SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 issue25Self-narratives on interface with the process of making an "patchwork": experience reportSubject as symptom (ADHD) in society, school, family and the psicopedagogy author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.24 no.25 São Paulo  2016

 

Aspectos emocionais das dificuldades de produção de texto

 

Emotional aspects of text production difficulties

 

 

Carolina Zuppo Abed1

São Paulo/SP - Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo visa a discutir as intervenções psicopedagógicas nas dificuldades de produção de textos. Aborda a importância social e pessoal da comunicação, as mudanças metodológicas do ensino de escrita e a postura educadora na mediação do desenvolvimento da competência escritora. Com enfoque nas habilidades socioemocionais envolvidas no ato autoral, sugere diretrizes para um olhar psicopedagógico dos problemas de produção textual, para além do domínio estritamente linguístico do texto.

Palavras-chave: Ensino de escrita, Competência escritora, Intervenção psicopedagógica, Produção de texto, Dificuldades de escrita.


ABSTRACT

This article aims to discuss psycho-pedagogical interventions in text production difficulties. It studies the social and personal importance of communication, the methodological chenges in writing education and educator position in mediating the development of writing competence. Focusing on socio-emotional skills involved in the copyright act, suggests guidelines for psycho-pedagogical work with textual production problems, beyond the strictly linguistic problems.

Keywords: Writing teaching, Writer competence, Psycho-pedagogical intervention, Text production, Writing difficulties.


 

 

Introdução2

Muitas pessoas que vêm ao consultório de psicopedagogia com problemas na produção de textos têm, também, dificuldade em lidar com os processos emocionais e cognitivos que a escrita demanda. Não é raro encontrar dificuldades de criação textual associadas a outras fragilidades, de ordem mais subjetiva do que simplesmente encadear um pensamento lógico por meio das estruturas linguísticas adequadas, utilizando-se de uma norma padrão. O processo de escrita - entendida aqui como produção de textos autorais, não em seu aspecto motor, ou seja, alfabetização - envolve dinâmicas internas acessadas e modificadas a todo momento durante a elaboração de um texto. Para que ele transcorra de maneira adequada, deve-se desenvolver o controle da ansiedade e da impulsividade, visto que todo processo criativo demanda um tempo de maturação que deve ser respeitado, mesmo gerando desconforto. É preciso, também, trabalhar o vínculo com o outro, haja vista que qualquer ato comunicacional envolve a vontade ou a necessidade de um interlocutor. Em última análise, é necessário desenvolver a autoimagem do escritor, para que ele se perceba como autor autorizado, pois não é raro que a dificuldade em comunicar esteja associada à dificuldade de assumir o lugar daquele que tem algo a dizer e merece ser ouvido.

Para o crítico literário Antonio Candido (1995, p. 175), a literatura "é fator indispensável de humanização e, sendo assim, confirma o homem na sua humanidade, inclusive porque atua em grande parte no subconsciente e no inconsciente". No entanto, o que vemos com certa frequência é um ensino de técnicas de redação que ignora esse fator humanizador da linguagem e se volta apenas para regras e técnicas de aplicação da gramática na concatenação de uma ideia. Procede-se, assim, à cisão entre corpo, inteligência e desejo, tão criticada pela psicopedagoga Alícia Fernández (1990). Ignora-se tanto o corpo quanto os desejos dos sujeitos atuantes neste processo, o que dificulta a apropriação do trabalho de produção de texto como ato autoral. "Porém", adverte a argentina, "um psicopedagogo, cujo objeto de estudo e trabalho é a problemática de aprendizagem, não pode deixar de observar o que sucede entre a inteligência e os desejos inconscientes" (op. cit., p. 70). Faz-se necessário, pois, resgatar o desejo; priorizar a paixão e a subjetividade envolvidas no ato criativo. Valorizar a força criadora e transformadora que é mobilizada durante a produção de uma obra.

