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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.22 no.23 São Paulo  2014

 

Gestalt-terapia e psicopedagogiaI

 

Gestalt therapy and psychopedagogy

 

 

Adriane Cavalcantia

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

 

 


RESUMO

Este artigo é uma síntese da monografia para conclusão do curso de especialização em Psicopedagogia da PUC-SP, em 2013, que focalizou uma investigação teórica enfeixando questões a respeito das possiblidades de articulação entre a Gestalt-terapia e a Psicopedagogia. Aqui, procuramos mostrar como a Gestalt-terapia pode contribuir para as reflexões e práticas psicopedagógicas a partir de três temas, que correspondem a princípios fundamentais dessa psicoterapia e que podem ser pensados na área pedagógica, a saber: 1- a awareness como ampliação da consciência dos sujeitos envolvidos na dinâmica da aprendizagem; 2- os níveis de contato e resistência na situação de aprendizado; e 3- o jogo entre figura e fundo na aprendizagem. Através desses temas, procuramos traçar uma intersecção em que a Gestalt-terapia enriquece o campo da Psicopedagogia.

Palavras-chaves: Gestalt-terapia, Psicopedagogia, Awareness, Contato e resistência, Figura-fundo.


ABSTRACT

This article is a summary of my monograph for graduation in the specialization course in Psychopedagogy from PUC-SP, in 2013, which focused on a theoretical investigation assembling questions related to the possibilities of articulation between Gestalt Therapy and Psychopedagogy. Here, we show how the Gestalt Therapy can contribute to psychopedagogical reflections and practices. We have chosen three themes, that correspond to the fundamental principles of this psychotherapy and which can be articulated in the pedagogical area, namely: 1 - awareness as an extension of the consciousness of the subjects involved in the learning dynamic; 2 - the levels of contact and resistance in the situation of learning, and 3 - the fluidity in alternating between figure-ground organization for meaningful learning. Through these themes, we seek to trace an intersection in which Gestalt Therapy enriches the field of Psychopedagogy.

Keywords: Gestalt Therapy, Psychopedagogy, awareness, contact and resistance, figure-ground.


 

 

Introdução

A Gestalt-terapia, como linha de pensamento psicoterapêutica, fornece ideias aplicáveis para se pensar o processo de ensino-aprendizagem quando se pressupõe que: o aprendiz deve ser incentivado a desenvolver um autoconhecimento ou ampliar sua consciência a partir de si nas relações com o mundo, e buscar novas sínteses pessoais integradoras que o permitam recriar-se e, ao mesmo tempo, construir a realidade à sua volta; além disso, quando se considera o aprendiz como uma unidade corpo-mente-emoção, em que caminham juntas a cognição e a afetividade, a subjetividade e a objetividade. A confluência dos princípios e métodos da Gestalt-terapia com o campo da Educação se concretizou no movimento de ensino chamado Gestaltpedagogia que representa uma referência valiosa para se pensar o ensino no âmbito institucional. Neste presente texto, procuramos de que maneira a Gestalt-terapia pode contribuir para as reflexões e práticas psicopedagógicas, focalizando três temas que permitem traçar uma intersecção em que essa psicoterapia enriquece o campo da Psicopedagogia.

 

A ampliação da consciência dos sujeitos envolvidos na dinâmica da aprendizagem.

Awareness é um conceito fundamental da Gestalt-terapia, a que Perls, Hefferline e Goodman se referem como "processo de estar em contato vigilante com o evento de maior importância no campo indivíduo/meio" (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.42). Em outras palavras, trata-se de estar plenamente atento à situação em que se vive percebendo-se no conjunto daquilo que se está fazendo e como se está vendo a situação, no campo marcado pela interação entre organismo e meio em todos os seus níveis: sensorial, emocional, cognitivo e energético.

