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Construção psicopedagógica

Print version ISSN 1415-6954On-line version ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.27 no.28 São Paulo  2019

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Entre o mostrar e o dizer: considerações sobre a tarefa no diagnóstico clínico infantil

 

Between showing and saying: considerations about the task in children's clinical diagnosis

 

 

Rafaela Vilela1

Colégio de Aplicação - UFRJ

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo refletir sobre o fazer como forma de mostrar e dizer no diagnóstico clínico psicopedagógico. Para isso, trouxe foco e luz para a tarefa, entendendo-a como uma produção lúdica que possibilita a apropriação do que já se conhece e a construção do que ainda não se sabe. O que desvelam as brincadeiras, os desenhos e os jogos realizados no diagnóstico clínico infantil? Para a construção dessa pesquisa qualitativa, realizou-se um diagnóstico clínico em um Instituto de Educação, localizado na cidade do Rio de Janeiro, entre os meses de maio e julho de 2013. O estudo revelou o desenho e a brincadeira como linguagens potentes da criança para dizer sobre seus sentimentos, desejos e anseios - latentes ou explícitos - e sobre sua postura frente a construção do conhecimento.

Palavras-chave: Diagnóstico clínico infantil, Prática psicopedagógica; Tarefa.


ABSTRACT

This study aimed to reflect about the doing as a way to show and tell in psychopedagogical clinical diagnosis. For this, I brought focus and light to the task, understanding it as a playful production that allows the appropriation of what is already known and the construction of what is not yet known. What do the games and drawings made in the children's clinical diagnosis disclose? For the construction of this qualitative research, a clinical diagnosis was made at an Institute of Education, located in the city of Rio de Janeiro, between May and July 2013. The study revealed the drawing and the game as child's powerful languages to tell about their feelings, desires and yearnings - latent or explicit - and their attitude towards the construction of knowledge.

Keywords:: Child clinical diagnosis, Psychopedagogical practice, Task.


 

 

Introdução

A Psicopedagogia é ainda um campo científico em construção. O termo construir, ao mesmo tempo que pode significar edificar, reunir, desenhar, compor, institui a ideia de desconstrução. No encontro com a arte, na escultura de um bloco, encontramos uma alegoria para afirmar que o conhecimento não é um constante acrescentar, mas a quebra de certezas e a instauração de dúvidas. Um processo de construção e reconstrução contínuo.

Almeida e Silva (1998), nesta perspectiva de quebra e ruptura, busca no paradigma da falta, da incerteza e da incompletude bases teóricas que fundamentem a Psicopedagogia enquanto ciência. Neste contexto, propõe considerar o homem, enquanto ser em processo de construção do conhecimento, - o ser cognoscente - como objeto da Psicopedagogia. Para isso, traça uma concepção de sujeito complexo, onde razão, desejo e relação se articulam em uma espiral dialógica.

Considerando o sujeito complexo e pluridimensional como sujeito do conhecimento, entende-se que o objetivo da Psicopedagogia é a busca da construção da autonomia - a singularidade e a originalidade - de cada sujeito. Nesse sentido, o papel da Psicopedagogia é identificar e clarificar os obstáculos que estão impedindo essa construção para reconstruir a relação com o saber. É nesse sentido que o atendimento psicopedagógico busca, através de uma tarefa, perceber entre o discurso verbal e o extra-verbal as dificuldades que estão impedindo o caminho.

Com o objetivo de refletir sobre o fazer como forma de mostrar e dizer no diagnóstico clínico psicopedagógico, questiono: o que a tarefa desvela sobre a aprendizagem do ser cognoscente no diagnóstico clínico infantil? A revisão bibliográfica foi ponto de partida para afirmar a relevância do estudo, delimitar a investigação e buscar interlocutores que trouxessem contribuições para ampliar a discussão sobre a escuta e o olhar no campo da psicopedagogia. Após a revisão, foi realizado um diagnóstico clínico entre os meses de maio e julho de 2013, em um Instituto de Educação, localizado na cidade do Rio de Janeiro. As sessões contaram com apoio de uma observadora e uma supervisora que contribuíram tanto para a produção dos registros do atendimento em caderno de campo, quanto para as análises e considerações acerca do diagnóstico.