Não se pretende, com isso, deixar de lado as habilidades técnicas necessárias à redação, mas alertar para que o trabalho de produção textual não se restrinja a elas. O consultório psicopedagógico é um espaço privilegiado nesse sentido, pois o psicopedagogo pode - e deve - trabalhar particularmente com as questões internas de cada indivíduo, fortalecendo-o emocionalmente para lidar com o processo de escrita de maneira menos dolorida e mais eficiente. Feito isso, o escritor incipiente encontrará maior facilidade em apropriar-se da porção técnica que envolve a produção de texto, o que resultará numa aprendizagem integral da competência escritora.

Assim, numa visão integrada do ser humano, própria da psicopedagogia, unindo inteligência e corpo, valorizando o desejo do aprendente e do ensinante, mediando os conhecimentos com os quais opera na produção de um texto e desenvolvendo nele a leitura crítica e o manejo do problema retórico, estaremos trabalhando integralmente com a ideia de autoria - de texto e de pensamento. (Abed, 2016, p. 81)

Este artigo originou-se de uma pesquisa teórica e de campo sobre o ensino de produção de texto na Educação Básica, realizada para a escrita da monografia "Contribuições da psicopedagogia e dos cursos de formação de escritores profissionais para a otimização do ensino de escrita criativa na Educação Básica" (ABED, 2016). Trata-se de um recorte que enfoca as questões supracitadas, com um olhar especialmente voltado à clínica psicopedagógica - diferente do texto original, que aborda práticas de sala de aula. Esta pesquisa nasceu de uma preocupação com o desenvolvimento da escrita autoral como forma de empoderamento em um mundo marcadamente comunicacional (e cada vez mais escrito), em que as vivências humanas são atravessadas pelas palavras. Considerando que dominar a linguagem é, também, ter controle sobre o próprio pensamento, e que ser capaz de elaborar um discurso próprio liberta os indivíduos da reprodução não refletida de pensamentos alheios, formar escritores é, também, formar indivíduos com autonomia de pensamento. Com isso, auxiliar o processo de aquisição da competência escritora é, mais do que ensinar a escrever, mediar o desenvolvimento de uma postura diante do mundo.

 

Comunicação e desenvolvimento social

No premiado documentário de curta-metragem "Ilha das Flores", do cineasta Jorge Furtado (1989), é dito que os seres humanos se distinguem dos demais animais pelo seu telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor. O telencéfalo permite armazenar, compreender e relacionar informações; já o polegar opositor é responsável pelo movimento de pinça, que viabiliza a manipulação de precisão dos objetos. A combinação dessas duas características teria sido responsável pelo grande desenvolvimento da espécie, que evoluiu individual e socialmente até chegar ao que chamamos de civilização. O telencéfalo altamente desenvolvido e o polegar opositor são, também, responsáveis pelo ato da escrita.

A habilidade comunicativa foi e é de extrema relevância para as relações humanas. Desde a pré-história, a comunicação determinou a organização social e a divisão do trabalho. No mundo atual - globalizado e multimeios -, a comunicação tem sua importância ainda mais acentuada, visto que a experiência humana tem sido cada vez mais trespassada pelos discursos (orais, impressos ou virtuais). Saber utilizar a linguagem de maneira organizada e contextualizada à situação enunciativa significa sucesso nas relações humanas, sejam elas afetivas, de trabalho ou de qualquer outra natureza. Mais ainda: dominar a linguagem é, também, ter domínio sobre o próprio pensamento, pois possibilita articular ideias e pensamentos, além de traduzir em palavras emoções e sentimentos que, de outro modo, permaneceriam obscuros. Na formulação do linguista russo Mikhail Bakhtin (1981, p. 113): "Toda palavra serve de expressão de um em relação ao outro. Através da palavra, defino- me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade".

