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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.29 no.2 São Paulo Dec. 2009

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

Papéis atribuídos à família na produção da loucura: algumas reflexões

 

Roles assigned to the family in the prodution of madness: some reflections

 

 

Renata Fabiana Pegoraro1

UNIP - Goiania

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo consiste em arrolar as concepções a respeito da participação das famílias na produção/manutenção da loucura em diferentes momentos históricos e destacar de que modo a presença delas é vista em serviços públicos brasileiros. Ancora-se na legislação vigente e em estudos publicados no Brasil. Parte-se da necessidade de isolar o louco/doente mental da família para tratá-lo, no momento da criação dos hospitais especializados em Psiquiatria, discutindo-se, em seguida, os movimentos que, ao longo do Século XX, reposicionaram a família como fator importante para atenção prestada pelos serviços, notadamente extra-hospitalares. O crescente número de serviços em saúde mental no Brasil e a presença de equipes formadas por diferentes profissionais no cuidado do sofrimento psíquico tornam esta revisão de maior interesse para as categorias de profissionais envolvidas, dentre elas a da Psicologia. Ressalta-se a presença das famílias, na atualidade, como suporte para permanência do usuário na comunidade e a necessidade de criação de estratégias, pelos serviços de base comunitária, para o cuidado às famílias e não apenas ao doente mental.

Palavras-chaves: Família, Loucura, Sofrimento psíquico.


ABSTRACT

This article aims to enroll the conceptions regarding the participation of families in the production / maintenance of madness in different historical moments and to highlight how the presence of families is regarded in Brazilian public services. The study is anchored to the prevailing legislation and on published studies in Brazil. The starting point is the need to isolate the insane / mentally ill from the family in order to be treated at the time of the creation of the first hospitals specialized in psychiatry. The discussion follows with the movements that, over the twentieth century, repositioned the family as an important factor for the attention by the services, especially outside hospitals. The growing number of mental health services in Brazil and the presence of teams formed by various professionals in the care of mental suffering make this review of great interest to professional groups involved, including Psychology. We emphasize the presence of families, nowadays, as a support for the caring of the patient within the community and the need to develop strategies for community-based services to care for the families, not only for the mentally disturbed.

Keywords: Family, Madness, Psychological suffering.


 

 

Introdução

As diversas formas de compreensão humana a respeito da loucura implicaram, ao longo da História, na criação de diferentes modos de tratar/lidar com o então denominado louco e no aparecimento de várias concepções acerca da sua relação com a família, considerando-se ou não a participação deste grupo na gênese/manutenção desse quadro. A partir disso, e levando-se em conta a expansão da rede brasileira de assistência extra-hospitalar em saúde mental sustentada pelas políticas públicas em vigor, a partir principalmente dos anos 90, e a relevância da família para a manutenção dos usuários em comunidade, postulam-se como objetivos deste artigo: arrolar as concepções a respeito da participação das famílias na produção/manutenção da loucura em diferentes momentos históricos e destacar de que modo a presença delas é importante em serviços públicos e estudos brasileiros.

 

2. A família sai de cena: é preciso isolar para tratar

Ao longo de todo o período identificado por pré-capitalista europeu, a família era a instituição responsável pelos cuidados daqueles considerados loucos (Silva Filho, 1990). O tema tornava-se de interesse ou de responsabilidade pública apenas na ausência da família ou na impossibilidade desta em exercer controle sobre o louco. Com o fim do campesinato e a instalação de uma nova ordem social, sob a óptica Iluminista, a loucura foi, aos poucos, tornando-se um problema social.

Para compreender o processo de institucionalização da loucura, consideramos relevante destacar o trajeto da transformação da compreensão da loucura em doença mental até o século XX, como fez Foucault, em “História da loucura na Idade Clássica”, ao destacar quatro períodos distintos e de grande relevância para a compreensão desse processo (Amarante, 1995).

O primeiro momento, delimitado por Foucault sobre a institucionalização da loucura, refere-se ao período anterior ao Século XVIII.

