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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954

Constr. psicopedag. vol.25 no.26 São Paulo  2017

 

ARTIGOS

 

A mensuração da afetividade em sala de aula

 

The measurement of affection in the classroom

 

 

Maria Gizélia de Oliveira Souza RosaI, 1 ; Rebeca Eugênia Fernandes de CastroII, 2

IFaculdade da Aldeia de Carapicuíba - FALC
IIFaculdade da Aldeia de Carapicuíba - FALC

 

 


RESUMO

Devido à importância das interações humanas para o aprendizado e crescimento, propomos neste trabalho avaliar aspectos fundamentais da afetividade na relação professor-aluno, sob o ponto de vista da psicanálise, o qual nos ajuda a pensar de que forma a aprendizagem ocorre (ou não), tendo como base os pressupostos de Freud ao ver o indivíduo como um sujeito que é composto de pulsão\desejos. A base para nossa discussão é a figura winnicottiana da mãe boa no papel do professor suficientemente bom, bem como a mãe patológica, que se reflete em um tipo nocivo de relação com o aluno. Há aspectos da profissão docente que, devido a circunstâncias de tempo e condições de trabalho, reverberam afetivamente como amor e ódio e constantemente precisam passar por ressignificações. No entanto, compreendemos que ressignificar depende da capacidade de resiliência de cada indivíduo. Ainda propomos mensurar a afetividade com base nos resultados da aprendizagem e não nas expressões sentimentais em sala de aula.

Palavras-chave: Professor. Aluno. Afetividade. Aprendizagem. Cuidado infantil.


ABSTRACT

Given the importance of human interactions for learning and growth, we propose in this paper to evaluate fundamental aspects of affection in the student-teacher relationship from a psychoanalytic point of view, which help us to think about how learning occurs (or not), based on Freud's assumptions about the individual as a subject composed of drive and desire. The basis for our discussion is the winnicottian figure of the good mother in the role of the good-enough teacher, as well as the pathological mother, that is reflected on a harmful type of relationship with the student. There are aspects of teaching profession that, due to circumstances such as time and working condition, reverberate affectively as love and hatred, which need constantly resignification. However, we understand that resignification depends on the resilience ability of each individual. We also propose to measure the affection based on results of learning rather than on the sentimental expressions in the classroom.

Keywords: Teacher. Student. Affection. Learning. Child care.


 

 

Introdução

Para que ocorra aprendizagem significativa um elemento é essencial na relação entre quem ensina e quem aprende: a afetividade e a maneira como essa é empregada e ressignificada nos momentos de convívio, promovendo crescimento ou estagnação das aprendizagens. Pensar a afetividade na escola, portanto, demanda refletir sobre uma série de situações onde os principais personagens - aluno e professor - se encontram em constante relação com o propósito de alcançar a aprendizagem do aluno.

Na experiência de observação realizada em um período de quatro meses em uma escola com duas salas de aula do 1º ano e duas do 2º ano, pudemos tanto acompanhar a relação afetiva existente entre professor\aluno, quanto acompanhar seus resultados na verificação do progresso aluno\aprendizagem. Quatro salas, quatro modelos bastante distintos de relacionamento com a turma, em que a afetividade assumiu uma intensidade e uma coloração bastante variada e, ao mesmo tempo, determinante para o trabalho realizado em classe.

Na sala A do primeiro ano, a professora demonstrava intensas manifestações de afeto com abraços, beijos, palavras elogiosas, bem como, o compartilhar do seu dia. Motivava seus alunos a brincarem. Na mediação da escrita e leitura afirmava que os alunos possuíam seu tempo e aprenderiam nos anos seguintes. No mês de agosto, oito de seus alunos num total de 30 sabiam ler e escrever em letra bastão.

Na sala B do primeiro ano, a professora relembrava diariamente as regras de forma rígida e assimétrica. Seus alunos procuravam desenvolver as tarefas com esmero, pois, segundo eles, sua professora era brava. A classe era silenciosa, regra lembrada na maior parte do tempo, exceto nas atividades em grupo. No mês de agosto, 28 alunos, em um total de 30, já sabiam ler e escrever em letra cursiva. A professora procurava elogiar seus alunos, ressaltando o quanto faziam bem a tarefa e possuíam um grande potencial.

