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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.27 no.1 São Paulo June 2007

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

Subsídios para a construção de uma visão completa do legado de Jean Maugüé (* 1904 - † 1985). Patrono da Cadeira nº 17

 

Subsidies for presenting a complete view of the legacy of Jean Maugüé

 

 

Norberto Abreu e Silva Neto1
M. C. n. 8

Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília

 

 


RESUMO

A leitura da autobiografia do Patrono Jean Jean Maugüé fez-me perceber que temos dele uma imagem incompleta, pois, seu livro jamais foi traduzido no Brasil e a bibliografia sobre sua obra e personalidade produzida em nosso meio contempla apenas o período vivido em São Paulo. Considerando esse fato e com base em seus escritos (literatura primária), complementado pela literatura secundária a respeito de sua obra, este trabalho objetiva oferecer subsídios para a construção de uma visão mais completa de seu singular curso de vida, de seu pensamento e das posições intelectuais que defendeu. Assim, o artigo consiste em uma descrição sintética de sua história de vida, enfatizando aspectos de sua formação intelectual e de suas atividades profissionais. Nele são inseridas passagens transcritas de sua autobiografia, por meio das quais colocamos em circulação suas reflexões datadas de 1982, e que melhor podem apresentá-lo de modo concreto.

Palavras-chaves: Jean Maugüé; Ensino universitário; Filosofia; Psicologia; USP.


ABSTRACT

The reading of Patron Jean Maugüé's autobiography made me remark that we
do not have a complete image of him, because his book never had a Brazilian edition and because the bibliography here produced about his work and personality is dedicated mainly to the time he lived in São Paulo. In view of this fact and based on his writings (primary literature), supplemented by the secondary literature about his work and personality, this work aims to offer elements for the building of a more complete view of his unique life course, his thought and the intellectual positions he defended. So, the article consists of a synthetic description of his life history, emphasizing aspects of his intellectual education and his professional activities. Transcript passages of his autobiography are inserted in the text and by means of them we put into circulation his reflections made in 1982 that could better present him in a concrete way.

Keywords: Jean Maugüé; Universitary teaching; Philosophy; Psychology; USP.


 

 

1. Introdução

É imensa a honra de poder promover através deste artigo, para a Academia Paulista de Psicologia, um resgate da memória de seu ilustre Patrono da Cadeira nº 17, Jean Maugüé, do qual desconhecemos boa parte da história de vida e dos trabalhos realizados, bem como de sua vida afetiva e de seu imaginário. Tomei conhecimento da presença e influência do Professor Jean Maugüé na Filosofia, na Psicologia e na cultura brasileira, através da obra de Paulo Arantes (1994) sobre a história do Departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. Desde então, o fascínio que ele exerceu em seus alunos atingiu-me, e passei a coletar seu material bibligráfico, trabalhos sobre sua obra e personalidade, bem como outras informações a respeito das figuras da cultura francesa com as quais conviveu. O que encontrei é que sua produção escrita publicada é bastante reduzida e indicações da existência de um espólio literário com escritos não publicados. Com relação à lteratura secundária, encontrei que os artigos e depoimentos existentes em nosso meio sobre Maugüé restringem-se a comentar o tempo em que viveu em São Paulo. Assim, dessa pesquisa resultou um registro que realizei de sua presença na história do movimento fenomenológico e da filosofia do existencialismo no Brasil (Abreu-e-Silva, 2004), e, agora, este artigo, dividido em três grandes partes: a primeira, que trata de seus primeiros anos no seio de sua família, pessoas do mundo da arte e da cultura; a segunda descreve sua formação intelectual no Liceu, na Khâgne, e na École Normale Superièure de Paris; e, na terceira, é traçado seu percurso profissional, o que inclui suas atividades no ensino universitário, como soldado  da França combatente, o tempo a serviço da diplomacia francesa e suas reflexões sobre o ofício do escritor.

 

2. A Vida em Família

Jean Maugüé nasceu em Cambrai, no dia 15 de setembro de 1904, em uma família de músicos. Seu pai era proveniente de uma antiga família católica da Lorena, meio burguesa e meio camponesa. Estudou violino desde a infância, primeiro no Conservatório de Nancy (onde nasceu) e depois no Conservatório de Paris. Era violinista e compositor profissional pertencente à geração de Maurice Ravel (que o tinha em grande estima), Florent Schmidt e Stravinski, mas, como descreve Maugüé (1982), embora seu pai fosse “marcado desde a infância por um gosto exclusivo pela música” (p. 18), não obteve, no entanto, em sua carreira o mesmo sucesso que esses colegas. Por outro lado, sua mãe vinha de antiga família de ricos industriais protestantes e, segundo Maugüé, era belíssima, tinha um dom profundo para a música, cantava admiravelmente e era excelente pianista mas não fez carreira na música. Foi pela música que conheceu seu pai. Ele destaca ainda que a mãe conservou dois traços essenciais de sua infância: um grande rigor protestante e o terror da insegurança. “Foi de minha mãe”, diz Maugüé, “que adquiri o hábito de ler os Livros Sagrados, o Antigo e o Novo Testamento” (p. 19).

Na época do nascimento de Maugüé, seu pai era Diretor do Conservatório Musical Municipal de Cambrai. Todavia, insatisfeito com esse posto que lhe impedia desenvolver plenamente sua criatividade musical, decidiu retornar a Paris. Assim, após passarem alguns meses na casa dos avós paternos em Nancy, seus pais instalaram-se em um imóvel novo no limite do XVIIe. arrondissement, no qual viveram toda a sua vida. Nas recordações de Maugüé, esse imóvel apresentava todos os compromissos aos quais a família estaria doravante condenada: pertencia a um bairro elegante, o que salvava a dignidade da família, mas estava nos confins de antigas fortificações decadentes do tempo dos romanos. O apartamento convinha aos parcos recursos da família; “possuia elevador mas não tinha escada de serviço”, e nele os quatro, seus pais, seu irmão e Jean Maugüé, viveram o que ele chamou de “uma vida dupla” (p. 24). Vejamos o quadro em palavras que ele pintou desse momento e no qual se encontram as determinações de toda a sua vida futura.

Fora de casa, meu pai ia ganhar o dinheiro necessário tocando violino. Na Ópera ou em outro local conforme a ocasião. Trabalhava geralmente à noite e, com freqüência, eu o via partir, carregando seu estojo com o violino, enquanto minha mãe o seguia com o olhar, debruçada na varanda. Todavia, jamais estávamos seguros, no final do verão, sobre os contratos de trabalho que meu pai teria para o inverno. Minha mãe ajudava meu pai dando lições de canto, e fazia parte do coro da paróquia da Étoile. A esta existência modesta, e mesmo à beira da pobreza, respondia, por contraste, o interior da moradia. O centro do apartamento era o salão, no qual havia um enorme piano Erhard, de cauda e para grande concerto, em mogno adamascado cor de cobre, legado de uma herança inesperada, além de uma harpa Charles-X, a escrivaninha de meu pai, uma grande biblioteca, e um arquivo (classeur). Era o lugar da música. Desde a manhã, meu pai procurava no piano os motivos de suas composições, lhas copiava, e depois colocava minusciosamente os manuscritos (partituras) no arquivo... À noite, minha mãe que durante o dia não havia cessado de cuidar da manutenção do apartamento, (...) se colocava, por sua vez, ao piano e cantava. Tanto do meu quarto como da sala de refeições, onde eu fazia os deveres da escola, escutava essa música que, do mesmo modo que o amor de meus pais, me separava e me protegia do mundo, pois, para nós, meu pai, minha mãe e eu, o mundo era o perigo (pp. 24-25).

