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Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.24 no.25 São Paulo  2016

 

Aspectos cognitivos e morais do desenvolvimento infantil: investigação por meio de um conto de fadas em versão multimídia

 

Cognitive and moral aspects of child development: investigation through fairy tales in multimedia version

 

 

Silvia Lorenzoni Perim Seabra1; Claudia Broetto Rossetti2

Universidade Federal do Espírito Santo

 

 


RESUMO

Os estudos sobre o desenvolvimento infantil em seus aspectos cognitivos e morais revelam-se recorrentes nas pesquisas com crianças e a perspectiva da epistemologia genética de Jean Piaget pressupõe que haja uma evolução de tais aspectos ao longo da infância. Nesta investigação a metodologia incluiu o conto de fadas que mostrou ser uma ferramenta que desperta o interesse das crianças, que se identificam e são capazes de se posicionar em relação ao conteúdo da história. Tal ferramenta caracteriza-se como maneira privilegiada de acessar as representações e explicações da realidade que crianças de diferentes idades possuem. Com o objetivo de estudar aspectos do desenvolvimento cognitivo e moral de crianças por meio do conto de fadas "João e Maria" em versão multimídia, o presente artigo teve como participantes 24 meninos e meninas de 6, 7, 10 e 11 anos de idade que após terem acesso ao conto de fadas, foram solicitados a reconstituir o conto e responderam a uma entrevista baseada no método clínico piagetiano. A ideia de empregar o conto de fadas como uma ferramenta de estudo do desenvolvimento infantil mostrou-se bastante interessante e válida, uma vez que as respostas oferecidas pelas crianças expressaram bem seu modo de raciocínio, denotaram sua organização mental e as ideias que têm do mundo. Os resultados relacionados aos aspectos cognitivos apontaram que a maior parte das crianças reconstituiu o conto dentro do modo Concreto (Souza, 1990), e em relação ao desenvolvimento moral a maioria das crianças apresenta um posicionamento mais heterônomo ao julgar as ações dos personagens. Tais resultados reforçaram a ideia Piagetiana de evolução do desenvolvimento cognitivo e moral ao longo da infância, permitiram investigar a estruturação do pensamento e da linguagem das crianças das idades estudadas, e abrem possibilidade de ampliação das idades pesquisadas e detalhamento da parte do estudo referente ao aspecto moral.

Palavras-chave: Contos de Fadas, Teoria Piagetiana, Infância, Cognição, Moralidade.


ABSTRACT

Studies on child development in their cognitive and moral aspects are recurring in researches with children and the Jean Piaget's perspective of genetic epistemology assumes that there is an evolution of such aspects during childhood. In the research with children, fairy tales show up as a tool that arouse their interest, with which they identify themselves and how they are able to position themselves in relation to the content of the tale. Such tool is characterized as a privileged way to access representations and explanations of the reality that children of different ages have. This research aimed to study aspects of cognitive and moral development of children through a fairy tale. The participants were 24 boys and girls aged 6, 7, 10 and 11 that, after having access to the fairy tale "Hansel and Gretel" in multimedia version, were asked to reconstruct the story and answered to an interview based on the Piaget clinical method. The idea of employing the fairy tale as a child development study tool proved to be very interesting and valid, since the answers given by the children expressed their way of thinking, denoted their mental organization and how they see the world. The results related to cognitive aspects pointed out that most children reconstructs the tale within the concrete way, and in the aspect of moral development most children presents a more heteronomous position to judge the actions of the characters. Such results reinforced the Piagetian idea of cognitive and moral development evolution throughout the childhood, enabled investigate the thought structure and language of children of the age groups studied, and open possibility of expanding the ages researched and details of part of the study concerning the moral aspect.

Keywords: Fairy tales, Piaget's theory, Childhood, Cognition, Morality


 

 

Introdução

A presente pesquisa teve como objetivo investigar os aspectos do desenvolvimento cognitivo e moral de crianças de 6-7 e 10-11 anos de idade por meio do conto de fadas "João e Maria" apresentado em contexto multimídia.

A investigação realizada suscita reflexões sobre a adequação da teoria de Piaget aos temas contemporâneos relevantes para a área do Desenvolvimento Humano. Percebe-se que Piaget pertence a uma época, mas sua teoria não. Esta ainda suporta temas e sujeitos contemporâneos, conforme apresentado nesta investigação.