Na sala A do segundo ano a professora relembrava as regras somente se estivessem atreladas a uma atividade. Procurava falar baixo e desenvolvia a maior parte de suas atividades em grupo e com jogos. Os alunos possuíam atividades e responsabilidades específicas de acordo com a rotina associada aos conteúdos. Em uma classe de 30 alunos, três alunos tinham dificuldade com a leitura e escrita. Os demais desenvolviam plenamente as atividades propostas na área de leitura, escrita e cálculos.

Na sala B do segundo ano, a professora falava alto, quase não havia atividades em duplas ou trios, pois segundo ela, cada um precisava se desenvolver sozinho primeiro. Suas orientações eram sempre em tom de voz elevado e as regras eram relembradas constantemente em relação assimétrica visivelmente acentuada. Para a superação de dificuldades, costumava lembrar os alunos com o lema "se todos podem, você pode". Em uma classe de 30 alunos, quase a metade da turma apresentava dificuldades significativas no desenvolvimento das atividades propostas. Além deles, dois alunos inspiravam maior preocupação em leitura e escrita, bem como em compreensão de atividades mínimas.

Muito se tem falado sobre afetividade e como ela interfere na aprendizagem. Nos quatro casos observados, há uma postura específica em termos de afetividade com os alunos e uma clara influência da relação estabelecida para o desenvolvimento da sala. Neste texto, propomo-nos tratar a questão da afetividade como pulsão primária do ser humano, em uma perspectiva psicanalítica que compreende as relações como geradoras de repressão, frustração, ressentimento e/ou satisfação, podendo tanto inibir quanto lançar o indivíduo para o amadurecimento e acomodação da aprendizagem.

 

A afetividade a partir de reflexões psicanalíticas

Todo ser é um ser pulsante, ou seja, que possui impulso, desejo, expectativas que podem ou não serem satisfeitas na relação sujeito-objeto de desejo. À medida que uma relação humana ocorre se dá o processo de satisfação ou frustação (TOUSSEUL, 2012, p. 241). Os elementos basilares da teoria psicanalítica centram-se na relação entre sujeito e objeto, cujos engendramentos se dão pelo caminho pulsional. As pulsões - que podem ser amorosas ou destrutivas - são atributos do sujeito, ou seja, partem de sua constituição, mas ao mesmo tempo fazem parte do Inter jogo entre sujeito e objeto.

A ideia de um sujeito remete a um determinado lugar ou propriedade frente aos fenômenos psíquicos que se tenha em consideração. Podemos nos referir eventualmente ao seu par, o objeto que por sua vez pode ser um sujeito também. Assim poderíamos pensar que este sujeito de quem viemos falando até aqui, encerra uma abertura permanente a este objeto sujeito e nos dá uma ideia do caráter das discussões mais contemporâneas sobre subjetividade. (DE MARTINI, 2006, p 63.)

Para Donald Winnicott, psicanalista que trouxe grandes contribuições à compreensão do desenvolvimento infantil, a importância do objeto está no fato de ele pertencer à exterioridade. Se no início do desenvolvimento o objeto é criado pelo bebê, é também admirado como objeto que se descobriu no mundo. O desenvolvimento do indivíduo no sentido da aquisição da vivência de si como alguém, e da convivência com os outros enquanto sujeitos que não se reduzem a ele, está colocado num espaço intermediário entre o eu e o outro, não podendo ser perfeitamente delineado fora da tensão que se faz entre sujeito-objeto. Em outras palavras, se as relações humanas acontecem a partir de uma rica e complexa troca entre sujeito e objeto, o amadurecimento se verifica na medida em que o objeto é reconhecido em sua realidade viva e pertencente (também, e principalmente) à realidade externa.

Ele [o objeto transicional] é oriundo do exterior, segundo o nosso ponto de vista, mas não é segundo o ponto de vista do outro; tampouco provém de dentro; não é uma alucinação. (WINNICOTT, 1975, p.18).