O presente trabalho está estruturado em quatro partes. A primeira discute o processo de construção do saber e traz considerações acerca do diagnóstico. A segunda destaca a importância de olhar, escutar, falar e registrar no fazer psicopedagógico. A terceira analisa, a partir de dois eventos ocorridos no diagnóstico, a imbricada relação entre o mostrar e o dizer pela tarefa. Por fim, constam notas finais a respeito das práticas psicopedagógicas.

 

Diagnóstico: por entre saberes e não saberes

Paulo Freire (1989) aponta que aprender é um ato constante de renovação, um lançar-se sobre o novo. São inícios e reinícios. Lançamentos que provocam e alteram nossas certezas e verdades e que tornam o desconhecido convite ou cancela, movimento que pode impulsionar o voo ou parar o percurso.

Nessa perspectiva, aprender não se refere somente a aquisição de conhecimentos. É também, mas é além. Aprender diz sobre a nossa postura frente ao outro, diz dos saberes que nos atravessam e também dos não saberes que nos constituem. Enquanto seres cognoscentes, aprender envolve articular as dimensões cognitiva, afetiva e relacional em busca da construção de uma autonomia de pensamento. Uma construção dialógica e alteritária.

Fernández (1991, p. 129) destaca que "saber não é o mesmo que conhecer". Para a autora, o conhecimento pode ser adquirido no contato com livros, através da compreensão de conceitos e, por isso, tem o poder de ser sistematizado. O saber, por sua vez, é algo que só se adquire na relação com o outro e tem uma relação direta com a experiência. O saber envolve um processo de criação a partir dos conhecimentos já adquiridos.

Para Vigotski (2009), a criação parte de um processo que consiste em combinar e modificar algo que já conhecemos. Nesse viés, não se cria do nada. O novo é sempre fruto da reelaboração de elementos de nossas experiências anteriores. Porém, esse não é um processo simples, pois envolve a constante tensão entre o saber e o não saber. Uma tensão que necessita de ousadia e coragem para transformar o velho em novo, sem descartá-lo.

Nesse sentido, o processo de criação está intimamente relacionado a repetição/imitação. Ações que, apesar de muitas vezes serem utilizadas como sinônimos de reproduzir, quando realizadas pelo homem tornam-se uma forma de apropriação. Freire (2008, p. 73) contribui para esse entendimento apontando que a imitação se relaciona ao processo de formação, posto que "aprendemos sempre a partir de um modelo, nunca do nada. Não existe ação educativa que prescinda de modelos". Para a autora, a relação com o modelo do educador proporciona ao educando três movimentos de imitação: a reprodução - onde o educando tem como desafio o fazer igual -, a representação - onde já existe a percepção do que refere-se ao modelo e do que já foi construído - e a recriação - movimento em que ocorre a superação do modelo, entendendo com isso que superar modelos não significa descartá-los. Freire (2008, p. 78) aponta que "superamos modelos, reconhecendo o quanto foram importantes e fundadores de nosso saber atual, para avançarmos, ampliarmos nossos conhecimento, na construção de nosso voo (pensamento) próprio, único". A construção da autonomia por parte do ser cognoscente depende, assim, da nossa relação com os modelos educativos, visto que a aprendizagem envolve sempre dois sujeitos.

O diagnóstico psicopedagógico atua na possibilidade restabelecer a relação entre ensinante e aprendente, restaurando o vínculo com o aprender e reconstruindo o processo de construção do saber. Nesse viés, o diagnóstico "trata-se do não aprender, do aprender com dificuldade ou lentamente, do não revelar o que aprendeu, do fugir de situações de possível aprendizagem" (WEISS, 2012, p. 31).

