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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.27 no.28 São Paulo  2019

 

ENTREVISTA

 

Educação para saúde mental no cotidiano do mundo digital

 

 

Chao Lung Wen1

Telemedicina da USP

 

 

Introdução

A equipe editorial da revista Construção Psicopedagógica apresenta a entrevista realizada pela professora Ana Luiza Colagrossi do curso de Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae e de sua assistente Carla Sachs com o Prof. Dr. Chao Lung Wen1 e e Maíra Lie Chao2, integrantes do grupo de pesquisa em Telemedicina da USP. Essa relação entre Educação e Saúde faz parte da missão desta revista, portanto a ampliação desses saberes traz uma significativa contribuição para a construção do conhecimento. A entrevista é o resultado de uma roda de conversa entre os pesquisadores e as professoras, por isso, em muitos momentos, o diálogo transcende a própria entrevista, cujo resultado vai aqui transcrito:

Ana Luiza: Em dezembro de 2018 fui convidada pelos coordenadores do INPD3, professores Eurípedes Constantino Miguel, Chao Lung Wen (USP)4 e Luiz Rohde (UFRGS)5, para participar do webinar "Como Lidar com Dependência Digital e Cyberbullying".6 Esse webinar faz parte do eixo de atuação do INPD que envolve transferência de conhecimento e interface com a sociedade. O foco era trazer a educação como prevenção aos males potencializados pelo ecossistema digital. Durante o webinar, o grande destaque foi o papel fundamental que a educação exerce para que a sociedade possa lidar com a "era digital" de forma saudável e benéfica.

Devido à repercussão do webinar, convidei a Carla para juntos entrevistarmos o professor Chao e Maíra integrantes do grupo de pesquisa em Telemedicina, para ampliar esta discussão.

Ana Luiza7/Carla8 Obrigada, professor Chao e Maíra, por aceitarem participar desta entrevista. Estamos muito felizes com esta oportunidade. Muito obrigada!

Dr. Chao: É uma satisfação!

1. Vamos começar pensando na pergunta que foi tema do nosso webinar: Quais são os alertas e riscos à saúde mental decorrentes do uso das redes sociais e smartphones?

Dr. Chao: O maior problema do smartphone e das redes sociais é a perda da noção do limite. Principalmente porque nunca fomos educados a colocar limites no mundo digital. Nós fomos educados a colocar limites no mundo físico. Nós não temos um passado histórico de educação de um comportamento digital. A outra coisa é que não percebemos que o mundo digital tem reflexo no mundo real. Como numa tela de computador ou smartphone, achamos que aquilo é uma ficção ou está dissociado da realidade. E nós não fomos ensinados, desde crianças, do que são as chamadas consequências. Um ponto relevante também é que, hoje, a tecnologia nos torna como um produto. Nós somos "integrantes" de um produto digital, é como se nós vivêssemos um tipo de "Big Brother" em tempo real onde somos os componentes digitais. Então, não aprendemos a perceber os riscos. Dessa forma, nós esquecemos que o mundo digital sem uso de prudência gera consequências ruins.

Alguns até dizem que o vício do cigarro, do século XXI, se chama "Sistemas Digitais". Porque nós ainda não temos preocupações com todas as consequências. Não existem experiências passadas para promover este alerta. Seria como se nós estivéssemos na década de 1960 ou 1970, quando eram feitas propagandas sobre o cigarro sem informações sobre as consequências. Somente depois, com a conscientização, é que começou a ter normas. Nós avançamos muito rapidamente no mundo digital sem ter enxergado os potenciais danos. Pequenas falhas vão se solidificando, até se tornarem um hábito que gera um caos comportamental. Além disso, o uso demasiado da interatividade digital pode gerar a criação de pânico, hiperatividade, aumento da ansiedade, porque você não percebe que de repente você está envolto com uma massa de informação e subconscientemente aquilo te perturba. Você não sabe por que quer fazer tudo com pressa; e se acostuma a essa carga tão grande, que a ausência dela nos faz ter a percepção de falta. Então tudo isso gera um problema de saúde mental.

Ana Luiza: Então, é como se o vício do cigarro tivesse se tornado o vício dos sistemas digitais...

Dr. Chao: Isso, porque inclusive o vício dos sistemas digitais gera outra noção de patamar de normalidade. O patamar de normalidade não é mais o momento que você tem para você, para fazer uma reflexão e outras coisas. O padrão da normalidade para você é reatividade. Eu preciso sempre estar reagindo, respondendo, curtindo ou vendo. O enfoque está na reatividade. E tudo isso entra naquela linha sobre o Reflexo Condicionado de Pavlov. Depois da quinta ou sexta exposição, nós começamos a perder a consciência de que aquilo não precisava ser daquela forma. E na décima segunda você já diz, "Mas sempre foi assim. Por que tenho que mudar?". E aí você se condicionou. Então, eu diria que o maior problema do mundo digital é a ausência de um plano educacional explicando: até aqui serve, até aqui não há necessidade, até aqui já começa a ser patológico. A desconexão, que eu vou chamar de uma "disruptura" entre o mundo real e o mundo digital, é um fato perigosíssimo.

Eu acho que as escolas precisam ensinar, desde o ensino fundamental, sobre educação digital. Os adultos de hoje, na maioria das vezes, não tiveram essa formação. Antes era o envio de mensagens usando SMS, e de vez em quando um torpedo, mas de repente veio uma fartura, e as pessoas perderam limites gradativamente. É importante que os adultos tenham percepção do risco em relação ao envolvimento demasiado em uso de smartphone ou redes sociais, porque eles podem funcionar como os exemplos da perpetuação do vício comportamental para crianças. Tanto que existem crianças que já estão reclamando que o pai está de corpo presente, mas com a mente no smartphone. Esse comportamento social é problemático.

2. E o cyberbullying?

Maíra: Que são os alertas e riscos...

Dr. Chao: Quando uma criança percebe que existe uma junção entre realidade com o mundo digital, a brincadeira para alguns às vezes pode ser ofensa para os outros, e às vezes uma ofensa proposital pode se perpetuar ao longo do tempo. Então, em princípio, um dos alertas é o seguinte: a perda de limite leva à perda da forma de se comunicar, e a reatividade leva a risco de "exageros" emocionais na forma de escrever porque reagimos com a emoção naquele instante. Talvez, se tivevéssemos esperado quinze minutos, não agiríamos daquela forma.

Ana Luiza: Hoje em dia, essa rapidez não dá tempo de você esfriar a cabeça. Você recebe a mensagem e já está respondendo imediatamente...