Maugüé fez seus estudos primários em uma escola comunal do bairro em que moravam. Sobre essa primeira experiência escolar, na qual foi sempre o primeiro da classe, Maugüé (1982) relata que o contato com a escola, os mestres e os colegas, estes divididos em meninos pobres da periferia do bairro e alguns filhos de burgueses da parte elegante, deu-lhe consciência de sua situação no mundo. Desse confronto, o menino Jean Maugüe (para quem o mundo real era o que vivia em sua casa com seus pais) concluiu que fazia parte de um povo diferente. Assim, ele nos conta que: “Muito pequeno, eu sabia claramente que fazia parte do povo da arte e da cultura ... e que havia em mim algo como uma espécie de caricatura de meu pai” (p. 29). A saída do “mundo real” que lhe era dado pelos pais acontecerá somente quando ele entrar no curso preparatório para Escola Normal.

Em 1914, seu pai havia partido para a guerra e Maugüé, após haver passado em um concurso temível para a obtenção de uma bolsa de estudos, entrou aos dez anos no Pequeno Liceu Condorcet (rue d'Amsterdam), onde se viu “bruscamente misturado com colegas que vinham de cursos privados e que já tinham rudimentos de latim”, carência na formação que, no início, o impedia de continuar sendo o primeiro da classe como fora na escola primária comunal. Precisou ter aulas extras de latim para poder voltar a ocupar um lugar entre os melhores da classe. Para isso contou com o interesse e empenho de seu professor, o senhor Elbel, cuja recordação levou Maugüé (1982) a fazer uma afirmação que muito honra os professores do ensino secundário. Ele afirma que o auxílio extra prestado por seu professor não foi a única vez que encontrou “esse traço de generosidade nos professores do ensino secundário, como os traços de bravura são correntes nos oficiais de tropas” (p. 30).

Maugüé (1982) faz um retrato de si no período de puberdade e primeira adolescência que se mostra como um adolescente que buscava refúgio no mundo imaginário da literatura e da pintura. “Meus deuses”, declara, “foram Balzac, Stendhal, Rembrandt” (p. 41). Ele conta que esse foi um período no qual mantinha um equilíbrio entre os deveres do Liceu e seu gosto precoce por essas artes, que o levava a entregar-se com paixão à leitura e ao devaneio. Ele destaca que nesse período leu toda a obra de Balzac, os romances de Stendhal, e as Confissões de J. J. Rousseau, e que desejou, pelo menos em sonhos, ser o sucessor de Sthendal ou de Balzac. Seu mentor intelectual era um tio, o senhor André Meyère, um judeu divorciado que se casou com uma irmã de sua mãe e que profissionalmente era um joalheiro bem sucedido. Maugüé conviveu com ele desde menino e nele reconhece uma das maiores influências em sua formação intelectual, moral e espiritual. Seu tio Meyère amava as letras mas tinha também uma inclinação pelas ciências. Era amigo do romancista Anatole France (1844-1924) e gostava muito de ler em voz alta. Maugüé menciona algumas leituras que ouviu na voz de seu tio: as Aventuras dos Três Mosqueteiros, as do Conde de Monte Cristo, Flaubert, e os Parnasianos. Talvez se possa avaliar a importância intelectual de Meyère na formação de Maugüé através desta passagem na qual ele diz: “Quanto mais eu sentia se agravar a competição escolar, mais eu sentia necessidade de meu tio” (p. 34). E, noutro lugar, explicita o lugar que o tio ocupou em sua vida:

Se amei tanto meu tio é porque somente ele, dentre os meus próximos, me fez adivinhar uma força que era necessária e que era justamente a força oposta à de meu pai. Eles, meu pai e meu tio, tinham, aliás, muito respeito um pelo outro. Meu tio tinha um senso infalível daquilo que podia fracassar ou ser bem sucedido nesta terra. Ele avaliou por si próprio seus talentos e seus limites, e se instalou em uma posição confortável, sem ostentação e sem risco, como um grande joalheiro da praça Vendome. Com ele aprendi o que era a boa seguridade neste baixo mundo. Do qual a condição, como todos sabem, é primeiro a precisão de espírito e a submissão à experiência. (p. 34).

O tio Meyère deu a Maugüé belas reproduções da pintura holandesa que, nesse período, cobriram as paredes de seu quarto e inspiravam seus devaneios. Essas reproduções incluem peças da obra de Rembrandt, pintor que será considerado por Jean Maugüé como seu mestre insuperável. A pintura de Rembrandt era o reino ao qual se entregava em suas divagações. Referências a seus quadros aparecem em sua autobiografia do início ao fim e ao tratar desse momento de sua vida, Maugüé dedica quase três páginas de seu livro ao relato de uma experiência de união íntima com o pintor ao percorrer os dois volumes de sua obra gravada na Biblioteca Sainte-Geneviève. Ele também fazia constantes idas ao Museu do Louvre para visitar a sala em que se encontravam quadros de Rembrandt, em particular, seu famoso Autoretrato, de 1660, que Maugüé diz ter-lhe “ensinado muito sobre a vida”.

Assim, com Rembrandt, o jovem Jean Maugüé aprendeu que devia preocupar-se mais com a vida espiritual dos homens do que com seus atos exteriores. Rembrandt introduziu-o nos mistérios inerentes ao mundo espiritual, nos conteúdos emocionais mais profundos, e a explorar os ânimos mais meditativos e introvertidos. Em uma passagem na qual trata das relações de poder em nossa sociedade, Maugüé (1982) reconhece que a infância que viveu em sua família  conduziu-o naturalmente na direção de Rembrandt e, do mesmo modo que esse pintor, na direção das pequenas famílias judias da Diáspora, nas quais encontrou “esse orgulho humilde e discreto e essa recusa despojada do desejo de tudo aquilo que é esplendor e potência” (p.25). Através da pintura de Rembrandt, ele fez a experiência de uma outra potência que a do poder político e social, e da qual este é inimigo.

 

3. O Liceu, a École Normale, e a filosofia

Maugüé prosseguiu seus estudos secundários no Grande Liceu Condorcet (rue du Havre), instituição que preparava para a Escola Normal Superior (rue d'Ulm), onde se formam em princípio os professores. No Grande Liceu Condorcet seus colegas eram filhos de pessoas que portavam nomes importantes na sociedade parisiense: eram filhos de procuradores, de notários, de médicos ou de grandes comerciantes.  Dentre os colegas desse período, Maugüé (1982) cita Jacques Heurgon (1903-1995), Raymond Aron (1905-1983) e Daniel Lagache (1903-1972), e relata que essas três personalidades da intelectualidade francesa naquele momento “já faziam parte dos eleitos” (p. 40). Nesse Liceu formou amizade perene com Michel Pontrémoli (1904-1945), escritor, de quem afirmou: “Michel Pontremoli era e foi minha consciência” (p. 50), e com Albert Lautmann (1908-1944), filósofo da matemática. Por meio desses dois colegas conheceu os notáveis da cultura e da política, e passou a circular no universo da cultura francesa. E, em termos de formação intelectual, sua aquisição nesse período foi o aprofundamento nos estudos de filosofia, disciplina que até então conhecia pouco.

Começou sua imersão na filosofia através do livro de León Brunschvicg (1869-1944), A experiência humana e a causalidade física, que leu obstinadamente por acreditar que sua leitura o elevaria ao nível dos grandes postulantes ao sucesso. Assim, Maugüé (1982) relata que era um “livro pleno de seduções e de ardís”, que constrastava com as exposições mornas das doutrinas que caracterizavam os textos de história da filosofia. Sobre esse livro, que leu como um romance, ele afirma: supria “a necessidade de drama e de vida de um adolescente” por meio do relato do “estranho conflito da consciência consigo mesma” (p. 42). Vejamos como ele resume o livro:

Como Homero de uma nova Odisséia, Brunschvicg nos contava como a consciência se deixa perder no canto muito fácil das sirenes do empirismo, abandonando-se às impressões imediatas, ou se deixa levar pelo apelo orgulhoso das sirenes do idealismo, pretendendo impor suas impaciências e suas leis aos eventos. A cada instante comprometida em sua perigosa aventura, a consciência oscilou assim de Bacon a Descartes, sempre a ponto de perder-se, mas sempre salva, e sempre navegando em direção ao bom porto. E eu me maravilhava de a seguir traço a traço, nesse romance de muitos episódios, dos povos primitivos até Einstein (p. 42).

