SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.29 número1Stress ocupacional e qualidade de vida em clérigos(as)Intervenção psicomotora lúdica na construção do pensamento operatório índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. v.29 n.1 São Paulo jun. 2009

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

Cultura organizacional e processos de inovação: um estudo psicossociológico em empresa de base tecnológica

 

Relationships between organizational culture and innovation processes: a psychosociological case study in a technology-based company

 

 

Renata Semensato Pereira de GodoyI,1; Dóris Lieth Nunes PeçanhaI,II,2

IUniversidade de São Paulo
IIUniversidade Federal de São Carlos

 

 


RESUMO

Esta pesquisa analisa, sob o olhar da psicossociologia, as relações entre cultura organizacional e processos de inovação em empresa, de base tecnológica, situada em cidade universitária do interior do Estado de São Paulo, Brasil. Busca-se identificar e compreender aspectos da cultura organizacional que facilitam ou dificultam os processos de inovação. Considerando as características do problema, opta-se por estratégia de investigação mista (delineamento quanti-qualitativo). Têm-se como hipóteses no estudo de caso: os processos de inovação focalizam mais os aparatos visíveis, como a tecnologia, do que aspectos intangíveis como a cultura da inovação; e a busca por inovação aparece mais nas políticas internas de aquisição de tecnologia do que nas políticas de Gestão de Pessoas. Instrumentos: questionário, escalas e entrevistas semi-estruturadas com lideranças e colaboradores da equipe de pesquisa e desenvolvimento da empresa. Os resultados apoiam a primeira hipótese e, parcialmente, a segunda. Os dados sugerem que a inovação está positivamente relacionada à existência de uma cultura organizacional específica. Contudo, para que a inovação ocorra, não é necessário que todos os fatores referidos na literatura estejam presentes na organização; porém, a existência de alguns, como: tolerância à ambigüidade e ao erro; trabalho desafiante e em equipe; suporte das lideranças; comunicação clara; coesão e reconhecimento de esforços que favorecem a inovação e a saúde do trabalhador.

Palavras-chave: Cultura organizacional, Inovação, Psicossociologia, Cultura da inovação.


ABSTRACT

This research based on a psychosociologic view analyzes relationships between organizational culture and innovation processes in a technology-based company at a University city in the interior of São Paulo state, Brazil. It aims to identify some aspects of the organizational culture that make innovation process easier or more difficult. Considering the characteristics of the problem, a mixed investigation strategy has been chosen (quantiqualitative design). The considered hypotheses are: innovation processes focus more efforts on visible apparatuses, such as technology, than on intangible aspects, as culture of innovation; and the search for innovation is more visible on internal technology acquisition politics than on people management politics. Investigation tools: questionaries, inventaries and semi-structured interviews with management and workers of the company's development team. Results support the first hypothesis and, partially, the second one. Data suggest that innovation is positively related to the existence of specific organizational culture. However, there is no need of all the aspects described in order to make innovation processes happen; but the existence of some of these aspects as tolerance for ambiguity and error, supportive leaderships, open communication, cohesion and recognition to the efforts favoured the worker's innovation and health.

Keywords: Organizational culture, Innovation, Psychosociology, Innovation culture.


 

 

1. Introdução

Perante a economia globalizada que pressiona as organizações para acelerar seus processos de desenvolvimento tecnológico e explorar suas propriedades intangíveis (Pérez-Bustamante, 1999), as organizações atuais buscam a construção de vantagens competitivas, sendo que a inovação é um dos principais meios para o alcance do sucesso inclusive a sobrevivência.

Atualmente, há certo consenso sobre a relevância do papel das pessoas para que a inovação aconteça. Contudo, apesar do crescente número de estudos, a inovação ainda é um fenômeno de difícil apreensão. Mesmo com o reconhecimento da necessidade de fatores tangíveis e intangíveis complementando-se nos processos de inovação, existe uma inconsistência nos resultados encontrados sobre a temática. Frente a isso, Jaskyte & Dressler (2005) consideram que a perspectiva cultural pode ampliar a compreensão deste fenômeno tão complexo. Segundo estes autores, mesmo com importância reconhecida, o papel da cultura organizacional nos processos de inovação permanece em geral, em nível teórico.

No Brasil, o âmbito dos tecnópolos que sediam empresas de base tecnológica (EBT) representam atualmente os arranjos organizacionais de inovação (Baptista, 2000). Isso se deve ao fato destes pólos concentrarem parcerias entre instituições de ensino-pesquisa e empresas de base tecnológica e de ambas com outros órgãos da iniciativa pública e privada, objetivando favorecer a construção de um ambiente inovador.

Mesmo concentrando esforços para concretizar a inovação, não foram encontradas publicações acerca da especificidade da cultura organizacional deste setor. Outros fatores que influenciam a inovação nos tecnópolos foram estudados, mas não a cultura organizacional. Considerando a escassez de literatura sobre o tema, o objetivo geral deste estudo consiste em compreender as relações entre a cultura organizacional e os processos de inovação em uma empresa de base tecnológica ganhadora de prêmio FINEP de inovação.

Como hipóteses deste estudo tem-se:

H0: Não há relação entre a cultura organizacional e os processos de inovação na empresa de base tecnológica, alvo deste estudo.

H1: Os processos de inovação, na empresa estudada, focalizam mais os aparatos visíveis, como a tecnologia, do que aspectos intangíveis como a cultura da inovação.

H2: A busca por inovação aparece mais nas políticas internas de aquisição de tecnologia do que nas políticas de Gestão de Pessoas, caracterizando uma cultura organizacional que dificulta os processos de inovação.

 

1.1. Cultura organizacional e os processos de inovação

A cultura organizacional que facilita o desenvolvimento de processos inovativos é denominada na literatura como Cultura da Inovação. Dada a importância crescente da inovação nos contextos empresariais e a busca por vantagens competitivas diferenciadas, uma cultura organizacional que facilite estes processos torna-se fator estratégico para que a empresa alcance seus objetivos (Jamrog & Overholt, 2004).

Alguns estudos empíricos (Mavondo & Farrel, 2003; Martins & Terblanche, 2003; Solomon, Winslow & Tarabishy, 2002; Stringer, 2000; e Ahmed, 1998) mostraram que organizações inovadoras possuem certas características culturais distintas das demais.

De forma geral, pode-se sintetizar que os resultados apontam para características como:

 

 

Frente à diversidade de estudos sobre cultura organizacional, destaca-se que o conceito de cultura organizacional utilizado integra: valores, crenças e pressupostos básicos inconscientes que são compartilhados por membros de uma organização, expressos através de normas, que podem ser observadas em rituais, palavras e ações (Schein, 2004). O de inovação engloba: processo de criação e/ou transformação de novidade que pode ocorrer em produtos, serviços, métodos de produção, abertura para novos mercados, fontes de fornecimento e maneiras de se organizar. É a implementação exitosa de ideias criativas dentro de uma organização que visam gerar benefícios para o indivíduo, o grupo, a organização ou a sociedade como um todo (Amabile & Gryskiewicz, 1989; West & Farr, 1990).