Dr. Chao: Isso, você trabalha na impulsividade. Essa impulsividade pode gerar o cyberbullying ou inclusive as zombarias em grupo. Um aspecto preocupante é que o mundo digital é um tanto irreversível; porque no mundo digital você não consegue apagar tudo. A perda dos limites, a facilidade, a impulsividade e a reatividade também levam a exageros; exageros que podem acentuar o cyberbullying e assim por diante, e teoricamente isso pode gerar problemas de convívio social.

No mundo analógico nós não precisávamos registrar todos os momentos da vida para compartilhar para o mundo. Grande parte dos acontecimentos eram algo mais reservados e privados. Eu sempre falo para os jovens, quanto mais informações vocês compartilham, mais "reféns" vocês se tornam do mundo digital. Dentro de dois anos, vai ser inteligência artificial fazendo levantamento de perfis, pela sua ocorrência dentro deste mundo. Você vai ser previsível. O mundo digital não é inócuo. Portanto, acho que todas as escolas de ensino básico em diante precisariam ensinar uma coisa chamada "Etiqueta Digital". Um bom comportamento digital que foque no uso racional, no respeito e na privacidade.

3. Ana Luiza: O papel dos adultos e dos professores na educação é muito importante. E o que eles podem fazer para colaborar para que essa situação não se agrave tanto?

Dr. Chao: A primeira coisa que eu diria é que deveríamos realizar cursos de formação dos professores sobre "Etiqueta Digital". Esse curso deveria ser algo divertido, como criar situações de teatralização, propondo que os alunos aprendam de forma lúdica e significativa. A nossa função não deveria ser de doutrinar. A nossa função deveria ser de levantar os diferentes olhares para que se entendesse o porquê, no sentido de formar uma maturidade comportamental.

Ana Luiza: O que você está propondo é um trabalho de formação, para que o professor pudesse ajudar, de uma forma mais precisa, os jovens e as crianças nesse momento de transformação que o mundo digital está trazendo.

Dr. Chao: Exatamente! Por exemplo, nas escolas, os professores poderiam ensinar, em reunião de pais e mestres: "Hoje iremos ensinar sobre como ter uma vida agradável convivendo com o mundo digital", ao invés de nós falarmos apenas de forma negativa, com críticas. Como exemplo de dinâmicas educacionais, podemos criar situações para promover reflexões: lançar o desafio sobre como vocês poderão ter maior "interação" dentro da família, em reuniões de pais e mestres, e depois os relatos mais significativos são compartilhados em grupos e/ou portais, como pequenos vídeos de dicas que deram certo.

Poderíamos estimular oportunidades de convivência em família. Para estimular a não utilizar smartphone na hora da refeição, poderíamos fazer jogos de adivinhação do tipo "Você sabia quê?". Essas seriam técnicas para criar pequenos ganchos do chamado "entrelaçamento de ideias". Eu assisti inclusive a uma matéria do Dr. Dráuzio Varella, falando sobre depressão. E ele estava falando que a depressão virou uma epidemia. E eu acho que sim e não. A depressão pode ser endógena (orgânica) influenciada por mediadores químicos, mas ela pode ser também consequência de situações, como os casos deflagrados pelos chamados "gatilhos". Atualmente, a ausência de diálogos com os pais, assim como a ausência de entendimento dos contextos das situações, pode agravar os aspectos relacionados com depressões. Existem situações de adolescentes de apenas treze anos que tinham depressão, porém isso é agravado pelo fato deles viverem reclusos no mundinho deles, nas redes sociais, sem a percepção da necessidade de compartilharem o problema com suas famílias.

Nestes casos, poderíamos, como sugestão, criar espaço de compartilhamento de experiências entre a família e a escola. Focar na importância da convivência familiar e da interação entre os pais e as crianças.

Ana Luiza: Para sentir que elas podem ser apoiadas e nesta convivência, elas se fortalecem.

Dr. Chao: Sim, apoio. Então, eu acho que a dinâmica da moderna sociedade também é um dos geradores do aumento de depressão. Mas isso porque o nosso hábito de conversa está diminuindo. Se não tomarmos o cuidado de fortalecer os relacionamentos sociais, teremos o risco de achar que é mais fácil simplesmente prescrever medicação, prescrever psicoterapia e outros tratamentos, no entanto, uma boa convivência familiar poderia resolver ou amenizar o problema.

Carla: Resolveria, porque pegaria o sofrimento psíquico antes de chegar numa depressão.

Dr. Chao: Isso, o que nós não devemos é deixar formar essas "cicatrizes emocionais". Neste caso, pode gerar uma depressão contínua. Então essas são algumas reflexões sobre o que eu acho que nós deveríamos estar preparados como sociedade, para conviver com o chamado "mundo híbrido". Precisaríamos estruturar programas que fomentem o ensino de Etiqueta Digital, para evitar as consequências como depressão, neurose, ansiedade, dependência e outros. O ensino de pequenas dicas, principalmente produzidas por autoridades de referência na área, poderão ajudar na prevenção das doenças mentais.

Ana Luiza: Então seria importante que esta autoridade tivesse um respaldo institucional. A ideia seria sugerir pequenas intervenções que vão quebrar essas situações que, já de uma certa forma, estão calcificadas na nossa sociedade. Eu queria só retomar um ponto, que é a questão do cyberbullying. Antes, nas salas de aula, já existia o bullying, que era algo presente e fazia parte do dia a dia das escolas. Com o cyberbullying, isso causa problemas ainda maiores. Pois se antes você tinha uma sala de aula com trinta crianças, e o bullying acontecia de uma certa maneira num ambiente fechado e na presença de muitos, agora, com o cyberbullying, isso se expande, se amplia de uma forma que se perde o controle. Como é que você vê o impacto do cyberbullying?

Dr. Chao: O bullying, em geral, é limitado à abrangência de um lugar físico, como a sala de aula. O cyberbullying, porém, criou a faceta e ampliação da dúvida, do tipo, "Será?", "Será que tais pessoas viram?". Mesmo indo para um local distante, como um outro estado, eu posso ainda ter a dúvida do tipo "será que eles não viram?". Esta dúvida pode gerar ansiedade e medo. Eu diria que cyberbullying pode ser "destrutivo" como uma reação em cadeia provocada por materiais radioativos, podendo chegar até o ponto em que você não sabe mais onde começou e seus limites. A dúvida não acaba. Por exemplo, o bullying normalmente termina com o fim do ano letivo, você pode ir para uma outra turma, você pode estar livre da situação. No caso do cyberbullying, você não tem como "desaparecer" ou fugir. Portanto, o cyberbullying pode ser uma tortura contínua, adicionado da incerteza e dúvida sobre quem pode ter visto o post; e isso pode ser eterno no mundo digital. Pelo fato de não ter como ser resolvido. Isso pode gerar fobias. Nesse caso, funcionam como "gatilhos" de fobias. Assim, são potencialmente mais destrutivos que um bullying convencional. Alguns podem até entender que o bullying faz parte da infância e adolescência, inclusive até como componente do amadurecimento emocional.

