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Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954On-line version ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.26 no.27 São Paulo  2018

 

ARTIGOS

 

Desafiando crianças a pensar: intervenção com jogos

 

Challenging children to think: intervention with games

 

 

Maria Thereza C. de SouzaI, 1; Ana Lucia PettyI, 2; Clarice KunschII, 2; Regiane J. SantosI, 2

IUniversidade de São Paulo
IISão Paulo, SP, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo do estudo foi analisar procedimentos e atitudes de crianças do Ensino Fundamental I ao jogarem e resolverem situações-problema, num contexto que promove desenvolvimento e aprendizagem, durante o primeiro semestre do programa de intervenção com oficinas de jogos do Laboratório de Estudos sobre Desenvolvimento e Aprendizagem (LEDA) no Instituto de Psicologia da USP. A pesquisa buscou saber como as crianças chegam ao LEDA quanto ao modo de enfrentar desafios, assim como identificar as atitudes e mudanças de procedimentos ao longo do semestre. O método consistiu na coleta e análise de informações sobre dez crianças a partir da aplicação de dois protocolos de registro (sobre o jogar e as atitudes). Os resultados mostraram que: (1) as crianças se diferenciam inicialmente quanto aos recursos que mobilizam e as necessidades manifestadas; (2) a principal característica do primeiro semestre são as oscilações em procedimentos e atitudes, devidas às intervenções que geram desequilíbrios cognitivos e afetivos, com consequente autorregulação das crianças. Pode-se concluir que o primeiro semestre do programa ao promover desequilíbrios, favoreceu a tomada de consciência das dificuldades e a mobilização de recursos para enfrentá-las, expressados pelas oscilações no jogar e nas dimensões atitudinais relativas a tempo e convivência. Análises referentes aos outros dois semestres do programa de intervenção poderão trazer novos esclarecimentos sobre os benefícios ao desenvolvimento e à aprendizagem dos participantes, bem como poderão fortalecer as discussões ora realizadas.

Palavras-chave: intervenção com jogos, crianças, desenvolvimento.


ABSTRACT

The aim was to analyze fundamental school children's procedures and attitudes while playing games and solving problems in a context that promotes development and learning. The investigation was on the first semester of the intervention program with game workshops offered by the Laboratory of Learning and Development Studies (LEDA), at the Institute of Psychology, University of São Paulo. The research questioned about how children start the program in terms of their ways to face challenges, and intended to identify attitudes and changes in procedures throughout the semester. The method consisted of collecting data from two protocols and analyzing information about ten children. Results showed that: (1) children differ initially both in terms of the resources they mobilize and in terms of the needs expressed; (2) the main characteristic of the first semester is the occurrence of oscillations in procedures and attitudes due to interventions and self-regulation of children. In conclusion, the intervention program favored awareness of difficulties and mobilization of resources to confront them, expressed by the oscillations in the game context and in the attitudinal dimensions related to time and interaction. Analysis of the other two semesters of the intervention program might provide additional clarification on the benefits to participants' development and learning processes, as well as strengthen the current discussion.

Keywords: intervention with games, children, development.


 

 

Introdução

Esta pesquisa foi mobilizada por duas indagações: buscar saber como as crianças chegam ao Laboratório de Estudos sobre Desenvolvimento e Aprendizagem (LEDA), do Instituto de Psicologia da USP, quanto ao modo de enfrentar desafios, e identificar como se desenrola o primeiro semestre de intervenção quanto às atitudes e mudanças de procedimentos. Por meio de protocolos de registro foi possível analisar ações quanto a procedimentos e atitudes ao jogar e resolver situações-problema, em um contexto de oficinas de jogos e desafios lógicos. O período de investigação foi de um semestre, relativo ao programa de intervenção oferecido pelo LEDA. Este programa tem duração de três semestres, sendo o atendimento realizado semanalmente para grupos de até 10 crianças com dificuldades escolares. As atividades são planejadas previamente e propostas por profissionais que atuam como mediadores para acompanhar e observar, assim como avaliar e intervir. Como consequência, pretende-se inferir os possíveis benefícios deste programa ao desenvolvimento e à aprendizagem dos participantes.

 

Características Iniciais Das Crianças Nas Oficinas De Jogos

Todas as crianças selecionadas (por ordem de chegada) estão enfrentando dificuldades escolares: de aprendizagem, comportamento ou ambos. As inscrições ocorrem por parte das famílias, que geralmente receberam orientação das escolas para buscar este atendimento. No primeiro semestre do programa de intervenção, almeja-se saber em que condições as crianças chegam ao LEDA, ou seja, busca-se identificar as características manifestadas por elas logo que começam a frequentar as oficinas. É provável que suas ações e atitudes se aproximem dos procedimentos e comportamentos indesejáveis e/ou inadequados que geraram a necessidade de serem encaminhadas ao atendimento do laboratório. Em geral, observa-se que, mesmo sendo de séries e/ ou idades semelhantes, estão em momentos distintos em termos de desenvolvimento e aprendizagem. Deste modo, o ponto de partida é sempre variável, porque cada uma apresenta questões peculiares, relativas a dificuldades escolares de diferentes naturezas. Por exemplo, algumas se comportam mal (agressividade, agitação, oposição), outras não apresentam atitudes favoráveis no contexto das propostas (distrações, desinteresse, impulsividade, insegurança, desorganização), e outras ainda, têm baixa compreensão no que se refere ao processamento de informações e execução de tarefas.