Elaborar um discurso próprio liberta os indivíduos da mera reprodução não refletida de teses alheias. Além disso, organizar um discurso subjetivo permite ao sujeito elaborar suas demandas interiores, na medida em que cria certo distanciamento de estados de espírito e consciência. Assim sendo, nota-se que formar bons redatores

é formar seres pensantes, autônomos em relação aos seus pensamentos, desejos, sentimentos, ideias, reflexões e, ainda, capazes de externalizar tais conteúdos, inicialmente inacessíveis a outrem, comunicando-os a quem quer que seja, em qualquer situação, com o efeito pretendido. (Abed, 2016, p. 7)

Vale ressaltar, portanto, que não somente no tocante ao sucesso profissional ou educacional o desenvolvimento das habilidades de produção de textos é essencial, mas também em termos humanos, visto que a pluralidade de experiências e pontos de vista contemplados ao se produzir variados textos acaba por ampliar os recursos internos do escritor, auxiliando na capacitação emocional deste para as mais diversas formas de contato humano. Isso porque o contato literário com o outro "não é um novo saber, mas uma nova capacidade de comunicação com seres diferentes de nós (...) não é a verdade, mas o amor, forma suprema de ligação humana" (Rorty apud Todorov, 2009, p. 80-81). Necessário é, pois, uma mediação do aprendizado da escrita respaldada na fundamentação psicopedagógica, que sustente essa capacitação emocional tão necessária à escrita e à vida em sociedade.

Não obstante a crescente necessidade da comunicação escrita na vida cotidiana, é notável que grande parte das pessoas têm dificuldade em produzir um texto. Angustiam-se, atrapalham-se, não sabem bem por onde começar, como terminar, de que maneira comunicar ao outro aquilo que por vezes é nítido e claro em sua cabeça, mas que se perde em algum lugar entre a mente e a folha de papel. Essa dificuldade é ainda mais marcadamente acentuada quanto mais se repete o velho mito que prega que escrever é um dom. Nessa perspectiva, acabam sendo reforçadas as ideias de que: 1) "quem escreve bem sempre escreverá bem e nada mais tem a aprender" e 2) "quem não escreve bem não nasceu para isso, nada tem a aprender que possa mudar tal situação". Aderir a essa noção, porém, significa aceitar o fato de que não há possibilidade de desenvolvimento da competência escritora, o que contraria os princípios da educação e da psicopedagogia.

 

Mas o que é ensinar a escrever?

Historicamente, o ensino de redação sofreu profundas modificações. As concepções do que é um bom escritor, de como funciona a produção de um texto e do papel do educador nesse processo foram submetidas a atualizações periódicas desde o surgimento da escrita. Os conteúdos a serem ensinados também variaram conforme a alteração de tais conceitos, o que baseou as escolhas didáticas e a postura educacional em cada período. Na década de 1910, ensinar a escrever era, basicamente, ensinar caligrafia. Ter uma boa letra era sinônimo de escrever bem, e o papel do educador se resumia a demonstrar e cobrar uma letra perfeita de seus alunos. Nos anos 1970, passou-se a estimular a prática de produção de textos por meio de exercícios de imaginação. Escrever bem passou a significar ter uma boa ideia ou uma "inspiração", e o papel do educador era o de fornecer temas sobre os quais escrever.

Só muito recentemente surgiu a preocupação de formar escritores autores. A partir da década de 1990 e mais ainda neste início do século XXI, nota-se uma crescente preocupação com o ensino de produção de texto enquanto processo complexo, que envolve elementos enunciativos e discursivos. Para a doutora em educação Márcia Vescovi Fortunato (2009, p. 16), "todo ato de escrita é um movimento singular de representação simbólica, é um ato de autoria de um escritor em atividade social de comunicação". O papel do educador diante dessa nova preocupação ainda não está consolidado; é hoje tema de muitas investigações1 e encontra-se em fase de experimentação.

Francine Prose (2008), escritora e professora de criação literária, inicia a introdução ao seu livro Para ler como um escritor com a seguinte pergunta: A escrita criativa pode ser ensinada? Para respondê-la, é preciso, antes, definir o que se entende por "ensinar". Caso o ensino seja considerado um processo que envolve unicamente a transmissão de informações, regras e prescrições, possivelmente será reforçado o mito de que a competência escritora é um dom que não pode ser ensinado. Mas, adotando uma concepção de ensino psicopedagógica, que atue com a facilitação do desenvolvimento do outro, numa postura mais dialética e menos normativa, então é possível pensar o educador como um mediador da aprendizagem de produção de textos. Isso porque a valorização da subjetividade trazida pela psicopedagogia implica "uma interação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, o que faz com que este último não possa ser concebido a priori, mas sim na e enquanto interação com o primeiro" (Abed, 2012).