Há, porém, situações em que a relação sujeito-objeto não traz crescimento nem gratificação, mas angústia. Podemos dizer que a angústia se dá devido ao espaço formado entre o objeto, sua representação (muitas vezes distante daquilo que é real) e a fantasia do desconhecido. Se este objeto é inacessível ao imaginário dizemos que ele está recalcado, no inconsciente. Quando é alcançado pelo imaginário, dele não temos ou não queremos ter consciência. Em ambos os casos, a impossibilidade de refletir sobre ele é desencadeadora de angústia (TOUSSEUL, 2012, p.237).

Desse modo, os engendramentos entre sujeito e objeto podem ser prazerosos quando ocorre identificação mútua, mas podem ser traumáticos quando representam uma ameaça ou aniquilamento para o ego. Daí a necessidade de reflexão e reelaboração dos afetos. O professor, tendo como principal objetivo o ensino, acolhe a necessidade do aluno de aprender, fazendo da relação afetiva um elemento facilitador das transposições didáticas visando à acomodação da aprendizagem e a satisfação. Contudo, essa mesma relação afetiva, dependendo da relação estabelecida, pode ser inibidora de aprendizagem para os alunos e/ou geradora de angústia para o profissional.

Deve-se salientar que o termo objeto, em psicanálise, refere-se àquilo que é alvo de investimento afetivo. No caso do professor, objetos conscientes podem ser desde a aprendizagem dos alunos propriamente dita, mas também algum aspecto da profissão (seu valor, importância social) ou uma ideologia pedagógica. Objetos inconscientes também podem constituir alvo de investimento afetivo, sendo incluídos aqui desde as fantasias missionárias ("uma profissão que salva o mundo") até a necessidade de reparação ("oferecer conhecimento porque já se recebeu um dia").

O professor possui o dever de ensinar utilizando-se de competências didáticas empregadas com o desejo de ensinar, o qual só se efetiva à medida que o aluno aprende. Quando a angústia se instala, provoca a disruptura do ego. A reelaboração se dá num processo consciente onde o professor reavalia sua prática e redireciona suas ações, motivadas pelo desejo de satisfação. Essa reelaboração ocorre em tempo e forma diferentes de indivíduo para indivíduo, pois cada ser possui capacidades diferentes de resiliência.

No processo de reelaboração é necessário se colocar no lugar do outro. Esse olhar que alcança a posição do outro requer um Inter jogo entre o eu e o outro, que se dá sem ajuda externa, ou seja, é um movimento de vinculação a partir de um trabalho mental que envolve uma série de requisitos pré-adquiridos na vivência e capacidade de abnegação, porém, não é instaurado por alguém de fora, ainda que possa ser despertado através do outro. Esse despertar no professor exige, pois, uma capacidade reflexiva, um olhar sobre a própria interioridade, que reverberará nas práticas didáticas. A capacidade do sujeito e do objeto trocarem de lugar viabiliza a transformação de um investimento afetivo que traz desprazer em investimento que reforça a própria satisfação. Freud coloca a capacidade de reversibilidade da pulsão destrutiva em seu oposto como vicissitude dos instintos no quadro de retorno ao ego, repressão e sublimação.

Todas as vezes em que há um desencontro entre professor e aluno no ambiente escolar, há desprazer e angústia. O desencontro é vivido quando o professor empenha-se por transmitir os conteúdos estabelecidos pelo sistema de ensino, ansiando que os alunos reconheçam seu esforço e aproveitem-no ao máximo. No entanto, ele encontra do outro lado o aluno que demonstra comportamento agressivo como forma de buscar suprimento emocional. Tendo em vista uma interrupção precoce no desenvolvimento afetivo ele anseia por ser contido e acolhido pela professora\escola (WINNICOTT,1987, p.132). Esse desencontro de anseios e necessidades desemboca num desajustamento entre dar e receber.

Cabe aqui retomar a teoria winnicottiana sobre o dia a dia da dupla mãe-bebê, paradigma e modelo das futuras relações. O encontro entre a capacidade materna de dar e do bebê de receber formam um campo de ilusão que serve de base ao indivíduo na sua experiência com a realidade externa e toda atividade criadora (WINNICOTT, 1975, p. 26). Ressaltamos que na relação mãe e bebê há dois modelos de mãe: a mãe suficientemente boa, que supre as necessidades do bebê, oferecendo-lhe suprimento para o desenvolvimento do ego e autonomia e a mãe patológica, que fracassa no exercício da função materna.

