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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. v.28 n.2 São Paulo dez. 2008

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

Pedro de Alcântara, Haim Grünspun e a defesa da criança: discurso de posse na Academia Paulista de Psicologia

 

Pedro de Alcântara, Haim Grünspun and the protection of children: speech on taking office at the São Paulo Academy of Psychology

 

 

César Ades1

Cadeira nº 19 “Pedro de Alcântara”
Instituto de Estudos Avançados – Universidade de São Paulo

 

 


RESUMO

A Psicologia no Brasil, que se desenvolveu de forma impressionante nas últimas décadas, encontra-se no momento de integrar suas vertentes e compor um projeto centrado na contribuição social. Nesse contexto de engajamento estão as personalidades homenageadas, Pedro de Alcântara, pediatra, Patrono da Cadeira 19 da Academia Paulista de Psicologia, e Haim Grünspun, psiquiatra, seu último ocupante. Ambos dedicaram sua carreira ao estudo e à defesa da criança. Pedro de Alcântara que teve um papel importante no desenvolvimento institucional da higiene mental infantil entendia que não se pudesse atender à criança sem levar em conta suas necessidades psicológicas. Haim Grünspun, sem deixar de defender um enfoque multidisciplinar, deu destaque aos determinantes psicológicos. Contribuiu, com seus livros e artigos, ao estabelecimento da psiquiatria infantil entre nós. Além disso, lutou em prol dos direitos dos menores e das formas várias de atendê-los, através da atuação social e da intervenção dirigida ao contexto familiar. A pesquisa moderna tem desvendado, com rigor e inovação, os complexos processos que regem o comportamento de crianças, mostrando o modo como a programação evolutiva integra-se às condições do ambiente sociocultural e abrindo perspectivas para a prática psicológica.

Palavras-chaves: Pedro de Alcântara; Haim Grünspun; Comportamento infantil; Psiquiatria infantil.


ABSTRACT

Psychology in Brazil, which has developed in an impressive manner during these last decades, finds itself in the right moment to integrate its aspects and to compose a project centered in the social contribution. The following personalities distinguished are within this context of engagement: Pedro de Alcântara, pediatrician, Patron of Chair #19 of the São Paulo Academy of Psychology; and Haim Grünspun, psychiatrist, its last occupant. Both dedicated their careers to the study and protection of the child. Pedro de Alcantara, who had an important roll in the institutional development of the infantile mental health, could not understand the child’s attendance without taking into account his psychological needs. Haim Grünspun, notwithstanding his defending a multidisciplinar focus, gave emphasis to the psychological determinants. He contributed with his books and articles, toward the establishment of the infantile psychiatry between us. Furthermore, he fought for the rights of children and the various manners of attending them, through social action and the intervention directed to the family context. Modern research has unveiled, with rightness and innovation, the complex processes that rule children’s behavior, showing the way how the evolutive programming integrates with the conditions of the sociocultural environment and opening perspectives to the psychological practice.

Keywords: Pedro de Alcântara; Haim Grünspun; Child behavior; Child psychiatrist.


 

 

Eis-me de beca, um pouco inconfortável para quem costuma andar de manga de camisa, agora membro da Academia Paulista de Psicologia. Garanto a vocês, é com muita honra e com emoção. Depois de uma longa jornada, sempre entusiasmada, pela pesquisa e pelo ensino em Psicologia, sinto-me gratificado de me ver integrado ao grupo dos que sempre batalharam para construir a Psicologia no Brasil.