A escrita autoral pode ser, assim, considerada uma atividade "problematicamente ensinável", para usar o termo do professor José Mário Pires Azanha (2006). Este estabelece uma distinção entre conteúdos plenamente ensináveis (aqueles que podem ser ensinados pela transmissão de um conjunto de regras, como por exemplo jogar xadrez) e conteúdos problematicamente ensináveis(aqueles que necessitam de habilidades individuais desenvolvidas a partir de experiências práticas, como por exemplo nadar). Enquanto os primeiros exigem um saber que, os segundos requerem um saber como. A diferente natureza do conteúdo a ser ensinado determina, também, a didática adotada para facilitar sua aprendizagem:

De um ponto de vista pedagógico, a distinção entre atividades, desde aquelas que são plenamente ensináveis até aquelas que são "problematicamente" ensináveis, é da maior relevância, porque essa distinção afetará profundamente o que é ensinar num caso e noutro. É quase óbvio que, sem a percepção dessas diferenças e a compreensão de como elas repercutem no próprio ensino, pode se tornar a situação de ensino uma fonte de angústias para professores e alunos. (AZANHA, 2006, p. 194)

Ensinar alguém a produzir um texto com qualidade pode parecer impossível para muitas pessoas pois estas compreendem unicamente a didática necessária ao ensino de conteúdos plenamente ensináveis, o que não se aplica ao ensino de escrita. Este requer não apenas um saber que, mas também - e principalmente - um saber como. É, pois, uma atividade problematicamente ensinável, que demanda o desenvolvimento de habilidades específicas somente adquiridas por meio da prática.

A tarefa do educador, nessa perspectiva, é das mais complexas: como propõe Gilbert Ryle (1967, p. 106), é preciso ensinar a aprender o que não foi ensinado, de modo que "as coisas anteriores que ensinamos a ele [o aluno] (...) o tenham tornado capaz e talvez encorajado a fazer um pequeno progresso independente e sem tutoria [uncoached] por si próprio2". É preciso, pois, trabalhar a metacognição e desenvolver atividades epiliguísticas (i. é: que façam o estudante refletir sobre a linguagem), de modo a criar um arcabouço de ferramentas linguísticas e emocionais de que o pequeno escritor possa se utilizar ao produzir os mais variados textos. Ensinar alguém a escrever significa, então, fornecer uma gama de conhecimentos teóricos e de habilidades práticas que lhe possibilitem extrapolar os conteúdos previamente ensinados e recombinar as ferramentas linguísticas em diferentes contextos, podendo fazer seus próprios saltos e descobertas na expressão escrita. (Abed, 2016, p. 29)

Devido à complexidade da tarefa e à pouca circulação de estudos sobre o tema, não é incomum verificar, caminhando lado a lado com os problemas de aprendizagem da escrita, um problema de ensinagem no fazer educacional no que concerne ao desenvolvimento da competência escritora. Junto a estudantes com dificuldade de aprendizagem em produção de texto, muitas vezes encontra-se um educador às voltas com a problemática do ensino de escrita. Não se trata, neste caso, de uma dificuldade de ensino - que, segundo a psicopedagoga Elizabeth Polity (s. d.), refere-se à falta de domínio do assunto a ser ensinado -, mas de uma dificuldade centrada no processo de mediação do conhecimento; processo este relacional, que ocorre na interação entre ensinante e aprendente. Explica a autora:

Além do processo emocional, implícito no ato de ensinar, ela [a ensinagem] refere-se a uma comunicação interativa em que os estados de intersubjetividade podem tornar-se significativos. Supõe relacionamento e considera as trocas emocionais que permeiam o ato de ensinar. A ensinagem é, portanto, ensinar com a emoção e com a razão. Por isso, este processo demanda, para seu entendimento, um enquadre nos paradigmas Construtivistas / Construcionistas Sociais. (Polity, s. d.)

