SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.27 número28Educação para saúde mental no cotidiano do mundo digital índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.27 no.28 São Paulo  2019

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

"Para o Psicopedagogo, aprender é um processo que implica pôr em ações diferentes sistemas que intervêm em todo o sujeito: a rede de relações e códigos culturais e de linguagem que, desde antes do nascimento, têm lugar em cada ser humano à medida que ele se incorpora a sociedade." (BOSSA,1994, p. 51)

Já é sabido que a Psicopedagogia surgiu como nova área do conhecimento na busca de compreender e solucionar os problemas de aprendizagem, tendo em sua configuração institucional a função de pensar e refazer o trabalho no cotidiano da escola. Para os professores, a formação psicopedagógica constitui-se como uma oportunidade para entender o sujeito em suas múltiplas dimensões e refazer suas concepções e atitudes frente ao processo de ensino-aprendizagem, dando-lhes instrumentalização necessária para atender as demandas da escola no que concerne aos alunos com dificuldades de aprendizagem, foco principal do estudo da Psicopedagogia.

Para além de sua configuração institucional, há também o profissional de psicopedagogia clínica, que exerce um trabalho de caráter preventivo ou interventivo, diagnosticando o paciente, desenvolvendo técnicas e orientando pais e professores.

Tanto uma vertente como a outra buscam compreender como esse processo de apropriação da realidade e de sua aprendizagem está ocorrendo, principalmente em tempos de tantas mudanças como temos presenciado atualmente. Por isso, a escolha da frase de Bossa nos revela que esta faceta precisa ser observada pelo psicopedagogo, se ele quiser ajudar seu aluno ou paciente nessa realidade.

Tomamos a frase introdutória do artigo de Rafael Vilela para traduzir o que estamos querendo refletir neste número.

A Psicopedagogia é ainda um campo científico em construção. O termo construir, ao mesmo tempo que pode significar edificar, reunir, desenhar, compor, institui a ideia de desconstrução. No encontro com a arte, na escultura de um bloco, encontramos uma alegoria para afirmar que o conhecimento não é um constante acrescentar, mas a quebra de certezas e a instauração de dúvidas. Um processo de construção e reconstrução contínuo.

Temos afirmado que a revista "Construção Psicopedagógica" busca contemplar os leitores com um conteúdo atual e sob diferentes olhares. Este número traz, mais do que nunca, uma preocupação com a prática psicopedagógica, apresentando discussões importantes sobre a saúde, a educação e a intervenção psicopedagógica, introduzindo um diálogo com a cultura cibernética e as mudanças que ela propõe no aprendiz diante de sistemas digitais e eletrônicos e a sua dependência quase que absoluta na sociedade moderna.

Começamos o presente número com a entrevista do Dr. Chao, que nos aponta a dependência que temos dos sistemas digitais e eletrônicos, bem como a falta de consciência dos riscos à saúde mental decorrente do uso exagerado desses sistemas, que concentram em nossos smartphones a nossa agenda de compromissos, o aplicativo do internet banking, a agenda de contatos, a máquina fotográfica, a galeria de fotos, entre outras funcionalidades. Dr. Chao Lung Wen é professor associado da Faculdade de Medicina da USP e chefe da disciplina de Telemedicina; líder do Grupo de Pesquisa USP em Telemedicina, Tecnologias Educacionais Interativas e eHealth no CNPq/MCTIC. Por ser um profundo conhecedor da temática, sua entrevista é de suma importância para todos aqueles envolvidos com o processo de aprendizagem e suas dificuldades. Embora tenha sido editada, procuramos manter, ao máximo, a fala do entrevistado para garantir a profundidade de suas palavras.

Destacamos uma parte da resposta do Dr. Chao à pergunta inicial da entrevista, sobre os riscos à saúde mental decorrentes do uso exagerado das tecnologias digitais:

O maior problema do smartphone e das redes sociais é a perda da noção do limite. Principalmente porque nunca fomos educados a colocar limites no mundo digital. Nós fomos educados a colocar limites no mundo físico. Nós não temos um passado histórico de educação de um comportamento digital. A outra coisa é que não percebemos que o mundo digital tem reflexo no mundo real. Como numa tela de computador ou smartphone, achamos que aquilo é uma ficção ou está dissociado da realidade. E nós não fomos ensinados, desde criança, do que são as chamadas consequências. Um ponto relevante também é que, hoje, a tecnologia nos torna como um produto.... Nós avançamos muito rapidamente no mundo digital sem ter enxergado os potenciais danos. Pequenas falhas vão se solidificando, até se tornarem um hábito que gera um caos comportamental. Além disso, o uso demasiado da interatividade digital pode gerar a criação de pânico, hiperatividade, aumento da ansiedade, porque você não percebe que de repente você está envolto com uma massa de informação e subconscientemente aquilo te perturba. Você não sabe por que quer fazer tudo com pressa; e se acostuma a essa carga tão grande, que a ausência dela nos faz ter a percepção de falta. Então tudo isso gera um problema de saúde mental.

