SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.28 issue1Redeeming the memory of the pioneers: Antônio Miguel Leão Bruno (* 21/07/1903 - † 13/09/1997)Contributions to the history of the psychology of teaching system at BVS-Psi: life and work of the pioneers in psychology author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.28 no.1 São Paulo June 2008

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

Subsídios à psicologia escolar no Brasil

 

Subsidies to School Psychology in Brazil

 

 

Entrevista concedida por Maria Regina Maluf (Cad. nº 28) ao Presidente desta Academia, Arrigo Leonardo Angelini (Cad. nº 4)

Arrigo - Este Boletim tem por norma entrevistar os novos Titulares da Academia, com o objetivo de transmitir, aos leitores desta publicação, as principais idéias e posições de seus membros, perante a ciência psicológica e suas aplicações e de conhecer as possibilidades e disposições dos recém-chegados para uma efetiva colaboração na implementação das finalidades deste sodalício.

Maria Regina Maluf, uma destacada e atuante psicóloga de nosso meio, professora, pesquisadora e autora de renome, foi empossada recentemente na Cadeira nº 28 - Pompeo de Toledo. Em seu discurso de posse, publicado no último número do Boletim (Ano XXVII, nº 2/07- julho/dezembro de 2007), Maria Regina já apresentou, de forma resumida, dados de sua formação em Psicologia e uma explanação sobre suas atividades profissionais, realização de pesquisas, publicações e participação em congressos, além de outras considerações.

Nesta oportunidade, gostaríamos de formular à Maria Regina algumas perguntas específicas com o objetivo de ampliarmos nosso conhecimento sobre sua personalidade e sua produção científica, o que certamente contribuirá para o melhor envolvimento da nova Acadêmica com o sodalício que orgulhosamente a recebeu.

Arrigo – Qual a motivação que a levou a candidatar-se a uma Cadeira da Academia Paulista de Psicologia?

Maria Regina - Foi uma grande alegria para mim ter sido eleita membro da Academia Paulista de Psicologia. Roland Barthes, quando atendeu o convite para ministrar a aula inaugural da Cadeira de Semiologia Literária no Colégio de França em 19771, utilizou, em sua introdução, palavras das quais me aproprio aqui porque são as que melhor expressam meu sentir: as razões que fazem de minha entrada na Academia uma alegria mais do que uma honra, residem em que a honra pode ser imerecida, a alegria nunca o é. Para mim é uma grande alegria reencontrar aqui a lembrança ou a presença de psicólogos que honraram a ciência e a profissão a que se dedicaram; ter a oportunidade de conviver simbólica ou fisicamente com pessoas cuja vida valeu ou vale a pena; interagir com pessoas que ensinaram ou ensinam às novas gerações que a sociedade constrói-se com as ações de cada um, e, portanto, que ninguém pode ser dispensado da parte que lhe cabe concretizar.

Arrigo - O seu currículo revela especial interesse pela Psicologia do Desenvolvimento Humano e pela Psicologia Educacional. Como explica esse interesse por essas duas áreas de especialização?

Maria Regina - Essa questão permite-me evocar o papel determinante de nossos mestres em nossas vidas. Caro Dr. Arrigo, infelizmente não fui sua aluna, pois só nos conhecemos devido à sua visita à Universidade de Louvain e depois nos encontramos no Brasil. Mas, mesmo assim, devo dizer que o senhor muito me ensinou no Instituto de Psicologia da USP, onde compartilhamos a vida profissional por alguns anos.

Meu interesse pela Psicologia do Desenvolvimento Humano e Psicologia Educacional começou nas aulas do Professor Enzo Azzi para os alunos de graduação em Pedagogia, na Universidade Católica de Campinas, entre os quais eu me encontrava. Dr. Enzo ensinava-nos, com ênfase, gosto e convicção, o que a Psicologia da época sabia sobre a "criança carente": os prejuízos para sua educação, as formas prováveis de seu processo evolutivo, a possível influência das condições de vida sobre o desenvolvimento infantil. Era algo muito novo para mim, que, começando minha formação na universidade, estava descobrindo reflexivamente a sociedade em que vivia e aspirando a encontrar nela o meu lugar.

O interesse assim despertado pela Psicologia foi tanto que, no 4º. ano do curso de Pedagogia, mudei-me para o Rio de Janeiro, onde dei início ao curso de Psicologia.

Sempre me senti mais atraída pelos enfoques cognitivistas da Psicologia – em contraposição aos psicanalíticos e associacionistas, que na época capturavam as maiores freqüências de adesão. Assim, ao dar continuidade aos meus estudos de Psicologia na Bélgica, encantei-me com os ensinamentos do Professor Joseph Nuttin, que ensinava a psicologia da motivação humana... Mas, novidade para mim, ele ia além das motivações inconscientes que estudávamos, sobretudo em Freud, sob a forma de psicopatologia da vida cotidiana, dos atos falhos, da busca de significado dos sonhos, da história de Miss Lucy. Nuttin também trazia argumentos para o debate com os associacionistas, para os quais a motivação não poderia ser objeto de estudo científico, por não fazer parte dos fenômenos diretamente observáveis. Foram verdadeiras discussões baseadas em argumentos, que consideravam as hipóteses rivais, que utilizavam evidências, e assim muito aprendi.