Quero agradecer a presença, nesta rara oportunidade, de todos os acadêmicos, agora companheiros, os professores Arrigo Leonardo Angelini, Presidente da Academia Paulista de Psicologia, Aidyl Macedo de Queiroz Pérez- Ramos, Waldecy Alberto Miranda; do Professor Paulo Nathanael Perreira de Souza, Presidente do Conselho de Administração do CIEE; das Professoras Emma Otta, Patrícia Izar, Marilene Proença Rebelo de Souza e dos colegas do Instituto de Psicologia, onde me criei; do pessoal do Instituto de Estudos Avançados, onde agora procuro avançar; de meus orientandos, entre eles Patrícia (com sua filhinha Micaela que não entende o que está acontecendo mas sabe de muitas outras coisas); de Dona Cida; das pessoas muito queridas de minha família (Noêmio Lerner, Maurício e Henriette Dalva não puderam estar presentes, mas sou grato pelo seu apoio); e de minhas filhas Lia e Tati, fontes inesgotáveis de afeto. É bom partilhar a festa com o amigo e colega Lino de Macedo, que foi diretor quando eu fui vice e vice quando fui diretor do Instituto de Psicologia da USP. E ter conosco hoje Henrique, filho de Haim.

Sou otimista quanto à Psicologia no Brasil. Ela se desenvolveu de uma maneira impressionante desde a época em que me senti original, quase excêntrico, por assumir que eu seria psicólogo e em que entrei impressionado, para as primeiras aulas, no prédio da Maria Antonia. Cursos, especializações, mestrados e doutorados, revistas e publicações, intercâmbios, sociedades científicas, Conselhos, ANPEPP, enfim tudo indica um momento de pujança.

É, para a Psicologia, um momento de especial importância, um momento que eu entendo como uma passagem, em que cabe a ela assumir-se como projeto. Estamos todos acostumados às diferentes maneiras de se fazer psicologia. É talvez uma das primeiras lições que o estudante de graduação aprende, a de que os seus professores pensam diferentemente uns dos outros. Há um charme nesta multiplicidade e talvez a intranqüilidade que dela decorre, fundamentando muito do que é criativo na área. Por causa de sua diversidade interna é que a Psicologia abre-se para a interdisciplinaridade. Não posso queixarme, disso fui beneficiário: pude estudar o comportamento de muitos animais, da aranha ao primata, num instituto de Psicologia.

Mas é preciso ir além da diversidade, não tomá-la como um estado de coisas que justifica a si próprio. É necessário compor esta rica contribuição das vertentes psicológicas num corpo integrado de conhecimento e apresentá-lo à sociedade como contribuição. Não se trata de privilegiar uma determinada abordagem epistemológica, mas de incentivar um contato entre enfoques centrado no objeto de estudo e na função social do conhecimento (mais do que nos próprios pressupostos).

Participei ontem de uma mesa-redonda, no Instituto de Estudos Avançados, na qual a Reitora da USP, Suely Vilela, e os ex-reitores Melfi, Marcovitch, Fava, Guerra e Goldemberg apresentaram suas idéias prospectivas a respeito da USP. Foi até mencionado o projeto de pensar-se 2034, que é quando a universidade fará 100 anos. Senti a pouca presença das ciências humanas no quadro que a reitora traçou das iniciativas temáticas da USP e concordei com Jacques Marcovitch quando propôs que se pensasse na criação de um forum das humanidades.

Não faz muito tempo, no salão do Conselho Universitário da USP, o Professor Marco Antonio Zago, presidente do CNPq, mencionou genética, energia, estudos ambientais, nanotecnologia e outras áreas como estratégicas, dentro da previsão do desenvolvimento científico para os próximos anos. Da lista não constavam as ciências humanas e eu estava quase levantando o braço quando outro colega fez a pergunta. “E as ciências humanas?”.

E a Psicologia? Como queremos que seja, daqui a dez anos? Como poderá integrar-se melhor aos projetos de outras áreas científicas, trabalhar sua multiplicidade interna? Que contribuições poderá prestar em áreas socialmente relevantes? São perguntas que devem ser recolocadas, em termos de projeto.

É neste contexto de uma Psicologia engajada em questões de relevância social que se situam as duas personalidades que irei homenagear, uma delas, o Patrono da Cadeira 19, Pedro de Alcântara Marcondes Machado, a outra o meu antecessor, Haim Grünspun (Haim): um, pediatra e o outro, psiquiatra. Ambos tinham um interesse fundamental pelos jovens, ambos dedicaram sua carreira ao estudo e à defesa da criança, entendida como autônoma em relação aos objetivos e concepções dos adultos. Ambos acreditavam que nada poderia ser feito sem primeiro conceder à criança seus plenos direitos. Há mais do que uma afinidade entre ambos, Pedro de Alcântara foi professor de Haim e foi quem escreveu o prefácio para o seu primeiro livro (Grünspun, 1961).

