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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.23 no.24 São Paulo  2015

 

Aspectos constitutivos da mediação docente e seus efeitos no processo de aprendizagem e desenvolvimento

 

Constitutive aspects of docent mediation and its effects on the learning and development process

 

 

Anna Helena Altenfelder1

CENPEC, São Paulo

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é discutir à luz da psicologia sócio-histórica os aspectos constitutivos da mediação docente, compreendendo as formas como este processo afeta a aprendizagem dos alunos e o próprio desenvolvimento profissional do professor. Para tanto, a partir de uma breve apresentação da gênese do desenvolvimento do psiquismo humano, com base em Vigotski e seus seguidores, enfatizamos a categoria mediação em um sentido mais amplo para nos determos nas características específicas da mediação docente e como esta se caracteriza e se concretiza na atividade do professor, considerando seus aspectos cognitivos, culturais, políticos e afetivos. Concluímos ressaltando a importância da formação inicial e continuada para que o professor possa exercer uma mediação de qualidade, capaz de promover a aprendizagem e o desenvolvimento integral dos alunos.

Palavras-chaves: Atividade docente, Mediação, Aprendizagem, Desenvolvimento, Afetividade


ABSTRACT

This paper intends to discuss on the basis of sociohistorical psychology the constitutive aspects of docent mediation, here included the forms by which it affects the student's learning process and the teacher's development itself. After a brief presentation of the development genesis of human psyche, based on Vigotski and his followers, we focus the mediation category in a broader sense in order to detain ourselves at the specific characteristics of the docent mediation and how it embodies itself in the teacher activity, taking into account its cognitive, cultural, politic and affective aspects. At the end, we stress the weight of the initial and ongoing formation in order to enable the teacher to practise a mediation of quality, capable of promoting the student's learning process as well as his integral development.

Keywords: Docent activity, Mediation, Learning, Develoment, Affectivity


 

 

Introdução

A psicopedagogia nos últimos anos vem sendo reconhecida como área dotada de objeto próprio de pesquisa e intervenção e, ao mesmo tempo, como área interdisciplinar apta a articular e integrar conhecimentos capazes de iluminar a compreensão sobre a aprendizagem e seus processos, bem como acerca dos desafios e dificuldades que neles ocorrem.

Nesse contexto, as relações entre ensino e aprendizagem certamente se constituem em tema de relevância e interesse para os profissionais que atuam na área, principalmente se discutidas a partir de uma perspectiva teórica, como a psicologia sócio-histórica de Vigotski e seus seguidores, que, como afirma Freitas, "não reduz o pedagógico ao psicológico, mas incorpora neste o social, o cultural e o histórico". (Freitas, 2006, p.37)

Rompendo dicotomias como interno e externo, objetivo e subjetivo, social e psicológico, cognitivo e afetivo, a psicologia sócio-histórica encontra formas mais integradas de estudar e compreender o processo do desenvolvimento humano, constituindo categorias que podem explicá-lo em sua totalidade.

Nossa intenção, neste artigo, é discutir uma das categorias centrais na obra de Vigotski - a mediação - e, a partir dela, compreender o papel de mediador do professor, uma vez que sabemos que a qualidade desta mediação é um fator fundamental para que o aluno possa aprender e se desenvolver.

Nessa direção, pretendemos considerar não apenas os efeitos cognitivos, mas também os políticos, culturais e afetivos, uma vez que o professor é um sujeito histórico e a ação docente nunca é neutra. Mais ainda, a afetividade expressa pelo professor ao mediar as interações do aluno com os objetos de conhecimento é constitutiva dos significados e sentidos que o aluno irá construir sobre si mesmo como sujeito que usa socialmente estes objetos e sobre estes próprios objetos, ou seja, o sucesso ou o fracasso do aluno têm determinantes construídas no próprio processo de ensino e aprendizagem, exercendo a mediação do professor papel fundamental.