Estes dois conceitos fundamentaram a compreensão dos dados obtidos. Além disso, o olhar psicossociológico guiou toda a realização do estudo de caso.

 

1.2. Cultura Organizacional e a Psicossociologia

Quando se investiga a cultura organizacional de uma empresa, sendo ela voltada à inovação ou não, pode-se lançar olhares diferenciados e múltiplos para esse fenômeno. Sabe-se que os estudos que se apoiam em concepções psicanalíticas tendem a focalizar a subjetividade do trabalhador e aqueles que se servem da psicologia social histórico-crítica tendem a centralizar-se na dimensão constitutiva do trabalho (Peçanha, 2005, p.61-62). Portanto, optou-se pela psicossociologia como forma de reunir esses dois saberes: subjetividade e real do trabalho, pois ambos são constituintes do fenômeno denominado cultura organizacional.

Investigar a cultura organizacional consiste não apenas em identificar presença ou ausência de determinadas variáveis concretas, mas em analisar as relações simbólicas indivíduo-trabalho-organização nelas implicadas. Isso pode aprofundar o conhecimento sobre a dinâmica organizacional como um todo. A Psicanálise aplicada às organizações considera tanto os fatos concretos quanto aquilo que é dito ou silenciado nas investigações. Para Mendes (2004), quando se toma emprestado algum conceito psicanalítico objetivando a compreensão de uma empresa e sua dinâmica, deve-se ressaltar que tal visão pressupõe que se utilizarão processos intra-psíquicos e inconscientes na base de análise. O não dito é entendido como aspecto imprescindível para interpretação de dados e para a ampliação dos conhecimentos dos fenômenos organizacionais. É este significado latente que proporciona sentido a um contexto ou a um momento da vida organizacional. Assim, busca-se objetividade científica, mas sem deixar de considerar a dúvida como lugar do inconsciente e a construção subjetiva do conhecimento a partir da interpretação do empírico.

Dejours (1993a) entende que o homem espontaneamente “dá forma” ao seu trabalho. Isso pode ocorrer através do efeito da pulsão que se desdobra em inteligência prática ou através do sofrimento, que impele o trabalhador a buscar sentido em suas vivências. Frente a isso, o autor considera que os funcionários não almejam ser meros executantes de tarefas, pelo contrário, desejam cumprir o melhor possível e alcançar com eficiência os objetivos organizacionais. Assim, o sujeito espera que a organização do trabalho lhe ofereça uma possibilidade de contribuição. O sujeito é compreendido não somente como uma pessoa à espera de uma retribuição, mas como alguém que busca sua própria identidade, um sentido para si mesmo, através de suas contribuições. Tais ideias aparecem sintetizadas nas seguintes palavras o caminho que conduz ao trabalho saudável é o mesmo que respeita a construção da identidade (Peçanha, 2006, p. 80).

A mobilização subjetiva oriunda do sofrimento que é transformado em prazer pelo trabalho implica em criatividade. Dessa forma, compreendendo o homem como um ser espontâneo, a cultura da inovação deve reconhecer, respeitar, utilizar e gratificar a inteligência prática. Esta visão de homem dejouriana (Peçanha, 2005) difere daquela defendida por Taylor, na qual os trabalhadores necessitariam de controle direto para se comprometerem ou se mobilizarem. O homem espontâneo com inteligência prática busca outras recompensas além das financeiras. Ele poderá buscar reconhecimento simbólico da legitimidade da escolha, do seu mérito e da qualidade final de seu trabalho.

A criatividade ocorre em ambiente nos quais os trabalhadores conheçam as regras desde o início do jogo e em que haja reconhecimento. Já a cooperação, outro aspecto destacado pelos estudiosos da inovação, segundo pensamento de Dejours (1993a), necessita de condições específicas para se desenvolver. Ela necessita passar pela vontade dos sujeitos em coordenar conscientemente as mobilizações individuais. Precisa ainda do estabelecimento de confiança entre os membros que é facilitada por acordos normativos e regras comuns existentes no ambiente de trabalho.

Por outro lado, Lévy (2001), no âmbito da Psicossociologia, considera que uma organização é uma dinâmica criadora. Isso porque é mais um projeto do que propriamente realização. Para ele, como qualquer ser vivo, ela somente existe na condição de paradoxo: entre a afirmação ou fracasso da vontade de poder; entre o desejo de tudo compreender e a necessidade de dividir. Na condição de projeto, a organização só faz sentido se ainda estiver por ser feita, e só subsiste na tensão do inacabado. Isso se assemelha aos conceitos de cultura da inovação, no que tange à especificidade da convivência com o caótico e com o inacabado.

Refletindo sobre a gestão administrativa na sociedade contemporânea, a psicossocióloga Palmade (2001) relaciona o enfraquecimento dos laços sociais ao contexto organizacional atual e ressalta alguns paradoxos importantes para o entendimento da cultura organizacional. Para a autora, o gerenciamento é a nova ideologia que auxilia na promoção da identidade nos âmbitos da organização e dos indivíduos que nela trabalham. Segundo a autora, discursos, principalmente oriundos da área de gestão de pessoas, aproveitam o enfraquecimento dos laços sociais, do individualismo e do medo da perda de emprego para direcionar os colaboradores para a adoção de valores que favorecem determinados aspectos organizacionais. Alguns destes valores são: autonomia, responsabilidade, lealdade, consenso, liderança democrática, abertura das relações e flexibilidade. Esses valores impelem os colaboradores a se identificarem com os objetivos da organização (ou dos gerentes) e a se engajarem na cultura vigente. Contudo, discursos como: “seja autônomo”; “identifique-se livremente com a cultura da empresa”; ou “agarre-se aos objetivos da organização, seja leal, em nome da performatividade”; possuem em suas entrelinhas paradoxos tais como: “aceite, em nome dessa mesma performatividade, perder seu emprego”.

Toda situação paradoxal é fonte de ansiedade, cuja saída só poderá ser encontrada ora pelo afastamento da realidade, ora pela transgressão ou pela perversão, ou ainda pelo excesso de investimento identificatório com o gerente que anuncia o sistema ideológico que o gerou. Essas formas de escape, ao reprimirem a busca de autonomia do sujeito, enfraquecem o laço social. O trabalho, então, ao invés de ser lugar de validação destes laços sociais, tornase um espaço que, inibindo a liberdade individual, inibe também esses laços. Os laços sociais são uma das maneiras de um sujeito construir sua identidade. Sem eles, a própria autonomia fica limitada (Palmade, 2001).

Outro fator citado refere-se ao apoio que também figura na literatura sobre cultura da inovação. Aquele, suporte do grupo ou de superiores aos processos de inovação, deveria garantir que o erro não fosse fonte de punição, isto é, que o risco pudesse ser tolerado. Uma das sete formas de apoio citadas por Palmade (2001) é o social. É por meio dele que a sublimação e os processos de simbolização podem ocorrer. Os homens buscam apoiar o trabalho (expressão socializada das necessidades de autoconservação) no desejo. Assim, por meio desse apoio social, necessidades e desejos deixam de se opor. O trabalho operado pela sublimação, pelo labor de civilização, de criação cultural permite encontrar no campo do social o apoio originário. Contudo, se no trabalho os laços sociais são reprimidos, como se constrói uma cultura que apoie a inovação?