Traduzida geralmente por "consciência", mas também, conforme o contexto, por: "tomada de consciência", "compreensão", "percepção", "presentificação" ou "ampliação da consciência", a awareness está ligada ao instante aqui e agora (Perls, 1977, p.65), isto é, ocorre no espaço que o corpo ocupa e na amplitude dos seus sentidos ancorado no momento do tempo presente. Desenvolver a awareness é o objetivo dos métodos gestalt-terapêuticos, pois somente assim o organismo pode se ajustar ao meio e evitar mecanismos que levam às condutas repetitivas, aos processos de bloqueio de contato com a realidade ao redor, à interrupção da satisfação das necessidades pessoais, aos medos, inibições e ilusões (Ginger, 1995, p.18). Como nos experimentos de Polster, a awareness pode ser estimulada em vivências que possibilitem a "introspecção" ou "disponibilidade para a autoconsciência" (Polster, 2001, p.214) através da focalização nas sensações e ações, sentimentos, desejos, valores e avaliações. Somente através da ampliação dessa consciência a pessoa pode modificar o modo de lidar com o meio.

Segundo Fagali (Fagali, 2007, p.102), a Psicopedagogia parte de um princípio básico que considera que o aprendiz, assim como o profissional que viabiliza a aprendizagem, é capaz de se "auto-refletir, se auto-perceber", e que a ampliação da consciência das pessoas envolvidas no processo ensino-aprendizagem é essencial para a construção de conhecimento. Essa noção também é fundamental na Gestaltpedagogia que, transpondo a Gestalt-terapia para o contexto da educação institucional, estimula a oportunidade da pessoa reconhecer seus conteúdos internos para poder modificar seu comportamento1.

Os métodos gestalt-terapêuticos de estimulação da awareness podem ser utilizados para localizar bloqueios e resistências, para vivenciar experiências que deslocam as pessoas dos sentimentos de impotência e limitação para a criação de novas formas de atuação a partir da condição de auto percepção e da capacidade de modificar a si e o meio.

Nesse contexto, a awareness pode ser tomada como:

processo em que se leva em conta o valor da experiência no aqui e agora, a dinâmica intersubjetiva, as articulações entre a subjetividade e a objetividade e as diferentes dimensões de consciência tendo em vista os níveis de contato e de resistência das pessoas, sejam as que aprendem, sejam as que ensinam ou orientam (Fagali, 2007, p.104).

Um exemplo de exploração da awareness numa situação de avaliação e intervenção psicopedagógica é abandonar o fluxo contínuo da comunicação, voltar à atenção sobre si, identificando o que realmente está acontecendo consigo no instante presente em que se está envolvido numa atividade - o que se sente no momento, como está o corpo, o que se pensa, qual a disposição energética; e ser capaz de relatar processos que em geral permanecem ocultos. É um movimento de introspecção e cuidado com aspectos os quais geralmente não damos atenção: encontrar qual parte do corpo se mexe ou é tensionada quando se está sob uma determinada emoção, falando ou pensando algo particular; como é a respiração, a disposição ou a exaustão numa atividade específica - por exemplo: jogar, contar ou ouvir uma história, resolver uma questão que requer raciocínio lógico etc. As manifestações se dão na dimensão de contato com um acontecimento, sentimento ou uma característica pessoal que encontra resistência, com uma pessoa, com uma situação inacabada, com o novo etc. O psicopedagogo, sensível e habilmente atento a essas manifestações no aprendiz, pode orientá-lo a tomar consciência dessas conexões como primeiro passo para que ele possa de algum modo alterar o seu comportamento e caminhar rumo a um novo posicionamento.

Segundo o princípio de fomentar a awareness, qualquer atividade que o psicopedagogo venha a desenvolver, suscitando o pensar, o sentir ou a ação dos aprendizes, deve focar o que surge no aqui e no agora. Uma experiência passada significativa é trazida para o presente e aquilo que surge no momento presente, se vivido e compreendido ativamente, é o que permitirá uma qualidade de presença diferenciada. Essa característica no trabalho pedagógico é um dos aspectos referentes ao método salientado pelos autores Burow e Scherpp, no livro Gestaltpedagogia - um caminho para a escola e a educação. Assim como eles sugerem a respeito do professor, o psicopedagogo também deve estar apto para fazer "a captação consciente do aqui-e-agora", "reagindo com criatividade, fantasia e capacidade de compreensão" (Burow & Scherpp, 1985, p.124 e 150).