Ressaltamos também a importância de se considerar as condições de formação e trabalho do professor, uma vez que a mediação revela os conhecimentos, as possibilidades, mas também os limites que a condição social, profissional e pessoal determina.

Por fim, discutimos a relevância dessa reflexão para o exercício da atividade profissional do psicopedagogo e o desenvolvimento do seu papel de mediador.

 

Psicologia sócio-histórica e a categoria mediação

A psicologia sócio-histórica, ultrapassando visões objetivistas e idealistas, não considera o homem como simples reflexo do meio, nem tampouco como dotado de estruturas inatas a serem desenvolvidas, mas sim como um indivíduo inserido em um contexto sócio-histórico e que, ao agir neste contexto e na relação com outros homens, constitui-se como ser humano ao mesmo tempo em que constitui o seu meio. Em outras palavras, o sujeito se organiza nas suas condições de vida social sem que seja, contudo, um efeito linear dessas condições.

Dessa forma, reconhecemos a natureza cultural do psiquismo e de seu desenvolvimento. Isso significa que o mundo psicológico se configura a partir da relação do homem com o seu meio, que não podemos esquecer é marcado por uma cultura e uma historicidade, logo um mundo objetivo, coletivo, social e cultural.

Portanto, é mediante sua inserção na cultura que o homem constitui a própria consciência. Esta é sempre única e singular, sendo entendida como um processo que abriga o psicológico, os registros que o homem faz de suas experiências e relações como o mundo - um processo portanto sempre em elaboração, que produz as formas de pensar, agir e sentir.

Compreender o sujeito e seu desenvolvimento nessa perspectiva, significa considerar que fatores cognitivos, sociais e emocionais não guardam entre si uma relação direta e mecânica, muito pelo contrário, constituem-se mutuamente em uma relação dinâmica e dialética, o que impede de serem pensados separadamente.

Assim, podemos afirmar que o homem transforma-se de sujeito biológico em sujeito sócio-histórico, uma vez que a transmissão das aquisições humanas não se dá apenas pelo código genético, mas, sobretudo, nos e pelos processos sociais de transmissão de cultura.

Destaca-se aqui o papel da linguagem, que nasce a partir da necessidade de comunicação, e constitui-se, segundo Leontiev (s/d, p.76), em marco fundamental no desenvolvimento humano. Luria (1986, p.22), na mesma direção, afirma que a linguagem é um dos fatores decisivos que determinam a diferença entre a conduta animal e a atividade consciente do homem.

Desse modo as funções psicológicas superiores, características exclusivas dos humanos - como a atenção, a memória e a abstração -, diferentemente das funções psicológicas elementares, que são involuntárias, são produto do desenvolvimento histórico e social. È nesse sentido que podemos dizer que o desenvolvimento do sujeito vai do plano social para o plano pessoal.

Nessa perspectiva, Vigotski (2000, p.75) estabelece uma lei genética geral do desenvolvimento, segundo a qual toda função aparece duas vezes no processo de desenvolvimento: a primeira no nível social, interpsicológico, e a segunda no interior do sujeito, no nível intrapsicológico.

A internalização, conceito chave na teoria vigotskiana, se caracteriza, assim, por uma série de transformações, na qual um processo interpessoal torna-se um processo intrapessoal como resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento.

É importante ressaltar que o processo de internalização resulta da interação do sujeito com o mundo, interação mediada pelos signos e pela relação com os outros homens.

Com efeito, os homens, desde os estágios mais primitivos do desenvolvimento histórico, principalmente na atividade do trabalho, em relação com outros homens, inventaram e utilizaram instrumentos para se relacionar com o meio e satisfazer as suas necessidades, como, por exemplo, o uso de armas para abater a caça e alimentar-se. Mais ainda, criaram, também, estímulos artificiais ou autogerados - os signos - como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico: utilizar, por exemplo, nós ou entalhes na madeira para ampliar a memória. Ou seja, ao longo do seu desenvolvimento, o homem rompe com o aqui e agora, por meio da construção de instrumentos e de signos - como a linguagem, o desenho, a escrita, o sistema de numeração -, o que faz com que sua atividade deixe de ser direta e imediata e passe a ser mediada.

