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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.21 no.22 São Paulo  2013

 

Estilos cognitivo-afetivos e contrução da linguagem através das narrativas1

 

Styles cognitive-affective and language construct through the story

 

 

Débora Evans

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Professora de Língua Portuguesa (USP), Psicopedagoga (PUC-SP), Mestranda em Educação: Psicologia da Educação (PUC-SP). Email: deboraevans@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente artigo tem o objetivo de apresentar e divulgar os dados obtidos em situação de pesquisa-intervenção, com enfoque psicopedagógico, desenvolvida em contexto clínico. Trata-se do acompanhamento realizado com o cliente ora denominado J2, de 14 anos, pelo período de oito meses, na clínica PUC-Barueri, com queixa de dificuldade na aprendizagem da língua escrita, e a apresentação de sua evolução, diante das intervenções psicopedagógicas, pautadas na análise do perfil cognitivo-afetivo e no trabalho com narrativas. Foram consideradas as dificuldades apresentadas por J na elaboração narrativa oral e escrita, de histórias vividas por ele ou outrem, o que levou ao trabalho pautado na leitura e análise estrutural das narrativas, paralelamente ao fortalecimento de seu estilo afetivo-cognitivo, a fim de se desenvolverem as habilidades textuais narrativas no cliente. Nessa pesquisa adotou-se o método descritivo qualitativo e as intervenções ocorreram, simultaneamente, a fim de permitir que J e a pesquisadora aprendessem, gerando significativas transformações durante o processo. A análise dos dados foi baseada na mudança qualitativa da autoestima através da construção interna do "esquema narrativo", bem como da melhoria das relações pessoais, familiares e sociais. A proposta consiste em destacar a importância de recordar, contar e recontar as experiências pessoais, a fim de ampliar o sentido da vida, a subjetividade, e de fortalecer as potencialidades individuais

Palavras-chave: Psicopedagogia clínica, Dificuldade de aprendizagem, Linguagem, estilos cognitivos, narrativas.


ABSTRACT

This article aims to present and disseminate the data in situation of intervention research, focusing psychology, developed in the clinical context. This is the monitoring conducted with the client now called J, 14, for eight months in clinical PUC-Barueri, complaining of difficulty in learning the written language, and the presentation of its evolution, before the interventions psycho, guided by the analysis of affective-cognitive profile and work with narratives. We considered the difficulties presented by J in preparing oral and written narratives, stories experienced by him or others, which led to the work outlined in reading and structural analysis of narratives, alongside strengthening their cognitive-affective style, in order to develop skills in textual narratives-client. This research adopted the qualitative descriptive method and interventions occurred simultaneously in order to allow J and researcher learned, generating significant changes during the process. Data analysis was based on qualitative change in self-esteem by building internal "narrative schema" as well as improving personal relationships, family and social. The proposal is to highlight the importance of remembering, telling and retelling personal experiences in order to enlarge the meaning of life, the subjectivity and strengthen individual potential.

Keywords: Clinic psychology, Learning disability, Language, Cognitive styles, Narratives.


 

 

Introdução

As narrativas são de grande relevância na construção da psicologia humana, na estruturação da subjetividade e na relação entre o indivíduo e o mundo, entretanto, poucas vezes se consideram as transformações sofridas pelos sujeitos submetidos à audição de histórias e à contação de casos, bem como as reflexões advindas dos enredos dessas narrativas.

Há tempos, a infância estava automaticamente associada às histórias ou aos contos infantis, à presença da imaginação e da criatividade. Entendia-se que a vida das crianças estaria, inevitavelmente, permeada de histórias, que lhes seriam contadas pelas mães, pais, avós, tias, tios, irmãos mais velhos, considerando, portanto, que as narrativas eram parte integrante da infância e passavam a acompanhar o indivíduo a partir do momento em que ele se tornava capaz de compreender a fala do outro.

Com o tempo, a realidade foi se transformando, novas necessidades foram surgindo e a suave tarefa de oferecer histórias às crianças foi sendo deixada de lado, de modo que hoje o hábito de contar histórias parece ter caído em desuso.

[...] a narrativa, como hábito tradicional de contar histórias propiciadoras de conhecimento e como meio de contato com valores sociais, foi perdendo sua essência ao longo dos anos e sendo substituída por outras formas de contar histórias, orientadas muito mais para a transmissão de informações do que de valores e conselhos. (Evans, 2013, p.30)

Benjamin (1936), no ensaio "O Narrador", já àquela época, explicita que a perda do hábito de contar histórias gerou, nos indivíduos, a incapacidade de trocar experiências. A afirmação nos leva à assertiva inversa: o hábito de contar histórias é propiciador da troca de experiências e de valores da comunidade, da sociedade na qual o sujeito se insere e sua falta acarreta sérios prejuízos à formação pessoal.