Pedro de Alcântara, um dos fundadores da Escola Paulista de Medicina, em 1933, foi o criador, em 1945, da Cátedra de Higiene da Primeira Infância na Faculdade de Higiene Pública. Em 1946, ingressou na Faculdade de Medicina da USP com uma tese de Cátedra que, muito significativamente, tinha por título Contribuição para o estudo da proteção da criança contra os agravos psíquicos. Lá criou a memorável Seção de Higiene Mental na Clínica Pediátrica onde introduziu, pela primeira vez, uma equipe interprofissional para atendimento da criança, incluindo (eram os anos 1950) o psicólogo no hospital. Aidyl Macedo de Queiroz Pérez-Ramos, de quem obtive esta informação, foi a “psicologista” da equipe e relata a alegria que era conviver com o Professor Alcântara. A Seção acabou dando origem ao grande Instituto da Criança do HC. Pedro de Alcântara formou gerações de pediatras e foi indicado Patrono da Cadeira 10 da Academia Brasileira de Pediatria.

Seu duplo patronato, em Pediatria e em Psicologia, é uma indicação do quanto pode ser frutífera a convergência entre campos do saber.

Pedro de Alcântara ressaltava a importância de remontar às causas sociais (pobreza, desnutrição) dos problemas da saúde infantil, mas também entendia que não se conseguiria atender à criança sem levar em conta o seu ambiente psicológico. “A interdependência entre as condições do organismo e do psiquismo”, escreve ele no prefácio ao livro de Haim, “fazem com que, vezes sem número, os cuidados prestados às condições orgânicas da criança sejam torpedeados pelo descuido de suas condições psíquicas...” (Grünspun, 1961, p. vii). Segundo ele, dever-se-ia efetuar uma renovação no ensino médico “a fim de restringir o exclusivismo da formação organicista e curativa da mentalidade médica e de enriquecê-la com os aspectos preventivo, psicológico, familiar, ambiental e social...” (p. viii). Ressaltava a necessidade de se ter uma equipe: “o caráter “oceânico” da alma humana em geral e da turbilhonante alma infantil em desenvolvimento exige a cooperação de variados técnicos, a fim de que a caracterização do distúrbio e o estabelecimento e o seguimento das diretrizes terapêuticas possam ser utilmente realizados” (pp. ix-x). Num de seus textos (Alcântara, 1964), uma criança imaginária dialoga com um adulto a respeito da pouca atenção que as crianças recebem e acaba propondo, para defendê-las, a criação de um “Partido das Crianças”.

Falo com especial simpatia de Haim Grünspun porque o conheci e porque tive a alegria de ser colega de Feiga, sua esposa, durante o curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia. É difícil colocar, em poucas palavras, a sua contribuição, porque ela é múltipla. Sem nunca deixar de interessar-se pelo tema de sua vida inteira, crianças e adolescentes, Haim enveredou por vários campos, sempre como pioneiro, com impressionante capacidade de trabalho e de assimilação de informação.

Nasceu na Romênia em 1927 e veio com cinco anos ao Brasil (este é um dos pontos de identificação: também vim para cá jovem, aos quinze anos. Outro ponto, Haim tem uma filha psicanalista, Suzana, e eu uma filha psicóloga, Lia). Formou-se médico em 1952 na Faculdade de Medicina da USP, com especialização em Psiquiatria (1956) e, tendo passado em concurso, começou logo a exercer sua especialidade. Era inseparável de seu cachimbo.