Visca (1987) afirma que o diagnóstico começa com a consulta inicial e se encerra com a devolução. Os entremeios que permeiam o início e o fim são pautados em propostas que possam desvelar o modo com que os sujeitos se relacionam com o aprender.

Fernández (1991) considera como sintomas ou fraturas as dificuldades no processo de aprendizagem, onde necessariamente o organismo, o corpo, a inteligência e o desejo se manifestam. É por meio dessa trama que "vamos encontrar desenhados a significação do aprender, o modo de circulação do conhecimento e do saber dentro do grupo familiar, e qual é o papel atribuído à criança em sua família" (p. 39). É necessário investigar a posição da criança "frente aos segredos, frente ao não dito, frente à diferença e à distância que há entre o imaginário e o real, já que justamente a impossibilidade de simbolizar é o que provoca a fratura ou o sintoma" (p. 40). Assim, o diagnóstico deve ter a mesma função que a rede para o equilibrista. É portanto a base, o apoio, que dará suporte ao trabalho psicopedagógico.

O diagnóstico psicopedagógico, de acordo com Weiss (2012, p. 33), envolve dois grandes eixos de análise: o horizontal e o vertical. O eixo horizontal refere-se a uma visão do paciente no tempo presente e busca entender o desvio existente no aqui e agora. O eixo vertical, por sua vez, busca indícios no histórico do sujeito, nas "diferentes 'histórias' que que se integram na grande história do paciente".

Nesse sentido, há diferentes sequências utilizadas para o diagnóstico psicopedagógico clínico, porém todas elas incluem: entrevista, anamnese, avaliação da produção pedagógica e dos vínculos com os objetos de aprendizagem escolar, avaliação da construção e do funcionamento das estruturas cognitivas, sessões para brincar e criar. Esses momentos possibilitam ao psicopedagogo criar uma matriz diagnóstica que será apresentada, juntamente com o eixo-condutor para o atendimento psicopedagógico, durante uma devolução para o paciente e para a família.

É importante frisar que "o sucesso de um diagnóstico não reside no grande número de instrumentos utilizados, mas na competência e sensibilidade do terapeuta em explorar a multiplicidade de aspectos revelados em cada situação" (WEISS, 2012, p. 34). É através dessa postura, da escuta e do olhar psicopedagógico, que será possível perceber o que não está visível, o que não foi dito. Para continuar o diálogo, tecemos a seguir a contextualização do diagnóstico de Ivana.

 

Dados do Diagnóstico

Equipe de trabalho: O diagnóstico foi conduzido por duas pessoas, uma responsável pelo atendimento e outra pela observação. Durante todo o diagnóstico, houve também espaço para encontros semanais com a supervisora.

Elementos de enquadre: Os atendimentos ocorreram em um Instituto de Educação, localizado na cidade do Rio de Janeiro, no período de 14/05/2013 a 16/07/2013. Os encontros ocorreram às terças-feiras, no horário de 9h às 10h, com frequência semanal.

Dados do sujeito: Optou-se pelo uso de um nome fictício. Ivana é do sexo feminino e, no período do diagnóstico, tinha 8 anos. Estudava no 3º ano do Ensino Fundamental em uma Escola Municipal localizada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Apesar da origem humilde, pai motorista e mãe doméstica, Ivana mostrava-se muito vaidosa. Com pais separados, morava na maior parte da semana na casa onde a mãe trabalhava, em um endereço nobre. Nos finais de semana passeava com o pai e brincava em sua casa na zona norte.

Queixa inicial apresentada: A mãe mostrou-se preocupada com a aprendizagem de Ivana. De acordo com o seu relato, a filha não acompanhava a turma. Afirmou que a alfabetização não foi boa, pois a menina ficou quase um ano sem professora na escola. Nas palavras da mãe: "Ivana não conseguia copiar tudo o que a professora colocava no quadro, ficando sempre atrasada", sendo a maior dificuldade em Português. O encaminhamento não foi feito pela escola, a mãe decidiu procurar o instituto a partir de uma conversa com a ex-diretora da antiga escola.