Caberia falar aqui também da importância do próprio psicopedagogo em se manter aware do que se passa consigo durante as experiências, no âmbito das suas sensações, sentimentos, desejos, valores e avaliações, para poder lidar com suas próprias resistências em qualquer dimensão em que elas possam surgir no encontro com o outro.

A relação entre educador e aprendiz é uma das preocupações da Gestaltpedagogia que podemos assumir na Psicopedagogia. O aprendiz deve ser considerado em sua existência como ser humano total - em suas particularidades tais como ser jovem, irmão, vizinho, etc., e em sua unidade corpo-mente-alma. A relação de quem ensina e de quem aprende deve ser verdadeiramente "intersubjetiva", em que as pessoas envolvidas confiam e respeitam umas às outras porque são "dois seres totais" (Burow & Scherpp, 1985, p.123). Ela deve ser a mais "horizontal" possível (Burow & Scherpp, 1985, p.148), sem condições ou papéis estabelecidos - isso implicaria ao professor, por exemplo, abrir mão de ser autoridade frente ao aluno (Lilienthal, 2006, p.32).

 

Os níveis de contato e resistência na situação de aprendizado.

Para a Gestalt-terapia, o ser humano é concebido como um ser de relações que se constrói no contato com o meio. Entende-se por "contato" um conceito que representa o contatar o ambiente, o ato sensorial que cria a realidade. É no contato ou encontro que o mundo se constitui. As experiências de contato se dão pelos seguintes modos: tocar, ouvir, ver, cheirar, sentir o gosto, falar e movimentar-se, processos chamados por Polster de "funções de contato" (Polster, 2001, p.140). O contato é, portanto, primeiramente uma experiência sensorial e, no caso do ser humano, ela é indissociável de uma elaboração cognitiva na forma de juízos.

O papel do gestalt-terapeuta é explorar a maneira como uma pessoa funciona em seu meio ou como é sua "fronteira de contato" (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.43) ou "limite de contato" (Ginger, 1995, p.127) - nas ordens física e psíquica, restringidas pelas condições sociais e individuais. Para Polster, por exemplo, a "fronteira do eu" (Polster, 2001, p.120) é o que limita os contatos que são permissíveis à pessoa assimilar frente às experiências novas e define as ações, ideias, pessoas, valores, ambientes, imagens, memórias etc., com as quais ela está disposta a se envolver. Zinker, por sua vez, analisa o contato como um "ciclo psicofisiológico" que visa à regulação das necessidades de maneira espontânea ou a "auto-regulação organísmica" (Zinker, 2007, p.107). Para a Gestalt-terapia, as perturbações ou resistências na fronteira, que resultam da autodefesa quando o contato não é bom, dificultam a tendência do organismo em contatar o meio ambiente, podendo gerar, pela sua repetição crônica, verdadeiros bloqueios de contato que impedem a pessoa de se desenvolver e crescer. Eis porque o enfoque terapêutico está na observação da fronteira de contato do paciente, a fim de trabalhar na superação das suas resistências.

A experiência de contato está na base do processo de aprendizagem, que passa pelo contato efetivo onde se dá a emergência de figuras nítidas e o fechamento de gestalten. A esse respeito, consideremos alguns pontos.

Em primeiro lugar, notemos que Perls (Perls, 1977, p.45) define expressamente que a aprendizagem é descoberta do significado ou fechamento e compreensão que resulta de uma forma de percepção pessoal extraída da experiência:

Aprendizagem é descoberta. Não existe outro meio de aprendizagem efetiva. Vocês podem dizer mil vezes a uma criança: 'O fogão está quente'. Não vai adiantar. A criança tem que descobrir sozinha.

Em segundo lugar, lembremos o que é figura e gestalt. A Gestalt-terapia toma da Psicologia Gestalt a noção do fenômeno figura-fundo que expressa a estrutura do ato de perceber. Quando experienciamos visualmente o ambiente, nosso olhar seleciona um foco específico que, para nós, se destaca sobre um fundo indistinto. Aquilo que se destaca é chamado de "figura", o resto permanece como o "fundo" (Zinker, 2007, p.110). A figura emerge do fundo como se fosse um baixo-relevo assumindo contornos claros. Essa posição figura-fundo é alternável, como mostra o célebre exemplo do vaso de Rubin, onde se percebe ou um vaso branco em fundo negro ou dois rostos de perfil negros sobre um fundo branco, dependendo do ponto para onde direcionamos o olhar. O campo perceptivo se organiza espontaneamente sob a forma de conjuntos estruturados e significantes e quando um dado conjunto se estrutura numa forma forte é chamado de gestalt (Schultz, 2007, p.327) Há, no sujeito da percepção, uma tendência natural na direção de fechamento de cada figura que se abre (Polster, 2001, p.46).