O interesse pelo estudo das etapas de desenvolvimento cognitivo e moral de crianças apresenta-se como importante linha de investigação nas pesquisas de Piaget e é tema deste artigo, que visa investigar como tal evolução ocorre em uma amostra de crianças nos dias atuais.

Para cumprir tal objetivo, buscou-se utilizar instrumentos de pesquisa que fossem interessantes e estivessem presentes no cotidiano dos participantes. Dessa maneira, decidiu-se pela utilização de uma versão multimídia de um conto de fadas clássico, visto que, para as crianças dos dias atuais, o dinamismo característico dos artefatos tecnológicos é bastante atrativo.

De acordo com Cacciolari & Matsuda (2010) as novas tecnologias surgem como uma criação e uma necessidade contemporânea dentro de uma cultura que é sobretudo visual, e por serem atraentes e dinâmicas, os sujeitos tendem a se relacionar e se interessar pelas mesmas. Os contos de fadas, ainda que tenham origem remota, permaneceram em nossa vida moderna e isto parece poder de alguma maneira ser justificado pelo sentimento de fascínio e sedução do homem pelas narrativas. Segundo Coelho (1991, p. 10) "a literatura é, sem dúvida, uma das expressões mais significativas dessa ânsia permanente de saber e de domínio sobre a vida, que caracteriza o homem de todas as épocas".

Pela perspectiva de Piaget (2010) a capacidade de representação começa a ser desenvolvida nas crianças durante o estágio pré-operacional, visto que neste período a linguagem socializada, juntamente com a capacidade para representar promove o contato da criança com o mundo social e o das representações interiores, estando assim, apta a representar eventos internamente por meio do pensamento.

Segundo Garbarino (2012) ao longo do desenvolvimento das crianças ocorre uma transformação do pensamento que não se inicia por começos absolutos, mas sim com o novo sempre procedendo ou por meio de diferenciações progressivas, ou de coordenações graduais, ou de ambas; entendendo que "o desenvolvimento é progressivo e que cada período pode apresentar coexistência de elementos do anterior" (2012, p. 165).

A presente pesquisa, ao solicitar que as crianças reconstituíssem o conto objetivou estudar, principalmente nas mais jovens, aspectos cognitivos referentes a alguns fenômenos do pensamento e a capacidade de representação, possíveis de serem observados na linguagem, descritos por Piaget, como: justaposição de ideias, sincretismo, ausência de relação temporal, causal e lógica, posicionamento egocêntrico, raciocínio transdutivo, fantasia e imaginação (PIAGET, 1986, 2010). Já em relação às crianças mais velhas a expectativa era que apresentassem outras características como: apego literal ao conteúdo do conto, intepretação e compreensão das entrelinhas, posicionamento sobre a conduta e a atitude dos personagens, capacidade de se colocar no lugar dos personagens e flexibilização do pensamento.

Para a análise dos aspectos cognitivos utilizou-se como referência os modos de reconstituição Fantasioso, Concreto e Interpretativo, descritos por Souza (1990) e apresentado no Quadro 1.

 

 

Em suas pesquisas Souza (1990) propõe os modos de reconstituição citados objetivando investigar a evolução do pensamento das crianças e os resultados encontrados nas pesquisas da referida autora encontram articulação com a perspectiva teórica piagetiana, de modo

que as crianças utilizam elementos de suas capacidades cognitivas (configuradas em níveis de desenvolvimento) para reconstruir os objetos, nesse caso os textos dos contos, reestruturando-os de acordo com suas possibilidades assimilativas/acomodativas, ora deformandoos ao seu bel prazer, ora apegando-se excessivamente aos detalhes concretos do texto e do enredo, ou, finalmente, conservando os elementos essenciais e interpretando o texto, usando inferências. (Souza, 2001, p. 17)

Tais modos de reconstituição apresentam-se como forma de refletir sobre a conotação evolutiva do desenvolvimento cognitivo das crianças.

Os aspectos do desenvolvimento moral foram analisados e classificados por níveis, de acordo com o que foi proposto por Piaget (1994), conforme descrito no Quadro 2.

 

 

Piaget (1994) e La Taille (2006) são autores que se debruçaram sobre a dimensão moral do desenvolvimento humano, e suas investigações vêm contribuindo para ampliar as reflexões sobre o referido tema, por meio dos estudos da ação moral nos jogos de regras, da moral na relação com a ética e do que há de universal no desenvolvimento moral dos sujeitos.