Por tratar-se de um ato social, a narração (leitura de histórias ou mesmo sua criação) é facilitadora do desenvolvimento das funções psicológicas superiores: atenção, concentração, percepção, imaginação, memória, pensamento e linguagem, que, segundo Vygotsky (1930) diferenciam os seres humanos das demais espécies animais. Nesse sentido, atua como importante ferramenta da formação intelectual do indivíduo, na medida em que sua prática mobiliza cada uma das funções psicológicas superiores.

Considerando que o desenvolvimento da narrativa constrói-se na apropriação das funções psicológicas superiores, Vygotsky (1930) discute que é a partir delas que ocorre a estrutura de operações com signos, criando novas formas de processos psicológicos enraizados na cultura. (Evans, 2013, pp.13-14)

O contato social que se dá no momento da narração auxilia o desenvolvimento da abstração linguística e a organização do pensamento, que, por sua vez, criam a base na qual a comunicabilidade pessoal desenvolver-se-á.

Aplicando-se a teoria dos estilos cognitivo-afetivos (Fagali, 2010), é possível entender que cada indivíduo, conforme seu estilo predominante, sentir-se-á "atraído" por um tipo específico de texto, pois suas capacidades cognitivas, reações e defesas psíquicas e afetivas facilitarão ou dificultarão o desenvolvimento dessa aprendizagem. Isso significa que a indicação e o uso das narrativas, enquanto intervenção terapêutica, deverá levar em conta o estilo preponderante do cliente, o que facilitará o acesso às suas habilidades e dificuldades.

Além disso, cada uma das funções superiores indicadas na teoria de Vygotsky (1930) mostra-se presente tanto nos estilos individuais - com diferentes intensidades, conforme o perfil individual - quanto na prática de contar e ouvir histórias, o que leva a crer que as narrativas atuarão na denominada Zona de Desenvolvimento Proximal Vygotsky (1930).

O trabalho culminou no entendimento de que as narrativas são propiciadoras de algo além da formação leitora ou da facilitação da escrita, visto que auxiliam no desenvolvimento de estruturas mentais e no fortalecimento da personalidade, o que permitiu afirmar que histórias são estruturadoras do pensamento, portanto humanizadoras.

O presente artigo pretende não apenas reafirmar que a ausência das narrativas acarreta, na vida do sujeito, a perda da orientação prática, a incapacidade de narrar, de criar, de solucionar seus conflitos e de entender-se como indivíduo, mas, além disso, pretende referir à narrativa, primeiramente, como viés comunicativo entre o indivíduo e o mundo e, mais especificamente no espaço clínico, demonstrar que a narração abre espaço para a relação cliente-terapeuta psicopedagógico e atua como instrumento de uma intervenção terapêutica transformadora.

Tomou-se como referência para este estudo a análise do trabalho desenvolvido com J, um adolescente atendido em clínica psicopedagógica, com queixa de dificuldade de escrita. O caso em questão mostrou-se, ao longo do processo de diagnóstico, muito mais grave do que se imaginava, visto que a ausência da narrativa na formação do cliente deixara lacunas na constituição da relação pensamento-linguagem (Vygotsky 2002), o que impedia o jovem de comunicar-se de maneira organizada e espontânea, mesmo em situações informais, através da oralidade.

A seguir, passa-se à exposição do relato da experiência e à discussão.

 

Relato

J apresentou-se para atendimento clínico em outubro de 2010 e me foi encaminhado em abril de 2012, quando a estagiária em psicopedagogia daquele espaço clínico realizou a passagem de vínculo.

A queixa inicial, apresentada pelo cliente e pela mãe, dizia respeito à dificuldade com a escrita e o relatório de encaminhamento acrescentava informações quanto ao estilo cognitivo-afetivo de J e outras dificuldades, que se apresentavam no campo da relação interpessoal.