O processo de participação nas oficinas, particularmente no primeiro semestre, faz com que a criança entre em contato com suas dificuldades e modos de enfrentar desafios (tomada de consciência), sentindo-se confusa e em desequilíbrio em relação ao modo de agir anteriormente construído. Neste caso, ao se dar conta do problema, ela tanto pode apresentar pioras, como mais variações no seu comportamento e/ou desempenho, como decorrência do processo de autorregulação.

Isto posto, parece ser mais viável afirmar que não há propriamente expectativa de progressos para este semestre. Espera-se poder construir, a partir da observação das ações frente às atividades com jogos, um inventário que expresse a configuração cognitiva e sócioafetiva dos participantes, o qual permite aos profissionais desenhar um panorama para definir sobre quais aspectos seria interessante atuar, ou seja, por onde o trabalho de intervenção deveria ser desenvolvido com maior ênfase. Cumpre ressaltar que as áreas identificadas inicialmente não estão isoladas, mas possuem entre si relações de interdependência. Então, a decisão de focalizar algum aspecto em particular não significa desconsiderar a dinâmica total da criança, nem tampouco abrir mão de outros aspectos que eventualmente venham a surgir ao longo dos meses subsequentes.

 

Como É Desenvolvido O Primeiro Semestre De Intervenção

A proposta de intervenção com jogos está apoiada no principio qualquer jogo, mas não de qualquer jeito, inspirado nos trabalhos de Macedo, Petty e Passos (1997, 2000 e 2005). Deste modo, há proposição de atividades e desafios com jogos de regras, com objetivos variados, para crianças que desejam participar e consigam jogar. O atendimento por meio de jogos, situações-problema e desafios lógicos, confere ao trabalho uma ampla diversidade de materiais, atividades e dinâmicas para instigar a manifestação de diferentes atitudes, comportamentos e procedimentos. Com isso, pode-se realizar intervenções adequadas e pontuais, viabilizando a construção de novas atitudes por parte das crianças e estimulando cada uma a mudar o que precisa, com vistas a melhorar seu desempenho. Isto ocorre tanto para o jogar, como para estabelecer novas relações com os objetos de conhecimento sobre os quais está apresentando dificuldade. No decorrer dos atendimentos deste primeiro semestre, busca-se conhecer como as crianças atuam mais espontaneamente, observando suas reações, competências e recursos, principalmente por ainda não ter havido tempo para assimilarem as intervenções e colocarem em prática novos modos de agir e se comportar. Isto vale para o contexto do jogar propriamente dito e para as ações expressas diante de uma situação-problema, bem como para o enfrentamento de conflitos e avaliação da experiência com algum jogo.

Para acompanhar o processo de mudanças como consequência das intervenções, foram criados dois instrumentos de registro de informações. Os protocolos de observação do jogar fornecem dados sobre a atuação de cada criança enquanto participa de diferentes momentos das atividades. Indicam ainda em qual deles ela necessitará de maior atenção, colocando em evidência suas lacunas. Por sua vez, o protocolo de registro de atitudes permite identificar mais precisamente, dentre as categorias tempo, espaço, objetos e convivência (consigo e com os outros), em que dimensões cada criança apresenta maiores dificuldades ao enfrentar os desafios no contexto das oficinas.

 

Fundamentação Teórica

A base teórica principal da pesquisa, assim como do programa de intervenção com jogos é a teoria psicogenética de Piaget no que se refere ao processo de autorregulação, construção de conhecimento, desenvolvimento do pensamento lógico e relações entre ação e compreensão. Neste âmbito teórico, podem ser ressaltados os conceitos de tomada de consciência e equilibração, desenvolvidos pelo autor em sua última fase de vida e obra (Piaget, 1975 e 1977). A tomada de consciência supõe diversos mecanismos, desde a ação concreta até a ação mais reflexiva, abstrata, sendo que a criança estabelece relações e construções, em um amplo e contínuo processo de desenvolvimento. Este processo demanda esforço e significação das ações, para que possam ser transmutadas em abstrações e conceitualizações. Com isso, a criança vai gradualmente se apropriando de seus erros e passa a atuar de outra forma, o que lhe permite resolver problemas e superar incompletudes, bem como observar os resultados de suas ações para manter ou modificar o que fez, tomando decisões e avaliando seus procedimentos. O contexto do jogar favorece o interesse e a motivação, o que auxilia a criança a mobilizar seus recursos e buscar novas construções, com mais intencionalidade e protagonismo.

Na teoria da equilibração, Piaget (1977) explica a construção das estruturas cognitivas ao longo do desenvolvimento humano, num eterno movimento de adaptação em que ocorrem desequilíbrios e reequilíbrios em busca de um novo e superior equilíbrio. Apresenta as relações entre os observáveis (o que o sujeito constata ou crê constatar) e as coordenações (relações estabelecidas entre os objetos e entre as ações), bem como o processo que ocorre entre as perturbações ao equilíbrio do sistema cognitivo, as regulações (reações às perturbações) e as compensações destas. O modelo da equilibração majorante (que significa "para melhor") explica como o sistema cognitivo passa de um patamar a outro, superior, a partir das relações apontadas. As ações durante os jogos, especialmente as de enfrentamento de situações-problema, ilustram bem como o que as crianças constatam ou acreditam constatar (observáveis) em suas jogadas se articulam aos elementos das situações e também das ações que utilizam (coordenações). Ilustram ainda, como diante da perturbação apresentada pela situação-problema do jogo, as crianças buscam reagir criando procedimentos (regulações), que podem compensar ou não as perturbações iniciais. Assim, os procedimentos utilizados podem ser mais restritos ou mais amplos, o que tem consequências para o êxito e também para a avaliação das melhores estratégias para vencer.