Uma possível contribuição para o entendimento desse tema encontra-se no sentido dado à palavra apoio. Este “re-une” (Palmade, 2001, p.111) diferença e identidade, colocando em posição dialética dois processos contrários: pulsões, objetos, sujeito/objeto, identificações, regressão/progressão, o psicológico e o sociológico. Este confronto objetiva separar aquilo que o origina, mas preservando a identidade de sentido. É um processo que separa por derivação, para abrir uma liberação. Liberação tão enfatizada na literatura sobre a inovação e a criação de novos conhecimentos.

Outra contribuição da Psicossociologia refere-se à compreensão de que em toda organização existe também violência. Por mais que a literatura sobre inovação destaque que a cultura dessa natureza valoriza a autonomia, a criação, a liberdade, Lévy (2001) compreende que existem formas veladas de violência institucional em todas as organizações. Ela geralmente age de maneira indireta e pode ser reconhecida através de ideologias que veiculam representações da realidade cujo traço comum é pretender dar respostas “verdadeiras” a todas as perguntas. Respostas que geralmente reprimem a reflexão. As formas de violência não são personalizadas. São impessoais, anônimas e se referem a um conjunto de regras ou regulamentos, de procedimentos anônimos e de decisões administrativas.

Neste mesmo sentido, Enriquéz (2001) entende que a violência institucional não é percebida, pois as organizações aparecem como eminentemente protetoras e formadoras: lugares de aprendizagem. O que ocorre é que a maioria das pessoas não percebe o lado maléfico das organizações. Apenas certos membros são capazes de vivê-las ao mesmo tempo como portadora da vida e da morte.

Em relação à autonomia, aspecto tão destacado na cultura da inovação, Gaulejac (2001) descreve que o indivíduo é multideterminado. E por estar submetido a diferentes e contraditórios determinismos é que o indivíduo é obrigado a fazer escolhas e desenvolver sua autonomia. Para ele, o indivíduo é produto e produtor da sociedade. E porque não dizer, produto e produtor de uma determinada cultura organizacional.

Sendo assim, uma dialética pode ser traçada entre indivíduo e sociedade, entre o emocional e o social. Um único conhecimento não daria conta de compreender a complexidade dos fenômenos organizacionais. Sévigny (2001) destaca que diante de um caso no qual buscamos entender a particularidade e a totalidade é, em geral, pretencioso e ineficaz recorrer apenas a uma área científica.

A Psicossociologia busca a dialética relacional entre o ponto de vista social e o emocional, e é assim que este estudo entenderá os sujeitos e a dinâmica organizacional da empresa de base tecnológica em questão.

 

2. Método

O estudo de caso foi escolhido como método de investigação por se enquadrar no que Yin (2004) define como pesquisa de cunho empírico e que se propõe a investigar um fenômeno contemporâneo. Nestas pesquisas o fenômeno e o contexto não estão sistematicamente evidentes. Escolheu-se também o estudo de caso pelo prévio conhecimento de que muitas variáveis podem relacionar-se tanto à cultura como à inovação. Neste tipo de método, para a coleta de dados há possibilidade de se incluir variáveis anteriormente não contempladas e que podem auxiliar no aprofundamento do objetivo central da pesquisa.

2.1. Empresa

Escolheu-se para desenvolver a investigação uma empresa reconhecida por suas inovações e que se situa num tecnopolo de uma cidade universitária no Estado de São Paulo, Brasil. Tem-se um grupo de conveniência, pois essa organização foi selecionada pelo grande número de inovações tecnológicas que desenvolveu desde a década de oitenta até hoje. Além disso, já recebeu, ao longo de sua existência, diversos prêmios relativos a desenvolvimento de produtos inovadores.

2.2. Instrumentos

Foram utilizados:

• Questionário estruturado e validado, desenvolvido pelas autoras;

• Escala ECO – Escala de Cultura Organizacional (Forma breve de Rockenbach & Peçanha, 2005, com base em Ferreira, Assmar, Estol, Helena & Cisne, 2002);

• Entrevista semiestruturada individual com gestor estratégico e

• Entrevista semiestruturada coletiva com cinco (5) colaboradores da equipe de pesquisa e desenvolvimento de novos produtos.

2.3. Procedimentos

Após escolha da empresa a ser estudada pelas características peculiares já descritas, contatou-se um dos gestores estratégicos da empresa para realização de entrevista. Ele dispôs-se, voluntariamente, a contribuir com a investigação. A entrevista coletiva foi respondida por colaboradores que também voluntariamente se dispuseram a participar da pesquisa e que ocorreu após vinte e seis (26) dias daquela realizada com o gestor estratégico. O questionário estruturado e a escala ECO foram respondidos pelo gestor da área da pesquisa e desenvolvimento de novos produtos da empresa.

Destaca-se que todos os instrumentos foram utilizados após atendimento às disposições éticas de pesquisa com seres humanos, tais como: informações aos participantes quanto aos objetivos da investigação, ao sigilo individual e organizacional, elucidação e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

Após transcrição das entrevistas, elas foram enviadas pelas pesquisadoras para os respectivos entrevistados, via correio eletrônico, com objetivo de “legitimar” (González Rey, 2002) as verbalizações registradas, sendo possível que os entrevistados alterassem e retirassem trechos que entendessem como inadequados. Assim, as entrevistas utilizadas na análise foram aquelas cujo conhecimento foi legitimado pelos entrevistados.

2.4. Entrevistados

O gestor entrevistado foi um dos fundadores e, naquele momento, era diretor industrial da empresa. Possui graduação em área correlata à atuação da empresa e trabalhou em universidade pública até fundar a referida organização.

A equipe entrevistada de pesquisa e desenvolvimento de produtos foi composta por cinco (5) engenheiros, um deles com doutorado na área e os outros dois com especializações lato sensu completas. A equipe de pesquisa e desenvolvimento possuía um total de cinquenta (50) colaboradores.

 

3. Resultados e Discussão

Histórico

Como a maioria das empresas de base tecnológica, a organização estudada surgiu do desejo de cinco pesquisadores e técnicos, vinculados a universidades, de empreender um negócio próprio. Tal motivação surgiu há mais de vinte (20) anos e os objetivos principais foram: o aumento da renda de cada um dos fundadores, a geração de empregos na cidade, a presença sólida no mercado mundial e a minimização da escassez de produtos oferecidos pelo mercado. A ideia de construir uma empresa foi impelida, especialmente, pela percepção de ausência de determinado produto voltado a componentes ópticos no mercado brasileiro, porém já desenvolvido em outros países. A ausência, nesta empresa, foi a propulsora do empreendedorismo. Foi na constatação da ausência, do vazio, da falta, que a criação e a inovação puderam ocorrer. Isso remete à relação entre falta e desejo elaborada por Lacan (1959). Este autor compreende que a falta favorece a função do desejo. Este é operado precisamente pela ausência de um objeto, constituindo-se, a falta, condição de possibilidade do desejo.