Se a Gestalt fala de figura e fundo em relação aos fenômenos perceptivos e cognitivos, a Gestalt-terapia radicaliza essa noção quanto à motivação que afeta a percepção e se interessa pelo fenômeno figura-fundo com respeito a todas as funções do organismo tendo em vista uma finalidade terapêutica. Com efeito, a figura sempre corresponde àquilo que, em determinado momento, se reveste de maior significado ou importância no campo psíquico do indivíduo. O desenrolar das ações de uma pessoa é condicionado à dinâmica viva entre figura e fundo, em que as figuras se destacam e se dissipam em função da emergência e da satisfação das necessidades pessoais. Toda vez que uma necessidade se impõe ao organismo, uma figura surge ou se abre em primeiro plano unificando a necessidade do organismo às possibilidades do ambiente. Enquanto a figura é algo "especificamente psicológico", o fundo é todo o contexto físico, sociocultural e biológico de uma pessoa. Quando o equilíbrio se restaura, a situação é fechada, acabada e, então, uma gestalt se completa. Se houver interrupção do fluxo de formação e destruição de figuras, restam gestalten abertas e necessidades não satisfeitas que, em última instância, levam a pessoa a ter comportamentos repetitivos na tentativa de satisfazer sua necessidade e restaurar o equilíbrio (Ginger, 1995, pp.46; 62-63).

Quando a figura não é bem formada, não é bem destacada ou não há seu fechamento, isso ocorre devido à falha no contato. Ou, em outras palavras:

algo no ambiente está obliterado, alguma necessidade orgânica vital não está sendo expressa; a pessoa não está 'toda aí', isto é, seu campo total não pode emprestar sua urgência e recursos para o completamento da figura (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.46).

Assim, se é no contato que se dá a emergência de uma figura dominante sobre um fundo/contexto, os bloqueios de contato impedem o aparecimento ou o fechamento da figura e, então, uma gestalt não se completa.

Levando em conta esses pontos descritos, podemos entender melhor o que significa dizer que a aprendizagem se dá por meio do contato. A aprendizagem significativa pressupõe a experiência, que é essencialmente contato, e a emergência de uma figura plena, uma gestalt que se forma como uma descoberta.

A gestalt se completa tal como uma "percepção, imagem ou insight claro e vívido" (Perls, Hefferline e Goodman, 1997, p.45) diante de um contexto. Ela representa uma descoberta sensitiva, cognitiva ou afetiva em que sensações, pensamentos ou sentimentos se manifestam como figuras nítidas e cheias de energia. Em outras palavras, também podemos dizer que a aprendizagem corresponde a uma compreensão proveniente da experiência e se caracteriza por um fechamento expresso na exclamação "Ah!" do reconhecimento de uma nova descoberta. Vale notar que esse reconhecimento intensifica a awareness das pessoas envolvidas no processo.

Se pensarmos na implicação disso para o ensino, concluímos que o aprendizado deve ser estimulado por experimentos em que o aprendiz vivencie situações de contato no aqui e agora em todos os eventos de fronteira, que se iniciam na experiência sensorial e chegam a ser elaboradas em construções cognitivas no nível concreto ou abstrato. As experiências devem ocorrer no âmbito da sua realidade e possibilidade, permitindo que o aprendiz passe por algo que "ao final se sinta diferente de como estava no início" (Lilienthal, 2006, p.31).

Nas relações de ensino-aprendizagem, o contato pode se dar:

nas interações recíprocas interpessoais, no diálogo com o meio e com todos os objetos e processos cognitivo-afetivos presentes na experiência do encontro". Nessas interações "entrelaçam-se sensações, ideias e conceitos como uma rede de expressões e linguagens verbais e não verbais" que envolve "todos os indivíduos e grupos", "os objetos de conhecimento e os recursos mediadores presentes no ambiente (Fagali, 2007, p.106).