Articulados às perguntas que geraram esta pesquisa, estão os observáveis, ou seja, as informações que os instrumentos de registro permitem constatar em cada semestre, e que possibilitam inferir sobre o desenvolvimento cognitivo de modo geral e, em particular, das funções executivas (FE), habilidades essenciais para o raciocínio e planejamento de ações eficazes (Cypel, 2007). Assim, organizam as capacidades perceptivas, práticas e também a memória, para definir um objetivo, determinar o inicio ou não de uma tarefa e estabelecer os passos do processo. As FE monitoram cada um destes e comparam com o modelo pensado inicialmente, para avaliar o resultado final, em relação ao objetivo inicial. Além disso, promovem boas condições para adaptação social e aprendizagem, porque permitem à criança focalizar a atenção em tarefas de aprendizagem, controlando outros estimulos que podem distrai-la, bem como armazenando os elementos cruciais na memória e levando à maior flexibilidade no raciocínio e no planejamento. As FE permitem o exercício do pensamento com ideias e acontecimentos, possibilitam conseguir pensar antes de agir, bem como favorecem lidar com desafios e novidades não antecipadas, manter-se focado e resistir às distrações. Em síntese, constituem três grandes conjuntos: controle inibitório, memória operacional e flexibilidade cognitiva (Diamond, 2013). As FE são ativadas em condições em que o processamento automático é insuficiente para resolver problemas ou aprender algo novo. Por consequência, permitem-nos guiar e dominar o funcionamento emocional, cognitivo e comportamental de modo mais consciente, flexível e adaptativo, no que se refere à demandas externas e internas.

Considerando os momentos do jogar contemplados pelas propostas realizadas no contexto das oficinas, na apresentação da atividade (primeiro momento), a ênfase se dá sobre a habilidade de controle inibitório, o qual permite que a criança focalize sua atenção nas instruções e explicações sobre o jogo, em detrimento de outros aspectos de seu ambiente (distratores). Em seguida, para realizar a atividade (segundo momento) e enfrentar conflitos entre ações e resultados (terceiro momento), será necessário aplicar como condição necessária a memória operacional, exigindo habilidade para planejamento e resolução de problemas. Por fim, para avaliar os resultados de suas ações e estratégias (quarto momento), a flexibilidade cognitiva será essencial, possibilitando rever o que foi feito juntamente com os resultados alcançados, e conceber novas formas de ação, mais eficazes (Petty e De Souza, 2012). É importante ressaltar que acionar o conjunto de funções executivas é uma demanda constante do contexto do jogar, estando todas presentes nos quatro momentos. No entanto, é possível destacar algumas mais evidentes considerando as características de cada uma das situações, daí a distinção que fizemos.

 

Os Jogos Utilizados

A função do jogar e sua contribuição para o desenvolvimento infantil é indiscutível e já foi amplamente estudada (Chateau, 1987; Brenelli, 2005), o que justifica seu uso no contexto do laboratório. No entanto, nesta pesquisa nos atemos a um aspecto mais particular, qual seja: analisar relações entre ações e atitudes que crianças manifestam ao resolverem desafios num contexto lúdico. Os jogos utilizados variam bastante, e essa riqueza é aproveitada para instigar as crianças a se interessarem em participar, mobilizando todos os seus recursos, uma vez que vencer é desejável e possível. De modo geral, o fato de utilizarmos uma ampla gama de jogos (Macedo, Petty e Passos, 1997, 2000, 2005) permite o exercício de diferentes ações e desafia os participantes a cumprirem diversos objetivos, acionando suas funções executivas e suas competências sócioafetivas, o que corrobora para promover o desenvolvimento. No primeiro semestre foram usados os seguintes materiais: desafios no papel (Cruzadinhas; Caça-Palavras; Memorex; Palavras escondidas; Detetive com bilhete; Invertendo as coisas); jogos de senha (Senha A-B-C, Senha Tradicional e Cara-a-cara) e jogos de estratégia. É importante considerar que quando afirmamos ser possivel trabalhar com qualquer jogo, mas não de qualquer jeito, significa dizer que não há o jogo "certo" para cada semestre, nem o jogo ideal para cada problema. O modo de propor as atividades e as formas de intervenção fazem diferença para o processo de tomada de consciência, favorecendo mudanças de ações e procedimentos que estão de certa forma truncando o desenvolvimento e a aprendizagem. Ao variar os jogos e as dinâmicas é possível intervir em diferentes dificuldades, já que uma criança pode se identificar mais ou menos com cada jogo, tanto por interesse como por habilidade. Cumpre destacar, no entanto, que o objetivo da oficina não é tornar as crianças bons jogadores, e sim, propiciar que aprendam sobre si mesmas, enfrentem desafios e ajam de modo a superar (ou pelo menos, minimizar) as dificuldades escolares até então ocorridas.

 

Método

Participantes

Serão apresentados os dados referentes a dez crianças dos grupos de intervenção do LEDA que iniciaram atendimento no 1o semestre de 2017. Todos são alunos da rede pública (municipal e estadual) de ensino, frequentam entre 3o e 5o ano do ensino fundamental e têm entre 9 e 11 anos de idade. Além disso, têm em comum o fato de apresentarem dificuldades escolares relativas a aprendizagem, falta de atenção e dificuldade para lidar com limites, tanto do ponto de vista individual quanto grupal.