Etapas diagnósticas programadas: O diagnóstico contou com oito encontros. Seis atendimentos onde foram realizados: entrevista com a família, EOCA, prova operatória, prova projetiva, prova pedagógica e anamnese. Depois desta matriz diagnóstica, discutimos os resultados em supervisão com o intuito de elaborar um documento que apresentasse tanto as questões observadas nos atendimentos quanto os encaminhamentos sugeridos pela equipe. Definido o eixo-condutor para o atendimento psicopedagógico, realizamos outras duas sessões: a devolução para a família e outra para a paciente.

 

Olhar, escutar, falar e registrar: reflexões sobre o fazer psicopedagógico

O fazer psicopedagógico pressupõe a relação. O conhecimento é construído a partir do diálogo entre eu e o outro, pois é esse outro que nos oferece um acabamento provisório, visto que somos sujeitos inconclusos, em constante transformação (BAKHTIN, 2011) É através dessa relação de alteridade que nos constituímos. "A nossa vida - assim como aquilo que sabemos dela - carece dos contornos que só o outro pode nos oferecer" (PEREIRA, 2013, p. 7). Nessa concepção, somos muitos e um só. Muitos, pois somos compostos por uma rede de outros sujeitos que, através do olhar e da palavra, nos apresentam uma perspectiva que não somos capazes de ver. Também somos únicos, posto que trazemos como impressão digital marcas e encontros singulares; modos distintos de acolher e de nos deixarmos afetar por esse mosaico polifônico e polissêmico de experiências.

Olhar, escutar e falar são atos essenciais na prática psicopedagógica. Atos que reafirmam o caráter dialógico e que, ao oferecerem tempos e espaços para a relação, possibilitam compreender o que não está visível, o que muitas vezes não consegue ser dito. O registro escrito, por sua vez, oferece ao psicopedagogo a possibilidade de olhar novamente para os discursos do paciente e perceber as recorrências e vazios. Ações que permitem observar e destacar as potências do sujeito, buscar nelas um outro modelo de aprendizagem, um novo encontro com o conhecimento. Potências singulares que nos atravessam e que só se sobressaem como originais, preciosidades da nossa história na e pela percepção do outro.

O processo de construção do conhecimento está ancorado em uma dialética entre autonomia e heteronomia, pois ao mesmo tempo em que o ser cognoscente é pluridimensional - determinado pelas dimensões racional, afetiva e relacional, ele é também sujeito de construção, protagonista da própria história, visto que é capaz de introduzir algo de si no todo instituído. Essa dialética se instaura na relação com o outro através de uma perspectiva dialógica, onde o discurso, ao entrelaçar o dizer e o ouvir, encontra a possibilidade de tornar-se composto, de criar novos sentidos.

Ver, ouvir e dizer são assim modos de relação com outro, mas, sobretudo, de relação com a nossa própria experiência. "Escutar envolve perceber o ponto de vista do outro (diferente ou similar ao nosso), abrir-se para o entendimento de sua hipótese, identificar-se com sua hipótese para a compreensão do seu desejo" (FEIRE, 2008, p. 32-33). Entretanto, para Freire (2008), "não fomos educados a olhar pensando o mundo, a realidade, nós mesmos" (p. 45), apontando que a construção de um olhar sensível e pensante requer observação.

Desenvolver uma postura observadora, que ancora-se na atenção e consiste em um movimento de sair de si para ver o outro, em uma perspectiva dialógica e alteritária, é o que nos aproxima da reflexão, posto que observar envolve ver e escutar o outro e a nós mesmos. Uma postura que inscreve-se também na prática psicopedagógica.