As práticas psicopedagógicas, nessa perspectiva, priorizam os trabalhos em grupo porque eles estimulam as trocas interpessoais. As atividades pedagógicas podem ser elaboradas seguindo alguns métodos gestalt-terapêuticos e os recursos da arteterapia que promovem situações intensificadoras da awareness. Seu objetivo é sempre elaborar novas descobertas na forma de sensações, sentimentos e cognições.

As dificuldades de aprendizagem correspondem a situações onde a figura não é bem formada ou não há seu fechamento, a gestalt não se completa. Isso decorre de falhas ou bloqueios no contato, que podem ser causadas tanto pelo fato das atividades pedagógicas não favorecerem as interações interpessoais e o diálogo com o meio e os objetos, quanto por uma resistência do aprendiz que remonta a sua história de vida marcada pelo bloqueio no contato. Nesse caso, o aprendiz se mantém paralisado numa fronteira de contato, não consegue ampliar suas condições de criar nessa dimensão. Ele se mantém fixo num ponto, incapaz de estabelecer outras relações com figuras do fundo.

Assim, nas situações de aprendizagem, se por um lado é preciso atentar quais condições do contato estão prejudicadas e quais favorecem a sua abertura; por outro lado, o trabalho de abertura é o caminho de superação das resistências, a fim de reestabelecer o contato propiciador de novas sínteses.

A esse respeito, valeria a pena conferir os relatos que Fagali faz de um projeto psicopedagógico (Fagali, 2007, p.107) que ela desenvolveu em parceria com um grupo de psicopedagogos, nas áreas clínica e institucional (escolas e Ongs), na primeira metade do ano 2000. Eles mostram em detalhes de que maneira as dificuldades de aprendizagem podem estar ligadas a bloqueios de contato e como as resistências podem ser trabalhadas e superadas. O relato, sobre um grupo de adolescentes com dificuldades de alfabetização, menciona a utilização da noção de ciclo de contato de Zinker para diagnosticar qual etapa do contato estava bloqueada. Partindo dos níveis de resistência que os aprendizes revelavam, a intervenção empregou a arteterapia para programar atividades que mobilizavam o aprendiz a reestabelecer novos contatos. A exploração e ampliação do nível de contato eram mediadas pelo uso de linguagens expressivas, que passaram, gradualmente, de construções não verbais para a verbal oral e dessa para a criação de formas de escrever e ler à medida que os jovens se liberavam de seus bloqueios. O projeto é um exemplo de como a proposta da Gestalt-terapia no trabalho sobre a fronteira de contato, através da superação das interrupções em etapas do contato, torna possível desfazer as resistências e caminhar em direção às novas construções.

Outro exemplo é uma pesquisa de Ponciano Ribeiro que correlaciona a experiência de contato e a dimensão intrapsíquica da criança com TDAH2. Ele analisa os processos de contato básicos que organizam o funcionamento psicológico da criança hiperativa, inquieta fisicamente e desatenta e, utilizando outra categorização, de sua autoria, sobre as fases de contato e mecanismos de bloqueios, identifica nessas crianças um modo vago e superficial de fazer contato com as coisas e com os outros. Ele revela como os bloqueios provocam uma disposição à constante fluidez e busca de novos estímulos, um excesso de excitação que cria um alto nível de mobilização de energia para execução da ação, que acaba sendo efetuada impulsivamente. O contato superficial com as coisas leva à troca constante de foco de atenção ou ação, sem manter a continuidade e o fechamento da Gestalt. A criança não entra na fase de retraimento, não experimenta um estado de satisfação e vive uma incessante busca da própria auto-regulação.

 

O jogo figura e fundo na aprendizagem.