Quando o par mãe-filho funciona bem, o ego da criança é de fato muito forte, pois é apoiado em todos os aspectos. O ego reforçado (e, portanto, fortalecido) da criança é desde muito cedo capaz de organizar defesas e desenvolver padrões pessoais bastante marcados por tendências hereditárias (WINNICOTT, 2011, p. 24). Para descrever a mãe suficientemente boa, Winnicott escreve três funções por ela exercidas: holding (segurar), que implica capacidade de identificação da mãe com o bebê; handling (manipulação), parceira da integração psicossomática, promovendo maturação e evolução da dependência absoluta para a dependência relativa e futura independência.

A mãe patológica, ainda que denote constante preocupação com o bebê, pode estabelecer rupturas violentas de vínculo, promovendo um ego fraco ou intermitente que leva a criança a um não desenvolvimento pessoal, à experiência de colapso ambiental e ausência de fortalecimento de fatores genéticos internos. O comprometimento da função de holding traz insegurança ou ansiedades psicóticas ao bebê. Para Winnicott, a criança que recebe apoio egóico inadequado ou patológico tende a apresentar padrões de comportamentos como: inquietude, estranhamento, apatia, inibição e complacência (WINNICOTT, 2011, p.25).

É importante ressaltar que, na teoria winnicottiana, a mãe suficientemente boa não é perfeita. Ela falha e sua falha é importante para o amadurecimento da criança tanto quanto seus acertos. Essa mãe inicia o processo de afastar-se ou desmame da criança para voltar-se para si e seu cuidado. Muitas vezes esse afastar-se torna-se prolongado como se ela esquecesse do bebê não porque tenha essa intenção, mas por ser esse um processo natural. Esse fato começa na amamentação e à medida que o bebê vai se desenvolvendo, o afastar-se por algum tempo também se amplia. A criança precisa sentir a angústia da ausência da mãe para a maturação e desenvolvimento. Esse movimento passa pela não-integração até a integração, processo necessário para o estabelecimento entre o corpo, as funções corporais e o desenvolvimento da psique. Gradualmente, portanto, o afastamento materno vai permitindo à criança descobrir a realidade externa e suportar o adiamento de suas satisfações, base da tolerância à frustração (WINNICOTT, 1982, p. 145)

Utilizando o paradigma winnicottiano, vemos que na relação professor-aluno também é necessário o encontro permeado de falhas. O afastamento do professor é condição para mediar a essência da nutrição do conhecimento, possibilitando maior independência da criança. Falhas, porém, não significam fracasso. O afastamento é sinal de que há encontros. E encontros são positivos à medida que permitem o ajustamento e a identificação do professor à necessidade de seus alunos, incluindo aqueles com sintomas de agressividade.

Os conceitos de ambivalência (relação com o objeto parcial) e ambiguidade (relação com o objeto total) de Melanie Klein (1970, p. 306) trazem uma distinção que também nos ajuda a compreender as dinâmicas verificadas em sala de aula. Na ambivalência, o sujeito forma duas imagens alternativas quanto a um mesmo ser, que não são percebidas como representativas do mesmo objeto. Ambiguidade é uma noção de vida adulta, quando o sujeito percebe duas imagens, mas sabe que se referem ao mesmo objeto. A atitude da criança será ambivalente, mesclando onipotência e impotência, pois "a criança nada pode e tudo quer" (MERLEAU-PONTY, 1988, p. 115 apud DE MARTINI, 2006 p.70).

Partindo do conceito de ambivalência podemos verificar como a dimensão pulsional das relações humanas é atravessada por elementos como identificação e narcisismo, como ilustra o esquema apresentado por De Martini (2006, p. 72) sobre as antíteses do amor em Freud:

AmarOdiar (prazer... desprazer)

AmarSer amado

Amar\Odiar Desinteresse (desligamento do objeto)

Na situação amarodiar, o sujeito está na voz ativa. Logo, vive a frustração e impossibilidade da realização do amor, conjugado com o sentimento de ódio pelo objeto que o frustra em seu todo.