3Pode-se criar a hipótese de que J tenha a percepção como estilo cognitivo afetivo superior4. Nas leituras, era evidente como ele se prendia à descrição da história, aos detalhes, às ações. Quando solicitado que imaginasse, criasse em cima do que sentisse, ficava sempre preso ao concreto, usando pouco a subjetividade. [...] pôde-se notar [...] uma dificuldade deste em lidar com os seus sentimentos, abordá-los e falar sobre eles, além de muito superficialmente5 .Ele se fechava, quando voltávamos muito a ele mesmo, ao que sentia, gostava e não gostava, ficando muito no concreto.

Para melhor entendimento do estilo cognitivo-afetivo de J, deve-se considerar que "percepção", da teoria junguiana, corresponde, na teoria de Fagali (2010), ao estilo vivencial-sensorial-introspectivo, caracterizado nos seguintes termos:

Manifesta o uso predominante da observação silenciosa, com poucas expressões verbais. Reage positivamente às situações vivenciais em que se utilizam os canais sensoriais, os recursos de manipulação do material e das referências e dos modelos externos para se situar. Segundo as referências de Jung, suas características em relação à função de contato correspondem à função sensorial - perceptiva [...] As motivações estão no contato sensorial com os objetos e as pessoas. Os mecanismos defensivos ocorrem por meio das reações corporais: paralizações, uma sensação de ausência e de "dar branco" mental, ou a somatizar. Em relação às inteligências de H. Gardner, também tendem como o anterior a usar mais eficazmente a inteligência sinestésica e viso-espacial. O corpo, as artes sensoriais, o contato com alimentação e elementos da natureza são os melhores recursos que essas pessoas que adotam predominantemente esse estilo usam. (Fagali, 2010, pp. 18-19)

Acrescenta , ainda, Fagali (2010):

Na literatura, exploração da descrição de lugares, personagens, ações, romances, cenas ou poesias, apoiado nas ações e nas sensações visuais, cromáticas, olfativas, sonoras. (Fagali, 2010, pp. 39-40)

Verificadas as informações constantes do relatório e após entrevista preliminar com a psicopedagoga que se despedia do caso, o cliente e a mãe, iniciaram-se as sessões que passo a descrever.

As atividades clínicas foram inauguradas no intuito de oferecer a J um ambiente acolhedor que possibilitasse a construção de uma relação empática entre ele e a psicopedagoga. Deste modo, ao longo das primeiras sessões, considerando as características de seu perfil cognitivo-afetivo, utilizaram-se atividades com massinha, jogos de montar, pintura e desenhos.

Observou-se, ao final da terceira sessão, que não havia possibilidade de iniciarmos um trabalho mais direto com a escrita, visto que J demonstrava grande resistência ao trabalho com texto.

Embora dissesse ler em casa, no consultório não demonstrava essa habilidade e não apresentava interesse por livros ou pela escrita. Quando era solicitada sua opinião a respeito das atividades, ou mesmo a escolha dos jogos que seriam utilizados na sessão, J não se manifestava ou, simplesmente, aceitava aquilo que lhe era sugerido.

Como primeira atividade envolvendo a linguagem verbal, optou-se pela sondagem das habilidades comunicativas, oral e escrita, do cliente, cujos resultados foram insatisfatórios, conforme a explicitação a seguir.

A comunicabilidade oral foi avaliada em conversas realizadas durante as sessões, a partir das quais o cliente era incentivado a escolher atividades entre jogos, livros e brinquedos ou relatar uma situação vivida, na escola, entre amigos, ou na família; o que sempre resultava em manifestações de indiferença, "esquiva" ou paralisia. Por esse motivo o resultado foi considerado insatisfatório.

A escrita foi avaliada em sessão durante a qual a psicopedagoga solicitou ao jovem o registro de pequenas explicações, por escrito, da escolha de figuras representativas de seus gostos.

A despeito das dificuldades de registro observadas na figura1, interpretou-se que, embora as habilidades linguísticas de J na modalidade escrita estivessem aquém daquelas consideradas medianas para a sua faixa etária, a comunicação se realizava em seu registro, pois atendera satisfatoriamente àquilo que lhe havia sido solicitado, ou seja, comunicara por escrito o motivo de suas preferências.

 

 

O que sucedeu à aplicação da sondagem, no entanto, revelou-se um entrave na comunicação psicopedagoga-cliente, pois J passara a ausentar-se das sessões, sem justificativa, numa recusa à intervenção que a pouco se iniciara. Após duas semanas de ausência injustificada, entrei em contato com a família e J explicou-me que estivera atrasado, comprometendo-se a comparecer à sessão seguinte.