Porém, uma das características do bullying é que ele é limitado, no tempo, tem um início e um fim. O cyberbullying pode não ter mais fim. Existe um pensamento que diz "É melhor um fim horrível, do que um horror sem fim". Existe um outro aspecto que podemos abordar: a questão de encontro familiar em que as pessoas estão apenas olhando para seus próprios smartphones. Qual é a percepção em relação a esta situação? Pois já vi muitas pessoas reunidas numa convivência familiar, todas apenas no WhatsApp, Facebook ou jogando games ininterruptamente, mesmo durante a refeição. Isso não seria um comportamento ofensivo? Um outro exemplo é quando dizem "Estou apenas jogando Pokémon Go". Esse tipo de comportamento não é o equivalente a dizer que você é transparente e o convívio com você não tem importância? O problema acontece quando as pessoas que tomam essa atitude passam a achar que esse é um comportamento normal. É praticamente a perda da noção de respeito. Entretanto, para eles isso não é perda de respeito. Quando uma pessoa pode perceber que essa atitude é falta de respeito? Quando conseguir sair deste patamar comportamental fazendo uma reflexão sobre o passado.

Ana Luiza: E será que, talvez, as famílias nem estejam percebendo essa situação? Porque todos estão envolvidos nesse ecossistema digital, então, se não houver uma ruptura, eles não vão perceber que dentro da própria casa cada um está vivendo isolado no seu mundo. Como você mesmo disse, os filhos estão imitando seus pais. Por isso não entendem a gravidade em que estão mergulhados.

Carla: A minha impressão é que o problema é muito mais profundo do que isso. É uma questão da sociedade. Os pais não estão sozinhos nessa aceleração e nessa falta de contato. Existe uma cobrança da sociedade toda que está caminhando dessa forma.

Dr. Chao: Sim, e não. O sim, é que a sociedade cresceu de uma forma "doentia". Como exemplo, as pessoas não conseguem se desligar do trabalho através de mensagens de WhatsApp e e-mails, nem nos seus momentos de descanso. Precisamos sempre ter cuidados em relação aos limites. Exemplo: você sai de um plantão ou do serviço e continua a responder questões relacionados com o trabalho. Isso é ultrapassar o seu momento de descanso a que você tem direito, inclusive pode ter implicações trabalhistas.

Carla: É uma mistura de profissional e pessoal...

Ana Luiza: Então a pessoa fica dependente dessa resposta imediata, que leva a essa impulsividade também.

Dr. Chao: Todo esse conjunto de redes sociais, o smartphone e o mundo da interatividade geram situações comportamentais que podem ser ruins, gerando dissociação entre o mundo real e o mundo digital, causando inclusive a ruptura dos conceitos básicos de educação comportamental e convivência. Pode, inclusive, provocar o aumento da hiperatividade e reatividade, porque nós passamos a não ter mais tempo para nós mesmos, para fazer reflexões ou descansar a mente e a emoção.

Além disso, não podemos esquecer que, entre os perigos do mundo digital, existe o fato de que as informações se tornam perpétuas, tanto que existe a expressão "Google nunca esquece". Com isso, existe uma manutenção permanente das informações e situações, o que pode ser fator gerador de ansiedades, depressões, medos, fobias e outros aspectos negativos. Além disso, existem muitos outros riscos no mundo da internet, como assédios, seduções, pessoas que fingem ser outros para aplicar golpes e mesmo grupos fechados de suicídio, anorexia, etc.

É importante distinguir o que pode e o que não deve ser exposto na internet. Não porque o mundo digital é ruim, mas porque existe falta de segurança e regras claras. A extrema liberdade pode causar problemas importantes. Seria muito bom se pudéssemos reunir instituições para capacitar pessoas, usando técnicas de microlearning (vídeos ou PodCasts de 1 a 3 minutos) do tipo: "Você sabia que isto pode causar complicações legais? Você sabia que isto pode causar depressão?" Sempre seguido de explicações. Então poderíamos criar a chamada série "Você sabia?", abordando diversos problemas.

4. Uma frase de Brené Brown9 - "É difícil odiar alguém quando vemos de perto, se aproxime" - traz a questão da necessidade de se aproximar do outro, esse olhar da empatia, de se deixar vulnerável, o que é um ponto bastante importante na construção das relações. Como a influência dos aplicativos digitais tem tornado as relações cada vez mais rarefeitas, inclusive as de ensino e aprendizagem - entre os alunos, aluno e professor, aluno e conhecimento - como lidar com essas relações para não perdemos a importância e os significados dessa aprendizagem?

Dr. Chao: Um importante problema do mundo digital é a "coisificação" e/ou a fantasia. A fantasia de que tudo está maravilhoso, e sem mostrar que aquela coisa maravilhosa é apenas uma produção artificial e que não representa o cotidiano. É uma ficção. Então começamos a perder as conexões corretas entre realidade e ficção, passando a acreditar que a ficção é a própria realidade.

Essa simplificação demasiada faz pensar que tudo é fácil e banal, o que afeta a compreensão do encadeamento dos processos. Por exemplo, as pessoas veem imagens de uma festa e apenas o breve momento da felicidade, mas um jovem sem experiência anterior de vida não compreenderia que, para aquela festa ocorrer, muitos outros trabalhos e sacrifícios tiveram que ser feitos, como planejamento, organização, despesa financeira, montagem, limpeza, contratação de equipe, etc. Assim, vendo apenas um pequeno trecho, sem ter aprendido o todo, priva a aprendizagem do encadeamento dos fatos.

Sobre o que é ser um bom professor no mundo contemporâneo tenho ponderado que: primeiro, o mundo digital ajuda, mas não é o todo, não é o mais importante, é apenas uma ferramenta; segundo, que os modernos professores não são aqueles que sabem muito (pois muitos jovens acham que os professores têm a obrigação de conhecer tudo). Não! Os bons professores são aqueles que, acima de tudo, ensinam a sua experiência de vida, que não está nos livros nem no Youtube. O professor não precisa saber tudo. Ele pode ensinar como tentar encontrar uma resposta para algo desconhecido. É o ensino da forma para identificar, analisar e confrontar as informações, promovendo a formação da maturidade crítica. Terceiro: é capaz de identificar os alunos com aptidões especiais e, por meio da sua rede de contatos, conduzir para que os estudantes tenham um progresso mais acelerado para os seus talentos específicos. Estes seriam os três grandes valores de professores, e não estão nada relacionados com informações ou conhecimentos. Estão relacionados com experiência de vida como pessoa.