Como afirma Vigotski (2000, p. 72), a diferença de atividade imediata e mediada está no uso de instrumentos e signos, construídos socialmente, na interação e comunicação entre os homens e na própria possibilidade da consciência humana de refletir sobre si mesma e sua prática.

Podemos dizer, então, que instrumentos e signos foram criados no processo histórico de desenvolvimento humano e que são mediadores entre o homem e o mundo natural e cultural. No entanto, desempenham funções diversas, uma vez que os instrumentos agem sobre o ambiente e têm como função modificar os objetos. Já as diferentes formas de atividades que usam signos têm a função de ação reversa, isto é, agem sobre o indivíduo, o que confere à operação psicológica formas qualitativamente novas e superiores.

Evidencia-se, assim, por que a categoria mediação é central na obra de Vigotski e, consequentemente, na psicologia sócio-histórica, e por que essa categoria permite compreender que a relação do homem com o real não é direta e mecânica, mas mediatizada pela atividade que, por sua vez, tem a mediação da linguagem e das relações sociais, em um movimento dinâmico e dialético.

Em síntese, desse ponto de vista, quando falamos em mediação, estamos nos referindo "a uma instância que relaciona objetos, processos ou situações entre si" (Severino, 2002, p. 44) e que atua como "centro organizador" da relação do homem com o mundo (Aguiar e Ozella, 2006:225). Uma instância que, como ressalta Leite (2006), não tem apenas efeitos cognitivos, mas também e ao mesmo tempo afetivos.

 

Mediação docente

A palavra mediação tem diferentes sentidos e significados nas diversas esferas de atuação social. Até mesmo na psicologia o conceito varia a partir da perspectiva teórica. No contexto educacional, os entendimentos do que seja a mediação são diversos, desde reflexões com embasamento teórico sólido e que contribuem significativamente para a compreensão da importância dessa categoria na atividade docente, até enunciados vagos, que traduzem o senso comum, ou posturas espontaneístas que acabam por descaracterizar a função social do professor.

Conceitos de mediação ou descrições do que consiste o papel de mediador do professor são frequentes na literatura e no próprio discurso dos educadores, algumas vezes inclusive em oposição a, ou até mesmo negação da própria atividade docente. Mais recentemente, o debate sobre ambientes virtuais de aprendizagem e cursos de educação a distância trouxe novos significados e entendimentos ao conceito.

Assim, consideramos importante ressaltar que quando falamos em professor mediador, não estamos localizando a discussão em uma modalidade (presencial ou a distância) e muito menos esvaziando a função docente; muito pelo contrário, estamos (re)afirmando o que ela tem de essencial e o que a distingue de outras atividades humanas.

Dessa perspectiva, é importante considerar que estamos nos referindo a um fenômeno situado em uma atividade profissional, em um determinado contexto, ou seja, constituído por determinantes culturais, sociais e políticos e que deve ser entendido em sua historicidade.

É importante considerar também que o professor desenvolve sua atividade em uma instância social específica, a escola. Assim, "é improvável poder abordar a temática da docência separada do lugar em que se produz enquanto profissão". (Cunha, 2006, p.56)

Com efeito, cada nova geração, participando das diversas formas de atividade social, mediadas pelos fenômenos e instrumentos da cultura nas e pelas relações com outros homens, vai se apropriando do que foi construído ao longo do desenvolvimento histórico, ao mesmo tempo em que seus integrantes desenvolvem sua consciência, constituindo-se enquanto sujeitos.

São várias e diversas as atividades sociais das quais crianças, adolescentes e jovens participam, que podem potencialmente contribuir para o desenvolvimento da consciência. A educação formal, desenvolvida pela escola, é uma delas, que vale lembrar assume diferentes formas e funções a partir da própria maneira como a sociedade se organiza.