Os estudos de Piaget (1994) mostram que podem ser observadas dimensões morais ao longo do processo de desenvolvimento da criança que tende a inicialmente apresentar anomia e aos poucos evoluir de um realismo moral, ou seja, de uma postura mais heterônoma, para uma posição mais autônoma. La Taille (2006) afirma que inicialmente (até os quatro anos) a noção de que as ações podem ser valoradas como boas ou más ainda não permeia o universo moral da criança, mas ao longo do desenvolvimento ocorre o ingresso da criança no universo moral, que passa a adotar um posicionamento de respeito unilateral às regras, denominado por Piaget de moral da regra exterior, e assim o julgamento e sua tendência para uma responsabilidade subjetiva, aos poucos (de acordo com a idade) domina a responsabilidade objetiva. A posição mais heterônoma pode ser percebida pela compreensão das regras de uma maneira bastante literal, de modo a considerar mais os resultados materiais da ação e menos as intenções da mesma, e condiciona a legitimidade das ações a alguém que ela reconhece como uma autoridade. O posicionamento autônomo se apresenta a partir da capacidade da criança de demonstrar respeito mútuo, cooperação e inclusão do outro, abrindo a possibilidade de questionar, e até mesmo modificar as regras, antes de segui-las como um imperativo.

Os resultados encontrados nas pesquisas apresentadas anteriormente e as lacunas e novas perguntas que surgem a partir da referida revisão, justificam a realização da presente pesquisa, que visa expandir o estudo sobre a possibilidade da utilização dos contos de fadas como instrumento de investigação de aspectos do desenvolvimento cognitivo e moral das crianças na atualidade, visando responder ao seguinte problema de pesquisa: Como crianças, hoje, representam e julgam moralmente elementos de um conto de fadas clássico numa versão digital?

Desta forma este artigo tem como finalidade investigar a representação e o julgamento moral de crianças em relação a elementos de um conto de fadas clássico numa versão digital. Para tanto foram realizadas: 1) Investigação sobre o desenvolvimento cognitivo dos participantes utilizando os modos de reconstituição do conto (Fantasioso, Concreto e Interpretativo) propostos por Souza (1990) e 2) Avaliação do nível de desenvolvimento moral (Anomia, Heteronomia e Autonomia), estudados por Piaget (1994), dos participantes a partir dos juízos sobre os personagens do conto de fadas.

 

Método

A pesquisa foi realizada com 24 crianças com as idades de 6-7, 10-11 anos de idade, totalizando 12 crianças de 6-7 anos, sendo metade deste grupo de meninas e a outra metade composta por meninos, e 12 crianças de 10-11 anos de idade, sendo também composto de seis meninos e seis meninas, todos alunos de uma escola privada da Grande Vitória no Espírito Santo.

As crianças foram entrevistadas individualmente após a apresentação, também individual, de uma versão multimídia (com duração de 12 minutos) do conto de fadas clássico "João e Maria" em um tablet. Após assistirem ao conto de fadas as crianças responderam a oito perguntas de uma entrevista clínica adaptada ao conteúdo do conto de fadas (Quadro 3). A entrevista iniciava perguntando sobre o entendimento do conto, solicitava que a criança reconstituísse o mesmo e investigava o julgamento dos participantes em relação à ação de cada personagem do conto.

 

 

A entrevista adaptada ao conto realizada com os participantes teve como base o método clínico piagetiano que dá condições ao pesquisador de realizar estudos evolutivos por meio das explicações da realidade dadas pela criança em diferentes idades (PIAGET, 2005). Souza (2012) indica um importante aspecto desta metodologia enfatizando que é "um método para acompanhar como o indivíduo passa de um patamar de menor equilíbrio para um de maior equilíbrio, ao longo de seu processo de construção de conhecimento" (2012, p. 140).

As entrevistas foram gravadas em áudio digital e posteriormente foram transcritas na íntegra para a análise dos dados, sendo que durante este processo fez-se necessário optar pelo estabelecimento de novas categorias de análise, a partir da leitura cuidadosa de todo o material transcrito (FLICK, 2009).

 

Resultados e Discussão

Objetivando validar as categorias estabelecidas utilizou-se o acordo interjuízes, que segundo Delval (2002, p. 172) consiste em

separar parte dos protocolos e passá-los a outra pessoa com experiência na pesquisa, mas que, se possível, não tenha participado do estudo, para que ela classifique os sujeitos utilizando nossas categorias.