Existe atualmente uma noção errônea na sociedade, dita como verdade universal, por adultos e até por professores, de que os jovens de hoje já nasceram digitais; que conhecem tudo do mundo digital. Este tipo de comportamento de educadores é perigoso, pois dá falsa noção aos jovens de que eles são como "super-heróis", criando assim um tipo de "falsos pequenos imperadores". Assim, os jovens se acham bons porque os adultos disseram que eles são ótimos, que eles são os melhores. Isso tudo pode ser prejudicial.

Os jovens de hoje apenas não têm pavor da tecnologia, mas eles não sabem usar os recursos e informações para a construção do conhecimento. Esse ensino deve ser atribuição dos adultos. Então, deveríamos evitar esse tipo de comentário simplista e substituir por "Olha, parece que você sabe usar muito bem a tecnologia. Mas, deixe-me te ensinar como usar para selecionar as informações para construir uma aprendizagem. Se eu não tenho familiaridade com a tecnologia, você pode me ajudar e eu te ensino como transformar essa informação em conhecimento".

Os professores cometem erros ao terem medo de não saberem usar algum recurso tecnológico e serem alvo de ironia pelos alunos. Quando se tem um bom vínculo de respeito entre professor e aluno, o aluno se sente feliz por ajudar. Então, é isso que nós temos que ensinar para aos professores. Você já percebeu o quanto um aluno se sente bem de poder ser o assistente do professor enquanto ele ensina alguma coisa? Nós precisamos resgatar essa percepção. Com isso, teremos bons educadores, que saberão que um dos aspectos mais importantes é criar os vínculos de confiança com os alunos.

Ana Luiza: Então essa aproximação que a Brené Brown traz e esse olhar de se deixar vulnerável no sentido de que ele pode também pedir uma ajuda ao aluno, essa relação é que vai permitir esse crescimento e o conhecimento, e não o isolamento.

5. Como a educação pode exercer um papel fundamental para que a sociedade possa lidar de forma saudável e benéfica com a era digital?

Dr. Chao: Existe uma curva que mostra a evolução entre tecnologia e educação. Ela diz que toda vez que a tecnologia vem antes que a educação, você tem dor social. Isso ocorreu com a primeira revolução industrial, quando a tecnologia veio antes da educação e, com isso, gerou-se uma série de dores socais com excessos, até que num momento houve uma inversão, em que a educação veio na frente da tecnologia. Com isso, veio a prosperidade.

Nós estamos agora no ciclo da revolução digital e da revolução da inteligência artificial, em que a educação foi jogada para trás porque a tecnologia e sua incorporação no dia a dia da sociedade foram muito rápidas. Evoluiu tão rápido que nós nunca achamos que era importante ensinar sobre o uso correto de smartphone, redes sociais, games, etc., e isso tem gerado todas essas problemáticas de vazamento de dados, cyberbullying Primeiro aspecto: precisamos rever a educação, só que mudar a grade da educação, hoje, é difícil. Então poderíamos ofertar mais cargas optativas nas escolas e ofertar cursos complementares de férias como uma atividade de formação, assim como treino esportivo, para ensinar sobre o mundo digital. Nós deveríamos oferecer cursos para professores, em forma vivencial.

Na formação dos professores, precisamos fazê-los encontrarem a sua excelência e se orgulharem. Não adianta ensinarmos apenas o uso da tecnologia, com uso de smartphone, smartwatch, realidade aumentada etc., a sobrecarga de ferramentas poderá apenas acelerar a insegurança e o receio deles em relação à tecnologia. Poderia-se perguntar para eles: "O que você acha que tem de mais importante e que pode ser ensinado aos estudantes?", "O que você acha valioso, que não está nos livros e nem nos websites?". Com o lançamento dessas dúvidas de estímulo à reflexão, poderíamos estimular o desenvolvimento do valor interno de cada professor.

O nosso problema na educação é que estamos muitas vezes repetindo apenas o que está nos livros e/ou um checklist de metas. Deveríamos mudar o modelo para focarmos no ensino dos aspectos mais significativos de um eixo temático, promover a visualização sob diferentes ângulos e estimular a elaboração de opinião. Com essa mudança, os professores não precisam ensinar detalhes, pois isso pode provocar ansiedade nos professores pela necessidade de cumprir prazos. Podemos selecionar em cada bloco os alunos que são destaques nos temas e convidá-los para serem alunos assistentes. Essa sistemática facilitará que o professor possa ensinar para melhorar toda a turma e que os alunos assistentes aprendam mais por assumirem a função de ensinar.

A simples criação de cursos em demasia pode tornar a educação mecânica e técnica demais e, com isso, gerar um ciclo de estresse entre os professores. Uma boa técnica de ensino poderia ser a avaliação do conhecimento prévio que os alunos possuem para em seguida aprofundar esses conhecimentos em vez de simplesmente colocar uma carga programática de novo conteúdo totalmente desvinculado. A esse processo poderíamos denominar de aprendizado baseado em camadas interconectadas de conhecimentos.

Ana Luiza: Um ponto que você trouxe extremamente importante sobre os cursos que são ligados à tecnologia que ensinam você a mexer no seu tablet, a entrar em aplicativos, mas falta a aproximação. Fale um pouco mais sobre os cursos que existem hoje em dia nessa área e o que você acha que pode ser feito de forma diferente.

Dr. Chao: Hoje em dia estamos trabalhando de forma muito mecânica, aprendendo apenas a mexer nos aparelhos. Cada vez mais queremos mais coisas e somos condicionados e iludidos de que tudo se faz necessário, mesmo quando não é realmente necessário. Os sistemas eletrônicos digitais em princípio acabam provocando uma ilusão e uma percepção errada de que as coisas podem vir de forma imediata, sem esforço e que tudo é apenas questão de conexão.

Neste caso a função do professor é quebrar esse excesso da banalização e ensinar o contexto, ensinar a reflexão e gerar a metacognição. É quando você vai ter que extrapolar o que você está vendo para um outro nível de pensamento. O professor é o indutor da metacognição10, é o motivador para gerar novas ideias a partir de uma base.