Estávamos no final dos anos 60 e as abordagens cognitivistas da psicologia buscavam seu lugar na Psicologia da época, ou seja, disputavam preferências teóricas com outros enfoques. Muitos debates ocorriam nas intersecções das grandes matrizes: behaviorismo, psicanálise, gestaltismo, abordagens humanistas designadas como "terceira força"... As neurociências estavam ainda bem distantes do lugar que hoje ocupam nos estudos psicológicos.

Meu interesse pelo estudo do desenvolvimento da motivação humana consolidou-se e ampliou-se, abarcando a questão do tempo psicologicamente vivido, ou seja, o horizonte temporal humano, com ênfase na perspectiva temporal do futuro, por meio da elaboração de planos e projetos. Todas essas questões passavam pelo desenvolvimento e pela educação.

O tema do desenvolvimento psicológico da criança passou a ser objeto de muitas de minhas atividades de docência e pesquisa. Penso que, devido em grande parte ao tipo de formação que recebi e incorporei, sempre tive preferência pela demarcação de questões a serem estudadas a partir da interlocução com pesquisas anteriores, ou seja, das revisões de literatura. Quero dizer que, sem colocar em questão a opção daqueles que se posicionam como seguidores de um autor ou de uma escola, essa nunca foi uma opção para mim. Aprendi com Nuttin e com outros mestres - que não relaciono aqui para não cansar o leitor - que o valor das teorias deve ser medido pela capacidade demonstrada de interferir na realidade. Produzimos conhecimento para introduzir mudanças na direção e na construção de nossos valores. A construção teórica tem como objetivo maior explicar o seu objeto. Em outras palavras, conhecemos o real para nele agir. E nesse sentido concordo com aqueles que admitem que o valor de uma teoria reside em sua utilidade. Não somos espectadores no mundo: somos os protagonistas. Busquei sempre estudar e entender teorias para pô-las à prova.

Desenvolvimento psicológico e educação são conceitos que expressam dois lados de uma mesma realidade: o desenvolvimento depende da educação e a educação produz desenvolvimento. Eles podem ser separados para fins de análise em projetos de investigação que exigem recortes. No entanto, estão intimamente relacionados. Eu diria que, mesmo na dimensão conceitual, estes constructos estão sendo entendidos na contemporaneidade de modo a incorporar a interação entre eles. Por este caminho, minha atividade de docência e pesquisa encaminhou-se também para o tema da formação e atuação do psicólogo escolar, ou, se preferirmos, do psicólogo educacional. Penso que o psicólogo que atua na educação é chamado constantemente a fazer uso de conhecimento a respeito das mudanças desenvolvimentais que fazem parte da condição humana, do nascimento à morte, ou seja, do horizonte temporal da vida humana, com os desejos e temores que a permeiam. Educar é também propiciar desenvolvimento.

Arrigo – Como sabemos, infelizmente, a Educação no Brasil deixa muito a desejar, especialmente quando se trata da escola pública nos níveis fundamental e médio. Como a Psicologia, posta a serviço da Educação, poderá contribuir para a melhoria dessa situação?

Maria Regina - Sim, a Psicologia pode contribuir para melhorar a Educação. Como? Produzindo conhecimento útil e incorporando em seu fazer a relação com a prática. Falo da Psicologia Educacional de nossos dias. Tomando como base a sociologia do conhecimento e a epistemologia de Boaventura de Souza Santos2, penso que a Psicologia Educacional de nossos dias pode fazer sua parte para "reinventar a emancipação social", porque as reflexões epistemológicas sobre as quais se assenta conduzem ao reconhecimento e construção de novos paradigmas e teorias, que se ajustam a nossas realidades sociais, que nos permitem ser "objetivos, mas não neutros", que incorporam as novas formas de racionalidade que estão emergindo em países não hegemônicos. Por países não hegemônicos entendo a América Latina, assim como muitos outros da África e do continente asiático.

No início dos anos 80, no Brasil, uma crítica radical à psicologia escolar e à atuação dos psicólogos escolares foi bem-vinda. Ela desvelou entendimentos e procedimentos que produziam ou mantinham processos de exclusão escolar e social. Não se deve esquecer que, desde o início do século 20, alguns psicólogos já detectavam a associação entre mau resultado na escola e condições de pobreza (como por exemplo, em nosso País os trabalhos de Helena Antipoff). Na década de 90, novas formas de atuação do psicólogo escolar desenvolveramse. Nossa literatura da área não é escassa no tratamento dessa questão. Alguns anos passaram-se. Hoje encontramos múltiplas experiências que evidenciam a importância da psicologia para a compreensão de processos de ensino, de aprendizagem, de relações interpessoais e outros. A elaboração conceitual está em curso. Penso que caminhamos para teorias e práticas de psicologia educacional que concorrem para o atendimento dos objetivos da educação, sobretudo da educação escolar.