A seguir serão apresentados os resultados da investigação sobre os aspectos cognitivos por meio da análise das reconstituições do conto de fadas pelos participantes.

Os resultados apresentados no Quadro 4 apontam que uma parte das crianças de seis anos (22,2%) e de sete anos idade (13,8%) apresentaram respostas que foram classificadas como Fantasiosas, ou seja, demonstraram reconstituição do conto de maneira bastante resumida, com elevada justaposição de ideias acarretando a distorção do conteúdo do mesmo, demonstrando uma posição egocêntrica, ao apresentar excessos de termos como por exemplo "depois eles", sem identificar a que, ou a quem, o personagem está se referindo (SOUZA, 1990). Ao ligar várias partes do conto com o termo "depois" a criança não está apontando nem relação temporal, nem causal e nem lógica (PIAGET, 1986). Tal caracterização das respostas encontra embasamento em Piaget (s.d.), que afirma que

 

 

na inteligência verbal, a justaposição é a ausência de ligações entre os diversos termos de uma frase: o sincretismo é a compreensão global que faz da frase um todo. Em lógica, a justaposição leva a uma ausência de implicações ou justificações recíprocas entre os juízos sucessivos; o sincretismo leva a uma tendência a ligar tudo a tudo, a justificar tudo pelas razões mais engenhosas ou mais absurdas. Em resumo, em todos os domínios, justaposição e sincretismo estão em antítese, o sincretismo sendo o predomínio do todo sobre o detalhe; a justaposição, o do detalhe sobre o todo. (PIAGET, s.d., p. 66)

Entretanto, nenhuma das respostas das crianças de dez e onze anos de idade foi classificada dentro do modo Fantasioso.

Assim, no momento da classificação dos modos de reconstituição, empregando a metodologia de analisar cada resposta de cada criança a cada pergunta, houve preponderância de respostas dentro do modo Concreto de reconstituir em todas as idades, que se caracteriza por uma reconstituição bastante apegada ao texto do conto, sem distorções, fantasias ou interpretações, isto é, sendo bastante literais ao reconstituir.

Desse modo, conforme ilustrado no Quadro 5, os participantes de sete anos de idade foram os que apresentaram maior porcentagem de respostas (84,7%) no modo Concreto, seguido das crianças de seis anos (75%). Os participantes de onze anos de idade revelaram 62,5% de reconstituições no modo Concreto, enquanto 52,7% das respostas oferecidas pelos de dez anos foram do modo Concreto.

 

 

Ainda que não tenha sido necessário criar novas classificações, além das já propostas, para as respostas das crianças de dez e onze anos de idade, foram classificadas como "Não soube/não respondeu" algumas respostas das crianças de seis anos (2,7%) e de sete anos de idade (1,3%).

Os participantes de seis e sete anos de idade não apresentaram nenhuma resposta dentro da classificação Interpretativa.

Ao analisar algumas respostas das crianças de dez anos encontra-se uma ainda incipiente capacidade de análise e interpretação, que segundo Souza (1990) remete ao modo de reconstituição Interpretativo. Em algumas das respostas oferecidas, as crianças se posicionam e até mesmo supõem coisas a partir do conto. Assim, conforme exposto no Quadro 6, 47,2% das respostas oferecidas pelas crianças de dez anos de idade foi classificada como Interpretativa, e 37,5% das respostas dos participantes de onze anos foram categorizadas como Interpretativas. As crianças de onze anos em sua reconstituição indicam em algumas de suas falas a compreensão das entrelinhas do conto, se desvencilhando do concreto e fazendo apontamentos, oferecendo suas opiniões e sugestões para os personagens do conto, o que indica a presença do início de uma capacidade interpretativa.

 

 

Assim, analisando o total de respostas das crianças participantes (Quadro 7) concluise que 68,7% das mesmas reconstituíram o conto de modo Concreto, sendo que 21,1% fez a reconstituição de modo Interpretativo e 9% Fantasioso.

 

 

Com a finalidade de investigar as dimensões do desenvolvimento moral utilizou-se a seguinte classificação: I - Anomia, I/II - Anomia/Heteronomia, II - Heteronomia, II/III Heteronomia/Autonomia e III - Autonomia, observadas na análise das respostas de cada participante sobre cada personagem do conto.