Em uma sociedade democrática a escola é a responsável por garantir que as gerações mais jovens tenham a oportunidade de se apropriarem dos instrumentos culturais básicos que permitam compreender a realidade social e promover o seu desenvolvimento.

Desse foco a escola deve ter como tarefa ensinar bem, responsabilizar-se pelos resultados, garantindo a aprendizagem de todos os seus alunos. Para tanto, é preciso ultrapassar a esfera cotidiana e desenvolver um conjunto de ações intencionais, conscientes, dirigidas para o fim especifico de promover a apropriação dos instrumentos concretizados e organizados no currículo escolar que, como aponta Severino (2008, p. 122), é a "mediação substantiva privilegiada da formação educacional humana".

Vigotski traz um importante elemento para se pensar a função da escola, ao afirmar que "o único bom ensino é o que se adianta ao desenvolvimento. A aprendizagem impulsiona o desenvolvimento, este não acompanha aquele como uma sombra que acompanha o objeto que a projeta". (Vigotski, 1991:49)

Na visão vigotskiana, aprendizado não é desenvolvimento. No entanto, existe uma importante inter-relação entre estes dois processos, uma vez que o aprendizado adequadamente organizado põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer. Para elaborar as dimensões desse aprendizado, Vigotski (1991) formula o conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal.

Esse conceito considera dois níveis de desenvolvimento. O primeiro nível é o de desenvolvimento real, que indica aquilo que a criança consegue fazer por si mesma; o segundo, o nível de desenvolvimento potencial, caracteriza aquilo que ela consegue fazer com a ajuda dos outros e que, segundo Vigotski, poderia ser "muito mais indicativo de seu desenvolvimento mental do que aquilo que consegue fazer sozinha". (1991:49)

A distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado por aquilo que a criança soluciona de forma independente, e o nível de desenvolvimento potencial, caracterizado pela solução de problemas orientados por um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes é o que Vigotski (1991, p.113) chama de Zona de Desenvolvimento Proximal.

Desse ponto de vista, a educação deve incidir não no espaço no qual o aluno resolve problemas de forma independente, mas justamente no espaço onde pode solucionar problemas com ajuda.

É exatamente esta ajuda - aquela que o professor dá ao aluno para que possa resolver problemas que este não conseguiria sozinho - a essência da mediação docente.

Para que essa mediação se concretize é necessário que o professor, tomando como ponto de partida a realidade de seus alunos e tendo clareza daquilo que já podem fazer sozinhos e de que ajuda de fato necessitam, estabeleça objetivos claros e precisos e, com base neles, recorra a técnicas e conhecimentos científicos de como ensinar, ou seja, se apoie em instrumentos teóricos e práticos para planejar, prever, organizar e dirigir situações de ensino, acompanhando a progressão da aprendizagem de todos e de cada um, para poder tomar decisões de reorganização da ação, quando a aprendizagem não se efetiva.

Em síntese, o professor constitui-se como mediador ao organizar a relação do aluno com os objetos de conhecimento, dando concretude, viabilizando e garantindo o processo de aprendizagem.

É importante observar que não estamos falando de qualquer aprendizagem, mas de um processo que permita que o indivíduo possa se desenvolver plenamente, ou seja, dispor de condições de satisfazer suas necessidades e aspirações e ao mesmo tempo ser comprometido e ter condições de contribuir para o bem comum - em resumo, ser dono da sua própria história.

Dessa forma, podemos afirmar que a mediação nunca é neutra, uma vez que os professores não são seres abstratos, mas sim indivíduos situados no tempo e no espaço e dotados de uma identidade social e cultural. Assim, sua atividade parte sempre de uma visão de mundo, homem, sociedade e está a serviço de um fim, ou seja, apresenta uma dimensão cultural e política.