Da fase de formação, temos um testemunho delicioso no livro autobiográfico Trem para o Hospício (1980), no qual relata acontecimentos da viagem que fazia regularmente, como plantonista do Hospital Franco da Rocha, no trem que saía às 7 horas e 11 minutos e lá chegava à 8 horas e 14 minutos e onde viajavam médicos, professores, estudantes e “loucos”. Nota: Haim que era o único estudante que freqüentou assiduamente o Juqueri. E acrescenta: minha namorada achava que era perder; meu chefe dizia que era ganhar experiência. Os relatos são de uma memória e de uma vividez impressionantes. Vários dos capítulos são estudos de caso feitos de forma impressionista que demonstram o interesse e a empatia que Haim mantinha em relação às pessoas (o cronista/ memorialista também está em Anatomia de um bairro: o Bexiga, 1979 e em Dos 70 aos 60: uma novela familiar, 1995).

Havia, também, no vagão de primeira classe com os bancos forrados de couro esverdeado (o “vagão dos médicos”), contatos memoráveis em que noções essenciais eram discutidas com os mestres, fora da formalidade da sala de aula. Haim preparava-se para os debates improvisados, queimando as pestanas (a expressão é dele) e usando, na hora da discussão, a velha técnica judaica do pilpul, que consiste em discutir através de teses e antíteses. Confessa: Na pujança de minha juventude, achava [os mestres] geniais. No capítulo “Ordem e progresso”, identifiquei um desses mestres geniais, também meu professor, Aníbal Silveira.

Nunca deixando de ser médico, motivado pelo cuidado aos pacientes, logo no início de sua carreira Haim definiu-se pela Psicologia, por vocação e mediante o contato com pessoas que ele estimava muito, como a Madre Cristina Maria. Ao lado do registro de médico do Conselho Regional de Medicina, obteve o registro de psicólogo do Conselho Regional de Psicologia. Foi professor de Psiquiatria Infantil no curso de psicologia clínica da PUC; diretor clínico da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae de 1955 a 1975 e diretor do próprio Sedes.

Seus primeiros trabalhos foram publicados em revistas psicológicas, no Boletim de Psicologia e na Revista de Psicologia Normal e Patológica. Não é de estranhar que Feiga, sua esposa, tenha se interessado em cursar Psicologia.

Na abordagem de Haim, os conceitos psicológicos integram-se de uma forma natural aos conceitos fisiológicos e farmacológicos, sem questionamentos cartesianos. “Era um grande professor de medicação”, relata seu filho Henrique, também médico. Na primeira palestra que vi Haim apresentar, de cachimbo na boca, no Centro Acadêmico da Psicologia, na USP, sobre disfunção cerebral mínima, impressionou-me a tranqüilidade com que passava das considerações sobre o funcionamento cerebral aos pormenores do comportamento.

Dentre os serviços psicológicos que ele mantinha, estava o de avaliação de aptidões e orientação vocacional. No meu caso, acertou, vale a pena contar como foi. Eu era aluno de segundo ano de psicologia e um dia a Feiga sugeriu: “por que não faz um teste vocacional com o Haim?”. Fui ao consultório dele, a psicóloga aplicou-me uma longa bateria de testes. Haim depois me convocou para comunicar os resultados. Mostrou-me os escores, um por um, e concluiu: “tudo indica que você vai fazer pesquisa”. Mas eu tinha na cabeça que eu seria psicólogo clínico. Agradeci a ele, elogiei a psicóloga e os escores, e afirmei: eu sei que irei para a clínica. Muitos anos depois, encontrei-me com Haim num congresso, creio até que na mesma mesa e eu apresentei resultados experimentais. Pensei: acho que ele não se lembra do episódio da orientação vocacional. Mas, não, mal saímos do auditório para tomar café, Haim apontou o dedo para mim: Você viu, os testes, era ou não era pesquisa que você ia fazer?

Os manuais sobre distúrbios da criança que Haim escreveu constituem uma base para o estabelecimento da Psiquiatria Infantil entre nós. Foram três, Distúrbios psiquiátricos da criança (1961), Distúrbios neuróticos da criança (1965) e Distúrbios psicossomáticos da criança (1980). Tanto era o entusiasmo de Haim a respeito da área (refere-se aos “extraordinários progressos da Psiquiatria Infantil nos últimos anos”) que, já na introdução de Distúrbios psiquiátricos, um livro de 576 páginas, prometia os outros dois volumes, o segundo que acabou tendo 635 páginas, e o terceiro, 497 páginas. “Nem por isso”, reconhece, “teremos por esgotado o fascinante assunto” (Grünspun, 1961, p.xiv). No cerne de sua abordagem, estava a maneira de tratar problemas de comportamento em crianças, não indiretamente, através apenas de uma ação dirigida aos pais e nem como se a criança fosse um adulto em miniatura.