Por exemplo, quando eu era estudante do ensino médio, eu usava régua de cálculo para as provas. Logo depois saiu uma matéria falando sobre a liberação do uso de calculadoras nas provas, e muitos educadores criticaram e disseram que não seria uma boa ideia, que a sociedade iria ficar mais burra. Moral da história: a sociedade não ficou mais burra, ficou melhor, porque livrou o tempo de algumas coisas mecânicas para fazer outras. Essas outras atividades, os educadores somente poderiam desenvolver se sobrasse tempo.

Ana Luiza: Ter a calculadora na prova não significa que você está levando o aluno a não entender nada, porque se ele não entender a pergunta do professor e se ele não souber qual é a relação daquela pergunta e como a calculadora pode ajudar, ele não vai conseguir responder. Então, no caso, ela é apenas uma ferramenta que o aluno utiliza para ajudar a responder, e não o conhecimento em si. A calculadora não garante sozinha levar ao conhecimento.

Dr. Chao: Sim! Esta superficialização com o uso da tecnologia gera comportamentos inadequados, dando a sensação de que é só conectar e entrar no Google que você consegue as informações. Mas, se você entrar no Google e achar, não quer dizer que você vai gerar algo importante. O que você precisa saber é contextualizar, ver a coerência, confrontar o que você conseguiu de resultados com a sua situação e até formular novas ideias e estratégias.

Essa parte, que poderíamos denominar de metacognição, é papel do professor. Atualmente existem muitas críticas em relação à "industrialização da educação", em que as instituições não valorizam professores. Precisamos promover a valorização dos professores, pois hoje o que você vê são os professores funcionando como se fossem máquinas, autômatos, que obedecem um checklist de atividades. Uma vez concluído o checklist e feita uma prova (em geral de múltiplas escolhas), considera-se finalizada a educação do tópico. Não temos o estímulo à criação, à formação de maturidade crítica, dentro do processo educacional.

6. O que você acha da afirmação de Yuval Noah Harari11 no livro 21 Lições para o Século XXI: "Em um mundo soterrado por informações irrelevantes, clareza é poder". Como esta realidade influencia a entrada dos jovens no mercado de trabalho?

Dr. Chao: Em geral, uma das primeiras coisas que ensino para os meus alunos é o principio do Pareto. É muito utilizado na área de marketing, também conhecido com a regra 80/20. Mas o que é 80/20? É o princípio de que a menor parte é responsável pela maioria dos resultados. Então, por exemplo, se você tem uma livraria, provavelmente 20% dos títulos é que geram 80% das suas receitas. E os outros 80% dos livros geram apenas 20% e servem mais como background para atrair as pessoas para consumir os 20% - esse é o princípio do Pareto. Eu também ensino a curva do esquecimento. O que é curva do esquecimento? Em 25 minutos, depois que eu comecei a falar, provavelmente vocês devem ter esquecido 50% do que eu falei; e ao final do dia vocês devem ter esquecido quase 75% do que eu falei; e no dia seguinte vocês esqueceram 85%.

O que tem a ver a curva do esquecimento e o princípio de Pareto com a educação? Primeiro, se eu tenho 100% de conteúdo no meu curso, faço os alunos identificarem os 20% mais significativos, com isso, eu terei tempo suficiente para repetir os 20% três vezes. Dessa forma, terei consumido apenas 80% do tempo total e feito três revisões, o que diminui o grau de esquecimento (uma das formas de reduzir a curva do esquecimento é por revisão). Nos 20% de tempo restante, pode-se informar os 80% do conteúdo como background, pois os alunos sentirão segurança nos 20% e saberão aprofundar os conhecimentos, se precisarem, uma vez que saberão onde procurar.

Então, no mundo em que se tem informação demais, precisamos identificar sempre os 20%. Mas, e se o professor não pensa dessa forma? Bom, quando o professor faz uma prova, ele só tem uma quantidade de perguntas. Ele não vai poder fazer qualquer coisa, portanto, ele tem que selecionar as informações mais importantes para formular as perguntas e que, tecnicamente, precisariam ser concordantes com os objetivos educacionais do professor. E um bom professor tem que saber que aqueles 20% são fundamentais para a formação dos alunos, então, este é um princípio de filtragem de informação. Para isso, utilizo o recurso de "votador de opinião", em que os alunos, em grupo, precisam votar em três coisas que deveriam ter aprendido, três coisas que não deveriam esquecer e três coisas que poderiam aprimorar. Com isso, é possível criar uma matriz compatível com os objetivos educacionais do professor.

Uma das técnicas para estruturação dos conteúdos de um curso poderia ser a organização da avaliação, definindo o que é importante avaliar. Após isso é que se trabalhariam os conteúdos. Nós sempre fazemos ao contrário, na sobra do tempo é que se elaboram as provas, porque é considerado como o menos importante. A prova deveria ser vista com uma das partes mais importantes do processo educacional, porque, se você definir seus objetivos, você vai definir se as suas provas conseguem avaliar os seus objetivos. Se a sua avaliação consegue atender os seus objetivos, aí você consegue desenvolver a carga programática para que os alunos aprendam. Como existe um número limite de perguntas, você nunca vai conseguir perguntar 100% do conteúdo, portanto você deveria perguntar a partir dos seus objetivos educacionais. Esse deveria ser o papel de um bom professor. Então, neste método, podemos repetir três vezes os 20% para gerar maior retenção de conhecimento. A retenção gera autoconfiança e segurança.

Uma outra função do professor é promover diferentes olhares para os alunos, é gerenciar o equilíbrio, reconhecer talentos e oferecer oportunidades de crescimento pessoal. Nessa situação, o mundo digital facilita muito nos permitindo oferecer materiais e conexões rápidas. O importante é gerar segurança.

7. A dependência digital pode influenciar o surgimento de alguns problemas na aprendizagem, como falta de atenção, dificuldade em priorizar informações e baixa resistência a frustração. Dentro desse ecossistema, como você utliza esses mesmos dispositivos móveis para desenvolver habilidades que ajudem na correta priorização do tempo?

Dr. Chao: A primeira coisa a se dizer do mundo digital é que evolui muito rapidamente, dando a impressão de ser instantâneo e que tudo não pode esperar. A segunda é a extrema abundância de informações, e você precisa selecionar o que é relevante. Por exemplo, quando você faz uma pesquisa no Google, vêm 650.000 itens. Em consequência, você olha em geral os cinco primeiros ou a primeira página. Raras vezes, percorre-se até a centésima página, que significa que não percorreu nem um milésimo. Isso ocorre porque, na pesquisa, utilizou-se termos genéricos.

