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Construção psicopedagógica

versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474

Constr. psicopedag. vol.31 no.32 São Paulo jan./jun. 2022

http://dx.doi.org/10.37388/CP2021/v31n32a02 

PRIMEIRA PARTE: ARTIGOS REFERENTES À PANDEMIA
RESENHA

 

O futuro começa agora: da pandemia à utopia

 

 

Paulo Sergio de Oliveira Junior1

Instituto Sedes Sapientiae

 

 

"A natureza não nos pertence, nós é que pertencemos à natureza."

(Boaventura de Sousa Santos)

"Escrever um livro sobre a pandemia enquanto ela ocorria significou que o livro me foi escrevendo à medida que eu o ia escrevendo" (SANTOS, 2021, p. 15). Esta é uma das frases de efeito que abre o Prefácio do livro O futuro começa agora: da pandemia à utopia, do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (1940-). Professor universitário e especialista em Sociologia do Direito, Santos escreve sobre epistemologia, globalização, democracia e direitos humanos. Autor de Direito dos Oprimidos (Almedina, 2015), o intelectual tem uma importante atuação no Brasil, ao observar comunidades carentes no Rio de Janeiro. Escrito no período alarmante da pandemia da Covid-19, o pensador português aprofunda suas reflexões sobre a doença, compreendendo que esse vírus tem função sociológica de levar os humanos à ação, sendo o autor português seu humilde tradutor.

Santos inicia sua obra afirmando que um século só começa, de fato, "quando inscrevem a sua aura ou o seu trauma específico nos corpos de vastas camadas da população em diferentes partes do mundo" (SANTOS, 2021, p. 16), atribuindo à pandemia que estamos vivendo o marco para o início do século XXI. Diferente das pandemias e epidemias passadas, o professor universitário alerta que, com a pandemia, há a necessidade de repensarmos nosso modelo civilizacional, em voga desde o século XVI, em prol de um novo modelo, o qual considera o ser humano como pertencente à natureza, e não o oposto. "A pandemia não nos dá opção; põe-nos perante um dilema: ou mudamos o modo como vemos a natureza, ou ela começará a redigir o longo e doloroso epitáfio da vida humana no planeta" (SANTOS, 2021, p. 17). Para tanto, o autor propõe, ao longo de sua obra, refletir acerca dos três pilares que sustentam essa era já ultrapassada: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado.

Após o prefácio, o livro divide-se em duas partes: na primeira, composta por oito capítulos, o autor descreve o cenário em que nos encontramos, ou seja, o século XXI que se iniciou a partir da pandemia da Covid-19; na segunda parte, composta por quatro capítulos, apresenta possibilidades de construção de uma nova civilização, por meio de uma transição paradigmática e uma atualização na Declaração Universal dos Direitos Humanos, com vistas ao cosmopolitismo.

O primeiro capítulo do livro, "Introdução póstuma ao nosso tempo", apresenta, de forma alegórica, o posicionamento político do pensador português. Ao lado do coronavírus, o "inimigo invisível", estão também os mercados, no plural, "uma bendição para os poderosos e uma maldição para todos os outros" (SANTOS, 2021, p. 29). Fazendo uma relação entre eles e as forças que governam nosso mundo (capitalismo, colonialismo e patriarcado), a humanidade sofre, como consequência, a concentração de riqueza e a desigualdade social, ao mesmo tempo que a natureza é destruída, em prol de uma exploração irrestrita de recursos naturais. Santos convoca os intelectuais para serem, no lugar de vanguardistas, retaguardistas, no sentido de serem porta-vozes das necessidades e aspirações dos cidadãos comuns. Nesse sentido, o autor aponta que o vírus deve ser visto não somente como inimigo, também é mensageiro da natureza e, principalmente, pedagogo, dando-lhe dignidade. Para ele, o vírus pode ser uma caminho para aprendizado, porém, o grande obstáculo está que os seres humanos que adotaram a cultura eurocêntrica não estão incapacitá-los de escutá-lo, assim como são incapazes de escutar a natureza, sendo esta vista e observada quando lhes dá prazer ou vantagens. O autor reforça que, para nos vermos livres do coronavírus, é preciso alterar práticas e hábitos que caracterizam a contemporaneidade.

O segundo capítulo, "Um fantasma assombra o mundo: a história do vírus e o colonialismo", apresenta uma forma de se analisar epidemias e pandemias a partir das perspectivas histórica e político-econômica. Percorrendo e analisando doenças como a peste bubônica, a varíola, a gripe espanhola, Santos verifica a preocupação da medicina dessas épocas para um grupo seleto, aquele que detinha o poder, e não a população geral, quer nas metrópoles, quer em suas colônias. Em seguida, ressalta a importância de uma abordagem interdisciplinar para estudar as epidemias, com a finalidade de acolher diferentes pontos de vista, bem como saberes médicos, seja da medicina moderna, seja da medicina tradicional. É o que o autor português denomina de ecologia de saberes. No capítulo seguinte, "O capitalismo abissal: a pandemia como negócio", Santos alertas para os problemas trazidos pelo neoliberalismo que, aliado ao capitalismo financeiro, sujeitou as áreas que lidam com a questão social ao modelo de negócio do capital, ignorando princípios de cidadania e de direitos humanos. Trata-se do capitalismo abissal, termo proposto pelo autor para descrever essa forma de economia que faz uma distinção entre seres plenamente humanos e seres sub-humanos, "transformados em populações descartáveis, corpos racializados e sexualizados para mortificação e obtenção de lucro" (SANTOS, 2021, p. 81), ou seja, tratados com crueldade e desrespeito.