Em relação aos aspectos do desenvolvimento moral das crianças, as idades pesquisadas denotam diferentes maneiras de julgar as ações dos personagens, como encontrado nos estudos piagetianos (Piaget, 1994/1924) que afirmam haver um processo de desenvolvimento que evolui de um realismo moral, ou seja, de uma postura mais heterônoma, para uma posição mais autônoma. Assim, a análise dos dados da presente pesquisa mostra diferenças nas respostas dos participantes, que indicam uma evolução de acordo com a idade, conforme colocado no Quadro 8.

 

 

Ao analisar os dados e classificá-los (Quadro 8) verifica-se que a dimensão I - Anomia não foi identificada em nenhuma das respostas dos participantes. Uma pequena parte (5,5%) das crianças de seis anos de idade e 11,1% das respostas das crianças com sete anos de idade foi classificada na transição I/II - Anomia/Heteronomia, sendo que nenhuma das respostas das crianças de dez e onze anos foi classificada como I/II.

Foi preponderante nas respostas das crianças de seis e sete anos de idade, apresentadas no Quadro 9, ao justificar as ações dos personagens, apresentarem uma tendência a demonstrar uma posição mais heterônoma (II - Heteronomia: 6 anos - 77,7% e 7 anos - 72,2%), ou seja, de tender a julgar os fatos pelos resultados, ou pelas consequências, que podem ser acarretados a partir deles. A classificação de transição II/III - Heteronomia/Autonomia foi identificada em 16,6% das respostas, tanto dos participantes de seis como de sete anos de idade.

 

 

A classificação que prevaleceu nas respostas das crianças de seis (77,7%) e sete anos de idade (72,2%) foi a II - Heteronomia. Foi identificada uma preponderância, nas respostas dos participantes destas duas idades, de uma visão unilateral no entendimento das situações, de uma compreensão mais literal das regras, que seriam subsistentes em si, e de uma posição mais egocêntrica ao julgar ações. A classificação III - Autonomia não foi identificada em nenhuma das respostas dos participantes de idades de seis e sete anos.

De acordo com a apresentação do Quadro 10, nenhuma das respostas das crianças de dez e onze anos de idade encontra-se classificada dentro das dimensões I - Anomia e I/II - Anomia/Heteronomia. A maior parte (55,5%) das respostas das crianças de dez anos de idade foi classificada como II - Heterônoma, assim como ocorre com as respostas das de onze anos de idade, onde 77,7% das mesmas encontra-se classificada na dimensão II - Heterônoma.

 

 

Nas respostas dos participantes mais velhos do grupo pesquisado (10 e 11 anos de idade) verifica-se o início de uma capacidade de se colocar no lugar das (os) personagens, de perceber intencionalidade nas ações dos mesmos, sendo notável em algumas falas a passagem para posicionamentos menos unilaterais, indicando dúvidas sobre a ação ser certa ou errada, e posicionamento dividido entre certo e errado, que pode sugerir uma certa flexibilização do pensamento.

As crianças de onze anos constantemente indicam sugestões aos personagens, o que pode ser entendido como um posicionamento a partir daquela situação, que indica uma postura mais autônoma. Em muitas respostas os participantes oferecem sugestões e opções de ação diferentes da apresentada pelos personagens. Assim, conforme apresentado no Quadro 10, 41,6% das respostas das crianças de dez anos e 19,4% das de onze anos de idade foram classificadas na transição II/III - Heteronomia/Autonomia. E com a mesma porcentagem das respostas (2,7%), tanto os participantes de dez, como os de onze anos de idade, foram classificados dentro da dimensão III - Autonomia, já que o conteúdo das mesmas refletia um desenvolvimento da capacidade de adotar o ponto de vista do outro e de perceber certa intencionalidade nas ações, revelando assim uma elevação da capacidade de descentração.

Os dados totais, ilustrados no Quadro 11, de análise dos aspectos do desenvolvimento moral indicaram que a maior parte de todas as crianças participantes (70,8%) julga as ações dos personagens adotando um posicionamento mais heterônomo, seguidas de um grupo que se encontra numa transição Heteronomia/Autonomia (23,6%). Os posicionamentos mais autônomos ao fazer os julgamentos sobre as ações dos personagens foram feitos por 13,8% dos participantes, e apenas 4,1% apresentou posicionamento dentro da transição Anomia/Heteronomia.