Segundo a Psicologia Gestalt, a pessoa organiza sua percepção na experiência primária de uma figura vista ou percebida contra um fundo ou contexto. Para a Gestalt-terapia, a figura corresponde ao que, num dado momento, tem maior importância no campo psíquico da pessoa. Por exemplo, se ela tem muita sede e adentra numa cozinha a procura de água, para ela, objetos e pessoas tornam-se pano de fundo para aquilo que aparece em primeiro plano e como figura: um filtro de água. Identificar a figura é uma questão de foco e de intenção do sujeito (Zinker, 2007, p.110).

Em função da premência, uma figura se destaca do contexto, mas depois, satisfeita a necessidade, ela se dissipa quando outro objeto passa ao primeiro plano. Deste modo é que a vida das pessoas é marcada pela alternância constante entre figura-fundo, conforme mudam os interesses, num movimento fluído condicionado "ao campo que ela pode perceber" (Burow & Scherpp, 1985, p.25).

Na aprendizagem, a figura, em seu aspecto psíquico afetivo ou cognitivo, corresponde àquilo que o aprendiz captura diante de um fenômeno ou conjunto de informações como uma unidade diferenciada e com contornos nítidos em relação ao fundo-contexto. O aprendiz deve ser capaz de perceber claramente e colocar em primeiro plano quando uma figura se destaca em sua unidade frente ao contexto; como também deve ser capaz de transferir o foco de sua atenção de uma figura para outra distinguindo partes ou ângulos diferentes de um todo que compõe o contexto global.

Quando há rigidez no movimento de alternância figura-fundo, que pode ser causada por uma fixação ou no ato de centrar em uma figura, ou no ato de deslocamento entre figuras, isso gera algumas limitações na aprendizagem. De um lado, se há polarização para centralizar na figura, o aprendiz ou o educador têm a tendência a se fixar num determinado ângulo do fenômeno. Por consequência, perde-se a capacidade de explorar outros enfoques e significados relacionados ao problema e de estabelecer relações contextuais. Como nos diz Fagali:

centrar excessivamente em uma figura, ou em uma só direção, resulta na formação do pensamento e do sentimento rígido, ou na repetição do padrão do sentir e pensar por exclusão (ou isto, ou aquilo). Esta rigidez se manifesta no comportamento das pessoas, em qualquer faixa etária e atuação, gerando reduções de significados e paralisações que impedem o movimento e a descoberta de outros ângulos, outras possibilidades de pensar, sentir e atuar. (Fagali, 2007, p.119).

Portanto, na dinâmica entre figura e fundo, uma figura que emerge tem que ser contemplada e completada, mas a fixação nela torna-se aprisionamento em um conhecimento pouco criativo e carente de uma visão panorâmica do todo.

De outro lado, se há polarização no deslocamento entre as figuras ou entre figura e contexto, o aprendiz se dispersa em informações sem discriminar e internalizar o objeto de conhecimento de forma nítida. Dessa maneira, ele também não consegue alcançar maiores significados para o fenômeno porque não há tempo suficiente para construir relações integradas:

(...) o aprendiz se vê com pouco tempo e oportunidade experiencial para diferenciar as figuras de forma que estas fiquem mais completas, claras e integradas, alcançando maiores significados. (...) Esses aprendizes permanecem paralisados na divagação, na falta de identidade, e seus conceitos se revelam vagos, indefinidos. Muitas vezes, dão a impressão de que sabem, ao trazerem as diversidades de informações, mas se traem em relação a esse saber aparente, quando revelam não discriminar o suficiente para dominar o saber, de forma mais completa e integrada. (Fagali, 2007, p.120).

Em contraposição a essas duas tendências, seria preciso buscar um equilíbrio entre o centramento na figura, sem fixidez, e o deslocamento entre as figuras, sem perder o foco. Trata-se de adquirir uma flexibilidade do perceber, sentir, pensar de maneira geral, num jogo incessante de figura e fundo.

Nas práticas psicopedagógicas, certamente é preciso estar atendo se há predisposição dos aprendizes para focar figuras ou o deslocamento entre elas. Aqueles que tendem a se aprisionar a figura, a se concentrarem demasiadamente nos detalhes de um conceito, por exemplo, terão dificuldades em criar variações e estabelecer relações que exigem uma visão panorâmica do contexto ou visão global que inclui outros contextos. Já aqueles que revelam facilidade para explorar passagens entre as figuras, vislumbrar o fundo, apresentarão maior facilidade de flexibilidade, criação por associações, mas menor capacidade de concentração ou de configurar um conceito de forma clara e precisa. Para que haja aprendizagem significativa, as atividades devem explorar o jogo entre figura e fundo.