Compreendendo a aprendizagem como um processo possível a partir da articulação das dimensões do desejo, da razão e da relação no ser cognoscente ressaltamos que "observar, olhar o outro e a si próprio, significa estar atento, buscando o significado do desejo, acompanhando o ritmo do outro, buscando sintonia com este" (FREIRE, 2008, p. 32). Práticas que acreditam que atendimento psicopedagógico pode ser compreendido como um lugar de construção, onde faz-se necessário promover tempo/lugar para "recuperar o prazer de aprender" (FERNÁNDEZ, 1991, p. 18).

Nesse viés, para Freire (2008, p. 46), "ver e ouvir demanda implicação, entrega ao outro. (...) Olhar que convoca atenção, presença e uma abertura de aprendiz que se observa (se estuda) em sua própria história". O terapeuta, a partir de uma escuta que não qualifica ou desqualifica, confere ao outro a possibilidade de organizar-se. Nesse sentido, ao invés de investigar e prender-se tanto nas informações - no "quando" -, o psicopedagogo necessita buscar entender o "como", distanciando-se, muitas vezes, do discurso lógico. Assim, "chegaremos ao saber, nós e o paciente, mais pelos desdobramentos de uma cena do que pela cronologia dos dados" (FERNÁNDEZ, 1991, p. 125).

É somente a partir da construção e da reconstrução de vínculos que faz-se possível buscar em cada indivíduo o extraordinário, contribuindo para que os sujeitos possam se perceber e serem percebidos de uma nova forma. É por esse viés que a psicopedagogia instaura a reconstrução, a integração e a expansão do ser cognoscente. Essa postura envolve que o psicopedagogo não se situe do lado de fora como um mero observante, mas como observador participante, alguém capaz de se incluir no processo e de estar junto ao paciente para o mergulho na tarefa. Nesse sentido, ressalta-se o valor do registro como um movimento de reconstruir os olhares e os diálogos presentes no encontro. Um registro duplo, realizado tanto pelo paciente - na e pela tarefa, quanto pelo psicopedagogo - através dos escritos da observação do atendimento.

Para Vigotski (2009) o sujeito só consegue tomar consciência do seu próprio pensamento quando consegue transferir suas construções e operações do plano da ação para o plano da linguagem. "Mediados pelo registro, deixamos nossa marca no mundo" (FREIRE, 2008, p. 54). Assim, a sistematização do pensamento, possível através de diferentes linguagens, oferece ao sujeito a capacidade de reflexão, tornando-o autor do seu próprio processo de construção do conhecimento.

Apesar do registro escrito não ser o único recurso de apreensão da nossa história, a escrita "materializa, dá concretude ao pensamento" (FREIRE, 2008, p. 55), pois quando escrevemos exercitamos as ações de classificação, ordenação e análise, articulando e sintetizando saberes e não saberes. O escrito oferece ainda a possibilidade de "tomar distância para re-ver, re-ler, re-avaliar a prática cotidiana e, deste modo, nos apropriarmos dela" (FREIRE, 1986, p. 64). Na psicopedagogia o registro pode ser entendido como um modo de apreender tanto o discurso verbal quanto o extra-verbal. Uma escrita que proporciona ao psicopedagogo a possibilidade de deslocar-se em um movimento exotópico (BAKHTIN, 2011) e, a partir deste lugar outro, externo, ser capaz de deter-se nas dobras e fraturas do discurso do paciente, observando-as e relacionando-as a sua própria história.

A relação exotópica, ao considerar as vozes e os silêncios dos sujeitos, partilha da concepção de que esse exercício de encontro com o outro é também um encontro consigo próprio. Amorim (2003, p. 14) afirma que "exotopia significa desdobramento de olhares a partir de um lugar exterior" e a prática psicopedagógica envolve, justamente, esse constante abrir e fechar de olhos. A escrita oferece ao psicopedagogo a possibilidade de deslocar-se ao encontro do outro para conhecer e depois retornar ao próprio lugar para compreender o vivido e, assim, construir sentidos. Assim, o registro permite que o psicopedagogo também possa realizar uma autoanálise do seu próprio aprender, percebendo suas dificuldades e possibilidades na construção do conhecimento. "O que um pretende fazer a outro, tem que praticar consigo mesmo, contatar com as próprias fraturas na aprendizagem, com a história de aprendizagem pessoal" (FERNÁNDEZ, 1991, p. 130). É através desse lugar analítico e desta atitude clínica que o psicopedagogo deve construir a sua relação com o paciente.