Utilizando-se dos conhecimentos técnicos que os fundadores tinham sobre componentes ópticos, iniciaram o desenvolvimento de um produto inédito no mercado brasileiro. A partir da experiência da falta, os fundadores buscaram significá-la baseados em conhecimentos pré-existentes: o conhecimento técnico de cada fundador. Neste momento, a utilização do conhecimento técnico pode ser compreendida, por um lado, como mecanismo de defesa perante a experiência da falta. Mas, sendo observado sob um outro ângulo, a utilização do conhecimento técnico pode ser uma estratégia elaborada conjuntamente para a transformação ativa da realidade vivida.

Contudo, o produto criado não conseguiu atrair compradores, pois a maioria dos potenciais clientes não visualizava a utilização daquele produto.

Não vendia, porque apesar de ser um produto com alta tecnologia para a época... (...). Na época era um feito tecnológico, assim, relevante. Mas, ah, a gente diz que era uma solução à procura de um problema, (...)... a gente vislumbrava várias utilizações, mas na prática tudo dependia de você ensinar a pessoa a usar. (Diretor de produção industrial).

Frente a isso, a partir dessa primeira experiência de dificuldade na comercialização do produto desenvolvido, construíram estratégias organizacionais. Elas continuam sendo utilizadas e, basicamente, consistem em focar esforços no mercado. Foi a partir do erro que os fundadores puderam aprender, aplicando conceitos de transposição de conhecimento vivencial para conhecimento estratégico. Além do erro, foi novamente a experiência da falta (ausência de compradores) que propiciou a construção de novas práticas dentro da empresa. Essas atrelam o desenvolvimento de produtos ao foco no mercado.

Atualmente, existem práticas diferenciadas que minimizam estes problemas anteriormente mencionados, sendo considerada uma empresa de médio porte, voltada ao mercado interno brasileiro, com cerca de trezentos e cinquenta (350) colaboradores e com mais de trinta (30) produtos inovadores no Brasil desenvolvidos nos últimos três anos.

Foco no mercado

O histórico de dificuldade na comercialização dos produtos desenvolvidos pode ser uma das possíveis explicações para a construção de gestão estratégica permeada pelo foco no mercado e nas necessidades dos clientes. A atenção estratégica dada aos clientes ou possíveis clientes permeia tanto práticas diárias como crenças dos colaboradores. As primeiras dificuldades da empresa eram revividas diariamente por meio de conhecimentos advindos da história organizacional. Esses diziam respeito ao fato de que a inovação deveria estar intrinsecamente relacionada a uma demanda real. Colaboradores com carreiras desenvolvidas na empresa ou novos conheciam a experiência aludida sobre a criação do primeiro produto.

Buscando minimizar problemas com demandas não específicas, no momento do estudo, a equipe de vendas da empresa desenvolvia outros papéis nas empresas clientes. Esses diziam respeito ao levantamento de necessidades e oportunidades de desenvolvimento de novos produtos ou novas aplicações técnicas para produtos já existentes, como também o papel de educadores, ensinando clientes a utilizarem os recursos dos produtos comprados.

Então esse pessoal sente que há espaço no mercado pra gente produzir um produto. (Diretor de produção industrial).

Uma importante prática cotidiana da empresa era valorizar o que “sente” (sic) a equipe de vendas em visita ao cliente. Os entrevistados entendiam que, através de processos de aprendizagem vivencial erro-acerto, podia ser estratégico agregar intuição/afetividade, pensamento sistêmico e conhecimento técnico. Porém, esse “sentir” não foi verbalizado como algo relacionado à intuição ou à afetividade, e sim relacionado à competência técnica do vendedor, que, através dela, conseguia detectar novas possibilidades.

A manutenção da atenção às oscilações e às demandas diferenciadas do mercado visava, principalmente, manter a sobrevivência da empresa.

Quer dizer, a primeira prioridade, realmente, é a sobrevivência. Talvez ao lado da...da... (não concluiu a frase) porque hoje a gente tem consciência que o dinheiro mantém a empresa e realiza nossos sonhos (riso). Não tem outro jeito, certo? (Diretor de produção industrial).

O foco no mercado, além de estar atrelado à sobrevivência da empresa no mundo real, pode ser entendido como estratégia coletiva para satisfação de desejos/sonhos antigos e futuros. Esses sonhos verbalizados na entrevista sugerem a existência de pulsões (libidinais, agressivas, narcisísticas) que se manifestavam sob a forma de desejos, demandas, necessidades (Zimmerman,1999). É um sonhar e um agir coletivo que propicia o sonho individual e a satisfação de desejos individuais.

Essa capacidade de sonhar relacionada ao agir coletivo pode ser associada também à competência organizacional de orientação para o futuro. A visualização prévia de aplicações práticas em diferentes contextos que outras pessoas ainda não tinham percebido é um claro indicador de capacidade de inovação.

Trabalho em equipe

Desde a fundação, o sonhar coletivo e o trabalho em equipe permearam as práticas cotidianas das pessoas envolvidas no processo grupal de construção de uma organização.

E a gente, quer dizer, cada um fez um pouquinho, né. E a gente era um grupo muito unido. Até hoje nós somos um grupo muito unido, né. Não quer dizer que a gente concorde em tudo.(...) Concorde em tudo, mas a gente discorda muito, mas se mantém unido, né. Então, hoje mesmo nós tivemos uma reunião até agora aí...(...) Houve várias... discussões acaloradas, é, tem que ser assim, não tem que ser assim, isso tá errado, isso tá certo. Mas a gente sempre consegue convergir. (Diretor de produção industrial)

As práticas grupais construídas ao longo de mais de vinte anos de fundação da empresa expressaram a coesão do grupo. Ao lado desta, a individuação concebida como respeito e valorização das diferenças individuais também se fez presente, sendo considerada um importante indicador de saúde grupal (Peçanha, Pérez-Ramos & Lacharité, 2003; Peçanha & Lacharité, 2007). Existia maturidade na equipe para que a livre exposição de ideias ocorresse, sem julgamento das pessoas que as emitiam. Contudo, em certo momento da história da empresa, elementos que dificultavam a coesão grupal, causavam ansiedades e destoavam da homogeneidade do grupo de fundadores, foram entendidos como ameaça e deixaram de participar da empresa. Isso pode sugerir certa dificuldade organizacional para lidar com conflitos.

(...) Quer dizer, tem essa característica do grupo. É uma coisa... Só teve uma pessoa que começou e ela destoou do grupo e ela mesmo saiu depois. Não deu certo. (Diretor de produção industrial).

No que tange ao desenvolvimento de produtos, este ocorria mais no âmbito individual do que no coletivo. As ideias eram discutidas em grupo, mas o desenvolvimento técnico ocorria através de atividades individuais. Porém, caso houvesse dúvidas, encontros coletivos eram marcados e novas soluções eram sugeridas.