Obviamente a estratégia, adotada naquele primeiro momento, necessitava ser revista, pois gerara em J uma recusa inédita ao trabalho psicopedagógico, considerando o acompanhamento realizado desde 2010. Por esse motivo, pensou-se numa abordagem mais colaborativa, que envolvesse psicopedagoga e cliente num processo mediado pelas narrativas que, nas palavras de Walter Benjamin, teriam o poder curativo, nesse caso aplicado à dificuldade linguística de J.

A cura pela narrativa, já a conhecemos através das palavras mágicas de Mersenburger - e não porque repitam a fórmula mágica de Odin. Narram, antes, o contexto no qual ele as utilizou pela primeira vez. Também se sabe o quanto a narração que o doente faz ao médico, no início do tratamento, pode tornar-se o começo de um processo de cura. Surge, assim, a questão: a narração não criaria, muitas vezes, o clima apropriado e a condição mais favorável de uma cura? Não seria toda doença curável se ela se deixasse levar pela correnteza da narração até a foz? Se considerarmos a dor uma barreira que bloqueia a corrente da narração, podemos ver claramente que ela se quebra quando o declive é suficientemente acentuado para arrastar tudo que encontra em seu caminho em direção ao oceano do venturoso esquecimento. O afago desenha um leito para essa correnteza. (Benjamin, 2002, pp.115-116)

A evidente dificuldade comunicativa de J e o possível entrave na relação psicopedagoga-cliente exigiam urgente alteração nos planos até então estabelecidos para o trabalho clínico. Nesse ponto, as narrativas surgiram como possibilidade de intervenção, imaginando tratar-se de um instrumento de aproximação ao mesmo tempo em que fariam parte de um processo pedagógico de acompanhamento da escrita e da leitura de J.

Associando o trabalho com narrativas ao trabalho com a leitura e escrita, criou-se uma sequência de atividades, a partir das quais, considerando o estilo cognitivo-afetivo de J, tornar-se-ia possível a leitura de textos, a reflexão sobre eles, a oralização e a escrita, gerando o desenvolvimento do pensamento e da linguagem.

Considerou-se, pelos motivos expostos anteriormente, concluída a sondagem, passando-se à sequência de atividades que levariam J ao desenvolvimento de suas habilidades comunicativas, com base no estudo do texto narrativo.

A primeira etapa do procedimento configurou-se na escolha de um livro de histórias que agradasse o cliente. Alguns títulos, relacionados aos aspectos valorizados pelo seu estilo cognitivo-afetivo, foram oferecidos e expostos, de modo que J pôde folheá-los e escolher aquele que mais o agradasse. A escolha recaiu sobre o título "Que eu vou pra Angola", um conto popular, registrado por Ruth Rocha.

A sequência de atividades envolvendo as narrativas seria, então, iniciada.

Sabia-se que para esse trabalho seria necessária a retomada de algumas das etapas necessárias à formação da escrita: a representação simbólica através dos objetos, dos símbolos e dos desenhos (Vygotsky, 1930), garantindo que todo o processo de desenvolvimento da escrita fosse também, de maneira simbólica, reiniciado e revivido por J, auxiliando-o na (re)construção desse percurso. Por esse motivo, cada uma das atividades foi planejada, considerando-se as teorias de Vygotsky (1930) e Fagali (2010).

Acrescentou-se a essa detecção o fato de que o desenvolvimento do estilo cognitivo-afetivo predominante em J exigia o trabalho com materiais concretos, o que facilitaria a aceitação, pelo jovem, das intervenções terapêutico-psicopedagógicas.

Reage positivamente às situações vivenciais em que se utilizam os canais sensoriais, os recursos de manipulação do material e das referências e dos modelos externos para se situar. Segundo as referências de Jung, suas características em relação à função de contato correspondem à função sensorial - perceptiva [...] As motivações estão no contato sensorial com os objetos e as pessoas. (Fagali, 2010, pp.18-19)

Além disso, o estilo cognitivo-afetivo predominante, segundo Fagali (2010), é sempre apoiado por outros dois estilos, considerados auxiliares ou de apoio, que podem atuar como facilitadores do desenvolvimento, posto que apresentam habilidades menos desenvolvidas, mas potenciais no indivíduo. No caso em análise, que além de outras questões apresentava carência do fortalecimento da relação interpessoal, seria preciso encontrar o ponto de intersecção entre o estilo do cliente e da psicopedagoga, de modo a aproximá-los e fortalecer o vínculo entre eles.