Por fim, como sugestão, podemos nos indagar se seria possível pensar em abordar a temática do TDAH sob a perspectiva de um trabalho para melhorar a capacidade de centramento na figura.

 

Considerações finais

A Psicopedagogia busca compreender e melhorar as condições de aprendizagem, diversificando os recursos educacionais e terapêuticos que auxiliam o processo de aprendizagem e que ajudem os aprendizes a superarem seus bloqueios, limites, deficiências ou qualquer outra manifestação de dificuldade. Os princípios e métodos da Gestalt-terapia oferecem uma contribuição valiosa para esse campo, através de noções que dizem respeito a problemas comuns ao trabalho psicopedagógico.

Para a prática psicopedagógica, numa visão orientada pela Gestalt-terapia, destacamos a valorização da necessidade de ampliar a auto percepção e consciência do aprendiz e do psicopedagogo, atentos as suas condições individuais, como essencial para modificar seu posicionamento e deslocar-se da situação de impotência e limitação no aprendizado. A Gestalt-terapia resgata uma visão que concebe o ser humano numa perspectiva holística e como ser que se constrói a partir da realidade relacional aqui e agora.

Apontamos que a aprendizagem ocorre sempre através da experiência como forma de contato em que há um fechamento, ou seja, uma descoberta da ordem da sensação, do pensamento ou sentimento. A ênfase de todo trabalho pedagógico está na exploração da fronteira de contato (experiências sensoriais e construções cognitivas) em eventos de encontro, isto é, nas relações interpessoais, no diálogo com o meio, com objetos e processos cognitivo-afetivos. Um trabalho dessa natureza pode utilizar a arte e a sensibilização para explorar as percepções e as sensações sob todos os ângulos possíveis e ampliar as expressões do aprendiz, do não verbal ao verbal. Seu objetivo, como notamos, é elaborar novas gestalten, que correspondem a descobertas no nível sensitivo, cognitivo e afetivo. As dificuldades de aprendizagem correspondem a situações onde a gestalt não se completa porque há resistência ou bloqueio no contato. Então, o trabalho psicopedagógico consistiria em avaliar, no aprendiz, quais condições do contato estão prejudicadas e programar atividades que o mobilizem a superar as resistências e buscar novas sínteses integradoras que permitam novas construções. A noção de contato da Gestalt-terapia - um jeito de ser que articula motivação, percepção, afeto, cognição e ação - no nível das trocas interpessoais, é enriquecedora para as práticas psicopedagógicas. Seria preciso considerar o contato em todas as formas de aprendizagem humana: no dia-a-dia, na escola, na formação profissional, nas organizações de trabalho etc.

Por fim, pontuamos que o trabalho psicopedagógico para uma aprendizagem significativa enfatiza também a aquisição de flexibilidade no jogo figura e fundo. O aprendiz deve ser capaz de diferenciar as figuras em seu contorno nítido e diferenciado em relação ao fundo-contexto e, com a mesma habilidade, desenvolver aspectos entre figuras e ligações contextuais mais amplas.

Através desses temas apresentados aqui, concluímos, portanto, que a Gestalt-terapia amplia as possibilidades de direção para reflexão e prática da Psicopedagogia contribuindo tanto para lidar com as dificuldades de aprendizagem, quanto para desenvolver projetos e procedimentos educacionais.

 

Referências

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a e-mail: adriscavalcanti@yahoo.com.br
I Profª orientadora da monografia: Dra. Eloisa Quadros Fagali
1 Um estudo mais detalhado focado na Gestaltpedagogia, que não foi meu intuito aqui, sugere elementos interessantes a serem aplicados na prática psicopedagógica no contexto institucional, pensando na articulação dos aspectos afetivos e intelectuais, internos e externos, individuais e coletivos no processo de aprendizagem.
2 Disponível em: http://psicologianaatualidade.blogspot.com.br. Acesso em 13 março 2013.