Maugüé (1982) reconhecia o mérito de Brunschvicg mas criticava sua redução do material vivo colhido na história a abstrações que, diz, “o colocavam ao abrigo dos verdadeiros perigos do mundo” (p. 42). Essa observação sobre a filosofia desse mestre vale para todo o ensino vivido no Liceu. Faltava para ele o rumor da vida e todos (alunos e professores) estavam submetidos a uma operação por meio da qual se passava do mundo concreto para o mundo da abstração, reino que reencontrará na École Normale. Nesse sentido, Maugüé conta que, na época de sua preparação para a Agregação, obrigava-se a “saber de cor todas as combinações que podiam ligar o uno e o múltiplo, no Parmênides de Platão. E até mesmo todas as  combinações do mesmo e do outro, no Teeteto, no Sofista, e no Timeu” (p. 43). Todavia, faz questão de observar que esse ensino de filosofia pleno de erudição e de glosas para traduzir o pensamento de um autor não impediu que a “assim chamada experiência da vida” o fizesse “encontrar a verdadeira presença de Platão”. Vejamos então o desenho que ele, aos 78 anos,  apresenta-nos do filósofo grego:

Encontro a verdadeira presença de Platão, naquilo que há de tagarelice infantil nesse grande poeta do pensamento, no início da República por exemplo, o que há nele também de aristocrática ingenuidade quando fala dos ofícios, e que ele cala os escravos, e sobretudo esse lento apagamento da figura de Sócrates dos primeiros diálogos, e do Górgias, que se torna o Sócrates do Timeu e das Leis. Talvez seja necessário muita erudição de glosas para traduzir um grande autor. Porque meus mestres jamais me advertiram, pelo contrário, que é necessário que essa erudição e essas glosas sejam esquecidas, se desejarmos escutar o que foi espontânea e diretamenteexprimido? (p. 43).

Sobre o tempo de seus estudos e experiências na École Normale, Maugüé relata que através da instituição normalista dos “tapirs” (antas), designação dada na École aos jovens alunos muito ricos que necessitavam de aulas particulares para passar nos exames, foi introduzido no mundo dos ricos e poderosos. Ele teve vários tapirs e, na sua autobiografia, descreve a vivência com o mundo de três deles: o primeiro era filho de um industrial de produtos farmacêuticos, o segundo era filho do presidente do Banco dos Países da Europa Central e o terceiro era filho do dono de um banco privado que gerenciava os negócios e interesses da família. Por meio da relação com esses jovens e com seus pais, dos quais se tornou amigo, Maugüé conta-nos que foi introduzido e passou a circular no mundo do poder e da riqueza, no qual teve a experiência mais plena que ele podia oferecer: a da  encarnação das mulheres. Nesse período, ele entrega-se a uma amizade íntima com uma mulher desse meio, relação que o levou mesmo a pensar em trocar os estudos pelos negócios. Entregou-se à paixão, relaxou nos estudos e foi reprovado no primeiro exame para a Agregação. O caso com a mulher terminou, Maugüé, reprovado, foi fazer o serviço militar e, ao retornar, prestou novo exame no qual foi aprovado e recebido na Agregação.

Assim, nesse intervalo de tempo e em meio a tais vivências, Maugüé formou-se Bacharel em Letras, em 1922, concluiu a Escola Normal, em 1926, tendo obtido aí o título de Licenciado em Letras – Filosofia, em 1928, o Diploma de Estudos Superiores, em 1929 e, por fim, o título de Professor Agregado de filosofia, em 1931. Vejamos como ele resumiu sua experiência na École Normale, precedida pela preparação no Grande Liceu: Na rua de Ulm, afirma Maugüé (1982) “eu iria fazer duramente o aprendizado de um ofício estranho, o trabalho do intelectual” (p. 32).

 

4. Sigmund Freud e Karl Marx

Nessa época, segundo Maugüé (1982), era Brunschvicg que reinava na filosofia francesa; mas esse fato não o fez poupar-lhe a crítica como foi acima mencionado. Assim, Maugüé criticou também o seu livro, Os progressos da consciência na filosofia ocidental que, na época, era uma bíblia do ensino de filosofia, e, ao fazê-lo em sua autobiografia, revela seu aprendizado com a leitura das obras de Freud e de Karl Marx. Ele registra que Brunschvicg não dedicou nem mesmo um pequeníssimo capítulo à obra de Freud e comenta que, para uma aceitação disso, “deve-se acreditar que o homem do Inconsciente não tenha colocado nenhum problema ao filósofo da Consciência” (p. 65). E, com relação a Marx, ele encontra que este foi melhor tratado, pois, Brunschvicg consagrou-lhe cinco páginas do capítulo intitulado “A reação romântica”.

Maugüé (1982) relata que viveu os acontecimentos dos tempos do Liceu Condorcet e da Khâgne (um enclave do ensino superior no Liceu que consistia em um curso preparatório para a Escola Normal Superior, e para o qual os alunos eram designados pelo diretor do Liceu) sem ter a linguagem própria para se esclarecer sobre o significado do que vivia. A isto se somava o fato de que também não compreendia e não suportava os universos separados que lhe haviam sido propostos no Liceu e depois na Escola Normal: os fatos e sua teoria. Foi então com tal perplexidade que, nesse período, aos 20 anos de idade, conheceu as obras de Freud e de Karl Marx, e considerou tal conhecimento uma benção. Ele encontrou nesses dois grandes pensadores a linguagem que lhe faltava para compreender os eventos que havia vivido: via a ambos como dois amigos que lhes esclareciam a significação de sua vida ou de seus amores, que lhes permitiam confirmar seus pressentimentos e sonhos e o “liberavam de uma solidão insuportável” (p. 60).

Assim, Maugüé (1982) conta-nos que no dia em que abriu pela primeira vez o famoso ensaio de Freud, Uma recordação da infância de Leonardo da Vinci, ele foi “imediatamente liberado de uma divisão em retórica superior” que lhe era difícil compreender: “a separação da filosofia e da literatura” (p. 61). Topava então com uma obra que revertia os quadros do ensino que lhe foram impostos:

Eu estava, enfim, diante de um livro do qual se pode dizer que é tanto de  um psicólogo como de um filósofo ou de um crítico de arte. O livro procedia mesmo da simplicidade de um romance policial... Ora, a genialidade de Freud é a mesma do inspetor de polícia que encontra no lugar do crime o pedaço de um tecido insólito, o botão arrancado cuja presença não pode ser explicada pela noção vazia de acaso... (fragmento) a partir do qual Freud retratará uma história muito simples, feita de sangue e de lágrimas (p. 61).