Além desses livros e de sua colaboração na organização e conteúdo de outros, Haim publicou muitos artigos e capítulos sobre sua especialidade e proferiu um sem número de palestras e aulas, em congressos e reuniões: foi infatigável no chamar a atenção para o sofrimento infantil e para a possibilidade de remediá-lo. Foi muito ampla a sua influência, não apenas na ação direta de comunicação e ensino, mas através de seus textos que têm reedições freqüentes.

Em sua trajetória, pautada pela defesa das crianças, era inevitável que enveredasse pela área do Direito. A interface entre Direito e Psicologia, muito pouco desenvolvida ainda, entre nós, teve em Haim um defensor que não ficou na teoria. Formou-se em direito, em 1970, na Faculdade de Direito de Bragança Paulista. “Fui fazer curso de Direito”, declarou uma vez (entrevista em Pailegal.net, 2008), “porque conheci na década de 60, na Dinamarca, um velho Professor de Psiquiatria Infantil que se tornou Juiz de Menores, dizendo que não se podia atender integralmente as crianças sem antes defender seus direitos”.

Deste interesse, surge em 1985 Os direitos dos menores, que prenuncia movimentos posteriores em prol das crianças e de um estatuto especial para elas e adolescentes. É interessante encontrar, no livro, a proposta de um Ministério do Menor que cuidaria “da vida dos menores desde o seu nascimento, ou antes mesmo, com o planejamento da assistência, proteção e prevenção em todas as áreas e com verbas nacionais a que fazem jus todos os que nascem e desenvolvem-se na nação” (p. 123). É, de outro ângulo, a retomada do Partido das Crianças imaginado por Pedro de Alcântara.

O seu interesse pela mediação familiar também nasceu de um contato, desta vez, na década de 90, com um juiz canadense aposentado, o qual tinhase tornado mediador familiar como forma de trabalho voluntário. Haim publicou em 1988 e 1989 artigos a respeito, na Revista do Advogado, e depois, na virada do milênio, um livro que, segundo ele, deu-lhe muito trabalho para escrever, Mediação familiar: o mediador e a separação de casais com filhos (2000). A mediação não é, nesta proposta, um desempenho preso a currículos e conselhos, mas a atuação de profissionais especializados em outras áreas, feita dentro do espírito da participação voluntária.

Era também inevitável que Haim enveredasse por temas de educação e de família. Temos vários livros dele sobre esses temas, destinados a um público amplo. Entre eles, destaco Assuntos de família (1984), escrito (em família) com Feiga, a partir de cursos dados por eles pelo Brasil todo, sobre temas como o relacionamento, a violência, a droga, a escola. Haim e Feiga tiveram durante anos atuação produtiva no movimento da Escola de Pais, que ele fundou junto com outros médicos e pais.

De modo significativo, Haim dedica o seu último livro Criando filhos vitoriosos: como e quando promover a resiliência (2006) à memória de seu professor de pediatria, Pedro de Alcântara. Estes são os ciclos da filiação acadêmica. Nas palavras de Haim: “resiliência é a capacidade humana de se recuperar e se superar, ou ser imune psicologicamente, quando se é submetido à violência de outros seres humanos ou a estresses por catástrofes da natureza... ser resiliente é a conseqüência do conhecimento dos riscos e fatores de risco... e dos fatores de proteção que o indivíduo encontra dentro de si, na família e no ambiente” (p. 1). A resiliência é um tema muito recente em Psicologia e muito relevante para a análise da motivação humana. É notável que Haim o tenha aproveitado logo e o tenha posto em prática. Creio que, mesmo sob outros nomes, a resiliência foi um dos temas que percorreram a sua obra.