Assim sendo, as ações terapêuticas passaram a valorizar o encontro de habilidades comuns entre psicopedagoga e cliente, mas que não configurassem agressão a nenhum dos envolvidos. Buscou-se apoio, portanto, no estilo auxiliar empático-afetivo-comunicativo6, que se revelava uma carência naquele contato e possibilitaria a relação empática cliente-terapeuta psicopedagógica.

A etapa seguinte consistiu na leitura oral, pela psicopedagoga, do conto escolhido por J, já que a atividade não exigiria dele a exposição de suas dificuldades e geraria a aproximação entre eles. O resultado foi positivo: J respondeu bem à atividade e, satisfeito, ouviu atentamente a solicitação da psicopedagoga para atividade seguinte na qual deveria escolher, dentre várias opções disponíveis, uma forma para recontar a história lida, através de desenho, trabalho com argila, pintura, recorte e colagem, encenação, recontagem oral ou escrita, ou o que ele sugerisse. Para concretização de sua escolha, J teve à disposição materiais diversos: lápis, canetinhas, argila, revistas, papéis brancos e coloridos, pautados ou não. Surpreendentemente, sua escolha recaiu sobre a escrita.

J realizou, a seu modo, uma espécie de síntese da história que eu lhe havia contado, em seguida ilustrou o texto e apresentou-me [...]. Notei, entretanto, que durante a atividade de escrita, que durou cerca de 30 minutos, todo o entusiasmo que fora mostrado por J durante a audição do conto, esvaíra-se. A produção ocorria de forma automática, sem muito envolvimento ou prazer; ele realizava o trabalho sem nenhuma interação, pausa ou questionamento. De cabeça baixa, enrijecido, com um dos braços estendido e outro apoiado no papel, apenas escrevia, como se fosse uma ação automática e como se tivesse naquilo uma obrigação. Não expus minha análise a J, mas perguntei sobre sua escolha, obtendo uma resposta bastante objetiva, precisa e reveladora: "Eu preciso escrever, vim aqui para aprender isso." (Evans, 2013 p.49)

A partir desse momento, entendeu-se que J passara a utilizar-se, conscientemente, da comunicação; pela primeira vez apresentara no espaço clínico sua leitura da situação, num esforço nítido de responder aos anseios da psicopedagoga que esperava iniciar o quanto antes o trabalho com a escrita, a fim de buscar intervenções mais precisas, que pudessem auxiliar J a lidar com suas dificuldades e minimizar seus efeitos negativos.

[...] assumira, no momento da escolha da forma de representação da história, aquilo que, apesar de lhe gerar desprazer, atenderia à satisfação do desejo de seu interlocutor (eu). A habilidade de J para lidar com essa interação comunicativa revelava alguns discursos implícitos: "eu percebo seu desejo e correspondo a ele", "eu noto seu esforço para satisfazer meu desejo", "eu aceito essa troca". Atrelada a esse discurso, J demonstrava sua capacidade de interpretação e manipulação da linguagem, a fim de estabelecer uma comunicação afetiva. (Evans, 2013, p.49-50)

As atividades seguintes levaram em conta o fortalecimento da relação psicopedagoga-cliente e as habilidades comunicativas já reveladas por J, para que ele chegasse à construção autônoma de suas narrativas. Para tanto, adotaram-se procedimentos que ofereceram a J modelos de narrativas e ferramentas para sua análise, o que culminaria no desenvolvimento das habilidades de comunicação, até a conquista da escrita autônoma.

Atividade 1. (Relacionada ao conto de Ruth Rocha.)

Caracterização das personagens da história através do trabalho com argila.

J apresentou seu trabalho, nomeou cada uma das construções e contou o porquê de suas construções, relacionando-as à história que lhe servira de inspiração.

Além de oferecer ao jovem a possibilidade de realizar um trabalho sensorial - habilidade típica de seu estilo cognitivo-afetivo - a atividade exigia a captação das características das personagens e sua transposição para um objeto concreto, o que exigiu abstração, memorização, associação e simbolização, dentre outras habilidades, todas ligadas às funções superiores.

Atividade 2. (Relacionada ao conto de Ruth Rocha.)

Ordenação de fichas com registros objetivos da sequência narrativa. (Para cada etapa da narrativa foi elaborada uma ficha - num total de 12, que apresentavam a situação inicial do conto, os fatos desencadeadores da sequência narrativa e a situação final)

J ordenou-as, conforme a lembrança da história contada e recontada a cada sessão, com possibilidade de consulta ao livro.