Outro livro distinguido por Maugüé como importante em sua formação foi: Minha vida e a psicanálise, a autobiografia de Freud, obra cuja leitura, desde que a conheceu em 1927, sempre lhe foi reconfortante. No enredamento de interdições que era o império austríaco, diz Maugüé (1982), no qual se via “eslávos contra alemães, classes contra classes, cristãos contra judeus, era preciso ser um pequeno judeu da Morávia, proveniente de uma antiga família asquenaze emigrada de Colónia, era preciso ser ‘o outro' para apreender primeiro o ridículo e depois a significação profunda desses costumes que lhe vinham de fora.” (p. 63). Ao ler esse livro, Maugüé revela que foi de imediato esclarecido a respeito “da amizade que tinha por Lautman e Pontrémoli, a admiração que tinha por Raymond Aron” e “o amor que sentia por Denise Lévi” (p. 63), que encarnou sua frustração amorosa na adolescência. Essa leitura também o fez compreender melhor o ofício do escritor: sua função curativa dos sofrimentos humanos e a coragem necessária para a escrita. Ele salienta que o caráter confessional dessa obra e o propósito de Freud de oferecer ao leitor uma escrita a serviço da cura dos sofrimentos humanos, por meio da liberação dos afetos através da palavra, levaram-no a compreender a coragem que é demandada de um escritor. Tendo em vista essa orientação de Freud, ele definiu o caráter de sua autobiografia, dizendo-nos que com ela não pretendeu outra coisa senão “recordar que todo escritor, toda escrita tem a missão de dar a palavra àqueles que se calaram” ou impediram-se de falar, de gritar, de chorar.

Com relaçao a Karl Marx, Maugüé (1982) faz questão de esclarecer, em sua autobiografia, que lhe interessava o filósofo e historiador que havia lido e não aquele Marx apresentado por Brunschvicg e outros comentadores de sua obra. Interessava-lhe o que Marx significou e representou para ele ou, nas suas palavras: “... o que ele depositou em mim” (p.64). Maugüé relata que surpreendeu-se ao ler no Livro 1 de O Capital a distinção da qual Marx partia ao escrever essa grande obra: a distinção entre um valor de uso e um valor de troca na mercadoria e resume como recebeu esse livro: “Para mim, ... foi uma benção ler um livro que me dizia que um homem não estava à venda, e muito menos a beleza de uma mulher ou o saber de um estudante” (p. 67). Ele explica a distinção como base do escrito devido ao caráter científico dessa categorização, pois, Marx definia-se como cientista. Todavia, embora reconhecendo nele o rigor científico que se pode demandar de um historiador, Maugüe considera que O Capital também contém os elementos que se pode esperar de um verdadeiro romance, sem que isso diminua seu rigor. Assim, ele aproxima Karl Marx de Honoré de Balzac, uma de suas maiores influências e modelo de escritor, cuja obra leu na adolescência.

Quando eu quis saber como a burguesia se apropriou das terras dos emigrados fui ler Une ténébreuse affaire e Les paysans. Através desses romances de Balzac, revivi esse momento patético de nossa história. Quando li a longa exposição do IV livro do O Capital de Marx, no que toca à expropriação dos pequenos vassalos ingleses no século XVI, com seus cinco arpentos de terra em concessão, suas ferramentas e apetrechos, seu gado, cuja vida não era possível senão pelo direito adquirido pelos bens comunais e bruscamente expulsos pela construção dos muros, quer dizer, a apropriação em benefício dos grandes senhores, encontrei nessa exposição todo o rigor que se pode esperar de um historiador. Esse rigor não será diminuido se eu acrescentar que revivi todo o drama que se pode esperar de um romance. Eis então como se constituiu esta armada dos sem-trabalho, os vagabundos, chaga da Inglaterra, do século XV ao século XIX, como foram a chaga do Antigo Regime, na França (p. 67).

Do mesmo modo como aconteceu com a leitura de Freud, também com a da obra de Marx vieram a Maugüé ensinamentos sobre a arte da escrita. Assim, ao comentar sobre Marx, o escritor, Maugüé (1982) salienta que o fato: a desigualdade na distribuição das riquezas produzidas na sociedade burguesa, que em outros pensadores da época (Adam Smith, Ricardo, Malthus) apenas causava espanto, em Marx tornou-se também uma denúncia. Para Maugüé, cada homem que, de uma ou outra forma, entregou-se à escrita foi um homem de seu tempo, entendendo por “ser do seu tempo em cada homem a ressonância de seu passo, tal como esta se fez sobre uma certa calçada do mundo” (p. 65). Nesse sentido, Marx escutou o imenso pranto daqueles que sofrem com a desigualdade social e transmitiu-o tal como se exprimia em sua época e, diz Maugüé, “é isso que faz a sua grandeza” (p.65) e com que a sua obra permaneça atual enquanto a dos outros de seu tempo desaparece.

 

5. A Vida Profissional

A vida profissional de Jean Maugüé foi tumultuada por cortes abruptos e mudanças de direção. Preparou-se para fazer carreira como professor do ensino superior da França e a mudança de rumo ocorreu já no início, quando, em 1932, após ter sido aprovado em concurso para obter a agregação de filosofia da Escola Normal Superior, título que o tornava apto a ser titular de um posto de professor de liceu ou de certas faculdades, foi nomeado para o Liceu de Tulle, na região de Dordogne, sudoeste da França. No entanto, antes de assumir o posto foi convidado para trabalhar como jornalista no diário La Petite Gironde, convite que aceitou pois não desejava sair de Paris. Assim, solicitou uma licença do Ministério da Instrução Pública e trabalhou um ano como jornalista, pois, no ano seguinte, o jornal faliu e ele teve de retornar ao Ensino Público.

Em 1933, foi nomeado para o Liceu de Montluçon, também no sudoeste da França. Sobre essa experiência, Maugüé (1982) relata que pôde guardar o curso que ministrou nesse Liceu, pois, a melhor aluna da classe tomou notas em uma escritura admirável, e que, ao lê-lo posteriormente, encontrou-o “muito preciso e pleno de erudição” e perguntou-se “como pôde falar uma linguagem semelhante àquela”, na qual nada do “acabara de viver transparecia nela” (p. 74). Ele descreve-se então como se fosse um ser duplo: o transmissor de um saber sem objeto e o praticante de uma vida. É o mesmo sentimento que tinha no Grande Liceu Condorcet e na Escola Normal: a separação entre o vivido e o teorizado, a redução do concreto ao abstrato. Ele nos conta ainda que, em Montluçon, fez entre os colegas a reputação de ser um espírito “avançado” (p. 76). Nesse mesmo ano, para cumprir as regras acadêmicas da carreira de professor do ensino superior, Maugüé cogitou de entregar uma tese de doutorado sob o “título ambicioso: Psicanálise e Sociedade”, e que para esse fim fez “uma visita a Blondel [Charles Blondel - 1876-1939], especialista da Sorbonne em ‘vontade' para convesar” sobre o tema; visita que o fez reconsiderar o rumo projeto, como ele relata: “Mas tudo aquilo que eu podia colocar de vida nessa matéria estava já morto quando deixei Blondel.” (p 75).  

 

6. Georges Dumas

Assim, enquanto pensava em como realizar essa tese sobre psicanálise, em novembro de 1934, Maugüé foi surpreendido por uma carta de George Dumas (1866-1946), o qual, por indicação de André Lalande (1867-1963), participou da banca que o examinou no concurso para professor agregado. Dumas convidava-o para assumir no Brasil a cátedra de filosofia na recém-criada Universidade de São Paulo, onde permaneceu de 1935 a 1944. Maugüé havia sido aluno de Dumas nos cursos que ele ministrava na Clínica Psiquiátrica universitária Saint-Anne e, a partir desse convite, Dumas foi uma presença constante em sua vida, particularmente em momentos decisivos de sua vida profissional. Ao relatar seu encontro com Dumas para dizer-lhe que aceitava o convite e contar-lhe sobre o que esperava de sua partida para São Paulo, Maugüé (1982) faz um retrato desse mestre: Destaca primeiro que Dumas era “evidentemente um grande patrão protetor e sabia que o era”. Destaca também que ele portava sempre o luto pela morte prematura de sua filha e que era muito humano. E conclui o esboço dizendo que Dumas “compôs para si o personagem de um sábio, metade médico e psiquiatra e metade filósofo, conjugando seus cursos sobre as doenças mentais em Saint-Anne com suas obras sobre Augusto Comte” (p. 77).