Congruente com essa necessidade de revisitar paradigmas da ensinagem, são válidas as contribuições trazidas por Feuerstein & Bolívar (1983) ao ensino entendido como experiência de mediação do conhecimento. "Por Experiência de Aprendizagem Mediada (EAM)", definem os teóricos, "nós nos referimos ao caminho no qual os estímulos emitidos pelo ambiente são transformados por um agente mediador" (op. cit., p. 16). Segundo ele, para garantir a aprendizagem é necessário que o indivíduo saiba lidar com os estímulos aos quais é exposto: pensar sobre eles,relacioná-los, utilizá-los. A mediação surge para possibilitar a construção do conhecimento pelo próprio mediado, numa abordagem que se complementa com o defendido por Ryle e Azanha. O papel do mediador, nessa visão, é o de reunir as habilidades necessárias para construir pontes entre o conhecimento - que está no mundo - e o mediado.

 

Aspectos emocionais do processo de escrita

Mecanismos emocionais como a ansiedade, a insegurança e a falta de motivação estão sempre presentes no processo criativo, seja de quem for. Inúmeros testemunhos de escritores consagrados indicam que também eles sofrem com esses mesmos problemas ao produzirem suas obras. Um texto não nasce pronto; sequer se desenvolve de maneira indolor, linear e organizada. Ao contrário: é fruto de um processo desorganizado e muitas vezes incômodo, em que se alternam momentos de "branco", de indecisão, de caos, em que parece que as palavras fogem à mente ou brotam num turbilhão indomável, todas de uma vez. Isso é normal e inevitável, faz parte do processo de criação: qualquer atividade que envolva criatividade está sujeita a esse processo. É desse caos, dessa ausência ou profusão de ideias que surgirão os elementos necessários para a concretização da atividade em si; para a criação. Cada indivíduo lida de maneira diferente com todas as questões envolvidas no processo criativo; não obstante, há fatores de semelhança, uma vez que esses incômodos surgem para todas as pessoas, de um jeito ou de outro.

No entanto, a percepção de que o processo criativo é caótico e por vezes desesperador, mesmo para o mais experiente dos escritores, nem sempre é clara para o escritor iniciante. Este, não raro, sente-se perdido frente à angústia de querer dizer algo sem saber como, ou tentando escrever sem lhe ocorrer nenhuma ideia. Desola-se com a necessidade de recomeçar, de novo e de novo, ou com a frustração de perceber uma tentativa de comunicação malsucedida. É comum ouvir, nos relatos de pessoas com dificuldade de escrita, uma nota de solidão e outra de fracasso decorrentes da dificuldade em lidar com essas etapas da produção de um texto autoral. O que se nota é que para eles a escrita é idealizada, envolta por uma espécie de aura mágica que a faz instantânea e indolor. Por isso, faz parte do processo de ensino de escrita - e mais ainda das intervenções nas dificuldades de produção de texto - conversar sobre o processo criativo e trazer à consciência do aluno que criar algo é resultado de um processo cheio de solavancos, longo, vagaroso e, em muitos momentos, penoso. Compreender que todos os escritores passam inevitavelmente pelas mesmas situações que ele pode ser libertador, pois acalma sua ansiedade e diminui sua insegurança de modo que ele se sinta menos pressionado e mais motivado. A própria experiência do educador em relação à escrita pode fornecer contribuições significativas para essa percepção.

Para os pequenos escritores, saber que também o professor enfrenta as mesmas dificuldades no caminho da produção de um texto, mas lida com elas de maneira eficaz e consegue chegar a um resultado positivo é um alívio e uma inspiração. Um farol luminoso, que lhes diz, no escuro de suas angústias: "Fique calmo, eu sei como é. Eu também passei por isso, e é assim mesmo. Todo mundo sente o que você está sentindo. Isso não significa fracasso. Isso significa que você vai conseguir, daqui a pouco.". (Abed, 2016, p. 69-70)