Riscos e ambiguidades

O risco e a presença de aspectos contraditórios eram parte do cotidiano organizacional. Durante a entrevista ficou evidente o percurso histórico de aprendizado na forma de lidar com o risco. Inicialmente, pelo potencial tecnológico da empresa, qualquer ideia que chegasse ao grupo de fundadores era transformada em projeto. Contudo, após fracassos de alguns dos projetos, começou-se a estabelecer critérios para a escolha das demandas a serem satisfeitas. Para que a mudança fosse possível, o grupo necessitou desenvolver a função de continente de ansiedades frente a um novo desafio. Entende-se que a construção desta função continente foi possibilitada pelo uso da racionalidade. Pautados por conhecimentos técnicos, conseguiram minimizar as ansiedades grupais. Foram as funções do ego, tais como percepção, pensamento, conhecimento, juízo crítico, discriminação e ação que propiciaram o desenvolvimento de estratégias de minimização dos riscos dos projetos. Lembrando que o desenvolvimento e a atualização de capacidades psicomotoras, psicosensoriais e psíquicas parece ser uma condição de prazer no trabalho. (Peçanha, 2006, p. 81)

E... lógico que tudo envolve riscos e a gente erra algumas vezes, né. Mas na maioria das vezes a gente tem acertado. Então, por exemplo, nós tivemos uma decisão, há alguns anos, de entrar no mercado de tratamento anti-reflexo pra tratamento de óculos,. É..., a gente foi a primeira empresa no Brasil que fez isso. Então a gente assumiu um risco, né (...) Um mercado desconhecido. (...) e...a gente falou: vamos pra esse mercado. Investimos e nos demos bem. A gente pesquisou bem o mercado antes de começar.(...) (Referindo-se ao início da empresa) Eu não diria que a gente arriscava, porque a gente era completamente louco. (Diretor de produção industrial).

Durante as entrevistas, estas funções de ego foram constantemente utilizadas como explicações de como solucionaram problemas do dia-a-dia. O foco na competência técnica e na confiança no conhecimento técnico da equipe foi uma das principais explicações de como superam as dificuldades e os desafios.

A tolerância ao risco pressupõe abertura ao novo, ao inédito, ao desconhecido. Se, de certa forma verificou-se a existência de práticas organizacionais que valorizam a descoberta de novos caminhos para desenvolver soluções inovadoras, também se observou que os novos caminhos, as novas possibilidades eram traçadas através de ferramentas já conhecidas e validadas organizacionalmente, como foi o caso do conhecimento técnico.

Mesmo verificando-se a tolerância à ambiguidade, a gestão do risco ocorria através de processos informais, não existindo processos formais de planejamento dos projetos.

(...) você tinha lá um esboço do projeto, coisa assim, e depois você ia desenvolvendo informalmente, tal.(...) E um pouco do jeito brasileiro de fazer as coisas, né. Que você às vezes começa a construir uma casa de um jeito e termina de um jeito completamente diferente do que ela foi projetada, porque ela também não foi projetada e discutida adequadamente antes de iniciar a obra, né.

Existia percepção do risco por pensamento intuitivo, mas durante a entrevista verificou-se que a organização estava em processo de elaboração dos processos formais.

Enfim, a gestão do risco estava atrelada ao gerenciamento da flexibilidade, que favorecia a criatividade, o empowerment ; e do controle, que promovia a disciplina e o foco em objetivos a longo prazo. Esses elementos antagônicos, conforme descrito por Doughety (1996), são essenciais aos processos de inovação.

Os colaboradores entrevistados acreditavam que por ser uma empresa de base tecnológica, o risco era pressuposto básico do trabalho e consideravam que a empresa assumia este risco. O risco, para eles, era inerente ao trabalho, e era o que eles consideravam como o fator mais prazeroso no trabalho, pois estava vinculado ao desafio.

Suporte

No que tange ao suporte das lideranças, ele foi percebido pela equipe de pesquisa e desenvolvimento como existente e suficiente. Havia um gestor para essa área, a qual possuía mais de cinquenta (50) colaboradores. Além desse gestor e dos gerentes de projetos, também existia um coordenador informal que ofereciam suporte à equipe. As verbalizações indicaram que o gestor e o coordenador eram procurados, principalmente, após tentativa de resolução de problemas de ordem técnica em todas as outras instâncias (individualmente ou com pares). Na equipe entrevistada, o conhecimento técnico e vivencial mais amplo era o do gestor. Era o conhecimento técnico que garantia a hierarquia institucional, o respeito e a confiança por parte dos colaboradores em procurar o gestor para resolução de problemas. Dificuldades da ordem de relacionamentos interpessoais não eram levadas ao gestor ou coordenador, sendo que a equipe entrevistada verbalizou que eles existiam apenas pontualmente. O suporte, então, era baseado na competência técnica e na confiança que ela proporcionava aos colaboradores. Além disso, os colaboradores entrevistados informaram que era a comunicação transparente do gestor que garantia um ambiente de trabalho saudável. Através desta atitude, os colaboradores se percebiam ouvidos, reconhecidos e valorizados pelas sugestões diferenciadas que desenvolviam. Para eles, o que oferecia o suporte era a liberdade de criação e expressão de ideias proporcionada pela empresa.

Comunicação

Outro aspecto observado, típico em empresas de base tecnológica, foi a presença de processos de comunicação informais que aconteciam em toda a organização. Delegações e promessas ocorriam informalmente. O gestor ponderou durante a entrevista que isso tanto podia acarretar maior flexibilidade como também dificultar a organização dos processos da empresa, já que novas demandas e soluções podiam surgir através de vários indivíduos.

Então, tem muita coisa conversada no café, no corredor. Olha, fulano lá disse que se o equipamento tiver essa função vai ser uma novidade que os médicos vão gostar muito. (Diretor de produção industrial).

Já a equipe de pesquisa e desenvolvimento entendeu a informalidade nos processos de comunicação como parte do processo de criação, considerandoa como vantagem competitiva. A visão dos colaboradores foi que a comunicação, além de informal, era hierárquica. Neste caso, opiniões sobre questões de ordem estratégica não lhes eram perguntadas, havendo, na entrevista, verbalizações de inconformismo sobre essa temática.

A comunicação entre equipes não era vista como fluida pelo gestor entrevistado, principalmente entre equipes que eram clientes internas uma das outras, como pesquisa e desenvolvimento, vendas e produção. Conflitos entre elas foram exemplificados e a possível causa disso, na visão dos colaboradores entrevistados, foi atribuída às práticas diferenciadas de recompensas, favorecendo a equipe de pesquisa e desenvolvimento. Salários mais altos devido à maior escolaridade e horários flexíveis eram motivos de “ciúme” entre equipes.

A gente comunica que vai, estamos desenvolvendo um novo produto, assim, assado. (...) E..., vai sendo desenvolvido o projeto, desenhadas as peças para os testes iniciais, tal, tal e aos poucos isso vai de disseminando na empresa (...). O que a gente está cuidando exatamente agora, é desde o início, já envolve mais todas as áreas. (...) Porque hoje acontece ainda um pouco assim: o projeto chega na produção quase que de surpresa (...) (Diretor de produção industrial).