A atividade ofereceu ao jovem a observação dos elementos estruturais do texto narrativo, ou seja, cada uma das etapas constitutivas da história.

A tarefa de ordenação exigiu dele a leitura, memória, organização, sequenciação, dentre outras habilidades.

Atividade 3. (Relacionada ao conto de Ruth Rocha.)

Apresentação da história e do trabalho desenvolvido a uma terceira pessoa.

Com o auxílio e a orientação da psicopedagoga, J planejou a atividade de apresentação e realizou-a no final de três sessões.

Nessa atividade, a comunicação foi totalmente necessária e, apesar da participação da psicopedagoga no planejamento e orientação do trabalho, J sentiu-se valorizado em sua habilidade comunicativa, pois fora encorajado a expor sua criação a um colega, também em acompanhamento psicopedagógico. Importante mencionar que as etapas do planejamento foram acompanhadas com muita responsabilidade pelo jovem, o que demonstrou a importância do evento que, para ele, representou uma conquista significativa.

Atividade 4.

Diário psicopedagógico.

Realização, por J, de registros diários das sessões, que não seriam lidos ou corrigidos pela psicopedagoga, a não ser que ele solicitasse.

Nesse ponto o trabalho com a escrita já estava bastante fortalecido e J começava a realizar as atividades comunicativas de forma autônoma. A opção por não corrigir os erros de registro no diário surgiu devido à percepção de que, naquele momento, a afirmação de J como autor era muito mais valiosa que a detecção/correção de erros, o que, ao contrário, poderia levá-lo, novamente, à recusa ou à falta de motivação para o trabalho psicopedagógico.

Atividade 5.

Planejamento conjunto de ações que levariam J à autonomia narrativa e à construção de uma narrativa pessoal.

Nesse ponto do trabalho, o vínculo entre a psicopedagoga e o cliente já estava estabelecido e a confiança entre eles propiciava novas iniciativas, por isso, iniciou-se um novo conjunto de ações, planejadas para o trabalho de construção da narrativa pessoal de J.

Apropriado dos modelos e da estrutura dos textos narrativos e fortalecido em suas habilidades comunicativas, J estava preparado para a etapa final do trabalho.

Os procedimentos dessa etapa foram: leitura de novos modelos, identificação das origens de J; caracterização física, da personalidade e das vontades; elaboração de sua imagem após as sessões nas quais o trabalho esteve relacionado à narrativa.

Atividade 5.1. Iniciou-se pela leitura do capítulo inicial do livro "Nas ruas do Brás", de Dráuzio Varela, em que o protagonista apresenta sua história a partir da trajetória de sua família. Com isso, pretendia-se que J começasse a construir sua história de vida, considerando seus familiares, pai, mãe, tios, avós e pudesse desenvolver alguma atividade em resposta a essa motivação.

O trabalho com a narrativa pessoal de J finalmente iniciou, após a preparação através de modelos que lhe foram oferecidos inicialmente: narrativa de conto popular de Ruth Rocha e narrativa autobiográfica de Dráuzio Varela.

Motivado para a produção, J apresentou, através de desenho e de poucas palavras, a origem familiar e sua relação com cada integrante da família.

Atividade 5.2. No passo seguinte, J ouviu a leitura do conto "O rei e seus 5 filhos"7 e, após reflexão sobre as habilidades de cada um dos filhos do rei, apresentou sua escolha, revelando as características de personalidades e habilidades que valorizava.

A escolha de J recaiu sobre a personagem, na história, caracterizada pela escuta, tanto do povo, quanto dos ministros, o que revelou seu interesse em questões ligadas ao afeto, pois o terceiro filho (escolha de J) era, na história, caracterizado como alguém que possuía as características de estilo preponderante empático-afetivo-comunicador. (Evans, 2013, p 58)

Atividade 5.2.1. Em seguida, escolhendo a modalidade escrita, J registrou as características que valorizava em sua personalidade e na relação com as pessoas.

"Eu gosto moto da minha famin lia é não gosto que fala da micha mãe serio mesmo e não so menino de rua não quero fala mais nada por qui."8 (Evans, 2013, p 58)

Atividade 5.3. Como última das atividades da segunda etapa do trabalho, houve a retomada do trabalho manual, na elaboração de uma máscara de papel machê, que representasse a imagem que J fazia de si mesmo, após as sessões nas quais o trabalho esteve relacionado à narrativa.

Importante ressaltar que o trabalho manual sempre representou prazer para J, o que foi detectado desde as primeiras sessões e veio reforçado nas características de seu estilo cognitivo-afetivo; por esse motivo, essa atividade foi planejada como forma de "coroar" a trabalho do jovem.