Na situação AmarSer amado, a relação é de inversão ambivalente do sujeito ativo em passivo. A relação é mais importante do que se manter na voz ativa proporcionando o jogo identificatório. Logo, a relação é de simetria entre parias e, sempre que há um conflito o que está na voz ativa cede para salvaguardar a relação.

Na situação amar/odiardesinteresse, existe uma inversão da possibilidade do investimento. A centralidade do impulso está no vislumbre da morte. A pulsão está ligada ao seu estado extremo, em que se desiste ou se ataca qualquer possibilidade de ligação. Não há, portanto, perspectiva de vinculação. A indiferença se enquadra como um caso especial de ódio ou desagrado, após ter aparecido inicialmente como sendo seu precursor (FREUD, 1915 apud DE MARTINI, 2006, p.80).

Representações são imagens vividas, enquanto fantasias são apenas psíquicas (FREUD, 1911, p. 20 apud TOUSSEAUL, 2012, p. 237). Assim os objetos que não conhecemos são fantasiados e suscitam encenações porque não podemos experiênciá-los. A relação com os alunos, como qualquer relação humana, também está sujeita à influência das fantasias, particularmente daquelas geradoras de angústia, dados os desafios da árdua tarefa de ensinar.

A angústia se desencadeia em presença de objetos que não experienciamos ou de objetos proibidos, ou objetos dos quais temos uma experiência desagradável, e que não desejamos reviver, nem mesmo desejamos representar para nós mesmos. Logo o ressignificar está comprometido. A imagem do objeto é voluntariamente afastada da consciência uma vez que o objeto está inacessível. Dizemos então que o objeto está recalcado e se torna inconsciente (FREUD, 1915, p. 47 apud TOUSSEUL, 2012, p.237). Por isso, o inconsciente não só é constituído por representações de que não temos consciência, mas também por aquelas de que não queremos ter consciência.

Quando o professor vê-se sem êxito em suas tentativas de contribuir com o crescimento e o aprendizado do aluno, a culpa se instala trazendo consigo ameaças à integridade psíquica em sua própria agressividade reverberada num ciclo de inutilidade e ingratidão como ódio disfarçado contra as atitudes dos alunos em não aproveitar aquilo que lhes é oferecido. Logo a oferta de atenção, carinho e conhecimento é diminuída. Em um primeiro momento, isso acontece com o investimento no outro, mas em seguida, acontece o desinvestimento que afeta o si mesmo, aprisionando em ressentimento. Como diz Castro (2008, p. 179) "a ingratidão situa-se no campo do oferecer". O outro que não se gratifica com o que lhe é ofertado provoca sentimentos de rejeição e ressentimento, fazendo com que a generosidade de quem oferta perca sua força e efetividade, contaminada pela raiva e frustração.

 

Amor e ódio em sala de aula

Revisitando as cenas observadas nas salas de aula que acompanhamos, podemos identificar tanto relações do tipo amarodiar, amarser amado e amar/odiardesinteresse, conforme a classificação de De Martini (2006). Quando a voz ativa do professor impossibilita a realização do amor, gerando sentimento de ódio pela impossibilidade de atingir o objetivo final com os alunos (objeto de amor), resta apenas a frustração que leva ao estado extremo de ataque a qualquer possibilidade real de ligação, extinguindo a relação por identificação. Quando, no entanto, o amar e ser amado é o que permeia as relações, há identificação e a satisfação ocorre.

Percebemos na sala A do primeiro ano, onde a professora demonstrava intensas manifestações físicas de afeto\toque, que o essencial era negado aos alunos. O ensino e o desenvolvimento de habilidades cognitivas, finalidade máxima do educar, não eram o foco, especialmente para aqueles que possuíam comportamento agressivo. Podemos comparar essa relação com o quadro amar =odiar, prazer e desprazer. Há um sujeito, na voz ativa, que experimenta frustração sem perceber e que, no que lhe compete desenvolver, realiza uma negação. Negação da mediação das capacidades cognitivas no tempo apropriado para a idade, utilizando-se de metodologias e fundamentação teórica para tal. A despeito do excesso de expressões afetivas em classe, elas não atendiam às necessidades dos alunos.