Não tenho realizado pesquisa sistemática com crianças, embora tenha sempre usado os resultados mais recentes a respeito delas como elemento em minhas aulas e em meu pensamento, e embora representem uma verdadeira paixão para mim.

Vejo o ser humano como produto de uma evolução biológica através da qual características essenciais da criança - a curiosidade, a confiança, o apego, a capacidade de brincar, a capacidade de aprender – têm a sua vigência prolongada até a idade adulta. Há mais verdade do que se supõe no lema de que a criança é o pai do adulto e sempre existe a esperança, expressa na letra de uma das canções de Chico Buarque de Holanda, de que “gente grande saiba ser criança”.

As crianças são mesmo fascinantes. Sabemos muito mais, hoje, a respeito delas, e isso, por mérito da pesquisa psicológica. Impressiona o progresso feito na decifração da mente do bebê. William James, geralmente perspicaz, disse uma vez (James, 1890) que o mundo, tal como experienciado pela criança, é uma “blooming, buzzing confusion”, ou seja um caos de impressões desconexas ou imprecisas. Sabemos agora a impressionante competência da mente do bebê, sua capacidade em decodificar o seu ambiente social e em entrar em sintonia ativa com ele, sua prontidão para aprender, a um ritmo alucinante, o que é essencial, as categorias perceptuais e cognitivas precisas e pré-programadas que o preparam para a trajetória complexa do viver humano. Temos também uma idéia de como, através de seu desenvolvimento, a criança adquire uma leitura especial de sua própria mente e da mente dos outros, estabelecendo equivalências e criando representações ao mesmo tempo sutis e avassaladoras do mundo emocional dentro do qual se desenvolverá.

Tudo o que eu sei a respeito de bebês, de crianças, de adolescentes e de gente grande, dá-me a convicção de que tudo acontece a partir da interação (da integração) entre programas antigos, construídos ao longo de uma história cuja duração a gente nem consegue imaginar e os registros da circunstância social e cultural dentro da qual estes programas adquirem realidade. Esta crença é que me orientou em todas as pesquisas e deu-me a crer que, no final das contas, onde quer que me levasse a minha curiosidade psicológica, eu sempre estaria às voltas com um conhecimento relevante para o ser humano.

 

Referências

• Alcântara, P. (1964). Homenagem. Revista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina a Universidade de São Paulo. 19, pp.340-343.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1961). Distúrbios psiquiátricos da criança. São Paulo: Fundo Editorial Procienx.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1965). Distúrbios neuróticos da criança (2ª Edição). Rio: Atheneu.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1979). Anatomia de um bairro: o Bexiga. São Paulo: Livraria Cultura Editora.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1980). Distúrbios psicossomáticos da criança. São Paulo: Atheneu.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1980). Trem para o hospício. São Paulo: Livraria Cultura Editora.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1985). Os direitos dos menores. São Paulo: Editora Almed.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1988). A guarda dos filhos menores e o interesse das crianças. Revista do Advogado. 8, pp.83-90.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1989). Pai, quais os direitos de teu filho. Revista do Advogado. 9, pp.29-37.         [ Links ]

• Grünspun, H. (1995). Dos 70 aos 60: uma novela familiar. São Paulo: Editora Marco Zero.         [ Links ]

• Grünspun, H., & Grünspun, F. (1984). Assuntos de família: relacionamento, sexo, TV, violência, droga, escola. São Paulo: Editora Almed.         [ Links ]

• Grünspun, H. (2000). Mediação familiar: o mediador e a separação de casais com filhos. São Paulo: Editora LTR.         [ Links ]

• Grünspun, H. (2006). Criando filhos vitoriosos: quando e como promover a resiliência. São Paulo: Atheneu.         [ Links ]

• James, W. (1890). The Principles of Psychology. Boston: Henry Holt.         [ Links ]

• Pailegal.Net (2008). O mediador e a separação de casais com filhos: Entrevista com Haim Grünspun. Em: http://www.pailegal.net/fatpar.asp?rvTextoId=26102546 (acessado em 09 de outubro de 2008).         [ Links ]

 

 

Recebido em: 20/08/2008
Aceito em: 04/09/2008

 

 

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