Embora o Brasil, no conjunto dos países latino-americanos, ocupe um lugar proeminente na produção de conhecimento por meio da pesquisa, não se destaca ainda como um País que conseguiu dar à escolarização básica o lugar que ela deve ocupar nas políticas públicas da área educacional. Nosso sistema educacional, que estabelece a escolaridade obrigatória de 9 anos, ainda sofre de profundas mazelas que em grande parte explicam a precariedade de desempenho e aprendizagem dos milhares de crianças que nele estão inseridas.

Trabalhando sobre questões de desenvolvimento infantil e educação, continuamente me deparo com a problemática dos alunos "que não aprendem" e que, em nome dessa deficiência, são encaminhados às clínicas-escola, ou a psicólogos que atendem em consultórios, e mesmo a unidades básicas de saúde, como ocorre no Estado de São Paulo. São múltiplas as evidências de que a "dificuldade de aprendizagem", localizada na criança, é com enorme freqüência uma dificuldade de ensino, com origens e explicações diversas. No caso dos nossos professores, a dificuldade de aprendizagem das crianças passa pelo mau ensino, pelas condições adversas de trabalho, como por exemplo classes excessivamente numerosas (um número ótimo de alunos em sala, para o início da escolarização, é de 20 e não ultrapassa 25) e formação inadequada, por teoricismo gerador de falsa erudição na escola e precariedade de experiências práticas acompanhadas de savoir faire (...) No caso das crianças, passa pelas conseqüências da pobreza em prejuízo de seu desenvolvimento e pelas condições adversas de vida, pela vulnerabilidade social das famílias, pela falta de moradia, e, além de tudo isso, por más condições de ensino oferecidas nas escolas. É nessa realidade que trabalha o psicólogo da educação. É nela que a nova psicologia educacional constitui-se e contribui efetivamente com a educação para produzir o sucesso escolar. Porque todos aprendem quando lhes são oferecidas condições para isso.

Arrigo – Recentemente você foi eleita Presidente da Sociedade Interamericana de Psicologia. Acredito que é a quarta personalidade brasileira a merecer essa distinção. Quais seriam suas idéias para ampliar o relacionamento da SIP com a nossa Academia?

Maria Regina - A Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP) é familiar para um significativo número de psicólogos brasileiros. Suas origens remontam ao ano de 1951 e o senhor faz parte dessa história, incluído entre os pioneiros que pensaram e criaram uma Sociedade Científica para a comunicação entre os psicólogos do continente americano. Constam dos registros que foi o 13º. Presidente da Sociedade. Nas últimas eleições, em 2008, fui eleita com os votos generosos de apoio de muitos colegas e amigos dos diferentes países que integram a SIP, como 32ª. Presidente dessa Sociedade, constatando-se que pela 4ª. vez um psicólogo brasileiro ocupa esse cargo eletivo.

Essa condição gerou em mim um renovado e contínuo interesse por tudo que concerne à Psicologia nos países do continente americano. Estados Unidos e Canadá fazem parte do hemisfério norte, onde, sobretudo se constituiu a psicologia dominante; considero que os psicólogos desses países que integram a SIP são parceiros e mostram grande interesse pelos estudos inovadores feitos por seus colegas latino-americanos. Os psicólogos do Caribe e América do Sul encontram na Sociedade um espaço precioso de troca, intercâmbio, formação de grupos de trabalho, incentivo para abrir novos caminhos para a teoria e a prática da Psicologia. A Academia Paulista de Psicologia tem colaborado com a SIP em diversas ocasiões, como por exemplo, na organização e realização de seus congressos. Tenho uma forte e positiva expectativa de que tais colaborações não só continuam, mas também se ampliem, em benefício do desenvolvimento da Psicologia nas Américas e no Brasil.

Arrigo – Maria Regina, é uma grande satisfação tê-la na Academia. Em nome dela, agradeço sua disponibilidade por conceder a presente entrevista, que constitui um expressivo aporte para o desenvolvimento da Psicologia, em especial, da Escolar, principalmente direcionada aos problemas educacionais brasileiros.

 

 

Recebido em: 15/02/2008
Aceito em: 20/04/2008

 

 

1 Roland Barthes (1977/2004), Aula. São Paulo: Cultrix. p.8
2 Boaventura de Souza Santos (2007). Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social. São Paulo: Boitempo. pp. 17-22

Creative Commons License