Nessa direção, Mellouki e Gaultier ampliam a compreensão do papel de mediador do professor, ao afirmarem que a escola é uma instituição cultural, ressaltando que a cultura não se reduz apenas a uma soma de conhecimentos, mas é, ao mesmo tempo, "conhecimento e relação construída, relação em construção, sempre inacabada, relação consigo mesmo, com o Outro e com o mundo". ( 2004:543)

Para esses autores, os professores têm papel fundamental e protagonista no processo educativo, o que lhes confere a condição de intelectuais, uma vez que são herdeiros, críticos e intérpretes dessa cultura.

Seguindo nessa direção, podemos dizer, de forma sintética, que o professor é herdeiro, uma vez que faz parte de um coletivo que tem uma determinada história, organização social, crença, valores. Enfim, é um sujeito que faz parte de uma cultura que é constitutiva de sua identidade. É crítico, ao exercitar a capacidade de olhar e analisar sua herança cultural, compreendendo o contexto social e histórico no qual foi produzida, identificando suas determinações assim como seus vieses, contribuindo para a sua transformação. Por fim, é intérprete: para que crenças, valores, regras de conduta e os próprios conhecimentos sejam compreendidos e apropriados pelos alunos, é preciso todo um esforço de interpretação, que se traduz em posturas e ações que explicam, decodificam, leem e compreendem textos, situações, e sentimentos.

A condição de herdeiro, crítico e intérprete da cultura, no entender dos dois autores, nada mais são do que facetas do papel de mediação do professor. Assim, podemos dizer que o professor desempenha seu papel de mediador ao transmitir o conhecimento cultural acumulado ao longo do tempo, ajudando seus alunos a analisá-lo de forma crítica, identificando, por exemplo, preconceitos, ou explicações naturalizantes das relações sociais, em um esforço de interpretação que se traduz nas formas como expõe, explica, organiza a sala e as diferentes atividades, observando as diversas formas de expressão dos seus alunos para reorganizar e conduzir a própria atividade.

Como enfatizam Mellouki e Gauthier: "É nessa tarefa de mediação que se revela o papel de intelectual do professor, papel não só de portador, intérprete e crítico de uma cultura, mas também de produtor e de divulgador de conhecimentos, técnicas e procedimentos pedagógicos, e de agente de socialização, de intérprete e de guardião responsável pela consolidação das regras de conduta e daquelas maneiras de ser valorizadas pela sociedade e pela escola." (2004:545)

Por fim, mas não menos importante, é essencial considerar, como já afirmamos anteriormente, que a mediação não tem somente efeitos cognitivos, mas também afetivos que, segundo Leite (2006:26), determinarão as futuras relações que se estabelecerão entre os sujeitos e os objetos de conhecimento.

De fato, a afetividade tem papel preponderante na determinação da natureza do vínculo que se estabelece entre sujeito e objeto de conhecimento, tendo reflexos importantes, inclusive na motivação e disposição do aluno em realizar as atividades propostas em sala de aula.

Podemos compreender, assim, que experiências prazerosas com determinado objeto de conhecimento, nas quais os alunos se sintam respeitados em seus interesses e em sua realidade, nas quais se sintam capazes, possam mobilizar positivamente o aluno para continuar a aprender. Por outro lado, situações nas quais se sentem desrespeitados, incapazes de aprender, podem criar aversão a determinado conhecimento ou mesmo disciplina escolar.

Tão importante quanto afetar a mobilização do sujeito para aprender é influenciar sua autoestima. Tudo indica, como aponta Leite (2006, p. 18), que o sucesso ou o fracasso da aprendizagem tenha claras implicações no autoconceito e na autoestima do aluno.

O autor explica que o sujeito, ao objetivar e subjetivar suas relações com o outro, constrói, no plano cognitivo, a percepção de si mesmo - o seu autoconceito. Essa percepção, no plano afetivo, é acompanhada de um sentimento de valor que configura a autoestima.

Assim, "em uma perspectiva sócio-histórica, pode-se entender que o autoconceito é a percepção que a pessoa tem de si mesma, ao passo que a autoestima é uma percepção que ela tem do seu próprio valor." (Leite, 2006, p. 18)

Em outras palavras, podemos entender a autoestima como o nível de satisfação que o sujeito atribui ao autoconceito e que, tanto um, como outro processo são constituídos nas e pelas relações pessoais. Assim, evidencia-se que a mediação exercida pelo professor tem papel preponderante na formação tanto do autoconceito como da autoestima dos alunos.