O mundo digital essencialmente provoca os seguintes comportamentos: imediatismo, superficialidade (pela exagerada abundância de informações) e a tendência a fazer cópias sem entender sobre o assunto. Assim, é comum fazer "copy-paste", e com isto, o volume dos trabalhos é irrelevante. Inclusive, talvez os professores deveriam pedir não um trabalho grande, mas avaliar a capacidade de sintetizar em três páginas as pesquisas feitas. O mundo digital gera abundância demais, repetitividade - tanto que hoje se discute muito a questão de plágios de textos - e a hiper-reatividade (inclusive o WhatsApp provoca grandes reatividades). Eu diria que todos os recursos digitais são bem vindos desde que o professor tenha o domínio do lado cognitivo que aquilo pode gerar.

O WhatsApp tem seu valor e o e-mail também tem seu valor, assim como o Facebook e os outros recursos. Não estou descartando o ensino de redes sociais, apenas enfatizo a necessidade de ensinar a refletir sobre cada ferramenta digital e quais as habilidades e consequências que podem provocar. O que eu vejo, muita vezes, é que os professores se tornam apenas encaminhadores de tarefas: encaminham um conteúdo, mas eles não articulam o propósito educacional. Aí eu voltaria à ideia: antes de usar recursos digitais, desenvolva seu propósito educacional para depois enxergar características da ferramenta e para que serve.

Ana Luiza: Esse excesso de informação, excesso de disponibilidade nos aplicativos, e-mails, Google, redes sociais, tem impacto na aprendizagem?

Dr. Chao: Bom, eu acho que na verdade os alunos acabam perdendo muito tempo. Você entra no site, vai criando hiperlink, de repente você nem sabe onde você está. Então a primeira coisa é desenvolver o conceito de framework do que você vai fazer e tentar não sair para ter uma linha de orientação.

Ana Luiza: Então isso seria, por exemplo, o professor ter que estimular o aluno a desenvolver esse framework para que ele não se perca nesse caminho?

Dr. Chao: É, porque se não, a massa de informação faz ele se perder. É preciso fazer uma formação com o foco na etiqueta comportamental, como, por exemplo, se desconectar do aparelho. Poderíamos criar oficinas que façam com que os alunos deixem de dar tanta importância ao celular. Posso mandar uma mensagem: vamos brincar de quem consegue resistir por 30 minutos sem olhar para o celular. Depois, liberamos o acesso e perguntamos: nesses 30 minutos de desconexão aconteceu alguma coisa de extrema urgência que mudaria a sua vida? Ah, não? Então, porque precisa ver de forma compulsiva? A ideia é criar uma cadeia de exercícios de resiliência.

Uma simulação prática de teatralização para a questão das mensagens instantâneas: poderíamos criar um jogo, simulando um grupo de WhatsApp, criar uma série de cartinhas que funcionariam como mensagens para serem sorteadas ao acaso para leitura. Assim, os alunos poderiam ler a mensagem sorteada, e o outro, que ouve, pode explicar como interpretou a mensagem. Isso é uma técnica que nós podemos realizar em grupo para demonstrar que mal-entendidos podem ser causados por mensagens com duplos sentidos.

Uma outra técnica que acho interessante seria colocar um boneco gigante entre dois alunos e o restante dos alunos sentarem em volta. Eles sorteiam mensagens e falam em voz alta, uma analogia das mensagens do WhatsApp. Os dois alunos que estão do lado do boneco descrevem o que o boneco pensou ao ouvir a mensagem. Isso poderia demonstrar como mensagens podem provocar reações emocionais diferentes. Para simular o imediatismo, os alunos que representam a "consciência" do boneco falam uma mensagem e ninguém responde. Podem descrever o que o boneco está pensando: "ele está ansioso", "porque não respondem?".

Essa roda de conversa permite observar os comportamentos, porque o maior problema é a nossa interpretação, e não apenas os fatos. Os fatos são geradores de complicações, porém a nossa interpretação amplia as consequências.

Ana Luiza: Então são essas teatralizações, que são utilizadas através de um dispositivo móvel, que vão permitir que a criança ou jovem perceba os efeitos da utilização excessiva das redes sociais ou dos smartphones?

Dr. Chao: Porque se ninguém ensina isso e se só apresentar em Power Point, isso tem um valor. A outra é viver no cenário.

Carla: É diferente o aprender quando a gente sente. Quando vai para o corpo também.

Ana Luiza: Essa contribuição que você está nos dando é muito importante, porque hoje em dia somos bombardeados com notícias, comentários e opiniões o tempo todo, mas é necessário que você "sinta" o conteúdo que é recebido para que realmente chacoalhe, senão viram apenas informações isoladas. Muito importante que as pessoas realmente consigam perceber todos esses riscos que estão envolvidos. Uma coisa é você aproveitar os benefícios, mas você também deve entender o que que está por detrás, para que você possa se apropriar mais dos benefícios e diminuir essa escala do risco.

Dr. Chao: Os nossos problemas atuais com o exagero no uso de recursos do mundo digital, sem uma educação mínima, poderiam ser vistos como equivalente ao consumo do álcool na década de 1980. Nós não estamos atentos para os malefícios e os riscos. O álcool e o fumo na década de 1980 para a de 1990 também não tinham uma norma de conduta saudável, tanto que era rotina ir comprar uma passagem aérea, e a recepcionista perguntar se você gostaria de área de fumantes ou não-fumantes. O fumante era da poltrona 15 para trás, não fumante era de 1 a 14. Hoje alguém aceita isso? Não, porque foi feita uma educação social. E é isso que eu acho que nós temos que fazer: uma educação comportamental para o mundo digital levando a que o mundo digital produza mais efeitos benéficos do que consequências danosas, e também diminuir a reatividade ou a sensação de urgência, como se o celular mandasse alguma coisa.

8. Um dos aspectos que temos observado na maioria das crianças hoje em dia é o fascínio pelo mundo digital. Nós, profissionais da saúde e educação, entendemos o quanto a primeira infância é uma fase extremamente importante para o desenvolvimento da linguagem, motor, emocional, social e cognitivo. Como orientar os pais, educadores e responsáveis a lidar com essa realidade?

Dr. Chao: A tentação pela comodidade é sempre maior. Atualmente, se você acostumar uma criança, desde bebê, a comer chocolate ou coisas doces, não é possível reclamar que na fase da adolescência ela desenvolva um paladar somente para doces e alimentos hipercalóricos. Os pais precisam promover uma educação alimentar de forma divertida, como a de desenhar num quadro branco o planejamento de atividades. É importante lembrar que uma criança, acima de tudo, gosta de atividades que as encantem. Não adiante falar: sai para brincar! Brincar do quê? Com quem? Se você não brinca junto, não consegue dar o exemplo e nem consegue ajudar as crianças a se organizarem. Não adianta apenas falar.