Nosso primeiro artigo, TDAH OU SÍNDROME DO RESPIRADOR BUCAL?, de Patricia de Souza Marques, da PUC-SP, traz um estudo inédito em que demonstra que a respiração bucal na infância é um hábito que pode trazer uma série de malefícios, entre eles a dificuldade de aprendizagem, devido à falta de atenção e concentração, característica também de crianças com TDAH, causando possivelmente alguns tratamentos que não atendem as necessidades específicas da criança.

[...] As crianças que respiram pela boca, Síndrome da Respiração Bucal (SRB), tendem a apresentar problemas comportamentais semelhantes aos observados em crianças com TDAH. Crianças com dificuldades de aprendizagem, déficit de atenção, baixa capacidade de concentração, hiperatividade, inquietação, momentos de irritação, baixa autoestima e distúrbios noturnos. O reconhecimento da SRB nos primeiros anos de vida é de extrema relevância, pois quando confundido com o transtorno do TDAH, pode levar a intervenções inadequadas, com prejuízos para a criança, desgaste da família e tratamentos ineficazes.

Rafaela Vilela, do Colégio de Aplicação da UFRJ traz em seu artigo ENTRE O MOSTRAR E O DIZER: CONSIDERAÇÕES SOBRE A TAREFA NO diagnóstico CLÍNICO INFANTIL nos traz importantes considerações sobre o processo de diagnóstico e sobre a importância dos atos de olhar, escutar, falar e registrar para o fazer psicopedagógico, pois a pesquisa revelou que o desenho, a brincadeira e o jogo são potentes linguagens para a criança dizer sobre seus sentimentos, desejos e anseios e sobre sua postura frente à construção do conhecimento.

Olhar, escutar e falar são atos essenciais na prática psicopedagógica. Atos que reafirmam o caráter dialógico e que, ao oferecerem tempos e espaços para a relação, possibilitam compreender o que não está visível, o que muitas vezes não consegue ser dito. O registro escrito, por sua vez, oferece ao psicopedagogo a possibilidade de olhar novamente para os discursos do paciente e perceber as recorrências e vazios. Ações que permitem observar e destacar as potências do sujeito, buscar nelas um outro modelo de aprendizagem, um novo encontro com o conhecimento. Potências singulares que nos atravessam e que só se sobressaem como originais, preciosidades da nossa história na e pela percepção do outro.

O artigo de revisão A IMPORTÂNCIA DO JOGO E DA BRINCADEIRA NA PRÁTICA PEDAGÓGICA, de Larissy Alves Catonhoto, Claudia Broetto Rossetti e Daniela Dadalto Ambrozine Missawa, da Universidade Federal do Espírito Santo, traz uma discussão sobre o uso de jogos na escola, bem como a sua importância para o desenvolvimento cognitivo, social e emocional da criança a partir de uma abordagem interacionista. Discutem a importância da reflexão sobre a prática docente em relação ao jogo como elemento fundamental do trabalho pedagógico - sobretudo no caso de alunos com manifestações de dificuldades de aprendizagem -, bem como atentam para o fato de que as atividades lúdicas podem ajudar no desenvolvimento de várias capacidades, além de auxiliar na exploração e entendimento sobre a realidade, a cultura, as regras e os papéis sociais.

Ainda que a temática "jogos e brincadeiras" tenha sido bastante explorada em diferentes áreas do conhecimento, cada vez mais na escola de educação básica não prestamos atenção e nem valorizamos os esquemas lúdicos das crianças. Temos o que Macedo, Petty e Passos (2005) chamaram de "escola seletiva". Nela, autoritária e rapidamente impomos a principal ferramenta de conhecimento e domínio do mundo da pedagogia tradicional: os conceitos científicos, a linguagem das convenções e os signos arbitrários, com seus poderes de generalidade e abstração.

O relato de experiências realizadas com alunos de 2º e 3º ano do Ensino Fundamental, por Ana Lucia Arbex, de São Paulo, sob o título ASSEMBLEIAS DRAMATIZADAS E FORMAÇÃO DE GRUPO, teve como objetivo compartilhar como os alunos se tornaram conscientes de sua responsabilidade na busca pelo bem-estar do grupo ao qual pertenciam. Como metodologia, recorreu-se à estratégia de Assembleias Dramatizadas, atividade que faz uso do teatro e de jogos teatrais para solucionar conflitos surgidos no grupo, nas quais os alunos têm voz e são ouvidos. Com foco na importância do desenvolvimento das Competências Socioemocionais, o trabalho percorreu caminhos que levaram os alunos a escolherem assuntos merecedores de sua atenção e reflexão na construção da autonomia individual e grupal.

Essas assembleias aproximam os alunos de conceitos inseridos nas competências socioemocionais, como respeito mútuo, ética, grupo, convivência, honestidade, cuidado, diferenças e preconceito. Envolvidos pelas dramatizações a partir da palavra, caminhando para a experimentação e ação, os conceitos são interiorizados e expressos, ressurgindo novamente por meio da palavra, dessa vez ressignificada. Além disso, as assembleias desenvolvem habilidades para que o aluno possa entrar em contato com suas emoções, encontrando a melhor forma de lidar com questões que aparecem tanto no âmbito individual como no grupo.