Os loucos e a loucura passaram a ser varridos da cena social a partir do século XV por meio do confinamento - junto a prostitutas, mendigos e órfãos - nas santas casas e hospitais gerais, por colocarem em xeque o princípio essencial da sociedade burguesa, a razão (Rosa, 2003, p.44). Por não partilharem do contexto social, os loucos permaneciam à margem da sociedade, o que contribuiu para a legitimação da exclusão e da segregação praticadas pelo Estado.

O segundo momento refere-se à segunda metade do século XVIII, com a criação de hospitais específicos para o confinamento da loucura. Desde suas origens, o asilo tornou-se espaço predominantemente destinado aos loucos pobres ou empobrecidos, especialmente aos sem família (Rosa, 2003, p.46). O meio, principalmente o ambiente familiar, era tido em grande medida como o responsável pela perda da razão, sendo necessária a inserção da autoridade e da disciplina médica que, de forma pedagógica, possibilitariam um resgate ou retomada da razão pelo dito “alienado”.

Neste contexto, o “isolamento terapêutico” do louco, praticado pela Psiquiatria Moral a partir do final do século XVIII, partia de dois pressupostos referentes diretamente ao grupo familiar. Por um lado, era considerado necessário separar o doente para proteger sua família das influências negativas dele (como a indisciplina e desordem moral), sendo crianças, adolescentes e mulheres jovens considerados os mais vulneráveis do grupo. Num outro sentido, mas resultando em prática semelhante, admitia-se que a família teria influências negativas frente ao doente, seja no desencadeamento do quadro, seja na sua evolução. Sob este segundo ponto de vista, a família era tida como uma fonte de desequilíbrios que poderiam implicar perda da razão (Melman, 2002), e o conflito entre impulsos e vontade, cerne da concepção de loucura nesse período, poderia ser estimulado no seio familiar (Rosa, 2003).

Segundo Birman (1978), a alienação provocada pela permanência junto à família poderia ocorrer em dois momentos diferentes, ou seja, a) na história pessoal ou no tempo presente e b) no tempo estruturante da enfermidade mental.

O primeiro caso diz respeito à vida cotidiana, situação em que a família falhava na função disciplinar, cedendo aos “caprichos” impostos pelo louco, às suas necessidades impulsivas. No segundo caso, o envolvimento da família implicava as condições de emergência da enfermidade mental, através da desregulação dos afetos. Frente a estas duas situações, o isolamento proposto pela Psiquiatria serviria para a colocação dos limites necessários à restrição dos impulsos, ação da qual a família, fraca em seu poder controlador-disciplinar, não conseguia encarregar-se (Birman, 1978). A este respeito, Rosa (2003) destacou que o papel da família frente ao

asilamento do louco e com a apropriação de sua condição pelo “modelo médico”, que visava obter sua cura, ficou restrito a identificar a loucura, encaminhar seu portador ao asilo para os cuidados médicos, visitá-lo, bem como fornecer a história de sua enfermidade. Ou seja, a relação da família com o portador de transtorno mental passa a ser mediatizada por agentes médicos e por agentes estatais, encarregados da cura, da custódia e da assistência (p.52).

A ruptura com o meio sócio-cultural-familiar do louco traria, assim, a possibilidade de uma ação pedagógica ou educativa para o controle de seus impulsos, enquanto a família aguardaria, em seu lar, recebê-lo recuperado. Na relação da família com o louco, neste momento histórico classificado como doente mental, passava a ser considerada também a influência da hereditariedade, a partir da teoria da degenerescência de Morel. De acordo com esse autor, os desvios patológicos seriam transmitidos de forma hereditária ou adquiridos precocemente por diversas vias, tais quais intoxicações, alcoolismo, malária ou males congênitos (Silva Filho, 1990). Outra forte influência para a consolidação deste enfoque a respeito da necessidade do controle dos impulsos foi a “teoria preventivista da alienação” elaborada por Esquirol, que indicava modelos ideais para a educação de filhos pelos pais, levando-se em consideração os afetos pautados na ordem, na disciplina dos comportamentos, na disposição hierárquica dos membros da família, em uma evidente rede de relações que objetiva descrever a hierarquia da sociedade burguesa. A família era vista como um protótipo da sociedade na qual encontrava-se inserida e a Psiquiatria, com a intenção de regular moralmente não só a família, mas a sociedade em geral, lançava os alicerces para intervenções de cunho pedagógico na família, ancoradas em concepções morais ou mesmo arguindo em nome da saúde humana. Justificava-se, assim, a vigilância moral, a partir do quadro familiar, em nome da função socializadora do grupo (Rosa, 2003, p.52).

