agradecimento, a figura do deus sol se desfez no ar como uma bolha de sabão.

A jovem correu até o altar da cremação com o arroz na mão. Todos esperavam por ela. Caminhou a passos rápidos até o corpo do rei e jogou o arroz sobre ele. O rei acordou imediatamente em sua cama de lenha, rosado como se tivesse dormido a noite inteira em uma cama de almofadas de seda. Ele olhou fixamente para a jovem, como se a visse pela primeira vez, e perguntou intrigado:

- Como conseguistes este milagre?

Diante de todos a jovem contou rapidamente o que tinha acontecido. O rei pasmo e maravilhado, voltou-se para a multidão e disse simplesmente:

- Vejam vocês o poder que se ganha quando simplesmente se escuta uma história!

Este conto é tão lindo..., com tantos ensinamentos que nos resta apenas dizer aos leitores: por favor contem histórias! Não as deixem morrer!

Podemos dizer que quando pensamos a arte de contar histórias13 a associamos à humanização dos humanos, já que o homem não nasce humanizado ele se humaniza, e com isso, queremos dizer que ela (a arte de narrar) se insere numa dimensão formativa, isto é, a dimensão que aborda o desenvolvimento harmonioso do ser humano em todos os seus aspectos: razão, emoção, corpo e espírito. Como já dissemos, esta arte cuida da arte do bem-viver. Não nos esqueçamos de que o humano não nasce humanizado ele se humaniza nas suas relações.

Por fim, com intuito de contextualização da arte narrativa, relacionamos alguns questionamentos importantes para que especialmente educadores possam refletir sobre o contar histórias: por que contar história? Para quem contar histórias? Onde contar? Como contar? E, por fim: que histórias contar?

É claro que o primeiro passo é conhecer a matéria prima, ou seja: a palavra, que neste caso, é a palavra oral. Esta obedece a um código que não é o mesmo da palavra escrita. A palavra oral tem um estilo próprio; é bom lembrar que a oralidade possui, então, pontuação, ritmo, entonação, tonalidade e silêncio sempre em conformidade com o corpo, ou seja, com o gestual. É bom também lembrar que a prerrogativa da palavra é do ser humano, portanto, todos nós poderemos ser transmissores de lindas histórias; é também bom lembrar que existem instrumentos e técnicas para fazê-lo de forma harmoniosa.

O gostoso mesmo é resgatar as possibilidades que as histórias oferecem: educar, ensinar, formar, brincar, encantar, fantasiar, criar, sorrir. As histórias brincam com o narrador e com os ouvintes, brincam e criam ao dizer e desdizer; os contos deixam no ar coisas, muitas vezes, indizíveis, que só os olhos da imaginação sabem traduzir. Então, o contador é um artista da voz e do gesto que desenvolve um trabalho solitário diante de um público com o qual ele cria uma convivência por intermédio de uma narrativa. Muita gente se questiona: serei capaz de adquirir a arte e a ciência do "contar"? Obviamente que sim, mas terá que dominar a arte da palavra e da imaginação criadora e começa por se considerar o contar histórias como uma atividade muito importante que requer clareza nas suas intencionalidades. Na verdade o contar histórias não se improvisa nunca e, exige um ritual e uma preparação do narrador. Mas a certeza mesmo é a de que este recurso responde a uma necessidade profunda de nossa sociedade: a oralidade.

 

Referências

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1 Alessandra Giordano, professora universitária, arteterapeuta, contadora de histórias, mestre em ciências das religiões e doutora em psicologia social pela PUC-SP. Autora do livro: Contar histórias: um recurso arteterapêutico de transformação e cura, São Paulo, Artes Médicas, 2007.
2 Hazard, Paul. Os livros, as crianças, os homens. Boivin, Paris, 1949.
3 O conto de fadas constitui para a criança um discurso de verdade numa linguagem simbólica, pelo próprio fato de situar-se no imaginário, atestado por formulas do gênero: Era uma vez... no tempo em que os animais falavam.
4 Os símbolos nos contos, segundo Freud, são as figuras das instâncias do aparelho psíquico.
5 Existe uma grande procura por cursos que formam contadores de histórias em muitas instituições. A arte narrativa, embora timidamente, parece estar voltando das noites escuras.
6 Estamos aqui entendendo por patologia a crise de sentido que acomete o homem contemporâneo examinada em Modernidade, pluralismo e crise de sentido: a orientação do homem moderno de Berger e Luckmann (2004), que gera no homem moderno uma desorientação.
7 O sufismo é uma filosofia cuja escola trabalha o desenvolvimento do homem que disponibiliza uma prática (técnica) que possibilita ao homem ampliar sua consciência e adquirir percepções especiais (Shah, 1986, p.19) O sufismo sustenta que uma grande parte da sabedoria não está disponível nos livros, ela deve ser passada pessoalmente por meio da interação entre mestre e discípulo
8 A Índia é uma república composta por 28 estados e 7 territórios da União, com sistema de democracia parlamentar. É a décima segunda maior economia do mundo em taxas de câmbio e a quarta maior em poder de compra. Uma sociedade pluralista, multilingue e multiétnica. O lema da Índia é: "Só a verdade triunfa". O hino nacional diz: "És o soberano das mentes de todos". A Índia alimenta-se da tradição e os hindus são politeístas.
9 Rapsodo da antiga Grécia. Ele guarda consigo os feitos dos heróis e sente-se feliz em transmití-los em detalhes tal como aconteceram.
10 Ao entrevistar um dos professores (dasas) hindus, sobre suas impressões dos efeitos dos contos nas mentes de quem os ouve, ele diz: o conto, então, reata e prolonga o pensamento da mente para o corpo dos iniciados. Isto se dá primeiramente na mente - pela escuta - e no nível do imaginário, até que o audiente vivencie conteúdos no pensar que levam para o sentir (da mente para o coração) e assim seja iniciado nos assuntos necessários para si ou para sua comunidade. Segundo Sri Bhagavan, "A humanização, para os mestres indianos, é assegurada pela continuidade da transmissão cultural, cujo veículo mais precioso é a narrativa de um conto transmitido oralmente."
11 Sabemos que o grande prazer provocado pela escuta de um conto tem, sem dúvida, suas raízes no imaginário.
12 Em seu livro Art as Medicine: Creating a Therapy of the Imagination (1992), discute a base teórica de sua abordagem com arteterapia, que consiste em fazer os pacientes criarem um desenho e depois contarem uma história.
13 Para saber ver: Contar histórias: um recurso arteterapêutico de transformação e cura. Giordano, A. São Paulo, artes Médicas, 2007.