Entre o visível e o invisível: a tarefa como forma de expressão

Mais do que simples verbos, aprender e ensinar estão conectados com a vida, posto que "estar vivo é estar em permanente conflito, produzindo dúvidas, certezas sempre questionáveis" (FREIRE, 2008, p. 34). Todos somos constituídos por saberes e não saberes e continuamos construindo conhecimento a partir desta dialética entre o velho e o novo. É diante dessa constante tensão que é possível compreender que em todo processo de ensino e aprendizagem - e, por isso, de crescimento - existe uma autonomia possível necessária.

Objetivo da psicopedagogia, a autonomia ainda é, muitas vezes, compreendida enquanto sinônimo de independência. Como se ser autônomo significasse realizar algo sozinho, sem ajuda. Porém, a autonomia, em uma abordagem psicopedagógica, pressupõe a presença do outro sempre, pois ancora-se na relação constitutiva de alteridade. É pelo outro que percebemos nossas faltas e nossas apropriações. Assim, o vínculo é considerado condição para a autonomia e quanto mais vínculos o sujeito possuir, mais confiança ele terá para avançar na construção do conhecimento.

Nessa concepção, a tarefa é um importante enlace para quem aprende. Um instrumento que permite construir e reconstruir vínculos. Envolver-se em uma produção que faz sentido - que nos provoca, afeta e altera - transforma a nossa busca pelo saber, pois "é na execução das tarefas que os conflitos, as diferenças e o que ainda não conhecemos são operacionalizados, elaborados e apropriados" (GENESCÁ; CID, 2013, p. 95).

A tarefa comporta tanto os conteúdos do sujeito quanto os conteúdos da matéria, envolvendo um saber já conhecido e outro ainda ignorado. Para Genescá e Cid (2013, p. 95), a tarefa proporciona "a apropriação do que já se sabe (e se pensava que não sabia) e a construção do que ainda não se conhece. (...) Ela é, portanto, instrumento para a elaboração do conhecimento e para a construção da ação e da mudança".

Como já descrito, o diagnóstico de Ivana contou com oito encontros e ocorreu entre no período de 14/05/2013 e 16/07/2013. Não é objetivo deste trabalho descrever os atendimentos ou apresentar um relatório de diagnóstico, mas sim buscar nesses registros rastros que permitam construir uma análise que destaque a tarefa como forma de mostrar e dizer da paciente. Assim, destaco aqui dois eventos ocorridos durante os encontros para discutir a potência da produção lúdica na construção do diagnóstico.

Mais que um quadrado

Continuando a avaliação operatória, peguei dentro da caixa as figuras geométricas para observar seu modo de classificar.

Ivana pegou as figuras e começou a construir uma cena. Os quadrados verdes foram usados para fazer o chão. Depois colocou a mesma quantidade de triângulos para fazer o céu, de forma simétrica. Em seguida, fez um bicho com cabeça, corpo, patas, orelhas e rabo.

(...)

Em uma segunda construção, fez várias casas, uma ao lado da outra, respeitando uma sequência de cores. Casa verde, com telhado e porta azul; casa azul, com telhado e porta verde.

(Caderno de campo - 28/05/2013)

O evento nomeado como "mais que um quadrado" aconteceu durante a prova operatória de Ivana e revelou que, mesmo diante do material para a classificação, a menina encontrou espaço para a brincadeira, transformando quadrados, triângulos e círculos em um jogo.

Fernández (1991) aponta interseções entre o aprender e o jogar, afirmando que é pelo jogo que o saber se constroi, pois a apropriação de um conhecimento depende da forma com que jogamos com esse conhecimento. Como agimos diante de uma nova informação? Tomando-a como verdade? Reordenando-a? Separando-a em diferentes partes? Atribuindo novos sentidos?