Instrumentos E Procedimentos Para A Coleta E Análise De Dados

Para a coleta de dados dois protocolos foram utilizados, denominados "registro de observação do jogar" e "registro de observação de atitudes". Ambos estão descritos a seguir.

1- Registro de observação do jogar. Neste protocolo as ações e procedimentos das crianças foram registrados cinco vezes durante o semestre e se referiram a quatro momentos: (1) apresentação da situação de jogo; (2) realização do jogo; (3) diante de uma situação de conflito (cognitivo ou social) e (4) avaliação das ações do resultado ao jogar. Para cada um desses momentos foram enfatizados três observáveis: interesse, autonomia e um terceiro, diretamente relacionado ao foco de cada um deles, respectivamente: (1) controle de impulsividade; (2) procedimentos de estratégias; (3) estratégias de superação e (4) disposição para avaliar. Como critério de registro, pontuou-se os observáveis de cada momento com escores entre 0 e 4, sendo 0=nenhum; 1=pouco; 2=médio; 3=muito; 4=total. Cumpre salientar que este protocolo já foi utilizado em pesquisa recente, também em investigação realizada no contexto do LEDA (De Souza e Petty, 2017).

Estes protocolos registraram, pois, uma síntese das ações executadas pelas crianças diante dos desafios que enfrentam no contexto das atividades e situações-problema propostas a elas. Para o momento (1) os desafios consistiam em: ouvir as regras, prestar atenção, ficar em silêncio, manter-se focado nas instruções dadas pelo adulto e realizar estas ações com autocontrole. Para o (2), além dos já citados, dever-se-ia: aprender novos procedimentos observando os colegas, mudar o que não estava adequado e manter-se focado na tarefa. Já no momento (3) a criança também deveria: atuar com paciência e persistência, tentar diferentes alternativas e pedir ajuda. Para o (4), os principais desafios eram: considerar a contribuição do diálogo e ampliar a tomada de consciência de suas dificuldades.

Para o objetivo do presente estudo, somente o terceiro observável destacado em cada momento foi considerado, a saber: controle de impulsividade; procedimentos de estratégias; estratégias de superação e disposição para avaliar. Isto porque os observáveis interesse e autonomia já foram analisados em outro trabalho (Petty, De Souza e Monteiro, no prelo). Assim, partimos do pressuposto de que interesse e autonomia são manifestações recorrentes no contexto dos atendimentos. O primeiro, como manifestação espontânea da criança, já que o jogar é inerente ao repertório de atividades que a atraem, sendo condição necessária, mas não suficiente. E o segundo (autonomia), por sua vez, é uma construção favorecida pelo conjunto de intervenções que ocorrem no contexto das oficinas. Percebeu-se que ambos parecem gerar consequências para outros observáveis, o que justificou a presente investigação. Cumpre ressaltar que no estudo mencionado acima: (a) nos momentos (1) e (2), observou-se o fato de que o interesse em participar das propostas possibilitou que as crianças desejassem controlar impulsividade (mesmo que nem sempre conseguissem) visando entender o que era para ser feito, bem como favoreceu a construção de procedimentos de estratégias com a finalidade de alcançarem os objetivos do jogo; (b) nos momentos (3) e (4), os resultados indicaram que, como consequência, controlar impulsividade e construir estratégias permitiu que manifestassem atitudes mais confiantes e focadas, tanto para criarem estratégias ao lidar com conflitos, como para apresentarem disposição ao analisar as ações, avaliando a experiência de jogar.

2- Registro de observação de atitudes. Nestes protocolos os aspectos atitudinais foram registrados quanto a quatro dimensões: tempo, espaço, objetos e convivência (consigo e com os outros). Este protocolo foi preenchido em duas ocasiões ao longo do semestre: logo no início, com o intuito de informar sobre as primeiras observações acerca das atitudes de cada participante, bem como ao final, permitindo confirmar ou não estas impressões. A relevância deste protocolo como forma de registro já foi apontada anteriormente (De Souza et all, 2014; Petty e De Souza, 2014).

Do ponto de vista temporal, considerou-se aspectos quanto a pontualidade, ritmo de trabalho, realização de atividades no tempo esperado, sequências temporais, concentração individual e em grupo, e respeito ao tempo alheio. Em termos espaciais, observou-se permanência no lugar e adequação de comportamento, organização, respeito ao espaço alheio, coordenação de diferentes espaços, utilização do espaço no papel e no tabuleiro. A relação com os objetos indicou se mantinha objetos consigo de modo adequado e cuidadoso, se conseguia compartilhar os materiais, se estava atento às peças ao jogar. Por fim, os aspectos relativos à convivência consideraram dois recortes: convivência I nos termos da criança consigo mesma, abordando evitar agressões físicas e verbais, cordialidade, possibilidade de defender-se e interagir, escolhas interpares e ajuda (oferecer e solicitar) e convivência II consistindo em investigar adequação de participação, autonomia para realizar tarefas, respeito ao outro e a comandos, cumprimento de regras e limites, percepção de erros. Cada item do protocolo foi pontuado com escores de 1 a 3, sendo que 1=baixa qualidade, raramente; 2=qualidade parcial, às vezes; 3= alta qualidade, muitas vezes.

Para a análise dos resultados, foram consideradas relações entre os procedimentos e as dimensões atitudinais de tempo e convivência, criança a criança e no conjunto, em função de tendências observadas. Com isso, foi possível ter uma visão mais integrada das crianças neste primeiro semestre de participação no programa de intervenção com jogos.