O terceiro período diz respeito ao Século XIX, momento em que a loucura passa a ser encarada como doença mental e diferentes classificações nosográficas são desenvolvidas. Mais especificamente, na segunda metade do século XIX, a psiquiatria assumia uma orientação positivista, centrada na medicina biológica, buscando observar e descrever os distúrbios nervosos, construindose um modelo que influencia muito o pensamento na área até hoje. (Amarante, 1995).

De acordo com Foucault (2000), após o século XVIII passou a ser desenvolvido o registro permanente e exaustivo sobre cada doente, visto que o hospital era tido não apenas como um local de cura, mas ainda onde se fazia possível a anotação dos fatos para seu acúmulo e formação do saber. A partir de Pinel e do Alienismo, o discurso médico tornou-se hegemônico e invalidava outros saberes sobre a loucura. Uma definição para alienação, naquele momento, segundo Amarante (1992), consiste no ato de estar fora de si, tornar-se outro, perder a consciência a respeito de si e das coisas. A partir de Pinel, sob o olhar dos estudiosos, a loucura transformara-se em doença mental, concepção que, para muitos, perdura até a atualidade (Silva & Fonseca, 2003). A nosografia utilizada pelos alienistas foi substituída por um sistema introduzido por Kraepelin, no qual são combinadas perspectivas diversas, tais como a etiologia, as condições de aparecimento da doença, a tendência à predisposição, o curso da moléstia, a sintomatologia, a perspectiva prognóstica, a idade, o sexo, os hábitos etc. (Amarante, 1995, p.57). A Kraepelin cabe a associação do termo “anormalidade”, utilizado pela medicina a partir do século XIX, ao fenômeno da loucura

O quarto e último período refere-se aos movimentos reformistas da Psiquiatria, desenvolvidos a partir do final da 2ª. Grande Guerra, no Século XX, tratado a seguir. Foi a partir das reformas ocorridas ao longo do século passado que a família começou a participar como ator importante na produção/manutenção da loucura, bem como de sustentação para o tratamento.

 

3. Século XX: aos poucos a família volta à cena

O surgimento da Psiquiatria, a criação do tratamento moral e de hospitais especializados para o tratamento da loucura colocaram a figura do médico como intermediária entre a família e o louco, como assinalado anteriormente. Ao longo do Século XX, porém, a família, aos poucos, voltou à cena, ao ser chamada para participar do tratamento oferecido ao louco e diferentes compreensões a respeito da relação entre família e loucura passam a vir à tona.

Um dos movimentos que surgiu neste período e forneceu argumentos para ampliar a discussão a respeito da participação da família na produção da loucura foi a Psicanálise. Melman (2002) destaca que o próprio Freud não desenvolvera qualquer técnica de intervenção familiar, mas muitos autores, partindo de seus conceitos, desenvolveram diferentes compreensões a respeito da forma como as relações familiares interferiam no aparecimento da doença mental, como descreveremos a seguir.

a) Teorias e conceitos elaborados a partir da influência da teoria psicanalítica

Segundo Bassit (1989), a Psicanálise influenciou pesquisas e estudos que enfatizavam o papel da relação mãe-filho, os relacionamentos interpessoais e a comunicação entre os componentes do grupo familiar na produção da loucura.

Na década de 30 do século passado, a Psicanálise ganhou terreno na compreensão do desempenho escolar e do relacionamento entre as crianças, disseminando-se notadamente entre as camadas médias, o que, segundo Rosa (2003) pode ser relacionado à propagação de ideias do movimento de Higiene Mental que transcorria nos EUA e procurava atingir a família por meio de informação e educação, divulgando regras preventivas e normalizadoras sobre a maneira ideal de educação de crianças pelos pais. Em meio à responsabilidade da família pelas condutas infantis, seja do ângulo da má educação, seja da doença, a psiquiatria ia, aos poucos, identificando doenças ou disfunções na educação dos filhos, conduzidas pelos pais. Após a Segunda Guerra Mundial, as investigações que envolviam, sobretudo, o papel da mãe na produção da loucura começaram a ganhar espaço.