Reconhecimento das conquistas e esforços

As práticas de reconhecimento incluíam premiações por tempo de serviço e valorização dos talentos internos através da utilização dos recursos humanos próprios para transferência de cargos/funções ao invés de contratação externa. Já as de recompensa, bolsa de estudos para graduação e pós-graduação, eram voltadas, principalmente, aos colaboradores da área de produção. Não existia recompensa por resultados ou contribuição na equipe de trabalho.

A área de gestão de pessoas ainda estava em processo de implementação, sendo uma de suas primeiras ações a elaboração de plano de cargos e salários. Práticas de socialização de novos membros eram informais e englobavam visita rápida às áreas.

Gestão do conhecimento

Como reflexo da comunicação informal, a gestão do conhecimento foi valorizada pelos gestores estratégicos, contudo, na entrevista coletiva foi percebido que ela ainda não era uma prática efetiva. O conhecimento permanecia em dossiês de cada projeto e em anotações gerais em cadernos que ficavam armazenados em locais pessoais. Mesmo assim, existiam comportamentos de proatividade que direcionavam à gestão do conhecimento práticas diárias, mas isso de forma incipiente. Por exemplo, quando um colaborador percebia semelhança entre um projeto anteriormente desenvolvido e um atual, ele buscava informalmente anotações e pessoas que pudessem informar como tinha sido resolvido o problema no passado.

(suspiro) A informalidade ela é boa no sentido do que (...) dá mais liberdade de criação para as pessoas. A gente, o que a gente tá tentando descobrir, uma maneira de organizar a informalidade. (...) conversa no estacionamento ela é muito importante, (...) só que dela devia nascer um documento. (...) Pra você guardar o conhecimento, pra você ter uma gestão do seu conhecimento mais eficiente, né. (Diretor de produção industrial).

Novamente a dicotomia entre flexibilidade e controle aparece e permeia as relações de poder, pois o gestor, entrevistado individualmente, considerou que a implementação de controle de comportamentos dos colaboradores era essencial para a gestão da inovação, enquanto os colaboradores entrevistados consideraram que a liberdade e a flexibilidade eram as principais características de suas atividades que propiciavam a inovação.

Criar forma de buscar solução. Individualmente e depois em reuniões. Criar uma solução diferente. (Colaborador A). Resposta dada à pergunta sobre o que mais gostavam no trabalho.

Não tem receita para isso... Conversas, trocas de experiência. (Colaborador C). Resposta dada à pergunta sobre como venciam o desafio proposto.

Relações de poder

Mesmo com pontos de vista distintos, pode-se ressaltar que existia valorização e respeito aos colaboradores, principalmente às suas competências técnicas e as novas formas apresentadas de solucionar problemas. O percurso acadêmico dos colaboradores e fundadores e a quantidade e qualidade do conhecimento que eles detinham era muito considerado no estabelecimento das relações hierárquicas.

Embora as relações fossem pautadas pela informalidade e flexibilidade, os prazos eram cobrados.

(...) por que você tá com pressão de prazo (...) Fica uma coisa caótica - s obre a gestão de equipes. (Diretor de produção industrial).

Os colaboradores compreendiam a chegada de uma nova demanda com prazo estipulado para desenvolvimento do projeto como a parte mais prazerosa do trabalho: o desafio.

Na percepção dos colaboradores entrevistados, as questões estratégicas não eram compartilhadas e a maioria dos colaboradores não possuía visão sistêmica do desenvolvimento total de um projeto por ausência de informações, gerando-lhes frustação.

O que o diretor fazia sozinho, hoje ele tem que passar pras outras pessoas da equipe.(...). (Colaborador B, equipe P&D).

- E as responsabilidades são mesmo passadas para vocês? (Entrevistadora). São (silêncio). Mas há resistência, no começo, mas acaba. (riso de todos) (Colaborador A, equipe de P&D).
- E como vocês percebem esta resistência? (entrevistadora). É costume, né (riso de todos). Ele não dá conta do trabalho (pelo aumento da equipe de 13 com um projeto para 57 pessoas em 20 projetos).

Perante a frustração dos colaboradores, pode-se identificar que nas situações relatadas utilizaram o sentimento denominado por Dejours (1993a) de sofrimento criativo. Esse surgia quando o colaborador conseguia trazer para atividades laborais seus desejos, transformando o sofrimento em prazer.

Valores

De forma geral, os principais valores que puderam ser destacados e observados no material coletado foram:

• visão crítica sobre aquilo que desenvolviam, buscando a excelência em tudo que faziam.

• empreendedorismo, baseado no esforço para conquistar metas, sendo que o trabalho em equipe permeava toda a história da organização.

• implementação de mudanças constantes, buscando aprimoramento tanto da gestão quanto de questões técnicas.

• valorização da vivência acadêmica.

• confiança entre os colaboradores.

• busca pela simplicidade na elaboração de soluções.

• gosto pelo desafio.

Frente às práticas observadas e valores verbalizados ou percebidos ao longo da utilização dos instrumentos, destaca-se como principal prática o uso da competência técnica como mediadora das relações interpessoais, podendo ser esta ainda entendida como defesa coletiva contra conhecimentos/aspectos de ordem afetiva que permeiam toda organização social e que podem ser desconhecidos.

Sucintamente, pode-se notar que, na empresa estudada, o desafio tecnológico foi o componente motivador básico para gestores e colaboradores. O foco era vencer o desafio e não propriamente inovar. A inovação era consequência da soma das competências técnicas dos colaboradores e parceiros vinculados a universidades. Vale ressaltar que a inovação para eles seguia o mesmo conceito descrito na literatura. Não houve uma formulação personalizada quanto à compreensão deste fenômeno complexo e constituinte dessa organização.

O lado humano do trabalho e da inovação não era transformado em prática vigente na mesma velocidade em que uma competência ou conhecimento técnico era aplicado nos projetos. Esses consideravam, por exemplo, os riscos quantitativos, porém os relativos à saúde dos colaboradores, como aqueles relativos à redução dos prazos de entrega da produção, não eram questionados ou mesmo levantados. O estresse foi observado nessas situações de pressão, mas não estratégias organizacionais de minimização desse sofrimento.

Por fim, se discute aspectos menos tangíveis observados nas relações entre pesquisadora e participantes durante as entrevistas: individual e coletiva.

A entrevista individual foi permeada pela forma verbal “né”, pronunciada pelo gestor. Buscando compreender os significados dessa expressão, observouse que elas ocorriam quando havia uma tentativa de legitimar o que era dito por parte do entrevistado, em sua relação com a pesquisadora. Mais do que a busca de aprovação de um discurso, tal expressão indicou momentos reflexivos do entrevistado em relação às experiências que relatava. Assim, a entrevista individual foi uma oportunidade de construção de novos sentidos para essas vivências.

Por outro lado, a legitimação e reflexão observadas na entrevista individual não apareceram na entrevista coletiva. Uma das explicações foi a presença “acidental” de um familiar de um dos proprietários da empresa durante a entrevista coletiva. Este colaborador funcionou como o porta-voz de pensamentos e sentimentos repressores que permearam a maior parte dessa entrevista. Pensamentos reflexivos foram verbalizados apenas quando o líder do grupo criticou algumas práticas organizacionais e, por meio de olhares dirigidos aos outros colaboradores, deu permissão para que esses verbalizassem algumas de suas reflexões. Contudo, os conhecimentos expressos foram desvalorizados pelos próprios colaboradores, visto que não entendiam como aquilo poderia ser útil para a pesquisa científica em questão. Enfim, o conhecimento sobre as relações humanas parecia ser desconhecido, e este desconhecimento gerou no grupo mecanismos defensivos expressos através de comportamentos de arrogância.