Em 1907, convidado pela Sociedade de Psicologia de São Paulo, Dumas deu uma série de conferências no Brasil, e, desde então, sua relação com o nosso país sempre foi intensa. Antes dessa visita, ele teve como alunos na Sorbonne, dois pioneiros da psicologia brasileira: Manuel Bomfim (1868-1932) e Maurício de Medeiros (1885-1966) (Campos, 2001 e Nunes, 1998). Ele participou nos anos 1910-1920 de empreendimentos institucionais do sistema universitário francês com vistas ao desenvolvimento das relações com a América Latina, sempre responsável pelas ações referentes ao Brasil. Criou, em colaboração com os governos de São Paulo e do Rio de Janeiro, os Institutos franco-brasileiros de Alta Cultura do Rio, em 1922, e de São Paulo, em 1925, ano em que realizou um outro cíclo de conferências no Brasil (Lefebvre, 1990). Em 1937, esteve no Brasil para receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de São Paulo, cuja fundação foi considerada por Lévi-Strauss (1955/2000), “a grande obra da vida de George Dumas” (p. 19). Notabilizou-se também como herdeiro do positivismo de Augusto Comte e, dessa posição, manteve relações estreitas como o positivismo Comteano no Brasil.

Maugüé (1982) comentou a relação de Dumas com a obra de Comte. Considerando que Dumas “tinha um gosto muito vivo pelo pitoresco e o cômico dos seres e das coisas”, Maugüé julgou provável que a sedução exercida por Comte, “pelo menos tanto quanto a gravidade da filosofia positiva e a condenação de toda metafísica,” tenha sido também “o burlesco do personagem, que seus primeiros amores conduziriam ao hospital de loucos e aos  tratamentos muito rudes de Esquirol”, uma vez que a paixão que Comte manteve por Clotilde de Vaux o fez “soçobrar em um verdadeiro delírio religioso”. Por outro lado, ao tratar da relação de Dumas com o positivismo, Maugüé ensaia uma explicação para a força desse movimento em nossa terra, dizendo que, se outrora “esse maravilhoso país que era o Brasil havia se casado por amor com Augusto Comte, tal casamento havia sido feito, sem dúvida, como modo de se liberar do catolicismo e de um fetichismo muito africano” . E conclui que esse casamento tornou-se aquele do Brasil com Georges Dumas, e do qual ele, Jean Maugüé, que se preparava para seu tempo na USP, “era o beneficiário” (p. 77).

 

7. Professor na Universidade de São Paulo

A experiência de Jean Maugüé no Brasil, tal como contada por ele próprio em sua autobiografia, pode ser dividida em dois momentos distintos: o inicial, que dura até o final de 1938, em que ficava em São Paulo de março a setembro e vivia em Paris de outubro a fevereiro, e um segundo momento que começa em 1939, no qual não tinha como retornar à França ocupada pelos nazistas, e que se encerra com a sua partida para integrar o exército francês como voluntário na Segunda Grande Guerra, no segundo semestre de 1944. Maugüé amava o Brasil e, em 1947, cogitou de retornar à USP e radicar-se em nosso país. Sua autobiografia é abundante em recordações e observações sobre as personalidades com as quais conviveu, e em reflexões bastante sintéticas sobre aspectos da vida econômica, social, política e cultural do Brasil. Tais recordações e reflexões não poderiam, naturalmente, ser todas exploradas neste escrito e merecem um artigo ou livro especial no qual possam ser comparadas com a bibliografia existente a respeito de sua presença entre nós e as recordações de alguns de seus colegas da Missão Francesa, a saber, Braudel e Lévi-Strauss.

Os resultados do primeiro ano da experiência de Maugüé no Brasil encontram-se registrados no Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP: 1934-1935, publicado em 1937, o qual contém seu curriculum vitae, seu ensaio, “O ensino da filosofia: suas diretrizes”, e o Programa do Curso de Filosofia e Psicologia. Chama a atenção a concisão na qual as informações são apresentadas: apenas a data e o local de nascimento; os títulos e diplomas obtidos; o registro do ano no Liceu de Montluçon e a condição de professor da USP; e a ausência do registro de trabalhos publicados, que contrasta com o curriculum de seus colegas, alguns mais velhos com o registro de mais de 50 trabalhos, e os mais novos (Lévi-Strauss, Monbeig, Braudel) já com um bom número de publicações no currículo. A esse respeito, Annita Cabral (1980/1999) informa-nos que a bibliografia de Maugüé em seu período na USP inclui “apenas artigos de circunstância sobre Racine, o cinema francês, a pintura francesa” e lamenta que nenhum de seus cursos ministrados na USP tenha sido publicado. Dois desses artigos que pude localizar são intitulados: “A pintura moderna” (1938) e “Os problemas da pintura moderna” (1940). E, em outubro de 1939, Maugüé publicou um artigo a propósito do falecimento de Freud. Por sua vez, o ensaio sobre o ensino de filosofia constitui a pedra fundamental do Departamento de Filosofia da USP; como afirmou Arantes (1994): “um documento capital para o entendimento do rumo ulterior dos estudos filosóficos uspianos, a bem dizer, sua certidão de nascimento”.

Conforme o relato de Annita Cabral (1980/1999), o aluno que se dirigia para a Psicologia cumpria três cursos dessa disciplina sob as rúbricas: percepção, memória e personalidade. No curso de percepção, ele acompanhava o pensamento sobre o tema ao longo da história da filosofia até chegar à psicologia experimental e à psicologia da Gestalt; e, no caso do curso sobre memória, chegava até a Psicanálise e tinha, como leituras obrigatórias, obras de Freud, notadamente: os Três Ensaios sobre a Sexualidade; as Cinco Histórias Clínicas; e a Psicopatologia da Vida Cotidiana. E o programa de psicologia da personalidade cobria a psicopatologia francesa e a psicanalítica, além das idéias de Pièrre Janet e Max Scheler. E, completando seu breve relato, Cabral salienta que, em todos os cursos, Maugüé colocava em evidência a riqueza da Psicologia contida na literatura criativa. Nesse sentido, Antonio Candido, em depoimento (Arantes, 1994) sobre seu mestre, aponta que ele ensinava a refletir sobre os fatos do cotidiano; “as paixões, os namoros, os problemas de família, o noticiário dos jornais, os problemas sociais, a política”, e que para esse fim, “utilizava largamente reflexões e análises sobre literatura, pintura, cinema” (p. 65). Por sua vez, Gilda de Mello e Souza (1990) ressalta que Maugüé ensinou a seus alunos um modo de “escutar” a pintura, e que os colegas de sua geração que se interessaram pelos problemas da arte são devedores de seu mestre. Assim, ela afirma que: “foi com Jean Maugüé que, em 1940, por ocasião da grande exposição de pintura francesa, aprendemos a olhar um quadro” (p. 11).

Annita Cabral conta-nos ainda que as aulas de Maugüé, dadas “na melhor tradição francesa, eram obras-primas na arte da dissertação” (Cabral, 1950, p. 44). Não eram conferências secas, eruditas ou monótonas mas aulas expositivas modelares que os alunos assistiam “com emoção religiosa, tal a impressão do alargamento de horizonte e elevação do nível de pensamento que causavam”, ... e eram levados por ele, sem que fizesse proselitismo, “à dúvida metódica, à atitude crítica, ao hábito de regarder derriere les choses.” (1999, p. 6). Dentre as muitas reflexões que Maugüé (1982) faz em sua autobiografia a respeito do ensino universitário e sobre o período na USP, uma observação parece-me esclarecer o significado da frase “regarder derriere les choses”. Tal observação é feita a respeito da experiência brasileira mas nela está contida sua atitude básica e os fundamentos de seu método de análise. Assim, ele afirma:

Eu não creio que qualquer dos meus colegas tenha se descoberto politicamente o tanto quanto eu me descobri em meus cursos. Não que eu propusesse um estudo de Freud ou de Marx, mas o que eu dizia dos autores, Descartes, Rousseau ou Hume, supunha as clarezas de Marx e de Freud (p. 98).