No paradigma winnicottiano, a mãe suficientemente boa desenvolve sua relação com o bebê, a partir de suas necessidades emocionais e não das próprias projeções. A mãe patológica não oferta à criança aquilo que lhe é essencial para o seu desenvolvimento, inviabilizando que se desenvolvam suas capacidades e potencialidades como ser, negando-lhe o processo de maturação através do conhecimento e superação de dificuldades, bem como limites ao comportamento agressivo e psicótico.

Em sala, há professores que se portam como mães suficientemente boas, na medida em que conseguem criar uma vinculação que nutre as crianças de conhecimento e motivação para o aprender. Mas há também aqueles que pouco atendem às necessidades dos alunos, acreditando que em algum momento eles se descobrirão e o desenvolvimento ocorrerá. Desenvolvimento de acordo com o que viemos discorrendo até aqui só é possível se houver um ambiente propiciador. É o que se constata, por exemplo, na sala B do primeiro ano, a despeito da aparente falta de carinho da professora.

Nessa sala, a professora era rígida com as regras e mantinha uma relação assimétrica com a turma. Mas no desenvolvimento das atividades procurava elogiar as capacidades e potencialidade de seus alunos tanto nas atividades em grupo quanto nas individuais. Podemos comparar sua atuação com a mãe suficientemente boa que consegue desenvolver: 1) o holding, como ato de segurar, evitando a sensação de dispersão e fornecendo contenção; 2) o handling, como atitude favorável à manipulação de elementos e operações desconhecidos até então, assegurando que a essência do ser fosse mantida e que o ensino promovesse o processo de maturação. Havia aqui, conforme o modelo de De Martini (2006), um trabalho pautado em amarser amado, apesar da ausência de vibrantes manifestações de carinho. Nesse sentido, queremos destacar uma cena observada em sua sala: um aluno novo chegou à classe no segundo semestre e todos os dias chorava e vomitava, não conseguia realizar tarefas mínimas. Por inúmeras vezes durante duas semanas ela o chamava a frente da sala e falava de suas potencialidades. Em seguida, instigava a sala para o acolhimento, solicitando que as crianças reafirmassem seu valor e o quanto era bom tê-lo na classe. Na terceira semana, sua adaptação já havia ocorrido, sendo possível iniciar um trabalho em torno de sua indisciplina e apatia. Os aspectos positivos de sua sala resultavam de uma atuação profissional baseada na afetividade como pulsão primária para instigar as potencialidades, dentro de uma relação assimétrica, permitindo o desenvolvimento e a integração de experiências acumuladas. Sua atitude possibilitava que seus alunos experimentassem da relação de objeto ao uso de objeto, passagem essencial e imprescindível para as relações humanas mais complexas (WINNICOTT, 1993, p.400).

Na sala A do segundo ano, o modelo de vinculação amarser amado também era vislumbrado, embora não se observassem grandes manifestações afetivas. A professora trabalhava as regras relacionadas ao convívio mútuo, atrelando-as aos conteúdos. Mantinha práticas promotoras de confiança em si e no outro, favorecendo a identificação mútua entre pares, onde as dificuldades de um eram superadas ou compensadas na interação com o colega. A troca constante possibilitava o desenvolvimento e a aprendizagem. Os jogos facilitavam a relação de troca, mantendo o equilíbrio e a estabilidade normalmente ansiados quando há ausências essenciais de maternagem.

Na sala B do segundo ano, a professora não facilitava as atividades em grupo. Sua relação era bastante assimétrica com a sala. No desenvolvimento e encorajamento e afirmação do ego havia falas disruptivas e indicadoras de ressentimentos (ex: "se todos podem vocês podem", "vocês não merecem"). O ressentimento causado por anos da profissão e frustrações passou a ser um processo de reverberação destrutiva que não oferecia a seus alunos o essencial: o conhecimento facilitado por um ambiente acolhedor. Havia um ambiente ríspido e amargurado, promotor de ambivalência (amor e ódio). Uma vinculação do tipo amar/odiardesinteresse, segundo a tipologia apresentada por De Martini (2006).