No prefácio ao livro em que compila entrevistas com alguns dos mais aclamados escritores de ficção, Malcolm Cowley (1982) observa: "Parece haver quatro fases na composição de uma história. Primeiro vem o germe da narrativa; depois, um período de meditação mais ou menos consciente; a seguir, o primeiro rascunho e, finalmente, a revisão (...)" (COWLEY, 1982, p. 5 [grifo meu]). É esse "período de meditação mais ou menos consciente" que muitas vezes gera um terror paralisante nos aspirantes a escritores, pois, mal interpretado, é tido como sinônimo de fracasso. Com medo de "empacar" e ansiosos por ultrapassar o mais rápido possível essa etapa, estes acabam subestimando a importância de vivenciá-la por inteiro, o que impede que emerja daí as reflexões necessárias para dar continuidade à construção do texto. A maioria das pessoas que não conseguem finalizar um texto apenas não tiveram a força necessária para atravessar o caos e chegar à outra margem do processo de escrita, em que as ideias e palavras finalmente começam a voltar para os seus lugares. E isso, sim, é fracasso.

É essencial, então, fortalecer na cabeça autor iniciante a noção de que há um tempo natural de maturação do texto, em que as ideias giram desordenadamente ou parecem fugir todas de uma vez, e que é preciso respeitar esse momento, não lutar contra ele ou fingir que ele não existe. Respeitando esse tempo, damos espaço para que as ideias assentem de forma mais clara e organizada. Feliz ou infelizmente, não é possível apressar esse processo, dar forma às ideias prematuramente; deve-se aguardar o tempo necessário para que a evolução do projeto ocorra naturalmente, em todas as suas etapas.

Na visão do Nobel de literatura García Márquez (1997, p. 10), "a coisa mais importante deste mundo é o processo de criação", e é preciso cuidar para não atrapalhá-lo. Durante a "meditação mais ou menos consciente" da ideia, é preciso deixar o lado criativo do cérebro agir, intuitivamente. Neste momento, não se deve deixar a racionalidade interferir demais, caso contrário a criatividade intuitiva terá dificuldades em se manifestar livremente. Nessa primeira etapa criativa, a porção racional do cérebro não só não é de grande ajuda como pode atrapalhar, tentando dar forma àquilo que ainda não se desenvolveu adequadamente nem como ideia etérea e abstrata ou mesmo podando com excesso de criticidade as múltiplas possibilidades ainda por vir.

Para o professor de criação literária Stephen Koch (2009, p. 8-9),

O processo de escrita, do início ao fim, requer que você ora adote uma atitude intuitiva, sonhadora, aberta, passiva, ora adote critérios elaborados, refletidos, plenamente desenvolvidos, e assuma o controle. Você precisa das duas coisas, e é preciso que as duas não entrem em conflito, mas se harmonizem.

Durante a elaboração de um texto, haverá momentos em que racionalidade será necessária: para encontrar a palavra mais precisa, a frase mais clara, o melhor encadeamento dos parágrafos. Porém, é importante que tanto o educador quanto o pequeno escritor consigam diferenciar as etapas da criação textual e reconhecer que saber quando "desligar" a cabeça também faz parte do conjunto de habilidades necessárias à construção da competência escritora.

É de igual importância para a construção dessa competência que se invista na motivação envolvida no ato da escrita autoral. Não seria honesto afirmar que escrever é uma atividade fácil, mesmo para quem lida bem com ela. Vários mecanismos (criativos, emocionais, cognitivos, e linguísticos) estão envolvidos na complicada tarefa de comunicar algo a alguém de modo claro, objetivo e eficaz porutilizando-se da linguagem escrita. É primordial que o pequeno escritor compreenda essa dificuldade, não a subestimando nem se deixando aturdir por ela. Desmotivado, ele possivelmente terá menos força interior para lidar de maneira positiva e construtiva com os obstáculos que surgirão ao elaborar um texto. Com isso, ficará mais vulnerável às críticas e mais propenso a tentar sem afinco ou mesmo a desistir. Essas intercorrências emocionais podem até liquidar com uma experiência autoral que poderia ser bem sucedida. O psicopedagogo, ao trabalhar com dificuldades de escrita, deve auxiliar o indivíduo a encontrar em si a motivação necessária para permanecer na tarefa, apesar das dificuldades; resgatar a perseverança para enfrentar os obstáculos, superando-os e aprendendo com eles até chegar ao objetivo final - o texto escrito. Como observa Koch (2009, p. 34), "os escritores precisam tanto de aprovação para seguir em frente quanto da vontade de avançar mesmo sem ela". Essa vontade vem do desejo investido na criação de uma obra; sem ele, escrever torna-se mais penoso que recompensador, e pode mesmo ser vivido como um fardo.