Quando Jean Maugüé, após as férias de 1938 em Paris, retornou ao Brasil no início de 1939, a guerra estava iminente na Europa. Assim, ele conta que preocupado com a situação fez, antes de viajar, uma visita a Georges Dumas, que o aconselhou a partir pois acreditava que uma vez declarado o conflito em breve ele deveria retornar à França para o combate. No entanto, esse regresso não foi imediato, pois, com a declaração da guerra e a ocupação da França pelos nazistas, a situação da Missão Francesa na USP tornou-se bastante complicada. Nesse momento, Maugüé (1982) tentou retornar prontamente e, junto com os colegas da USP, enviou uma carta à Embaixada da França, na qual ele e os demais recordaram as autoridades de que “estavam dispostos a combater mais efetivamente” pela sua pátria, carta que, ele diz, “ficou sem resposta” (p. 129).

Sem ter como regressar a seu país, Maugüé (1982) continuou a receber notícias e soube que seu irmão e seu primo coirmão haviam sido feitos prisioneiros, que o irmão de seu amigo Michel Pontrémoli havia sido morto no bombardeio da ponte de Orleans. Além disso, escutava regularmente a BBC de Londres e conta que, “não foi tocado pelo chamado do general de Gaulle, de junho de 1940, ... porque sua voz era recoberta pelas homilias de Petain em Vichy, que nos vinha pela UFA” (p. 134), rádio que transmitia as notícias do Reich. E, nessa situação, conta-nos que ele e os colegas da Missão continuaram a dar seus cursos e que “tinham em torno deles a mesma assistência fiel e o mesmo auditório.” Mas, acrescenta, “nós havíamos nos tornado órfãos” (p. 135).

 

8. O engajamento militar voluntário

Uma conseqüência dessa situação de orfandade foi o que Maugüé (1982) nomeou como “um gesto admirável do Governo de São Paulo”, que propôs aos professores da Missão, para vigorar durante a guerra, um contrato de trabalho que os ligava ao Brasil na qualidade de funcionários brasileiros, mas com a condição de que se abstivessem de todo tipo de ação política. Assim, ele relata que, desde que cessaram as relações deles com a Embaixada, que regulava as atividades da Missão Francesa, continuaram a “poder viver muito honrosamente com os vencimentos brasileiros”, embora, “condenados ao estado de espectadores” (p. 135). No entanto, eles não praticaram a abstinência da política demandada pelo nosso governo e foram inscritos no Comitê de São Paulo da França combatente, constituído com o consentimento do general de Gaulle. Antes da inscrição, levantaram a questão do engajamento que tinham com o governo brasileiro, o que levou o Comitê a decidir que seus nomes permaneceriam secretos.

No outono de 1940, Jean Maugüé e seu colega e amigo, Alfred Bonzon, professor de literatura, conheceram Charles Chénier, que era o comissário geral do governo francês para a Exposição “150 anos de pintura francesa”, que havia sido enviada, antes da guerra, a Buenos Aires e Montevidéu e, naquele momento, estava encalhada nos porões da embaixada no Rio de Janeiro. “Essa exposição havia sido apresentada ao público no Rio de Janeiro, com um sucesso prodigioso. Mas, desde então, ela apodrecia no sub-solo da embaixada, por falta de dinheiro para poder ser transportada para lugares seguros.” Diante dessa situação, Maugüé e Bonzon “decidiram formar, com um jovem arquiteto francês e amigos brasileiros, um comitê de honra para fazer vir a coleção a São Paulo para exposição” (p. 152). Com o dinheiro que recolheram, como era esperado, puderam pagar o transporte das telas até Nova York, onde o Metropolitan Museum, sob a fiscalização de Chenier, guardou-as até a Liberação. E Maugüé considera que sua iniciativa teve um último efeito: serviu como um incentivo a Assis Chateaubriand para a criação, no final dos anos 40, “do novo museu de São Paulo” (p. 153), o atual MASP.

Registremos ainda que, nesse período, foram defendidas três teses orientadas por Maugüé: a de Cícero Christiano de Souza, sob o título, Introdução ao estudo de alguns problemas metodológicos da Psicologia, a de João Cruz Costa, intitulada, Ensaio sobre a vida e a obra do filósofo Francisco Sanches, ambas defendidas em 1942, e a de Lívio Teixeira, Nicolau de Cusa: De Docta Ignorantia, defendida em 1944.  

O período da guerra em que esteve no Brasil foi vivido por Jean Maugüé com muita angústia: pelas notícias tristes que lhe chegavam sobre familiares, amigos e a situação em que se encontrava a França, devido à sua compulsória posição de espectador, bem como por seu desejo e dever de engajar-se na França combatente, o que custou a realizar-se. Em agosto de 1942, Maugüé (1982) conheceu Henri Jacques, que descreve como um personagem misterioso, de quem se dizia que era um emissário do general de Gaulle e ao qual ele acostumou-se a confiar suas angústias. Assim, através da mediação de Jacques, após meses de espera recebeu, finalmente, a convocação que lhe permitia partir para a guerra, partida que relata em sua autobiografia:

Recebi meu guia de marcha, que me fixava o dia e a hora e onde devia tomar o avião que me conduziria à base militar de Natal. Coloquei meus livros em caixotes, fiz minhas malas, e estava enfim pronto para dizer adeus a todos. Senti então o quanto eu amei esse país onde vivi tantos anos. O quanto eu fui pego por esse clima, feito de nevoeiro e de calor, onde a vida tem a doçura pérfida do sonho. O quanto amei minha casa, com seus velhos móveis de jacarandá, dona Conceição que abandonei sem que ela tivesse um novo trabalho no horizonte, e enquanto que meu pequeno gato não cessava de correr entre minhas pernas, como se pressentisse sua infelicidade, eu cantarolava a canção melancólica

Meu limão, meu limoeiro,
Meu pé de jacarandá.
Uma vez tindolelê,
Uma vez tindolalá.
Tendo no fundo do coração um ressaibo de traição
(pp. 145-146).

Jean Maugüé iniciou sua carreira nas forças armadas, tendo sido primeiro incorporado no campo militar de Natal, onde recebeu treinamento vestido com a farda de soldado norte-americano. Depois passa um tempo breve no norte da África (Algéria, Marrocos) e, no final do outono de 1944, já estava em combate na França. Assim, engajado nas Forças Francesas Livres terminou a guerra na Áustria em uma divisão de atiradores marroquinos. Foi integrado no exército como tenente mas no curto período em que esteve no fronte alcançou o posto de capitão. Seu périplo no exército é pontuado pelas figuras do general de Lattre de Tassigny e do general Beaufre. De seu longo relato sobre esse período e de suas observações destaco uma sobre a guerra associada à sua recordação da base militar norte-americana de Natal. O que viu nesse campo militar o fez refletir sobre a diferença entre a “guerra camponesa”, feita de fuzis velhos, esforço, bravura e coragem, como foi a de 1914-18, e a “guerra industrial” encetada por alemães, russos e americanos e feita com “as máquinas de matar mais perfeitas”, e que “podia transcender todas as coragens, quão grandes fossem elas, de um lado ou de outro” (p. 147).