O resultado da atividade foi a apresentação de uma máscara colorida, na qual J se descreve como feliz e realiza a narrativa oral do processo pelo qual havia passado antes da elaboração do objeto.

 

Resultados

Embora o texto, apresentado na atividade 5.2.1., revele dificuldades ortográficas, de acentuação e pontuação, foi tomado como satisfatório e considerou-se que ele cumpriu sua função comunicativa, por esse motivo, foi bem recebido, já que o objetivo, naquele momento, era tão somente fazer com que J passasse a utilizar-se da escrita como recurso comunicativo, o que, de fato, se concretizou.

A valorização do texto de J, naquele momento, era de grande importância para o processo, por isso houve um diálogo a respeito do resultado e a leitura da psicopedagoga, que observou ao autor (tratado nesses termos) que em seu texto coordenavam-se duas afirmações distintas "Eu gosto muito da minha família" e "não gosto que falem da minha mãe", que levavam a outra situação, que poderia - em outro texto - ser explicada; uma certa insatisfação com o que poderiam pensar dele "Não sou menino de rua.". Além disso, referiu-se também à forma utilizada para a conclusão do texto: "não quero falar mais nada por aqui".

Deste modo, foi exposto a J o teor comunicativo de seu texto, os sentidos atribuídos a cada uma das frases e a sequência em que foram construídas. O processo de leitura do texto assemelhou-se ao que se fizera com a primeira narrativa, ao se organizarem as fichas contendo sua sequência, pois J percebia a estrutura textual de sua produção.

A atividade surtiu bons resultados e J pareceu satisfeito com as observações. Fortalecido, ainda mais, em sua autoestima, o jovem pôde executar a atividade de produção da máscara, mostrando-se feliz com seu percurso.

O processo de construção da narrativa pessoal de J não terminava, evidentemente, naquela sessão, mas na clínica as etapas sugeridas inicialmente encerravam-se com a produção de uma máscara de papel machê, que revelou uma imagem colorida e extrovertida de J.

Ainda em relação ao produto final, a observação da ação de J, ao fazer a máscara, revelou um jovem interativo, sorridente, comunicativo, muito diferente daquele que se apresentara inicialmente e com o qual não se estabelecia a interação.

[...] 'a construção da linguagem só ocorre mediada pelas relações sociais', (...) essa assertiva nunca fizera tanto sentido quanto fazia naquele momento, no qual eu observava a construção da narrativa em J e em mim mesma, podendo verbalizar a respeito da construção da minha identidade como terapeuta-psicopedagógica. (Evans, 2013, p.60)

Na caminhada que se seguiu aos procedimentos anteriormente descritos, verificou-se que o fazer terapêutico-psicopedagógico, planejado para o fortalecimento da autoestima de J, para a instauração da comunicabilidade e para a construção de uma narrativa interna, gerou, no cliente, a intensificação do desejo pela escrita.

Numa iniciativa do próprio cliente, em busca do desenvolvimento das habilidades necessárias para o domínio da linguagem escrita, ocorreu a produção de uma narrativa, escrita com total autonomia durante uma das sessões subsequentes (Figura 2).

 

 

O texto narrativo elaborado espontaneamente por J apresentava todos os elementos característicos do gênero: sequência, indicação temporal e espacial, caracterização da personagem, conflito, clímax e desfecho.

A história escrita por J surpreendeu pela organização dos elementos narrativos, algo que não havia aparecido, até então, nem na oralidade. Seu texto apresentou uma sequência bastante coerente e todos os elementos narrativos bem organizados, revelando que os modelos apresentados nas intervenções haviam sido apreendidos pelo jovem.

Apresento abaixo a sequência em que se estruturou o texto narrativo a que me refiro:

I. O personagem é um colega de escola que pretendia tornar-se um MC.9

II. O jovem não tinha apoio dos outros meninos, que diziam que ele não sabia rimar.

III. Resolve o protagonista ouvir as músicas "dos outros" para começar a aprender.

IV. Percebe que a audição não é suficiente e começa a estudar.

V. Grava uma produção sua e coloca na Internet.

VI. Para sua surpresa, ele é visto por muitas pessoas que registram em sua página mais de 300 acessos.

Nota-se, pela exposição do enredo, que J elaborou uma narrativa coerente e coesa, na qual os eventos sucedem-se numa sequência lógica, que preserva os elementos constitutivos do enredo tradicional: apresentação (I), conflito (II), desenvolvimento (II e IV) clímax (V) e desfecho (VI).