Então é preciso que, primeiramente, os pais pensem em como criar uma comunidade de interação entre as crianças, entre um pai e outro, conversando com os filhos para gerar uma interação em grupo, organizando alguma atividade em conjunto, pelo menos uma.

Um outro aspecto é em relação ao videogame. Caso se use esse aparelho, procure videogames que estimulem movimentos e que permitam o desenvolvimento de atividades envolvendo duas ou três pessoas simultaneamente. Os games baseados em smartphones, eu não acho bom, porque são muito individuais. Posso dizer que crianças com 2 ou 3 anos que usam em demasia tablet ou smartphone possuem coordenação motora muito pior quando comparadas com crianças da mesma idade e que brincam entre si, que sobem no escorregador, tropeçam ou algo parecido.

Ana Luiza: Uma questão que eu tenho muito forte é que, por exemplo, hoje você pode dar a uma criança um tablet, e ela vai virando a página digitalmente e vai escutando a história. Por outro lado, se a mãe ou o pai sentam ao lado da criança e contam a história, vai haver uma interação, uma troca de olhar, vai gerar uma conversa, uma reflexão que na verdade o tablet sozinho não proporciona. O tablet oferece a informação, a contação da história, mas ele não traz essa interação, esse afeto, o abraço, aquele aconchego de escutar a história no colo. A diferença de quando a criança simplesmente escuta palavras através do tablet e de quando estas palavras são aprendidas através da interação. Um exemplo é que ao mesmo tempo em que a mãe está cozinhando, ela está com a criança e conta algo sobre seu alimento favorito e como gostava de comê-lo na infância. Aquele vocabulário a criança aprende de forma significativa e cria uma memória afetiva.

Dr. Chao: A maior questão é que hoje os pais estão cada vez menos atentos para esses prazeres do convívio familiar, é muito mais fácil pais jovens estarem olhando seus smartphones e largarem seus filhos no chão ou no chiqueirinho para eles brincarem. E se vai para um restaurante e a criança berra, dá-se um tablet ou smartphone. Porque tudo ficou muito simples, temos cada vez menos aquela dedicação de convivência de outrora. De fato, uma grande parte de pais jovens também possuem hábitos errados em relação ao uso de dispositivos eletrônicos.

Precisa-se ensinar os pais também. Vocês já perceberam tantos momentos que os pais estão perdendo, só olhando o celular? Então, precisam ter um treino e talvez sentir prazer em gravar a criança correndo, brincando e mostrar também aos pais a quantidade de tempo perdido pelo uso de smartphone. Uma grande quantidade de pais vão para a zona de conforto do tipo: eu já fiz o que precisava, está com a fralda limpa, tem brinquedos que não machucam, está em um local protegido, tem coisas para se distrair e se precisar, eu estou do lado, então se sentem com a responsabilidade terminada. Mas será que isso é ser pai ou mãe? Ou você pode fazer mais atividades de convivência? Os pais precisam antes ser uma referência entre o que eles fazem e o que desejam que os filhos façam.

Hoje o comum da sociedade é fazer tudo que é mais fácil. E tudo que você faz, você acha que é mais importante do que o outro, então nós precisamos refazer um código de etiqueta para a sociedade ter um convívio bom, eu até acho que, se isso se transformasse em um curso, seria bom porque à medida que as pessoas avançam elas vão ver que a vida delas está gradativamente se deteriorando. Se você fizesse um curso de estilo de vida e ajudasse a recuperar 20% do tempo desperdiçado inutilmente da vida, possivelmente muitas pessoas teriam interesse. Possivelmente 90% do tempo que perdemos de forma inconsciente, poderíamos recuperar e utilizar para um propósito mais útil sem causar consequência alguma na nossa rotina do dia a dia. A sensação de falta de tempo e a aceleração de tempo é porque impusemos uma tecnologia que consome sistematicamente o nosso tempo sem que nós percebamos. Atividades "parasitárias" sem importância.

Ana Luiza: Pensando em todas as perguntas e fazendo uma reflexão, a educação é fundamental para que possamos nos apropriar e utilizar de uma forma inteligente de todos esses avanços.

Dr. Chao: A revolução industrial provocou um caos numa fase da história, até que se conseguiu parametrizar e a educação veio na frente para organizar como a tecnologia deveria funcionar. Na revolução digital, se não modernizarmos rapidamente a educação, possivelmente a tecnologia provocará um caos. Então é urgente criar e fortalecer uma linha de educação que não é mais no formato convencional. Precisamos desenvolver um método de educação por vivência. Nós precisamos promover a aprendizagem por experiência e relacionando ao dia a dia, e não uma educação baseada apenas em formato de exposição de informação. A educação expositiva é uma educação que foi utilizada na revolução industrial por causa das fábricas que eram organizadas em linhas de montagens. Hoje nós estamos em um processo em que temos que fazer uma imersão. Um outro aspecto é promover o desenvolvimento da maturidade crítica e de opinião por meio da educação sobre um assunto a partir de diferentes olhares, e não baseada numa única opinião. Isso é a educação moderna gerando múltiplos olhares. Gerando-se a imersão, a pessoa constrói a sua opinião. É gerar etiqueta comportamental.

9. O futuro digital pode ser mais humano? O que você vislumbra para o futuro das crianças e a relação com o mundo digital?

Dr. Chao: A digitalização da sociedade pode ser humana. Suponha que uma pessoa tenha parentes vivendo no Canadá. Quando está com saudade, simplesmente pode fazer uma videochamada e ver e conversar com os parentes. Isso é uma humanização proporcionada pela tecnologia. Você pode estar doente, e após a consulta com seu médico ele faz uma videochamada para perguntar se está tudo bem... Esse é um reforço humano facilitado pela tecnologia digital. Então, o mundo digital por si só não desumaniza. O seu uso incorreto ou banalizado, por pessoas pouco humanas, é que desumaniza. Esses são dois exemplos de situações. Então, o meio digital proporciona a construção de rede de conexão entre pessoas. O risco seria ocorrer uma ruptura no comportamento presencial em decorrência do uso inadequado dos recursos digitais.