Segundo Féres-Carneiro (1996), no início da década de 1950, o contato com a família não era recomendável na prática clínica. No entanto, no campo da pesquisa, o trabalho com famílias possibilitou o surgimento de conceitos teóricos sobre a estrutura e a dinâmica nesse contexto, notadamente realizados com pacientes esquizofrênicos. Um dos grupos que mais obteve destaque foi o de Gregory Bateson, em Palo Alto, na Califórnia (Feres-Carneiro, 1996), cujos estudos procuraram identificar os padrões de interação e de comunicação nos vínculos interpessoais estáveis (Melman, 2002, p.69). O Duplo-Vínculo seria um conceito fundamental para a compreensão do desencadeamento da esquizofrenia, contribuindo ainda mais para responsabilizar os familiares, principalmente as mães (Melman, 2002, p.70).

Como destaca Sonenreich (1992), mães frias e indiferentes, mães muito presentes ou muito ausentes foram associadas à incidência de esquizofrenia nos filhos e:

Com maior requinte, falou-se do duplo-vínculo: a mãe que transmite ao filho, em estado de dependência completa, mensagens ambíguas, contraditórias. [...] A criança percebe a mentira, mas esse próprio fato torna-a uma criança má, que acusa a sua mãe de mentirosa. [...] Ver a verdade é causador de um mal tão grande quanto aquele provocado pelas mentiras da mãe, desmascaradas ou não. A única saída seria a desagregação, a esquizofrenia (Sonenreich, 1992, p. 266).

A família ganhava, neste período, o status de agente patológico, sendo culpabilizada pela esquizofrenia, especialmente a partir das relações entre o filho, portador dessa patologia e sua mãe. A esquizofrenia, a partir deste ponto de vista, seria um produto da relação mãe-filho, sendo a conduta psicótica uma resposta do filho ao grupo familiar, sobretudo à mãe (Rosa, 2003, p.61). Neste momento, encontramos a família vulnerabilizada e destituída de seus saberes sobre relacionamentos internos, sobretudo em relação à educação dos filhos. Os terapeutas tornam-se cada vez mais presentes, intermediando suas relações e conflitos, que se transformam em um saber de expert (Rosa, 2003, p.61).

O conceito de Duplo-Vínculo influenciou o aparecimento, na década de 50 do último século, das Terapias Familiares, nos Estados Unidos. Segundo Rosa, esta linha de pensamento compreendia que as famílias nas quais um dos componentes possuísse esquizofrenia, depressão ou anorexia, apresentavam um quadro específico de relacionamento, marcado por uma patologia familiar que se assemelhava à psicopatologia individual tradicional. Negando a visão linear fundada na relação causa-efeito, a terapia familiar abraçou a visão circular, em que a mútua influência dos processos interativos se interconectam e se alimentam reciprocamente, criando e recriando diversos padrões de relacionamento (2003, p.69).

Outras influências recebidas pelo campo das terapias familiares foram o conceito de cisma marital/viés marital de Lidz, introduzindo a noção de padrões de transmissão de irracionalidade na família, os conceitos de pseudomutualidade/cerca de elástico de Wynne, de mãe superprotetora, de David Levy, e de mãe esquizofrenogênica, de Frieda Fromm-Reichmann (Melman, 2002).