Ressalto que a conquista da escrita autônoma, nesse momento do trabalho, surpreendeu-me e colaborou de forma decisiva para a constatação de que a estruturação do gênero narrativo - que aqui foi realizada através da contação de histórias e do trabalho de recontagem, análise e síntese - foi essencial não só para a elaboração das histórias pessoais e o fortalecimento da autoestima, como para a conquista das potencialidades comunicativas ligadas à escrita.

 

Discussão

Nesse artigo, demonstrou-se que o trabalho clínico individualizado, partindo do diagnóstico do estilo cognitivo-afetivo e de suas particularidades, bem como o uso da narrativa como instrumento de intervenção terapêutico-psicopedagógica, foi propiciador do desenvolvimento das potencialidades comunicativas do cliente.

Para efeitos de generalização, entende-se que este estudo pode contribuir para a formação de psicopedagogos e para a orientação do trabalho clínico que se utilize das narrativas como meio de intervenção, considerando-se as habilidades individuais e as potencialidades do estilo cognitivo-afetivo do cliente.

Levou-se em conta, para a realização do trabalho clínico, o estilo cognitivo afetivo do cliente e algumas das características nas quais se apoia sua personalidade vivencial-sensorial-introspectiva:

  • Memória visual, auditiva e mecânica, apoiada no ato de "decorar" com apoios sensoriais ou mecânicos;
  • Atenção focada, com captação das informações através do mapeamento ponto a ponto.
  • Motivação ligada à rotina e execução de tarefas repetitivas e atividades que envolvam manipulação sensorial.

O fortalecimento desse estilo, levando em conta suas características, possibilitou o alcance e o desenvolvimento dos estilos auxiliares: racional lógico e afetivo.

Lembra-se, entretanto, que para o alcance das potencialidades auxiliares foram necessários procedimentos de análise diagnóstica do cliente e autoanálise da terapeuta-psicopedagógica, a fim de se aferirem as condições propiciadoras do trabalho, envolvendo ambas as personalidades.

 

Referências

BENJAMIN, W. (1992) Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política. Tradução de Maria Amélia Cruz et al. Lisboa: Relógio D´Água.         [ Links ]

BENJAMIN, Walter. Narrativa e cura. in Jornal de Psicanálise, São Paulo, no. 35, págs. 115 - 116, dez. 2002.         [ Links ]

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1 O presente artigo apresenta um enfoque específico baseado na monografia de conclusão do curso de Psicopedagogia de mesma autoria, denominada "Diagnóstico e aprendizagem na construção da linguagem: estilos cognitivo-afetivos e mediações através das narrativas" (PUC-SP, 2013).
2 Nome fictício.
3 As informações a respeito do paciente - constantes neste artigo - foram extraídas da documentação do estágio, entretanto, por considerar-se a necessidade de sigilo, suprimiram-se alguns trechos e todas as informações que pudessem deflagrar a verdadeira identidade do jovem aqui nomeado J
4 Conforme a abordagem aqui apresentadas, o perfil apontado no relatório corresponde, segundo a teoria dos estilos cognitivoafetivos Fagali (2010), ao estilo cognitivo-afetivo: vivencial-sensorial-introspectivo.
5 Grifo nosso.
6 Segundo a teoria dos estilos cognitivo-afetivos, Fagali (2010), os indivíduos apresentam um estilo predominante (representativo de suas habilidades e facilidades afetivo-cognitivas), outros dois estilos de apoio ou auxiliares (representativos de habilidades menos desenvolvidas, mas próximas de um desenvolvimento) e um estilo em posição inferior, ou menos desenvolvido  representativo das dificuldades ou das habilidades menos desenvolvidas pelo indivíduo). Deste modo, pode-se entender que a psicopedagoga e J apresentavam como um dos estilos de apoio ou auxiliar o "empático-afetivo-comunicativo", que pôde servir de base para as intervenções, pois tornou-se o meio de aproximação entre eles.
7 Parte do material cedido pela supervisora, Dra. Eloisa Fagali, para avaliação do estilo cognitivo-afetivo.
8 Segundo a leitura de J: "Eu gosto muito da minha família e não gosto que falem da minha mãe. Sério mesmo! Eu não sou menino de rua. Não quero falar mais nada por aqui."
9 Music Command: pessoa que canta RAP, comanda os versos ou a rima.