Inclusive, na área de telemedicina, já houve muitos jornalistas que me perguntaram se a telemedicina desumaniza. Respondi: "Não". A telemedicina nunca desumanizou, e por que você faz esta pergunta? Coloco como exemplo: uma lente de aumento nunca gerou defeito algum, ela apenas amplia e permite você ver de forma mais nítida o defeito, porque fez a ampliação. Por analogia, poderíamos pensar que a lente de aumento seria a telemedicina, o mundo digital. Se uma pessoa é desumana o mundo digital amplia a desumanidade.

Então qual o nosso papel? Ensinar pessoas a serem mais humanas para que no mundo digital elas ampliem sua humanização. O mundo digital nunca desumanizou por si só, as pessoas é que ao se tornaram superficiais e hipereativas, e elas agora têm um mundo digital que amplia esse comportamento, provocando a desumanização. Assim, é muito importante ensinar as crianças os valores comportamentais corretos para que elas não banalizem pelo uso os recursos digitais. É preciso preservar os relacionamentos humanos. O mundo híbrido simplesmente acontecerá.

10. Você acha importante o "detox tecnológico"?

Dr. Chao: Hoje eu acho que 80% das pessoas vão precisar, existem 20% que não. Agora existe uma outra categoria que precisa da inclusão digital para melhorar sua vida, então 80% dos jovens e crianças precisam fazer esse detox, inclusive com toda essa experiência vivencial, para saberem se controlar, perceberem que não existia sentido para as ansiedades, serem prudentes e enxergarem o futuro de forma menos reativa e mais reflexiva.

Às vezes oriento para meus alunos: lembrem-se que todos os seus exageros que você colocam hoje nas redes sociais poderão ser os responsáveis por vocês serem reprovados numa seleção de emprego ou em algum concurso daqui a dez anos, porque a internet não esquece e sempre terá uma forma de achar novamente os fatos. Então, os jovens precisam ter limites do que é postado e avaliar muito bem sobre o que é escrito e expresso. As faculdades deveriam obrigatoriamente incluir umas atividades de detox digital com ensino de Ética e Responsabilidade Digital, enquanto que as crianças precisam aprender a ter etiqueta.

Do outro lado, existe um segmento que vai precisar aprender a usar os recursos digitais. É o público de idosos. O mundo digital possibilita que eles saiam do isolamento social, emocional e intelectual, o que pode diminuir depressão, ansiedade e demência. Em relação aos adolescentes e jovens adultos, estes precisam aprender a serem mais moderados.

Então, nosso cenário atual é que estamos totalmente vinculados com sistemas digitais e eletrônicos e temos uma dependência quase que absoluta na sociedade moderna. Embora as redes sociais e o uso exagerado de smartphones sejam um bom componente de vício, por outro lado também estamos cada vez mais dependentes por concentrar diversas atividades nestes aparelhos, como a nossa agenda de compromissos, o aplicativo do internet banking, agenda de contatos, máquina fotográfica e galeria de fotos, que estão em nossos smartphones.

Ana Luiza: É um processo de construção de um hábito, quando você pega seu celular para procurar um endereço você não vai ficar capturado porque você viu que seu whatsapp tem 8 mensagens. Como podemos lidar com estas situações do dia a dia sem nos perdemos dentro de tantas distrações digitais?

Dr. Chao: Você precisa definir suas prioridades e objetivos, e você tem que saber que tem coisas que você pode adiar, desenvolvendo a resiliência à compulsão digital. É uma linha de pesquisa muito interessante dentro do cenário social moderno, onde se percebe o agravamento dos problemas de saúde mental.

Ana Luiza: Obrigada professor Chao e Maíra por esta oportunidade tão importante de ampliarmos esta discussão.

Quando finalizamos a edição da entrevista, me lembrei de uma frase que o Chao nos disse: "Sempre que a tecnologia vem à frente da educação, temos a dor social". Nós passamos pela economia agrícola, industrial, tecnológica e agora estamos vivendo a economia conectada com automação robótica e a inteligência artificial. As habilidades que mais precisamos desenvolver são habilidades humanas que as máquinas não possuem, como curiosidade, criatividade, análise crítica, contextualização e empatia. Essas habilidades são essenciais ao longo da vida.

 

 

1 Chao Lung Wen – professor associado da Faculdade de Medicina da USP e chefe da disciplina de Telemedicina; líder do Grupo de Pesquisa USP em Telemedicina, Tecnologias Educacionais Interativas e eHealth no CNPq/MCTIC; responsável pelo Curso de Telemedicina para Pós-Graduação stricto sensu da FMUSP; idealizador e coordenador do projeto Jovem Doutor (Saúde nas Escolas) e do Projeto Homem Virtual (computação gráfica e impressão 3D do corpo humano).
2 Maíra Lie Chao – formada em comunicação e pós-graduação em direção de artes: designer de Comunicação Educacional; participante do projeto Jovem Doutor; e integrante do Grupo de Pesquisa em Telemedicina, Tecnologias Educacionais Interativas e eHealth no CNPq/MCTIC.
3 INPD – Instituto Nacional de Psiquiatria do Desenvolvimento para Crianças e Adolescentes (www.inpd.org.br).
4 USP – Universidade de São Paulo (www.usp.br).
5 UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (www.ufrgs.br).
6 Webinar é um tipo de web conferência no qual a comunicação é de uma via apenas, ou seja, somente uma pessoa se expressa e as outras assistem. A interação entre os participantes é limitada apenas ao chat, de modo que eles podem conversar entre si ou enviar perguntas ao palestrante.
7 Ana Luiza Colagrossi – bacharel em Educação pela PUC-RJ; mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade de Nova York (NYU); pós-graduação em Neuropsicopedagogia pela FACON; doutoranda em Ciências Médicas pelo Instituto D’OR de pesquisa e ensino. Possui experiência em sala de aula nos EUA e no Brasil, além de experiência clínica com crianças com dificuldades de aprendizagem. Membro da Equipe Brasileira do Ilab-NCPI e Consultora para projetos em educação em organizações nacionais e internacionais. Professora de Educação Socioemocional e da pós-graduação em Psicopedagogia do Instituto Sedes Sapientiae.
8 Carla Sachs – formada em Psicologia, Pedagogia e pós-graduada em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Experiência em atuar como docente em Educação Infantil e Ensino Fundamental I. Professora auxiliar na pós-graduação em Psicopedagogia no Instituto Sedes Sapientiae e psicoterapeuta clínica.
9 Dra. Brené Brown – Assistente Social e professora da Universidade de Houston
10 Metacognição: controle consciente de próprio processo de aprendizagem.
11 Harari, Yuval Noah: 21 Lições para o Século 21 – Companhia das Letras, Agosto 2018.

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