Para Paín (1995, p. 51), "a atividade lúdica nos fornece informação sobre os esquemas que organizam e integram o conhecimento em um nível representativo", por isso a importância de instituir o brincar no atendimento psicopedagógico.

A brincadeira permite um modo singular das crianças se conectarem com seus sentimentos e darem forma a sua imaginação, além de construir um espaço transicional. A ação psicopedagógica tem como objetivo "ajudar a recuperar o prazer perdido de aprender e a autonomia do exercício da inteligência, esta conquista vem de mãos dadas com o recuperar o prazer de jogar. Para jogar, necessita-se de um outro e um espaço de confiança" (FERNÁNDEZ, 1991, p. 166-167). A criança joga "para expressar agressão, para adquirir experiência, para controlar ansiedade, para estabelecer contatos sociais, como integração da personalidade e por prazer" (idem, p. 167). Ainda assim, é importante ressaltar que, apesar de todas essas considerações, a criança no momento do diagnóstico muitas vezes não joga propriamente, mas mostra como pode jogar.

Através da brincadeira, ao mesmo tempo em que apresentava seu pensamento lógico, Ivana construiu cenas simbólicas com os elementos geométricos. Primeiro classificou o material, separando os quadrados para criar o chão e os triângulos para representar o céu. Tudo simétrico e organizado com perfeição. Depois, para compor a segunda cena, brincou de seriação com os elementos, dispondo as casas de acordo com as cores. O escape da prova operatória reafirma o desejo em escapar das situações mais formais de aprendizagem? A postura diz sobre a dificuldade que tem sido para ela não conseguir ser "perfeita" na escola?

Sua simetria e organização parecem dizer do medo de errar. A temática da casa, que surge em todas as sessões, nos mostra a importância da família para ela e a mãe como um exemplo a ser seguido. Uma mãe que trabalha arrumando casas, mas que deseja e verbaliza a expectativa de que a filha "seja e possa mais". O medo de não superar as expectativas da mãe a paralisam ou ela apenas não deseja "ser e poder mais" para se identificar com a pessoa que mais admira?

O segundo evento ganhou o título "esse desenho vai ser só cenário" e aconteceu durante a EOCA - Entrevista Operativa Centrada na Aprendizagem. Uma tarefa que contribui para pensar o valor do desenho na prática psicopedagógica.

"Esse desenho vai ser só cenário"

Ao longo da sessão Ivana realizou outros dois produtos porém, mesmo sabendo que a sessão estava chegando ao fim, resolveu fazer mais um desenho. Pegou um papel branco e um giz de cera azul. Pintou toda a folha com o giz deitado. Teve a preocupação de colocar uma folha embaixo da sua, para não sujar a mesa com giz. Depois pegou uma folha verde e fez um formato de onda com lápis grafite. Em seguida recortou a linha perfeitamente.

(...)

Ela mediu para ver se o recorte caberia na folha pintada de azul. Passou cola com um papel por baixo para não sujar.

(...)

Quando Ivana foi colar a parte verde, o papel ficou meio torto. Ela retirou cuidadosamente o recorte e o colou de novo. Depois recortou uma sobrinha do papel. Assim que terminou, sorriu orgulhosa da sua produção e disse:

- Esse desenho vai ser só cenário!

(Caderno de campo - 21/05/2013)

Freire (1986, p. 18) afirma que "o ato de desenhar é um "ato" de escrever seus 'pensamentos' sobre a realidade. A atividade de desenho, portanto, é pensamento, elaboração afetiva e cognitiva, sobre as leituras que faz do mundo".

Paín (1995) aponta que a criança, durante o jogo, desenvolve três movimentos que são análogos à relação com a aprendizagem: o inventário, a organização e a integração-apropriação. Ao observar como a criança brinca, observamos também a sua modalidade de aprendizagem.