Wilson Martins (1996) conta-nos que, em dezembro de 1944, na solenidade de Colação de Grau da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, o orador da turma, Paulo Emílio Sales Gomes (1916-1977), prestou homenagem aos professores franceses na pessoa de Jean Maugüé, “atualmente”, afirmou Paulo Emílio, “soldado francês em alguma parte do mundo” (p. 208).

Ao final da guerra, após ter reencontrado os pais quando Paris foi libertada, o quadro de perdas foi muito penoso para Maugüé: perdeu dois de seus melhores amigos do Liceu Condorcet: Michel Pontrémoli e Albert Lautman, a família amiga de André Amar desapareceu deportada, seu tio Meyère “foi morto em um acidente na estrada de Cannes”. Já tinha sabido antes das mortes de Paul Nizan e de Politzer. E encontrou também que “os grandes nomes universitários estavam extintos, Brunschvicg e Bergson” (p. 173). Dentro desse contexto em que deveria retomar suas atividades civis e retornar ao ensino universitário, acontece então uma nova mudança de rumo em sua vida profissional.

 

9. Conselheiro de Embaixada e Cônsul

Maugüé (1982) relata que, em 1945, o governo decidiu criar um quadro complementar para substituir os agentes do Ministério das Relações Exteriores, “cuja atitude durante a guerra se mostrou discutível, por candidatos que apresentassem garantias de cultura e de educação e títulos de guerra.” Dentro dessa nova política, o Ministério enviou-lhe uma carta na qual informava que ele “havia sido nomeado para o cargo de conselheiro de embaixada” (p. 176). Na dúvida sobre se aceitava ou não o cargo, fez uma visita ao ainda vivo Georges Dumas que, conhecendo seu desejo de segurança social, aconselhou-o a aceitar. Sua mãe, pelo contrário, embora encantada com o título que seu filho ostentaria, previu as dificuldades e o desaconselhou a entrar na carreira diplomática dizendo: “Nesse ofício, as relações desempanham um papel essencial. E, tu, tal como és, não o suportará.”

Mas, como a proposta do Ministério “respondia a tantos de meus velhos sonhos”, declara Maugüé (1982), e também oferecia uma resposta para a situação na qual se encontrava, resolveu aceitar.

Primeiro, durante o todo o tempo que passei sob as armas, desaprendi a leitura e aquilo que é chamado de vida intelectual. Meus antigos colegas me pareciam distantes e seus jogos não me diziam mais nada. Eu tinha “vivido”. Eu queria continuar a viver. E, além disso, eu me via liberado de um complexo, que pode parecer desprezível, mas do qual eu não me ruborizo, esse complexo do pequeno burguês do qual se diz constantemente que foi minha túnica de Nessus... Com esse papel do Quai d'Orsay em meu bolso, eu podia enfim, a meus próprios olhos, me sentir ajustado (en régle)” (p. 177) 

Assim, Maugüé (1982) trabalhou inicialmente no escritório central do Ministério (Quai d'Orsay), até ser nomeado Conselheiro da Embaixada de Buenos Aires (1946-1947). Esse período na Argentina foi uma experiência infeliz que ele resumiu da seguinte maneira: “... eu direi tudo se disser que nessa cidade não fiz nenhuma amizade” (p. 183). Ao final acabou adoecendo, regressou a Paris e ficou em disponilidade. Ele não gostava de Buenos Aires, embora reconhecesse sua poesia, e relata que tinha saudades das cidades brasileiras, tendo por consolo escutar os discos de músicas brasileiras e, “quando tinha um momento livre, tomava o avião, para visitar os amigos” (p. 181) que deixou no Brasil. Em 1947, surgiu a proposta de um novo contrato com a Universidade de São Paulo, o qual não se concretizou como sabemos. Essa proposta de contrato gerou uma séria polêmica que envolvia o rumo posterior da Psicologia da USP, episódio amplamente documentado no livro de Ramozzi-Chiarottino (2001). Vejamos como Maugüé (1982) sintetizou sua situação nesse momento em que teve clareza sobre a precariedade de seu cargo na diplomacia e suas possibilidades no ensino universitário:

O Brasil me oferecia um novo contrato, mas, a parte Bonzon, eu não tinha mais nenhum colega alí. E meu assistente Cruz Costa, que por seu lado se tornara professor, me escreveu longamente para me dizer como nosso prestígio havia pouco a pouco desaparecido, e que a faculdade, tornada suspeita, era apenas tolerada pelo governo brasileiro. Eu não estava, aliás, muito inclinado a reentrar no seio da Educação Nacional. De um lado como de outro, minhas ilusões estavam em parte perdidas. E, quanto a retomar um posto no Ministério, foi-me preciso esperar ainda meses e a chegada de um novo diretor (p. 185). 

No final de 1947 e início de 1948, começa a ocorrer uma reversão na política do Ministério no sentido de reintegrar os funcionários que a guerra havia feito substituir pelos do quadro complementar ou lateral, ao qual Maugüé pertencia. Nessa situação, ele ficou afastado um período, sem vencimentos, mas foi reintegrado, em 1949, logo após o falecimento de sua mãe. Após a reintegração, foi encarregado de cuidar do dossiê da Carta de Havana, aprovada por 53 países, em 1946, para evitar o desemprego em massa e seus efeitos nefastos como acontecera ao final da guerra de 1914-18. Conforme descreve Maugüé (1982), a Carta de Havana “propunha uma legislação econômica e real da vida internacional, face a  ONU que seria sua constituição política e formal”. Ela foi aprovada pelas nações mas aconteceu o costumeiro: não foi jamais ratificada pelos governos. “De tempos em tempos, um país a exumava de seus arquivos. Era então o caso da França. Passei semanas a desempenhar o papel de intermediário entre meu ministério e os deputados e senadores dos quais dependia o voto. Sem resultado.” E, livrou-se desse “rochedo de Sísifo” (p. 188) devido a ter sido nomeado para o posto de Cônsul geral de Salônica (nome atual da Tessalônica da Antiguidade grega).

O que mais se salienta nesses anos passados em Salônica, posto de observação importante durante a primeira guerra que, depois de 1950, perderá importância mas, diz Maugüé (1982), “conservará um bom nome” e servirá como um “falso grande posto” na carreira diplomática, foi a amizade que estabeleceu com uma família de judeus (família Modiano), cuja convivência tornou suportável essa experiência. Foi uma amizade para o resto de suas vidas. Assim que essa família emigrou para os Estados Unidos, Maugüé pediu para retornar a Paris. Tentou obter um posto naquele país mas terminou sendo nomeado cônsul em Toronto, cidade que lhe permitia estar próximo aos Modiano, que viviam em Rochester, Estado de New York. Em sua autobiografia, Maugüé (1982) declara que “a amizade pelos Modiano foi e permanecerá um dos momentos mais honrados de minha vida” (p. 202).

O período que viveu em Toronto (1953-54) é mais um tempo de experiência ruim no campo profissional, mas, de qualquer modo, sentia-se confortável. Estava perto da família Modiano, teve a oportunidade de encontrar personalidades importantes como: dentre outros, o Principe Sihanouk, o músico Jehud Ménuhin, e o político François Mitterand, que se tornará seu amigo e procurará sempre ajudá-lo a regularizar sua situação junto ao Ministério das Relações Exteriores. Vejamos o relato que Maugüé (1982) faz desse momento e sua visão do ofício do diplomata:
A despeito das dificuldades, eu me sentia bem reconciliado com meu posto, mas eu via conjuntamente que desviava daquilo que, durante muito tempo, tinha sido meu ser mais profundo. É verdade que o ofício de diplomata, outrora tão cobiçado, tem suas grandezas, mas também suas servidões. A pior é aquela que te reduz à tua função. Você é o cônsul. E, no mesmo corte, você não pode ver nos outros aquilo que são, mas o que representam. Atividade para a qual meus estudos e minha vida me prepararam muito mal (p. 199).