Ao final da entrevista, o líder perguntou se a entrevista coletiva tinha sido útil à pesquisa, verbalizando que não reconhecia como isso seria possível, mas que a pesquisadora deveria saber. Outro componente a ser ressaltado foi a desvalorização não apenas do conhecimento sobre as relações humanas no trabalho, mas também de gênero, visto que todos eram homens e a pesquisadora, uma mulher, detentora de um possível conhecimento desconhecido.

Os aspectos comentados indicam a importância dos dois tipos de entrevistas e o quanto a forma coletiva não é substituível pela individual. Entretanto, esse fato, acentuado por Dejours (1993b) ainda não encontrou a merecida acolhida dos investigadores no âmbito das organizações e trabalho. Além disso, o seu conteúdo reflete os paradigmas culturais da sociedade que perpassavam a cultura organizacional. Foram eles a dicotomia entre conhecedor e conhecido; sentimento e razão, bem como a hierarquia entre os gêneros. Esses aspectos traduzem o grande paradigma do Ocidente (Morin, 2007, p. 26) formulado por Descartes e presente em nossa história desde o século XVII, separando sujeito/ objeto; masculino/feminino; qualidade/quantidade; finalidade/causalidade; espírito/ matéria; filosofia e pesquisa reflexiva de um lado, e ciência e pesquisa experimental de outro.

 

4. Conclusões

De forma geral, os resultados advindos dos instrumentos reforçaram-se entre si. Ou seja, os dados coletados nas entrevistas e as respostas oriundas dos questionários ofereceram informações condizentes. Assim, resultados qualitativos e quantitativos apoiaram-se mutuamente, não havendo aspectos conflitantes entre eles. Isso pode ser entendido como reflexo dos valores organizacionais semelhantes que circulavam tanto entre gestores quanto entre os membros da equipe de pesquisa e desenvolvimento.

A cultura organizacional da empresa estudada apresentou algumas características descritas na literatura relativamente à caracterização da cultura de inovação. Foram elas: gestão estruturada dos processos de inovação, trabalho em equipe, suporte das lideranças, comunicação aberta, tolerância à ambiguidade, estímulo ao desenvolvimento de confiança, reconhecimento por todos da importância estratégica da inovação, abertura à exposição de ideias.

As características da cultura da inovação que demandavam práticas estruturadas de Gestão de Pessoas não foram encontradas na empresa, tais como: reconhecimento pelo esforço da equipe e de cada colaborador individualmente, reconhecimento da necessidade da resolução dos conflitos pessoais entre equipes, encorajamento a tentar novas formas de realizar as tarefas (já que muitas vezes utilizavam soluções anteriormente aplicadas em outros projetos bem sucedidos na empresa).

Observou-se que a empresa estudada estimulava valores organizacionais semelhantes aos da cultura da inovação e que ainda apresentava valores próprios, como: foco no cliente/mercado externo, busca pela simplicidade e gosto pela mudança constante, aspectos esses ainda não relatados na literatura como específicos da cultura da inovação.

Frente a isso, pode-se concluir que existia cultura da inovação na empresa estudada, porém, no que tange às práticas de gestão de pessoas. Os principais aspectos relatados na literatura não foram encontrados.

Desta forma, rejeita-se a hipótese nula (HO), pois apareceram relações entre cultura organizacional e cultura da inovação. Verificou-se também que a questão da cultura permanecia em nível intuitivo na empresa estudada, já que não existiam práticas que valorizassem sua gestão. Isso ocorreu mesmo que fosse reconhecida a importância da cultura organizacional.

Aceita-se a primeira hipótese (H1) pois os processos de inovação relatados focalizaram mais os aparatos visíveis, como a tecnologia, do que aspectos intangíveis, como a cultura da inovação.

Os resultados apoiaram parcialmente a segunda hipótese (H2). Explicando: se, de um lado, a busca por inovação apareceu mais nas políticas internas de aquisição de tecnologia do que nas políticas de Gestão de Pessoas; por outro, foi através do foco na aquisição de tecnologia que as práticas de cuidado (Peçanha & Santos, 2009) com os colaboradores surgiam. Isso pode ser observado no caso do suporte oferecido pelas lideranças à solução de problemas, da “comunicação clara” (Peçanha, Pérez-Ramos & Lacharité, 2003) nos trabalhos em equipes, na possibilidade de expressão livre de ideias novas nos projetos de desenvolvimento de tecnologia. Estas últimas práticas não caracterizam uma cultura organizacional que dificulta os processos de inovação, mas se estivessem incluídas em programa estruturado de cuidado e desenvolvimento de talentos, poderiam facilitar a inovação ainda mais substancialmente.

Em síntese, os dados sugerem que a inovação esteve positivamente relacionada à existência de cultura organizacional específica. Pode-se concluir que, para que os processos de inovação ocorram, não é necessário que todos os fatores descritos na literatura estejam presentes na organização; porém a existência daqueles concernentes à tolerância à ambiguidade e ao erro, trabalho desafiante e em equipe, suporte das lideranças, comunicação clara, coesão e reconhecimento de esforços podem favorecer o desenvolvimento da inovação e a saúde do trabalhador.

Nesta pesquisa, os processos de observação e auto-observação, os de crítica e os de autocrítica, os reflexivos e os de objetivação foram inseparáveis na busca de um conhecimento pertinente. Este, seguindo o pensamento de Morin (2007), pressupõe a multidimensionalidade (o conhecimento é interdependente, ocorrendo na relação entre pesquisador e sujeitos do estudo), bem como a complexidade (o conhecimento pressupõe a multiplicidade e a unidade; grupo e indivíduo) para solucionar questões referentes à cultura da inovação.

Sustenta-se, aqui, as conclusões de Peçanha (2006) relativas à pesquisa com pequena amostra. Se, por um lado, tem-se o limite de não poder generalizar os achados, por outro, tem-se um ganho em relação à sua validade, pois os resultados obtidos por meio da mensuração e do discurso puderam ser comprovados pela observação direta. A utilização do estudo de caso aprofundado, associada a observações in loco da organização revelou-se útil para a compreensão de sua cultura. Contudo, como perspectiva para futuras pesquisas, indica-se a ampliação da amostra no sentido de verificar, por exemplo, a proeminência do fator risco em outras culturas de inovação.