 

Resultados E Discussão

Para a apresentação dos resultados, é importante ressaltar quais os objetivos de cada momento do jogar, em termos do que as crianças deveriam fazer. O momento 1, de apresentação da situação de jogo, requeria que aprendessem as regras e conhecessem o material. Daí a necessidade do controle de impulsividade, assim caracterizado: agir com autocontrole, prestar atenção, ouvir e permanecer quieto durante as explicações. O momento 2 se referiu, em termos práticos, à realização do jogo propriamente dita. Por isso, o observável destacado foi denominado procedimentos de estratégia, tais como: coordenar regras e ações, aprender novos procedimentos com os pares, mudar e tentar usar estratégias diferentes durante a partida. As crianças precisavam criar alternativas concentrando-se no "como jogar". Já o momento 3 estava relacionado a uma situação de conflito (cognitivo ou social), exigindo que a criança atuasse para enfrentá-la com recursos tais como: ser paciente e persistente, buscar alternativas e pedir ajuda diante de um problema, ou seja, construir estratégias de superação para solucionar os erros e enfrentar o que não deu certo. Por fim, o momento 4 implicou na avaliação do resultado das ações ao jogar, em termos de a criança manifestar disposição para avaliar, isto é, entender a importância do diálogo, trocar e comunicar ideias, ampliar autoconhecimento. Este observável foi destacado por ser considerado importante para analisar os benefícios decorrentes da prática ocorrida com o jogo que estava sendo trabalhado.

Os resultados do ponto de vista procedimental nos quatro momentos acima mencionados articulados às informações atitudinais estão apresentados nas figuras que se seguem, as quais demonstram os modos de jogar em termos dos escores e suas respectivas evidências em termos atitudinais. É importante ressaltar que nas análises das crianças quanto às atitudes, somente serão apresentadas as dimensões tempo, convivência I e convivência II, por terem sido estas as que revelaram oscilações durante o período.

Sujeito 1

O sujeito 1 apresentou pouca variação nos registros de observação do jogar no decorrer do semestre, mas quando isto ocorreu, foi evidente para os observáveis de modo semelhante, mantendo assim um padrão de oscilações. Começou o semestre com predomínio do escore 3, melhorou e conseguiu se estabilizar no escore máximo (4), porém ao fim do semestre houve uma pequena piora, voltando assim para a mesma pontuação do início (3). O registro de observação de atitudes também mostra oscilações. Houve melhora em convivências (I e II) e na dimensão tempo nota-se algumas quedas de rendimento. Comparando-se a Figura 1 com o Quadro 1 é possível inferir que a baixa concentração nas atividades em grupo (tempo) poderia estar conectada com o não saber a hora certa de falar (convivência II), o que justificaria a piora no desempenho ao jogar (daí a queda nos escores relacionados a estratégias), e tais dificuldades poderiam também ter interferido em sua disposição para avaliar, que igualmente sofreu uma pequena baixa. Assim, os resultados parecem indicar que precisa melhorar na dimensão atitudinal.

Sujeito 2

O sujeito 2 apresentou oscilações ao longo do semestre no que tange ao jogar, em que se destacam, na Figura 2, principalmente os quesitos relativos a estratégias: em procedimentos de estratégias, com declínio até escore 0 e em estratégias de superação, em que inicia com escore 4 com queda para escore 2. Ao final do semestre, no entanto, obteve melhora em todos os observáveis, talvez indicando ter se beneficiado por algumas intervenções. No Quadro 2 também podem ser observadas oscilações, sendo que há um predomínio de escore 2 na dimensão temporal. Já em convivência I, destacam-se os itens relacionados a ajudar e ser ajudado, em que há declínio no decorrer do semestre, passando de escore 2 para escore 1. Conectando-se estas informações, poder-se-ia inferir que o fato de não pedir ajuda pode ter interferido negativamente na construção de estratégias, tanto para jogar como para resolver conflitos. Outro aspecto a ser ressaltado foi sua concentração para a realização das atividades consigo e em grupo (tempo), que se mantém estável em escore 2, indicando que não sustenta suficientemente sua atenção para exercer as atividades. Comparando-se a Figura 2 com o Quadro 2, os resultados parecem indicar que este sujeito pode melhorar as ações relacionadas ao jogar.

Sujeito 3

Na Figura 3, notam-se que os primeiros registros receberam escore 3, seguidos de declínio em três observáveis (controle de impulsividade, procedimentos de estratégia e estratégias de superação), com finalização do semestre indicando melhora, ao serem registrados novamente escores 3. Isto indica oscilação e provável tendência a mobilizar-se pelo contexto de intervenções. No registro de atitudes, os piores escores referem-se à dimensão temporal, apresentando baixa qualidade tanto para realizar tarefas no tempo estabelecido como para manter-se fazendo as atividades sem ter que ser lembrado. Conseguiu melhorar em sequências temporais e concentração nas atividades individuais, mudando o escore de qualidade parcial para alta qualidade. Já no que tange à convivência I, observam-se variações, com queda em agressões verbais e melhora em autodefesa, o que pode sugerir que optou como modo de defesa por este recurso. Em convivência II, saber a hora certa para conversar, respeitar a vez do outro e respeitar limites/obedecer sofreram queda de escore (de 3 para 2), provavelmente indicando sua dificuldade em manter a atenção focada em suas próprias ações. Talvez estas atitudes também tenham interferido no seu ritmo de trabalho, que sofreu declínio para baixa qualidade, assim como nos quesitos de estratégias referentes ao jogar (apesar destes terem melhorado ao final do semestre). De modo geral, os resultados parecem indicar que seus desafios para melhorar concentram-se nas dimensões atitudinais.