 

 

Considerações finais

A presente pesquisa encontrou referências nas classificações propostas por Souza (1990) tendo como propósito estudar a reconstituição de um conto de fadas por crianças, e os resultados revelaram que todos os participantes, independentemente da idade foram capazes de reconstituir o conto. Entretanto, é possível verificar que a estruturação da reconstituição apresenta diferenças, indicando um nível de desenvolvimento psicológico característico em cada idade, como por exemplo maior estruturação do pensamento das crianças mais velhas, em contraponto com uma estruturação mais simples das mais jovens, revelada pela reconstituição verbal do conto de fadas, indicando uma evolução ao longo das idades e confirmando a ideia de gênese de Piaget.

Houve similaridade entre os resultados de Souza (1990) e os desta pesquisa, já que a maioria das crianças em ambas as investigações encontra-se classificada dentro do modo de reconstituição Concreto. Assim, puderam ser verificados na pesquisa atual a evolução do pensamento e dos fenômenos de linguagem no plano verbal ao longo das idades observados por Piaget (s.d.,1986) e estudados por Souza (1990). Entre os fenômenos que foram reconhecidos e apresentados nas reconstituições das crianças estão a justaposição, o sincretismo, a transdução do pensamento, a capacidade mais interpretativa de compreensão, a capacidade de entender as entrelinhas, bem como, observou-se também uma evolução do discurso dos participantes que ocorreria do difuso ao mais preciso, conforme indicado no estudo de Garbarino (2012).

Encontrar o resultado de que a maioria das crianças apresenta respostas do tipo concreto trouxe reflexões sobre a hipótese de que as crianças classificadas dentro deste modo (Concreto) podem não ter "embarcado" na fantasia presente no conto de fadas, reconstituindo assim as respostas de forma muito literal, indicando pouco uso de fantasia e imaginação, e de interpretação.

Ainda que realizar estudos sobre o desenvolvimento moral das crianças seja uma tarefa desafiadora, por entender que abrange tanto aspectos cognitivos como afetivos, considera-se que esta pesquisa pode trazer contribuições à área do desenvolvimento humano por reforçar os pressupostos da psicologia genética Piagetiana, de que assim como ocorre para o aspecto cognitivo, há uma evolução ao longo das idades também em relação ao desenvolvimento moral. As crianças mais novas apresentam respostas que foram classificadas dentro da dimensão Anomia/Heteronomia e as crianças mais velhas revelaram respostas que estavam mais próximas da categoria Heteronomia/Autonomia. Ao avaliar as dimensões morais das crianças por meio do julgamento das mesmas em relação à ação dos personagens do conto, nota-se que as crianças tendem a caminhar em seu desenvolvimento moral de uma condição mais heterônoma para uma qualidade de julgamento mais autônomo. Em seus importantes estudos Piaget (1994) propõe como ocorreria esse desenvolvimento moral ao longo de nossa vida, e indica que desde muito cedo têm-se início a construção das noções morais na criança.

Os resultados trazidos pela presente investigação demonstram ser relevante continuar realizando pesquisas sobre desenvolvimento cognitivo e moral visando contribuir para ampliar os estudos que enfatizam a relação entre desenvolvimento cognitivo e afetivo, e desenvolver investigações sobre os variados aspectos e dimensões do desenvolvimento moral de crianças ao longo das idades. A inclusão de crianças mais jovens (4 e 5 anos de idade) e também de outras idades não pesquisadas neste trabalho, bem como o estudo do desenvolvimento moral por meio da análise das virtudes de cada personagem e de um aprimoramento da utilização do método clínico piagetiano mostram-se como possibilidade em futuras pesquisas.

Por fim, a presença da dualidade, bem e mal, nas atitudes dos personagens dos contos de fadas coloca o problema moral requisitando o leitor criança a encontrar soluções que terão importância ao longo de seu desenvolvimento e da constituição de suas condutas morais futuras. Os personagens dos contos, de alguma maneira, reproduzem comportamentos da vida real, ora apresentando atitudes boas, ora más, o que pode levar a criança a refletir sobre a ambiguidade do ser humano. Os contos de fadas tendem a trazer implicitamente à criança uma educação moral que de modo sutil auxilia a mesma no entendimento e compreensão das vantagens do comportamento moral, por meio de conteúdos perpassados por uma linguagem lúdica e de imaginação, sendo representativos e significativos para ela (BETELHEIM, 1980).

 

Referências

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1 Psicóloga. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, e-mail: silperim@hotmail.com
2 Psicóloga. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo. Professora da Graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo. e-mail: cbroetto.ufes@gmail.com

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