Durante os dez anos em que serviu na carreira diplomática, a situação profissional de Maugüé (e outros do quadro complementar) permaneceu em suspenso: não estava desligado do ministério de origem, a Educação Nacional, e nem religado ao Ministério das Relações Exteriores; ele jamais teve sua situação regularizada e sua continuidade ficava ao sabor da política governamental, dos caprichos dos altos funcionários do ministério e da intercessão de políticos e amigos influentes. Assim, após uma década no serviço diplomático, por decisão do governo e mudanças na política do Ministério das Relações Exteriores com relação ao tipo de diplomatas desejado, Maugüé foi, no outono de 1954, reenviado à sua administração de origem: o Ministério da Educação.

 

10. Professor do Liceu Carnot

A partir do final da década de 1950, Maugüé (1982) trabalhou como professor do Liceu Carnot até completar 70 anos, em 1974, quando foi aposentado. Mesmo nessa condição prosseguiu ensinando por dois anos para alunos do curso preparatório para as Grandes Escolas Comerciais, até que uma equipe de três jovens assumiu a direção da instituição e, após algum tempo, despediu-o, em 1976. Nesse período, ele reencontrou o meio universitário, a função de professor, o interesse por lecionar filosofia e “o julgamento infalível dos alunos sobre as qualidades morais de seus professores” (p. 213). Ao retornar, colocou-se a questão de que havia dez anos não lia filosofia e que precisava preparar-se, o que fez decidindo-se por reler o Tratado de Metafísica, de Jean Wahl. Assim, ele relata que ao começar a leitura não compreendeu nada do que lia, que via dançar sob seus olhos “a substância, a essência, a forma, o ser, os acidentes, sem poder nutrir todas essas palavras com recordações vividas”, como as do campo de batalha em Brandwaldkopf  ou os “fuzilamentos do Quai d'Orsay”. Perguntou-se então para onde aquela linguagem metafísica levaria os alunos, respondendo que seguramente não seria na direção do concreto. E, na seqüência, definiu sua posição com relação ao ensino universitário:

Mas, não temos necessidade de dizer que vamos em direção ao concreto quando fazemos a corte a uma mulher, ou quando fugimos do perigo. Na medida em que era-me necessário abandonar o mundo para não mais vivê-lo, mas ensinar sobre ele, jurei de uma vez por todas não ensinar outra coisa que não sobre este mundo. Esse mundo tal como ele é, e que não sabe que é. E, ensinar sobre ele, para desvelá-lo (p. 213).

Em sua autobiografia, Maugüé (1982) tece comentários a respeito do ensino universitário nos anos 1960/70 e conta que produziu seis cadernos escritos, totalizando 819 páginas, que foram estenografadas por um aluno, Édeline. Ele considera que o melhor de seus cursos encontra-se nesses cadernos e que gostaria de tê-los visto publicados como um “testemunho de o que era o ensino” (p. 214) naqueles anos.

O fato de ter sido despedido do Liceu Carnot em 1976 teve ressonâncias profundas no curso final da vida de Jean Maugüé (1982), que comentou esse acontecimento dizendo: “E a palavra me foi retirada. Tive um longo momento de desespero. Não ter jamais sido senão aquilo que tinha sido. E me deitar à noite, após uma jornada vazia, com o sentimento de que um muro me fechava o horizonte, sem sonhos nem projetos” (p. 11). Esse evento (somado a um infarto do qual foi acometido em agosto de 1975, além da frustração de mais uma ilusão amorosa e a pressão dos amigos para que escrevesse um livro) inaugura a última fase de sua vida, na qual dedicou-se à escrita de seu livro autobiográfico através do qual esperava ser reconhecido como escritor.

Assim, reconfortado pelos amigos nesse momento sem esperanças, Maugüé (1982) conta que decidiu-se a deixar que falasse nele “também a voz secreta que durante tanto tempo não tinha ousado escutar” e, no dia de seu aniversário, começou a narrativa e a fez tomando como princípio a idéia de que lhe restava como futuro escrever sobre seu passado: “Que me restava efetivamente como futuro? Não poderia fazer outra coisa senão encaminhar, como o fez Aragon em A Semana Santa, meu passado na direção do meu futuro. Brevemente, dar-me esse estranho futuro que é o de todo escritor: fazer meu futuro da sobreviência daquilo que vivi” (p. 11). O livro foi publicado em 1982 e teve resenha crítica de Fernand Braudel (1982) para o Le Monde des Livres. Maugüé faleceu em 1985 e não disponho de registro do que fez nos últimos três anos de sua vida, ou seja, após a publicação do livro.

 

11. O ofício do escritor

Na abertura de sua autobiografia, Maugüé (1982) relata que todos esses amigos, embora provenientes de origens diferentes (segundo o extrato social, a religião, a fortuna) partilhavam do gosto pela leitura, pela música ou pela pintura, e que sempre imaginava que seria divertido (amusant)  vê-los reunidos no dia de seu sepultamento, tendo como razão única de seu encontro a despedida do velho companheiro desaparecido. Seu círculo de amigos incluía vários de seus ex-alunos mas poucos colegas professores universitários. O fato de contar poucos amigos no meio universitário, como ele assinala, não deveria ser motivo de espanto, considerando a descrição que faz de sua relação com os colegas de profissão. Maugüé conta-nos que havia um grupo de professores universitários os quais, por terem escrito muito eles próprios e, embora tendo por ele estima, ou mesmo afeto, “não o situava senão entre seus leitores”, e que havia o grupo daqueles professores que jamais escreveram, os quais não conseguiam imaginar que “um homem que partilhou com eles as mesmas tarefas modestas de ensino” pudesse publicar (p. 9). Ou seja, o primeiro grupo (universitários escritores consagrados) tratava-o apenas como um leitor e o segundo não o considerava capaz de escrever um livro.

Os amigos e não amigos aos quais Maugüé refere-se aparecerão ao longo do livro e descobriremos que se tratam de personagens importantes da cultura francesa do século XX. Todavia, o que se salienta no início desse prefácio são suas observações a respeito de sua relação com a escrita e que esclarecem porque publicou tão pouco.

Se adiei tanto escrever, não é por falta de respeito à escrita. Pelo contrário. Pode ser mesmo que eu tenha, muito viva, a consciência daquilo que ela exige. Com efeito, ela impõe ao escritor, durante todo o tempo em que se efetua, que se retire da vida. A palavra, ao contrário, à qual consagrei o essencial de meu tempo, seja nos meus cursos, seja nas conferências, depois os anos que passei seja na guerra, seja na administração, não me demandaram jamais um tal tipo de renúncia. Assim, mesmo nos locais tão bizarros que são as salas de aula ou os anfiteatros, eu não digo que tive a impressão de estar no mais vivente da vida cotidiana, mas pelo menos eu mantinha o contato e sentia o calor. Passar à escrita é aceitar primeiro, por um tempo, a idéia de que os jogos estão terminados, uma vez que não podes ao mesmo tempo agir sobre os eventos e enegrecer teu papel. Na medida em que minha vida não foi, portanto, nem suficientemente malograda nem suficientemente bem sucedida a meus olhos, para que eu me sinta quites com ela, covardemente ou corajosamente, como se queira, eu adiei escrever (p. 10).

 

Referências Bibliográficas

- Abreu-e-Silva, N. N. (2004). História da Perspectiva Fenomenológico-Existencial – Parte II: A filosofia fenomenológica francesa e o humanismo existencial norte-americano: 1930-1970. Em, Marina Massimi (Org.), A história da psicologia no Brasil do século XX (pp. 75-86). São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária.

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Enviado em: 19/01/2007
Aceito em: 28/02/2007

 

 

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