Sujeito 4

A Figura 4, que corresponde às ações de jogar do sujeito 4, demonstra oscilação peculiar, pois somente no segundo registro obteve suas piores pontuações, chegando a obter escore 1 em dois observáveis relativos a estratégias. A hipótese é de que isto pode ter ocorrido devido a um fato isolado, uma vez que logo obteve escores ascendentes, finalizando com o escore máximo em todos os observáveis. O registro de atitudes corrobora com este resultado, uma vez que também obteve escores altos em grande parte dos registros. No entanto, chamam atenção dois quesitos em convivência I: não pedir ajuda e não ajudar quem precisa, com escores 1 durante todo o semestre. É provável que este sujeito esteja pouco aberto para interagir, pois também apresenta escores 2 (qualidade parcial) em outros dois quesitos: ser escolhido pelos outros e fazer comentários. Tais atitudes podem ter consequências negativas para seu desempenho no caso de ocorrer um conflito (cognitivo ou social), para o qual talvez não consiga ter boas estratégias de superação, nem tampouco mostrando-se inclinado a se remeter ao adulto como fonte de orientação para auxiliar nas dificuldades. Numa análise geral, manteve uma tendência ascendente nos registros e finalizou o semestre com boa pontuação, tanto no contexto do jogar, como na manifestação de atitudes favoráveis.

Sujeito 5

A Figura que representa as ações ao jogar referentes ao sujeito 5 indica um contínuo processo de declínio, com exceção do observável relativo à disposição para avaliar, que tem predominância no escore 3. No registro de atitudes nota-se igualmente oscilações com tendência a declínio, em muitos quesitos. Na dimensão tempo, apresentou queda em 6 dos 8 aspectos, indicando necessidade de muita atenção para que pudesse melhorar. Em convivência I, ficam em maior evidência os escores de baixa qualidade em ajudar e pedir ajuda, assim como em convivência II, a dificuldade de fazer comentários pertinentes e admitir um erro. Tais resultados podem indicar que é um sujeito que precisa de bastante estímulo, parecendo ficar à espera de que algo aconteça (daí a alta incidência de baixos escores temporais). Tal atitude é compatível com os escores em estratégias, tanto para jogar, como para resolver conflitos, provavelmente não tendo iniciativa para agir de modo proativo. As intervenções parecem ainda não desencadear novas ações - talvez porque seu maior problema esteja relacionado à alfabetização (cumpre comentar que este sujeito não estava alfabetizado neste semestre, o que poderia agravar seu ritmo, gerando muita insegurança). Numa análise geral, apresentou muita dificuldade ao longo do semestre e manteve uma tendência descendente nos registros, tendo finalizado com escores baixos, tanto no contexto do jogar, como na manifestação de atitudes favoráveis.

Sujeito 6

A Figura 6, que representa as ações de jogar, mostra que o sujeito 6 iniciou o semestre com escore 4 em todos os observáveis, passando a ter variações com tendência a piorar. Isto indica uma desestabilização no decorrer do semestre, em que observa-se alguma melhora no fim. Podemos agregar a esta hipótese os dados que constam no Quadro 6, em que também nota-se um início com desempenho de alta qualidade, isto é, com vários escores 3, seguido de um declínio ao fim do semestre, com predomínio de escore 2. Os quesitos do registro de observação de atitude em que ele apresentou escore inferior (1) estão relacionados a como o sujeito entra em contato com o outro e como interage. Além disso, há queda significativa nos quesitos correspondentes a convivência II - "contato consigo mesmo", em que se pode inferir como sendo uma participação mais passiva, também de pouca interação. Este é provavelmente um caso de início de participação nas oficinas de jogos marcado por comportamento defensivo, isto é, a criança não apresenta as suas dificuldades num primeiro momento, porém, com o passar das intervenções, tende a se mostrar mais.

Sujeito 7

O sujeito 7 iniciou o semestre com escores baixos (1 e 2) nos observáveis do jogar, conforme a Figura 7. Pode-se observar que, após este início ruim, há uma tendência a primeiro estabilizar para finalmente apresentar melhoras. Destacam-se os desempenhos em controle de impulsividade, que apresentou escore baixo (2) nos quatro primeiros registros para somente depois melhorar, assim como em procedimentos de estratégia, tendo iniciado o semestre com escore 1 e encerrado com escore 4. Em relação a estratégias de superação também é possível notar escores mais baixos (2 e 1) e até uma piora antes de atingir o escore mais alto (3). Ao observarmos o Quadro 7, é possível notar a mesma tendência a estabilizar na grande maioria dos critérios, porém apresentando também variações para pior ou para melhor. Verifica-se que o desempenho do sujeito 7 é pior (com escores 1) no que diz respeito à concentração (tempo), tanto em atividade individual como em grupo, bem como em saber a hora de conversar (convivência II). Tais resultados indicam que as principais dificuldades do sujeito 7 relacionam-se a questões atitudinais, principalmente conseguir ter autocontrole, isto é, saber esperar a sua vez, esperar a vez do outro e saber ouvir uma explicação para depois partir para a ação.