Em síntese, podemos afirmar que se o conjunto das experiências de aprendizagem, bem como das relações vividas com os professores geraram sentimentos aversivos de insegurança, incapacidade, estranhamento das propostas em relação aos seus interesses e necessidades, certamente os alunos se sentirão desmotivados e perderão a confiança em sua capacidade de aprender.

Isso não significa, contudo, que experiências aversivas determinem que o indivíduo fique, indefinidamente, desinteressado ou pouco motivado para realizar determinadas atividades. Novas experiências podem produzir diferentes registros e emoções, gerando necessidades que configuram motivos que podem impulsionar o aluno a aprender. Em suma, é possível reverter à situação, com base em uma mediação planejada e consciente para esse fim.

A partir do exposto acima, podemos afirmar que o professor, herdeiro de uma determinada cultura, que é constitutiva de sua identidade, exerce seu papel de mediador ao organizar a relação entre seus alunos e os objetos de conhecimento. Isso se traduz nas ações regulares e cotidianas da sua atividade profissional, O professor, portanto, atua como mediador ao estabelecer objetivos de aprendizagem relevantes para a realidade, interesse e contexto do aluno, identificando aquilo que este já sabe, o que pode fazer sozinho e de que tipo de ajuda necessita para avançar no processo de aprendizagem e desenvolvimento.

A partir daí, o professor organiza os conteúdos em uma sequência didática, escolhendo procedimentos e atividades de ensino capazes de envolver e motivar os alunos, ajudando-os a compreender e analisar a realidade de forma crítica.

Nesse processo o professor está atento não só aos avanços cognitivos dos alunos, mas também aos afetos envolvidos, percebendo posturas corporais dos alunos que revelam desconforto, não entendimento, falta de interesse, ou pelo contrário, entusiasmo e compreensão e lampejos de entendimento, animando-os nas dificuldades, incentivando-os e reconhecendo suas conquistas e sucessos, contribuindo para a formação de uma autoimagem positiva, em um processo avaliativo constante que está a serviço do aluno e do seu desenvolvimento.

Enfim, o professor é mediador ao articular, em sua atividade profissional, as dimensões cognitiva, afetiva e política do processo de ensino-aprendizagem, em seus aspectos práticos e teóricos. Dessa forma a sua mediação revela, ao mesmo tempo, os conhecimentos que tem sobre o que e como ensinar, os afetos envolvidos e seu grau de comprometimento com a emancipação de seus alunos. Em síntese, a mediação docente constitui e é constituída pela articulação entre teoria e prática.

Uma das características fundamentais da mediação docente é a reflexão sobre a própria atividade. Tal reflexão possibilita não só que o professor possa (re)organizar e (re) planejar sua prática, modificando-a em função da aprendizagem dos alunos, mas que também modifique suas formas de pensar, agir e sentir, ou seja, amplie a sua consciência. Em outras palavras, é no exercício de sua atividade, na relação com seus alunos, pares e formadores que o professor se constitui como mediador.

De fato, a reflexão sobre a própria consciência e a própria prática, que para Vigotski (2000, p72) constitui uma das diferenças essenciais entre atividade imediata e mediada, é ao mesmo tempo condição para o exercício da mediação. Dessa forma, podemos afirmar que ao assumir o papel de mediador, o professor está promovendo a aprendizagem e desenvolvimento dos seus alunos e o próprio desenvolvimento profissional.

É importante ressaltar, contudo, que este desenvolvimento não se dá de forma mecânica e direta, ou pela simples execução ou aplicação de materiais estruturados ou protocolos de ensino, mas é fruto da articulação entre o próprio trabalho e um conhecimento teórico sistematizado. Evidencia-se assim o papel fundamental da formação no desenvolvimento do papel de mediador do professor.