No primeiro movimento, o de inventário, busca-se observar como a criança age frente à diferentes objetos, entendendo como ela os classifica e os organiza. Se os experimenta, se pega todos de uma vez, se procura dentre todos algum específico para desenvolver um projeto ou se são os objetos que determinam o uso. "O mais importante é notar até que ponto a criança toma o objeto como tal, o diferencia e o relaciona com os outros e em que medida acata as leis do objeto e as aproveita para desenvolver a sua" (PAÍN, 1995, p. 54).

No movimento de organização, colocamos atenção na relação da criança com o objeto escolhido na tentativa de perceber como o material passa a fazer parte da sua organização simbólica. A criança estabelece relações, formula hipóteses, apresenta problemas, encontra soluções?

A capacidade de integração-apropriação, o último movimento, se refere ao modo com que a criança é capaz de chegar a uma conclusão argumental, relacionando-se diretamente a capacidade de decisão, capacidade de domínio, aceitação da carência, grau de tolerância ante a frustração, capacidade de mostrar e guardar e com as possibilidades de lembrar.

Em "esse desenho vai ser só cenário" Ivana realizou o inventário dos materiais, organizou o que iria produzir e integrou recorte, colagem e desenho para construir uma cena sem personagens. O evento, mais uma vez, ressalta a preocupação da menina em criar com perfeição e denota o cuidado com a limpeza da sala e do produto final. Observa-se esses pontos, principalmente, quando atenta-se para o como ela produz. Quando Ivana usa uma folha por baixo da sua para não manchar a mesa de giz ou de cola; quando percebe que colou torto e tira cuidadosamente o recorte e o coloca de novo; ou no momento em que ela apara a pontinha que sobra no papel. Com a produção concluída, o sorriso e orgulho abrem-se diante de um cenário sem personagens. O que desvela o vazio na cena? Uma página em branco para ser preenchida? Um espaço novo para produzir?

 

Notas finais

O objetivo desse trabalho foi refletir sobre o fazer como forma de mostrar e dizer no diagnóstico clínico psicopedagógico. Para isso, trouxe foco e luz para a relação entre aprender e jogar a partir da tarefa, entendendo-a como uma produção lúdica que possibilita a apropriação do que já se sabe e a construção do que ainda não se conhece.

Assumiu-se o fazer psicopedagógico a partir de uma perspectiva alteritária, afirmando o papel central da linguagem para a construção do saber. Discorreu-se também considerações sobre o processo de diagnóstico e sobre a importância dos atos de olhar, escutar, falar e registrar para o fazer psicopedagógico. Por fim, a partir da experiência do diagnóstico de Ivana, selecionou-se dois eventos com o intuito de ampliar as discussões sobre o espaço da produção lúdica na reconstrução do prazer de aprender do sujeito.

As análises revelaram o desenho, a brincadeira e o jogo como linguagens potentes da criança para dizer sobre seus sentimentos, desejos e anseios e sobre sua postura frente a construção do conhecimento. No caso de Ivana, tanto as produções gráficas quanto o jogo simbólico revelaram uma menina muito organizada e preocupada em fazer tudo certo. Os eventos também mostraram uma demasiada preocupação em não sujar e ou desarrumar o espaço. A questão da arrumação apareceu por diversas vezes, tanto na fala quanto em seus produtos e na forma de se relacionar com o material. Tudo o que Ivana fazia era simétrico, certinho. Uma atitude que denota uma postura contida, onde o erro parece não ter espaço em sua vida.

Assim, como a trama de uma rede essa pesquisa foi construída a partir de uma perspectiva dialógica e, por isso, encontra no outro a possibilidade de novas elaborações. Assim, as análises realizadas nos dois eventos não se encerram aqui. Ao contrário, elas apontam novos questionamentos capazes de continuar o diálogo, pois a construção do conhecimento, assim como o sujeito, não se constitui como uma totalidade acabada.

 

Referências

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1 Doutora em Educação, Professora do Colégio de Aplicação da UFRJ, Psicopedagoga.

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