A relação professor-aluno/sujeito-objeto na relação de impossibilidade está relacionada a uma indiferença como forma de evitar o sentimento de frustração, estabelecendo um desligamento com o objeto ora frustrante. Mas a acomodação de conhecimentos só é possível devido a um impulso que se compõe de afeto. Este é o que dá forma à pulsão e através da representação advém o conteúdo. Tousseul, afirma que:

Uma pulsão se compõe de um afeto, que dá forma à pulsão, e de uma representação que lhe dá o conteúdo. Ora uma reflexão se compõe da mesma maneira, como uma lógica que dá forma a reflexão, e um discurso que lhe dá o conteúdo. (TOUSSEUL, 2012, p.236)

Podemos afirmar que o professor não tem como prever as acomodações cognitivas de seus alunos, mas tem o dever de medi-las, para conhecer seus alunos e verificar os resultados alcançados com sua turma. O desconhecido é fantasiado. E quando a prática é influenciada por representações distantes do real, aumentam as chances de desencontro entre professor-aluno, tendo em vista a própria fantasia do aluno ideal. É nesse processo que ocorre a frustração e a necessidade de ressignificação, uma vez que o objeto com que o professor se relaciona torna-se desconhecido.

O fato de que há objetos que não podemos experienciar marca os limites do nosso espaço de modo que quanto mais cercados de objetos desconhecidos tanto mais nosso espaço se estreita. Esse estado no qual o espaço se reduz é justamente o que se chama de angústia, cuja etimologia latina designa um espaço que se estreita. "Não é, pois, a ausência de objetos que provoca angústia, mas ao contrário, é a presença daqueles que nos são estrangeiros" (ASSOUN, 2006, p. 81 apud TOUSSEL, 2012, p.237).

Conhecer o objeto implica aproximar-se dele na sua realidade. Quando este encontro é possível, viabilizando uma ressignificação, o conteúdo do afeto passa a existir e fazer parte da realidade da relação. Não necessariamente no formato esperado pelo senso comum, de um afeto traduzido em contato físico e palavras amorosas. Mas na expressão de uma verdadeira preocupação com o conhecimento e desenvolvimento das crianças.

 

Considerações finais

Só podemos mensurar afetividade em sala de aula a partir dos resultados. Precisamos destacar que afetividade não são mimos, afagos ou gestos físicos como mensurados na sala A do 1º ano, negando aos alunos o resultado efetivo da afetividade no ensino. De igual modo, não é a rigidez como destacada na sala B do 2º ano que no seu sentido mais primitivo desperta raiva, indiferença, entre outros sentimentos destrutivos, que não se aliam ao desenvolvimento do conhecimento e do aluno. São atitudes de despertar no outro suas potencialidades mais intrínsecas no que tange à constituição humana, como na sala B do 1º ano, onde comparamos a professora com a mãe suficientemente boa. Havia falhas, mas ela não se permitia o rancor e o sentimento doentio, estimulando-se a ver e desenvolver na criança o que já estava em sua essência. Assim também, na sala A do 2º ano, as atividades grupais entre os pares permitiam não somente as relações sociais, bem como a superação das próprias limitações. A mediação ocorria de forma suave no ensino da professora.

Toda mãe suficientemente boa deve estar presente, mas também precisa se afasta para olhar e cuidar de si. Assim também o professor mediador conduz sua sala, acompanhando pacientemente seus alunos, mas também se afastando, produzindo a angústia necessária para a acomodação do conhecimento. Cria, pois, uma relação de dependência parcial da criança, pois esta possui conhecimentos culturais próprios e, o professor, na condição de mediador dos processos de conhecimento, respeita e potencializa tais recursos.

Há falhas nessa relação e, tal qual acontece com a mãe suficientemente boa e seu bebê, as falhas são necessárias para o desenvolvimento saudável da criança e da própria mãe. Assim também ocorre com o professor, que falha e suas falhas são necessárias para que haja reflexão de sua prática e ressignificação. Um ressignificar que passa pelo crivo das possibilidades e capacidade individual de resiliência e não pela atitude sentimentalista.

 

Referências bibliográficas

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1 Licenciada em Pedagogia pela Faculdade da Aldeia de Carapicuíba e bacharel em Teologia pela Faculdade de Teologia Metodista Livre de São Paulo.
2 Doutora em Psicologia Clínica pela USP e professora de Psicologia do Desenvolvimento Infantil no curso de Pedagogia da Faculdade da Aldeia de Carapicuíba.

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