Muitas vezes, o ensino de redação foca-se tanto nos aspectos técnicos da linguagem que acaba por encobrir de regras o prazer que poderia - e deveria - emergir do ato de criar e expressar-se. Trabalhando apenas os mecanismos racionais da produção textual, ignora uma lição aprendida e reverenciada pelo escritor Stepen King (apud Koch, 2009, p. 14): "o coração também sabe coisas, assim como a imaginação". Este saber passional, importantíssimo para a escrita criativa (tanto quanto para a qualquer outra arte), não pode ser esquecido ou relevado por uma metodologia que busque desenvolver as habilidades presentes na produção de uma obra. De outro modo, a escrita não será percebida como um ato livre de criação, dotado de individualidade, inventividade e expressividade. É preciso, pois, valorizar a noção de escrita autoral, no lugar de uma escrita-tarefa, puramente técnica.

Infelizmente, a metodologia adotada pelas escolas no ensino de redação nem sempre seguem esta linha autoral e subjetivante. Muitas vezes, os esforçosconcentram-se em formar redatores, não autores, o que acaba desmotivando os alunos, que, com isso, não se empenham na tarefa visceral e entusiasticamente. Sem considerar o desejo dos aprendentes, a aprendizagem fica "descorporificada" (nos termos de Alícia Fernàndez (1990)), o que resulta em uma situação educacional ineficaz. Além disso, não mobilizando a vontade e a motivação no ato da produção escrita, ocorrerá uma separação artificial entre as técnicas de linguagem e a vontade de se expressar.

É preciso que a força motriz da escrita criativa venha de dentro, de uma pulsão individual que transforme a tarefa "escrever um bom texto para tirar boa nota ou agradar à professora e aos colegas" em "escrever um texto que dê conta de mostrar quem eu sou, até para mim mesmo, e lidar com tudo isso em que estou pensando e que sinto aqui dentro". (Abed, 2016, p. 66)

Caso contrário, o pequeno autor escreverá para tirar boas notas, ou para agradar o professor, ou simplesmente para cumprir uma tarefa obrigatória e esvaziada de sentido. Assim, o esforço empregado na atividade será pouco ou nada recompensador, frente à satisfação interna que poderia trazer caso fosse tratada como uma necessidade pulsante e subjetiva do autor.

Cabe, então, ao psicopedagogo que se depara com indivíduos com dificuldades de produção textual, revestir a escrita de significação, de modo a operar não apenas com a razão mas com a emoção e a subjetividade do autor e transferir o critério de valoração da obra do exterior (notas, elogios), para o interior do escritor (prazer, leveza, satisfação). Se o combustível criativo vem do desejo, das pulsões, e da emoção, não da razão, não é possível ignorar a relevância da motivação na elaboração de um texto. Isso porque escrever "é capturar a essência das paixões do escritor e reconstruí-las, palavra por palavra, de modo a fazê-las atravessar a barreira intersubjetiva e alcançar o leitor, provocando nele essas mesmas paixões" (Abed, 2016, p. 64) - paixões estas que, se não forem convocadas no processo de escrita, poderão impedir sua realização.

 

Considerações Finais

O poeta alemão Rainer Maria Rilke (2013, p. 25) uma vez deu o seguinte conselho a um jovem poeta com quem se correspondia: "Ninguém pode aconselhá- lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração (...)". Este conselho pode ser aplicado também ao trabalho psicopedagógico com as dificuldades de produção textual. O psicopedagogo deve compreender que o maior auxílio que pode fornecer ao escritor inexperiente é auxiliá-lo a buscar seus próprios caminhos na elaboração de textos autorais: compreender seu processo criativo e desenvolver maneiras de lidar com ele; encontrar sua motivação, dando lugar para que suas paixões emerjam durante a escrita.