 

Referências

• Ahmed, P. K. (1998). Culture and climate for innovation. European journal of innovation management, 1 (1), 30-43.        [ Links ]

• Amabile, T.M & Gryskiewicz, S.S. (1989). The creative environment scales: the work environment inventory, Creativity Research Journal, 2, 231-254.        [ Links ]

• Baptista, R. F. Redes de inovação no contexto dos tecnópolos: a experiência de São Carlos, Brasil. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales, 69 (32), http://www.ub.es/geocrit/sn-69-32.htm. Acesso em: 16 maio de 2008.        [ Links ]

• Dejours (1993a). Inteligência operária e organização do trabalho: a propósito do modelo japonês de produção. In H. Hirata (Org). Sobre o “modelo” japonês (pp.281-309). São Paulo: Edusp.        [ Links ]

• Dejours (1993b). Travail usure mentale: de la psychopathologie à la psychodynamique du travail. Paris: Bayard Éditions.        [ Links ]

• Dougherty, D. (1996). Organizing for Innovation. In S.R Clegg, C. Hardy & W.R. Nord (Eds) . Handbook of Organization Studies (pp.424-439). London: SAGE Publication.        [ Links ]

• Enriquéz, E. (2001). Instituições, poder e “desconhecimento”. In J.N.G Araújo & T.C. Carreteiro (Orgs.). Cenários sociais e abordagem clínica. São Paulo: Escuta; Belo Horizonte: Fumec.        [ Links ]

• Ferreira, M.C., Assmar, E.M.L., Estol, K.M.F., Helena, M.C.C.C & CISNE, M.C.F. (2002). Desenvolvimento de um instrumento brasileiro para avaliação da cultura organizacional. Estudos de Psicologia, 7(2), 271-280.        [ Links ]

• Gaulejac, V. (2001). Psicossociologia e sociologia clínica. In: Araújo, J.N.G.; Carreteiro, T.C. (orgs.). Cenários sociais e abordagem clínica. São Paulo: Escuta; Belo Horizonte: Fumec.        [ Links ]

• González Rey, F. L. (2002). Pesquisa qualitativa em psicologia – caminhos e desafios. São Paulo: Pioneira Thomson Learning.        [ Links ]

• Jamrog, J. & Overholt, M.H. (2004). Building a strategic HR function: continuing the evolution. Human resource planning, 27, 51-61.        [ Links ]

• Jaskyte, K. & Dressler, W. (2005). Organizational culture and innovation in nonprofit human service organizations. Administration in social work, 29 (2), 23-41.        [ Links ]

• Lacan, J. (1959) O Seminário, livro 7 - A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar.        [ Links ]

• Lévy, A. (2001). Ciências clínicas e organizações sociais. Belo Horizonte: Belo Horizonte: Autêntica/Fumec.        [ Links ]

• Martins, E.C. & Terblanche, F. (2003). Building organizational culture that stimulates creativity and innovation. European Journal of Innovation Management, 6 (1), 64 – 74.        [ Links ]

• Mavondo, F. & Farrel, M. (2003). Cultural orientation: its relationship with market orientation, innovation and organizational performance. Management Decision, 41 (3), 241-249.        [ Links ]

• Mendes, A. M. (2004). Cultura organizacional e prazer-sofrimento no trabalho: uma abordagem psicodinâmica. In A Tamayo (Org.). Cultura e saúde nas organizações (61-76). Porto Alegre: Artmed Editora.        [ Links ]

• Morin, E. (2007). Os sete saberes necessários à educação do futuro. (12ª. ed.) Brasília: UNESCO; São Paulo: Cortez.        [ Links ]

• Palmade, J. (2001). Pós-modernidade e fragilidade identitária. In J.N.G Araújo & T.C. Carreteiro (Orgs.). Cenários sociais e abordagem clínica. São Paulo: Escuta; Belo Horizonte: Fumec.        [ Links ]

• Peçanha, D. L. (2005). Organizações e saúde no trabalho – subsídios históricos e psicodinâmicos. Boletim. Academia Paulista de Psicologia. Ano XXV, 3(5), set/dez, 56-69.        [ Links ]

• Peçanha, D. L. (2006). Avaliação do “coping” numa equipe de enfermagem oncopediátrica. Boletim Academia Paulista de Psicologia. Ano XXVI, 3(6), set/dez, 69-88.        [ Links ]

• Peçanha, D.L, & Lacharité, C. (2007). The Family Systemic Assessment. Psicologia em Estudo, 2(3), set/dez., 503-512.        [ Links ]

• Peçanha, D. L & Santos, L. S. (2009). Cuidando da vida – olhar integrativo sobre o ambiente e o ser humano. São Carlos: EdUFSCAR.        [ Links ]

• Peçanha, D.L, Pérez-Ramos, A.M.Q & Lacharité, C. (2003) Une méthode systémique d´évaluation du fonctionnement familial. Revue Québécoise de Psychologie, 24 (2), 89-112.        [ Links ]

• Pérez-Bustamante, G. (1999). Knowledge management in agile innovative organizations. Journal of knowledge management, 3(1), 6-17.        [ Links ]

• Rockenbach, M. R. & Peçanha, D. L (2005). Escala de cultura organizacional – eco. Formulário de aplicação desenvolvido no Laboratório Vida, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, São Paulo. (Trabalho não publicado e adaptado para pequenas empresas a partir do original de Maria Cristina Ferreira e cols. 2002).        [ Links ]

• Schein, E. H. (2004). Organizational culture and leadership: a dynamic view. San Francisco, C.A: Jossey-Bass.        [ Links ]

• Sévigny, R. (2001). Abordagem clínica nas ciências humanas. In: Araújo, J.N.G.; Carreteiro, T.C. (orgs.). Cenários sociais e abordagem clínica. São Paulo: Escuta; Belo Horizonte: Fumec.        [ Links ]

• Solomon, G., Winslow, E.K. & Tarabishy, A. (2002). The role of climate in fostering innovative behaviour in entrepreneurial SMEs, Business, 6(3), 24- 33.        [ Links ]

• Stringer, R. (2000). How to manage radical innovation. California Management Review, 2, 1-11.        [ Links ]

• West, M. A. & Farr, J. L. (1990) Innovation and creativity at work. Psychological and organizational strategies. Wiley: Chichester.        [ Links ]

• Yin, R. (2004). Estudo de Caso: Planejamento e Método. São Paulo: Bookman.        [ Links ]

• Zimmerman, D. E. (1999). Fundamentos Psicanalíticos: Teoria, Técnica, Clínica – Uma Abordagem Didática. Porto Alegre: Artes Médicas Sul.        [ Links ]

 

 

Recebido em: 15/04/2009
Aceito em: 05/05/2009

 

 

1 Psicóloga, Mestranda no Programa de Pós-graduação em Engenharia de Produção da EESC – USP, sob orientação da Profª. Associada Dóris Lieth Nunes Peçanha. Contato: Rua Dr. Neto de Araújo, 231, ap. 132 – São Paulo, SP – CEP 04111-000. Tel.: (11) 3384-7964. E-mail: resemensato@yahoo.com.br
2 Profª. Dr a . do Depto. de Psicologia da Univers. Federal de São Carlos e do Programa de Pósgraduação em Engenharia de Produção da EESC - USP. Contato: Al. das Crisandálias, 616, ap. 32 – São Carlos, SP – CEP 13566-570. Tel.: (16) 3361-1134 E-mail: doris@ufscar.br

Creative Commons License