Sujeito 8

A Figura 8, referente às observações do jogar, mostra muitas oscilações no decorrer do semestre, com melhora e estabilização apenas na disposição para avaliar, que atingiu escore 3. Em estratégias de superação, podemos observar piora (iniciou e permaneceu no escore 3 e, então, caiu para escore 2). Nos outros observáveis - controle de impulsividade e procedimentos de estratégias - notamos melhoras e pioras durante todo o semestre. O Quadro 8 também apresenta oscilações, sendo que na dimensão tempo, encontramos pioras em alguns quesitos no fim do semestre, todos vinculados à capacidade de manter a atenção nas tarefas. Como é possível verificar em tempo e convivência II, trata-se de uma criança que tende a se desconcentrar e conversar em momentos inadequados. Nota-se, também, que apresentou escore 1 em tenta realizar sozinho suas atividades, o que pode significar que somente passou a mostrar suas necessidades de fato no final do semestre, uma vez que iniciara com escore 3. Este aspecto pode ser identificado na Figura 8, em que demonstra dificuldades também no jogar, porque não conseguiu estabilizar e não há uma curva evidente de melhora ou de piora, mas sim, há uma ideia de grande oscilação, de experimentação.

Sujeito 9

A figura relativa às ações de jogar do sujeito 9 mostra um percurso ao longo do semestre em que predominaram oscilações. Destaca-se o controle de impulsividade, o qual apresentou a maior oscilação, desde escore 1 até escore 4, melhorando de escore 1 para 2 no último registro. É possível notar também que finalizou o semestre com queda nos outros três observáveis, relativos a momentos em que se exige bastante atenção. No Quadro 9, suas maiores dificuldades manifestaram-se na categoria tempo, em que apresenta cinco quesitos com queda. Seu ritmo de trabalho e concentração são os aspectos que mais se destacam, com declínio de escore 3 para 1 e/ou mantendo-se com baixa qualidade até o final. Em convivência I apresenta escore 1 em ser escolhido pelos outros e ajudar quem precisa, indicando que talvez um interfira no outro. Em convivência II, se mantém com escore 1 em saber a hora de conversar, mas melhora em respeitar a vez e obedecer, sugerindo que houve alguma disposição para mudar o comportamento ao longo do semestre. O mesmo ocorreu em tempo, em que respondeu com melhora da concentração nas atividades individuais. No entanto, nas atividades coletivas sua concentração ainda é ruim, prejudicando seu desempenho em todas as atividades com jogos. Numa análise geral, finalizou o semestre com mais declínios do que ascensões, indicando que há muitas dificuldades a serem enfrentadas nos próximos semestres.

Sujeito 10

A Figura 10, referente às ações de jogar, mostra que o sujeito 10 teve um início ruim (escores 1 e 2 predominantemente), chegou a estabilizar (escore 3 no segundo e terceiro registros), permanecendo estável apenas na disposição para avaliar, porém apresentando queda nos outros observáveis. Em relação ao Quadro 10, observamos que as principais dificuldades atitudinais deste sujeito estão relacionadas a tempo e à maneira como enfrenta as dificuldades (conseguir se defender, pedir e oferecer ajuda, tentar realizar as atividades sozinho). Podemos ver que na categoria tempo apresentou queda em quase todos os critérios e que suas dificuldades são referentes tanto a conseguir realizar as atividades como a se manter concentrado. Em convivência I apresentou melhoras, principalmente na maneira como interage com os outros. Já em convivência II, podemos inferir que por ter conseguido começar a admitir erros, passou a pedir mais ajuda (convivência I), o que pode também ter feito com que piorasse na tentativa de realizar as tarefas sozinho. Comparando-se a Figura com o Quadro, é possível entender que o sujeito passou a ouvir sugestões (disposição para avaliar) e aprendeu a pedir ajuda, porém ainda tem dificuldades em estabelecer estratégias e criar procedimentos para o jogar, o que pode se justificar pela falta de conseguir se manter concentrado e também de participar de maneira ativa e coerente.

Tomando como base os resultados criança a criança, é possível afirmar que, independentemente de como cada uma começa e termina o semestre, houve um modo geral de funcionamento que se resumiu a oscilações de procedimentos ao longo do semestre, conforme observado nas Figuras de 1 a 10. No entanto, verificamos que algumas crianças (sujeitos de 1 a 6) apresentaram no primeiro registro de observação do jogar um desempenho que pode ser considerado um bom começo, ou seja obtiveram escores entre 3 e 4 (necessariamente). Outras (sujeitos de 7 a 10) não apresentaram procedimentos que obtiveram pontuações/escores mais altas (mau começo), isto é, escores entre 0 e 2 (pelo menos em um dos registros). Isto permitiu saber como estavam iniciando o semestre, que correspondia ao ponto de partida do processo de acompanhamento ao longo das intervenções. Verificando como as crianças finalizaram o semestre, para os mesmos critérios, notou-se que os sujeitos 5 e 6 não mantiveram os melhores escores no último registro efetuado; e, além disso, o sujeito 7 que havia começado com escores mais baixos, ao final obteve escore mais alto, o que poderia indicar uma melhora.

Analisando as quatro crianças que começaram "bem" e terminaram "bem", é importante ressalvar que este dado sozinho não informa sobre o que houve durante o semestre quanto às oscilações ocorridas em termos da qualidade dos procedimentos e sua adequação. Retomando as figuras apresentadas anteriormente dos sujeitos de 1 a 4, é possível notar diferenças nas oscilações de seus procedimentos, bem como diferenças nas dimensões atitudinais concomitantes.