Muito mais do que insistir apenas em lapidar estruturas frasais, fornecer modelos saudáveis de relação com todo o processo de produção de texto; fortalecer a autoestima, a resiliência e a persistência e investir a escrita de novas e mais profundas significações trará efeitos extremamente benéficos ao autor incipiente. Dessa forma, mais do que ajudar a escrever melhor, desenvolvendo apenas processos cognitivos, a intervenção psicopedagógica ampliará a forma como o indivíduo se insere e se comunica socialmente.

 

Referências

ABED, Carolina Z. Contribuições da psicopedagogia e dos cursos de formação de escritores profissionais para a otimização do ensino de escrita criativa na Educação Básica. São Paulo: Faculdade de Conchas. Pós-graduação em Psicopedagogia sistêmica. Monografia, 2016.         [ Links ]

________________. A educação no século XXI: tendências e desafios. In: Jornal Informa ABPp. São Paulo: ano 8, nº18, maio de 2012.         [ Links ]

AZANHA, José Mário P. A pedagogia das competências e o ENEM. In: A formação do professor e outros escritos. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2006.         [ Links ]

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCIT, 1981        [ Links ]

CANDIDO, Antonio. Direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1995.         [ Links ]

FERNÁNDEZ, Alicia. A Inteligência aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.         [ Links ]

FEUERSTEIN, Reuven & BOLÍVAR, C. R. La teoria de la modificabilidade cognoscitiva estructural: uma explicación alternativa sobre el desarrollo cognoscitivo diferencial. Guayana: Mimeo, 1983.         [ Links ]

FORTUNATO, Márcia V. Autoria e aprendizagem da escrita. São Paulo: Universidade de São Paulo. Programa de pós-graduação em Educação - Área de concentração: linguagem e educação. Tese de doutorado, 2009.         [ Links ]

ILHA das flores. Direção: Jorge Furtado. Casa de Cinema de Porto Alegre. País: Brasil. Local de produção: Porto Alegre - RS. Ano: 1989. Duração: 13 min. Formato: 35 mm.         [ Links ]

KOCH, Stephen. Oficina de escritores: um manual para a arte da ficção. São Paulo: Martins Fontes, 2009.         [ Links ]

MÁRQUEZ, Gabriel Garcia. Como contar um conto. Rio de Janeiro: Casa Jorge Editorial Ltda., 1997.         [ Links ]

POLITY, Elizabeth. Dificuldade de ensinagem: que história é essa? S. d. Disponível em: <http://www.umaoutravisao.com.br/secoes/Biblioteca/dificuldade_ensinagem.html> Acesso em: 15/05/2016.         [ Links ]

PROSE, Francine. Para ler como um escritor: um guia para quem gosta de livros e para quem quer escrevê-los. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.         [ Links ]

RILKE, Rainer M. Cartas a um jovem poeta. Porto Alegre: L&PM, 2013.         [ Links ]

RYLE, Gilbert. Teaching and training. In: PETERS, R.S. The Concept of Education. Londres: Routledge & Kegam Paul, 1967.         [ Links ]

 

 

1 Graduação em Letras pela Universidade de São Paulo, pós-graduação em Formação de Escritores e em Psicopedagogia Sistêmica. Atua como professora de redação da Escola Santa Marina e do Colégio Agostiniano São José e ministra oficinas de escrita criativa pela Secretaria Municipal de Cultura de Santos/SP. Contato: carolina.abed@gmail.com
2 Para um estudo mais detalhado sobre o tema, ver ABED, Carolina Z. Contribuições da psicopedagogia e dos cursos de formação de escritores profissionais para a otimização do ensino de escrita criativa na Educação Básica. São Paulo: Faculdade de Conchas. Pós-graduação em Psicopedagogia sistêmica. Monografia, 2016.

Creative Commons License