De fato, seria incoerente com a perspectiva teórico-metodológica que orienta este trabalho e com o conceito de mediação docente defendido, menosprezar o papel da formação no desenvolvimento profissional do professor e deixar de ressaltar que deve ser um processo que não pode se desvincular da atividade docente, por ser parte integrante desta e que, por isso mesmo, deve contemplar todas as suas dimensões: cognitiva, afetiva, cultural e política.

Desse modo, uma formação que efetivamente contribua para o desenvolvimento do papel de herdeiro, crítico e intérprete do professor tem que se centrar em fundamentos teóricos sólidos e instrumentos práticos concretos, levando em conta os conhecimentos prévios dos professores, suas crenças, valores para, a partir disso, promover a reflexão e a construção de novos conhecimentos. Na medida em que a mediação revela a articulação entre teoria e prática, para exercê-la, o professor precisa ser formado a partir dessa premissa.

Assim, não deixa de causar preocupação um fenômeno mencionado por vários autores, entre eles Tedesco (2006): a teoria educacional está se separando da prática. O autor afirma que temos teorias sem base empírica e trabalho prático sem fundamentação teórica. Os professores dizem: "el que sabe soy yo, porque soy el que estoy haciendo las cosas". No entanto, não têm fundamento teórico para sistematizar e explicar o que fazem. Por outro lado, a produção teórica carece de apoio empírico e produz-se teoria sem considerar o que acontece na sala de aula.

Pesquisa realizada pela Fundação Carlos Chagas (FCC)[2], que analisou currículos de cursos de Pedagogia e licenciaturas de Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas, assim como as exigências feitas nos concursos públicos para professores em todo o Brasil, revela com clareza a situação descrita por Tedesco acerca da pouca articulação entre teoria e prática na formação docente.

A análise dos currículos dos cursos de Pedagogia e de licenciatura em Língua Portuguesa, Matemática e Ciências Biológicas mostra que os alunos não aprendem o que e como ensinar, ou seja, a parte curricular que propicia o desenvolvimento de habilidades profissionais específicas para a atuação nas escolas e nas salas de aula fica bem reduzida.

Em relação aos concursos públicos para docentes, são muito poucas as questões relativas à didática específica ou metodologias de ensino e a imensa maioria dos itens exigidos tem um enfoque apenas teórico, o que significa que a relação teoria-prática não se acha contemplada.

Podemos concluir, com base no estudo de Gatti e Nunes (2009), que os aspectos constitutivos da mediação, aquilo que caracteriza o papel de mediador do professor, não são abordados na formação inicial e nem considerados conhecimento relevante nos concursos.

Como já salientamos, a mediação docente revela a articulação entre teoria e prática, articulação esta que é constituída e desenvolvida na própria atividade, tendo a formação um papel fundamental. Desse modo, podemos afirmar que uma formação precária pode causar um vazio de saberes de diferentes naturezas, que dificulta e por vezes até mesmo impossibilita que o professor assuma seu mandato de herdeiro, crítico e intérprete da cultura e possa assim exercer seu papel de mediador.

De maneira similar, as condições concretas e objetivas de trabalho também afetam significativamente a qualidade da mediação desenvolvida.

Cunha (2013, p. 614) resgata a importante contribuição de Paulo Freire, que nos ensina que o professor é um ser do mundo e não pode ser pensado fora dessa perspectiva. A autora complementa afirmando: "Não há professores no vazio, em uma visão etérea, propondo deslocamentos entre sujeito e contexto. O professor se faz professor em uma instituição cultural e humana depositária de valores e expectativas de uma determinada sociedade, compreendida em um tempo histórico." (Cunha, 2013)

Não podemos deixar de enfatizar que estamos falando de professores brasileiros, que em sua imensa maioria trabalham nas redes públicas de ensino e vivenciam no seu dia a dia, como mostram diferentes estudos, fatores de precarização[3] do seu trabalho como remuneração insuficiente, falta de reconhecimento social da profissão, inexistência de progressão na carreira, acesso difícil a material didático e recursos tecnológicos, além de organização dos espaços, tempos e rotinas na escola que não facilitam a sua tarefa.