O que significa começar bem? Duas respostas são possíveis: a primeira é a de que já havia no início da participação, procedimentos adequados diante dos desafios, os quais foram fortalecidos durante o semestre de intervenções. A segunda é a de que, inicialmente, a criança pode demonstrar bons procedimentos que não se sustentam quando são desequilibrados pela necessidade de superar os desafios propostos, o que leva a escores mais baixos ao final do semestre (o que se aplicou aos sujeitos 5 e 6). É provável então que "bom" começo se refira mais a procedimentos utilizados para se proteger dos desequilíbrios em outras situações de vida sobretudo escolares, os quais tem seu efeito mas acabam por não se sustentar até o final por estarem menos "enraizados" no pensamento da criança. Nesse caso, as intervenções permitem com que procedimentos menos evoluídos se manifestem ao longo do primeiro semestre, o que aparentemente revela uma piora, mas na verdade pode expressar o início de uma transformação mais estrutural.

Das quatro crianças que apresentaram mau começo, três assim se mantiveram (sujeitos de 8 a 10). O sujeito 7, por sua vez, iniciou o semestre com escores baixos, mas terminou com escores mais altos, indicando que os desequilíbrios provocados pelas intervenções levaram a novos patamares de equilíbrio, com procedimentos de mais qualidade e alcance.

Considerando os resultados relativos às dimensões atitudinais (Quadros de 1 a 10), também é possível afirmar que houve variação do início para o fim do semestre. Do ponto de vista do aspecto tempo, é possível formar dois grupos: (a) dos sujeitos 1, 3, 4, 5, 7 e 9, que ainda apresentaram escores referentes à baixa qualidade ao final do semestre, como consta no segundo registro; (b) dos sujeitos 2, 6, 8 e 10 que, por sua vez, mesmo não tendo obtido escores 1, manifestaram aspectos temporais avaliados com escores 2 (qualidade parcial) ao final do semestre. Isto pode indicar que as intervenções atingiram apenas parcialmente este aspecto e que serão necessários os semestres subsequentes de intervenção para que mudanças possam ser observadas.

Quando é considerado o aspecto da convivência I (relação com os outros) nota-se um agrupamento diferente: os sujeitos 2, 4, 5, 6, 8, 9 e 10 apresentaram escores 1, o que aponta um grande número de crianças com necessidade de aprender, principalmente, a ajudar os colegas e pedir ajuda. Além disso, tomando-se o aspecto convivência II, ou seja, contato consigo mesmo, nota-se que o número de crianças que obtiveram escores de baixa qualidade (1) é ainda maior (sujeitos 1, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10), reforçando a importância do trabalho sobre esta dimensão atitudinal, bem como confirmando dado já apresentado em outra ocasião (De Souza et all, 2014; Garbarino et all, no prelo) de que o aspecto da convivência em termos do desenvolvimento social é o que muda mais tardiamente ao longo de todo o período de intervenção (3 semestres).

O panorama acima descrito demonstra que o programa de intervenções interfere diferentemente nas crianças, já que seus procedimentos e aspectos atitudinais mais evidentes variam desde o início, promovendo como consequência, diferentes encaminhamentos e pontos de chegada.

 

Conclusões

A pesquisa ora apresentada reforça duas características principais do primeiro semestre das oficinas de jogos: oscilação e não regularidade no desempenho, devidas aos desequilíbrios cognitivos e sócioafetivos (advindos das interações com os pares, regras e tarefas), para as dez crianças examinadas, tanto no contexto do jogar quanto no que se refere às atitudes. Reitera ainda o fato de que, como as crianças partem de diferentes configurações iniciais, seus processos de autorregulação e tomada de consciência igualmente se diferenciam, levando a diferentes pontos de chegada como resultado das intervenções ao longo do semestre. Demonstra ainda que a análise apenas dos pontos de partida e de chegada não é suficiente para compreender os aspectos mais afetados pelas intervenções e que necessitam de maior ênfase nos semestres subsequentes. Tal conclusão geral responde as duas indagações que motivaram esta pesquisa: buscar saber como as crianças chegam ao LEDA quanto ao modo de enfrentar desafios, e identificar como se desenrola o primeiro semestre de intervenção quanto às atitudes e mudanças de procedimentos.

O pressuposto do trabalho é o de que qualquer intervenção para ser bem sucedida provocará desequilíbrios no desempenho anterior dos participantes, o qual, nesse caso, não era considerado adequado ou esperado em função das dificuldades escolares. Assim, a ocorrência de oscilações é esperada. No entanto, este estudo demonstrou as especificidades das oscilações, criança por criança e também no conjunto, permitindo uma visão mais aprofundada dos aspectos ligados às dificuldades procedimentais e atitudinais. Esta constatação permitiu a harmonização do trabalho de intervenção em seus aspectos individualizados e grupais, visando promover a tomada de consciência construtiva das ações.

Em síntese, os resultados indicaram uma importante contribuição do programa de intervenção com jogos, uma vez que o mesmo revela particularidades dos modos de enfrentamento das dificuldades, bem como aspectos gerais do processo de autorregulação. Demonstram também que atividades com jogos mediadas por adultos, que propõem dinâmicas e materiais variados estimulam não somente o interesse e a autonomia, mas também motivam as crianças a controlar a impulsividade, bem como a construir soluções para superar dificuldades e conflitos. Tais ações favorecem o protagonismo e a conscientização do que deverá ser modificado em prol de um melhor desempenho escolar, trazendo benefícios também para o desenvolvimento e a aprendizagem de modo mais amplo.

É importante ressaltar que as análises dos outros dois semestres do programa de intervenção poderão fortalecer as conclusões aqui mencionadas, identificando novos movimentos de desequibilibrios, assim como novos patamares de equilíbrio, provavelmente melhores em relação a este semestre.

 

Referências

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1 Psicóloga, Professora Titular no IPUSP.
2 Pedagoga, Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP.
3 Psicóloga, Pedagoga, Mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP.
4 Aluna de graduação da USP.

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