No quarto capítulo, "As veias abertas das desigualdades e discriminações", o pensador português reflete sobre os grupos minoritários para os quais a pandemia foi fator de ampliação de desigualdade e de discriminação. Ainda que sejam vistos como minorias, constituem a grande maioria da população mundial e formam o que Santos chama de Sul global, espaço geográfico que sofreu os impactos negativos do sistema capitalista, colonialista e patriarcal. Afirma que recomendações da OMS, como confinamento, distanciamento social, não reflete uma grande parte da população formada de trabalhadores informais, desempregados, moradores das periferias da cidade, sem-teto, por exemplo, além de grupos minoritários. Na Educação, percebemos, também, as dificuldades de professores e alunos de escolas públicas para terem acesso à internet em casa. O quinto capítulo, "O Estado: exceção e democracia em tempos de pandemia", Santos mostra como países menos desenvolvidos conseguiram assegurar a vida de seus cidadãos contra a pandemia, ao contrário de países com governos de direita que adotaram posturas negacionistas acerca do coronavírus, ou buscaram bodes expiatórios para justificar o fracasso de seus governos. O autor sugere a ampliação da coesão social, de forma justa e solidária.

No sexto capítulo, "Conhecimentos, incertezas e saúde global", o pensador português coloca em discussão o lugar da ciência, um dos saberes que circulam no mundo. Tomando por base sua teoria de valorização das epistemologias do Sul, Santos valoriza a multiplicidade de saberes e critica a sua hierarquização. Ressalta, ainda, a importância de a ciência dialogar com conhecimentos médicos que não são científicos, como os ancestrais, configurando uma ecologia de saberes médicos. O capítulo seguinte, "Resistência e auto-organização comunitárias", aborda como determinadas comunidades, em situações como as causadas pela pandemia, organizam-se, de forma solidária, para garantir a proteção de seus membros.

No oitavo capítulo, "Os três cenários: entre a repetição do inferno e o kairós", o pensador português aprofunda o conceito de capitalismo abissal, além de apontar para a urgência em se pensar num novo modelo civilizacional, absorvendo formas utópicas de organização da sociedade. Essa discussão continua no capítulo seguinte, "Para uma nova declaração cosmopolita insurgente de direitos e deveres humanos, em que, partindo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, amplia a noção de direitos para a natureza como um todo. Nesse ponto, Santos retoma o conceito de utopia como "a exploração, por meio da imaginação, de novas possibilidades humanas de vida coletiva e individual" (SANTOS, 2021, p. 260), em prol de uma necessidade por uma melhor situação. A humanidade, para o autor, deve ser vista como um todo infinitamente diverso, reconhecendo a diferença. Ela é parte de toda forma de vida existente no planeta, adotando uma postura holística. Para a transformação dessa nova realidade, o pensador português, no décimo capítulo, "A transição paradigmática: um mundo em que caibam muitos mundos", reflete sobre a função da transição para a ascensão das epistemologias do Sul, surgidas de o reconhecimento de múltiplos saberes e culturas que estão à margem da hegemonia do conhecimento. O capítulo seguinte apresenta os passos para a transição, tendo a pandemia como oportunidade de pensar em alternativas ao modelo de sociedade e de civilização vivida. Na conclusão, o autor retoma suas ideias iniciais sobre o processo de escrita de uma pandemia enquanto a vivenciava.

A leitura de O futuro começa agora surpreendeu pela grande quantidade de exemplos para ilustrar a visão política do autor. Os episódios históricos e fatos atuais citados no livro mostram um olhar com muita profundidade, abordando a pandemia de forma complexa. A presença de metáforas dá um tom poético à obra, ao mesmo tempo em que cada capítulo está estruturado de forma a, no final, haver uma pequena conclusão. A linguagem aproxima a obra do leitor brasileiro. Tal como toda visualização, a configuração utópica de uma nova civilização cosmopolita e diversificada é um importante exercício de imaginação e de criatividade, o que percebemos haver na obra de Boaventura de Sousa Santos.

SANTOS, Boaventura de Sousa. O futuro começa agora: da pandemia à utopia. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2021.

 

 

1 Pós-graduando em Psicopedagogia (Instituto Sedes Sapientiae). Professor de Língua Portuguesa (Rede Pública Municipal de Mogi das Cruzes). Psicólogo (CRP 06/161.507). Licenciado em Letras (USP) e Pedagogia (UNINOVE). Bacharel em Psicologia (UMC).

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