Tais fatores sem dúvida têm impacto significativo no desenvolvimento de uma mediação que articule teoria e prática, considere os aspectos cognitivos, políticos, culturais e afetivos e efetivamente promova a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos.

Compreender a realidade e as condições reais e concretas em que os professores atuam, em nosso entender, não significa considerá-las como um destino inevitável, nem mesmo como determinantes absolutas da atividade docente; por outro lado, ignorá-las não permite compreender o fenômeno em sua totalidade e pensar nos limites e possibilidades do exercício da mediação, na formação necessária para tanto.

Defendemos assim que a formação, tanto inicial quanto continuada, é condição para que o professor possa desenvolver o papel e atuar como mediador, formação esta que deve ser um processo não apenas centrado em aspectos técnicos e científicos, mas que também leve em conta a vida e os anseios dos professores.

 

Conclusão

Compreender a mediação docente nessa perspectiva significa compreender que ela é constitutiva tanto do processo de aprendizagem do aluno como do desenvolvimento profissional do professor.

De fato, as relações e experiências vividas na própria atividade possibilitam novos registros que mobilizam o professor, objetivamente, para novas ações, buscas e aprendizagens.

É possível dizer que, em sua atividade, que é mediada pelas relações sociais, o professor constitui e desenvolve sua consciência, um processo que, como já apontamos, está sempre em construção, e que redunda nas formas de pensar, sentir e agir.

Do mesmo modo as experiências vividas na escola pelo aluno e suas relações com os objetos de conhecimento mediadas pelo professor afetam significativamente suas formas de se perceber como sujeito que aprende e o reconhecimento de suas potencialidades e possibilidades de desenvolvimento. Em outras palavras, a relação do aluno com o conhecimento, mediada pelo professor, é constitutiva dos sucessos, fracassos, avanços e dificuldades no processo de aprendizagem.

Evidencia-se, assim, que a reflexão sobre a mediação docente é importante para o psicopedagogo, uma vez que não só possibilita ampliar a compreensão sobre os diferentes aspectos constitutivos das dificuldades de aprendizagem, mas também fornece elementos importantes para se pensar no próprio papel de mediador, que sem dúvida tem como uma de suas facetas fundamentais proporcionar às crianças, adolescentes e jovens, com os quais trabalha, experiências que permitam novos registros que possam possibilitar a construção de uma autoestima mais positiva, apta a impulsioná-los a avançar no processo de aprendizagem.

Por outro lado, refletir sobre mediação docente pode trazer luzes ao planejamento e desenvolvimento de processos de formação continuada de professores que frequentemente psicopedagogos são convidados a assumir. É preciso considerar que esses processos não podem estar desvinculados da vida e dos anseios dos professores, e que precisam possibilitar a construção de novos sentidos e significados sobre a própria atividade que os ajudem vencer crenças deterministas de dificuldades dos alunos, ou concepções de ensino e aprendizagem que pouco lugar dão ao papel do professor, enfim, processos formativos que lhes permitam resgatar o próprio saber e fazer e ampliar a consciência do seu papel de mediador.

Finalmente, como educadores comprometidos com uma educação de qualidade para todos, a reflexão sobre mediação docente e as condições necessárias para que ela ocorra mobiliza um compromisso político com a valorização do trabalho do professor em nossa sociedade.

 

Referências

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1 Pedagoga com especialização em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae, mestre e doutora em Psicologia da Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Foi professora e coordenadora do curso de Psicopedagogia Clínica Institucional do Instituto Sedes Sapientiae. Atualmente é Superintendente do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária - CENPEC
2 GATTI; NUNES, 2009.
3 Cf FANFANI, 2007; MARIN e GOVANNI, 2006 e 2007; SAMPAIO e MARIN, 2004

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