[...] As assembleias, portanto, têm como papel fundamental possibilitar ao grupo movimentos que mexem e remexem nas relações e que por isso não abrem espaço para a estagnação e o engessamento, proporcionando a autenticidade e o protagonismo, busca de cada um de nós. As assembleias, por meio das dramatizações, das discussões e dos registros, criam uma narrativa própria que irá caminhar junto com o grupo e seu processo de amadurecimento e transformação.

Olga Maria de Souza e Eloisa Quadros Fagali, ambas do Instituto Sedes Sapientiae, nos trazem um relato de experiências realizadas com alunos do 3º ano de uma escola particular da cidade de São Paulo. Os recursos psicopedagógicos e arteterapêuticos foram aplicados pelo professor, explorando as relações afetivas entre crianças e professor, as autopercepções das crianças e o desenvolvimento da linguagem não-verbal e verbal, integrada ao pensamento e à expressão criativa.

É de grande relevância aplicar as práticas e teorias psicopedagógicas na situação de aprendizagem, em sala de aula, em que o professor, com um olhar e postura psicopedagógicos, situa-se como mediador nas relações afetivas e na aprendizagem das crianças. O diálogo com o outro - alunos e professor - requer cuidados com a dinâmica relacional afetiva, em que aprendizes - alunos e professores - complementam-se em função das identidades e das diferenças, mobilizando assim o real movimento de inclusão, que respeita as singularidades de cada um e suas dificuldades, valorizando suas capacidades.

[...] sabemos que na sala de aula cada um tem o seu processo de desenvolvimento diferenciado. Alguns aprendem com facilidade, outros perdem o ritmo e temos aqueles que encontram muitas dificuldades para aprender. Nesse contexto, o professor recebe alguns diagnósticos, tais como: TDHA, dislexia, discalculia, autismo, transtornos de aprendizagem, hiperatividade, distúrbio e déficit de atenção, entre outros (sem falar naqueles que apresentam suas dificuldades e não têm laudos), com riscos de reduzir a criança aos traços das dificuldades e não às suas potencialidades. Nesse sentido, precisa-se acolher esses alunos, evitando novos bloqueios e proporcionando a eles uma aprendizagem significativa em que aprender seja um prazer.

Marcos Venicio Esper, da Universidade de São Paulo e da Universidade do Estado de Minas Gerais, e Alzira Jorri Tornei, da Uninove, São Paulo, nos traz o artigo de opinião SAÚDE MENTAL NA ESCOLA - PSICOPEDAGOGIA ou PSICOLOGIA: digladiar ou harmonizar?, em que discutem pontos que há muito instigam pais, professores e até mesmo profissionais da saúde: quais são as funções e papéis desempenhados por profissionais da psicopedagogia ou da psicologia?

Saúde Mental na infância abarca também conceitos de deficiências, transtornos, síndromes e processos de aprendizagem. Busca-se, nesse texto, interdisciplinarizar e multiprofissionalizar os olhares para essa densa e complexa temática. Criança agitada, triste e angustiada, insociável, come demais ou come de menos, apresenta problemas de aprendizagem na escola, talentosa em excesso, tímida e violenta: há várias razões para as famílias ou responsáveis confiarem e buscarem auxílio de um profissional da saúde ou da educação. Na fase de inocência e da autoconstrução, quais são os comportamentos patológicos e os que não são? O que é da área da saúde ou educação? Onde o sofrimento psíquico começa na criança? Quando e quem consultar e buscar apoio? É necessário, desde cedo, rotular e medicalizar comportamentos atípicos? Essas questões dizem respeito à sociedade como um todo, porque refletem nossa relação com a norma, as regras e as diferenças.

Por último, Rose Skripka N. Gabriel, do Instituto Sedes Sapientiae, nos traz a resenha do livro de Rogers, S. J. e Dawson, G. (2014). Intervenção precoce em crianças com autismo: Modelo Denver para a promoção da linguagem, da aprendizagem e da socialização. Lisboa: LIDEL. Num primeiro momento, pode causar a impressão de ser um manual de procedimentos, mas ao se adentrar na obra o leitor poderá se apropriar das informações ali presentes, que despertam a sensibilização e o entendimento necessários para o convívio com as crianças autistas.

A perturbação do espectro autista tem desafiado profissionais de diversas áreas do cuidado humano, não somente em relação ao estudo de suas possíveis causas, mas sobretudo, o desenvolvimento de modelos estratégicos de intervenções precoces específicas e mais eficientes.

Agradecemos aos autores que contribuíram com o presente número da revista Construção Psicopedagógica, enriquecendo o fazer psicopedagógico, e convidamos você leitor para dialogar com as diferentes possibilidades do trabalho psicopedagógico, nos seus diversos aspectos e diversas possibilidades interventivas em interface com outros campos, tendo sempre um olhar multidisciplinar, interdisciplinar e transdisciplinar, incorporando a realidade e as mudanças que nela ocorrerem.

Além da gratidão pela companhia na leitura e divulgação de nossa revista, esperamos também a sua contribuição para o próximo número. Ela é muito importante para nós!

 

Marlene Coelho Alexandroff

Editora Científica

Creative Commons License