A influência da Psicanálise também esteve presente em autores que abordaram mais a patologia no grupo familiar, como Pichon-Riviére, na década de 50 do século XX. Segundo o autor é possível conceber o doente como portavoz e depositário da patologia de todo o grupo familiar e, desta forma, a doença refere-se não apenas àquele identificado como doente, mas a todo o grupo. A incidência da doença sobre um dos componentes da família fundamentar-se-ia numa tentativa de preservação deste grupo da destruição, pois a doença afetaria aquele identificado como mais forte dinamicamente, ou seja, que suportaria ser o depositário das ansiedades e das tensões grupais. Como tentativa de eliminar a doença, o grupo familiar utilizaria mecanismos de segregação frente ao indivíduo mentalmente doente. O desencadeamento da psicose corresponderia à ruptura do equilíbrio familiar e emergência de tensões no grupo (Pichón-Riviere, 1986 a e b). A respeito das proposições de Pichón-Riviere, Rosa (2003) destaca que:

Neste modelo, a família é culpabilizada pelo transtorno mental de forma mais amena e periférica, pois é engajada diretamente como paciente, ou seja, passa a ser sujeito direto da intervenção terapêutica, que se propõe a reestruturar suas relações e seus papéis, a fim de produzir saúde mental. O terapeuta assume o papel de agente de mudança no grupo familiar. E as famílias mais propensas à patologia seriam aquelas mais rígidas na sua estrutura e inflexíveis à mudança (Rosa, 2003, p.62).

Para Melman (2002) a compreensão do paciente como depositário-portador da patologia sofreu influência da teoria da cibernética. Alguns dos conceitos centrais para esta teoria são a Totalidade, a Retroalimentação e a Homeostase (Mauer & Resnizky, 1987; Ortiz & Tostes, 1992). O conceito de Totalidade indicaria que a conduta de cada um dos membros da família dependeria e estaria relacionado à dos demais; logo, alterações em um dos componentes influenciariam o restante do grupo. Da mesma forma, o conceito de Retroalimentação explicitaria a tendência da conduta de um dos membros em afetar e ser afetada pelas condutas dos demais componentes do grupo. Por fim, segundo o conceito de Homeostase, as famílias, ao se reestruturarem, buscariam sempre um novo equilíbrio, e a evitação de crises seria uma constante em famílias perturbadas.

Para Bleger (s/d) a família funcionaria como um reservatório para a parte psicótica de todos os seus membros, isto é, para a parte menos diferenciada ou mais narcísica da personalidade de seus componentes. Uma das características fundamentais dessas famílias seria o estabelecimento de uma simbiose (falta de diferenciação entre o eu e o não-eu) entre os componentes. O pedido de ajuda profissional envolveria a fantasia de retorno à estabilidade do grupo e ao modo de funcionamento anterior à doença. No entanto, lembra Bleger (s/d), as perturbações que ocorrem não dependem apenas da dinâmica intrafamiliar, mas também extrafamiliar e das relações entre ambas.

Essa linha de pensamento, dita sistêmica, pressupõe que se considere paciente e família como parte de uma totalidade, ou seja, que se entenda o grupo familiar como um sistema, conforme aponta Berenstein (1988), no qual os componentes estão divididos em dois subgrupos, o dos sadios, em contraposição ao indivíduo doente, e mantém, entre si, relações complementares (hostilidade-intimidade, cooperação-rivalidade), identificando o doente como o causador do desequilíbrio grupal.

Além da perspectiva sistêmica, que influenciou o aparecimento do complexo e heterogêneo campo das terapias familiares, outras se desenvolveram ao longo do tempo, como a escola estratégica, a estrutural, a de Milão e a construtivista (Rosa, 2003).

b) Movimentos Reformistas da Psiquiatria no Pós-Segunda Guerra

De acordo com Rosa (2003), a importância atribuída pelo alienismo à relação que entre a família e o portador de transtorno mental reaparece, sob ópticas diversas, em correntes do campo psicológico e das ciências sociais após a Segunda Guerra Mundial, momento em que

novamente um panorama de reforma das instituições de cuidados aos enfermos mentais se descortina pela Europa desenvolvida e, agora, também nos Estados Unidos. Passam a ser exigidas a dinamização da estrutura hospitalar e novas modalidades e condições de tratamento com vistas a uma eficácia maior na recuperação dos doentes, sobretudo na Europa ocidental, nesse momento carente de braços para o trabalho. Isto implica a formulação de uma política de “portas abertas” para minorar o isolamento do doente internado no hospício, e o “tratamento” dessa instituição para que seu espaço voltasse a ser um meio terapêutico, sendo criadas então as comunidades terapêuticas, onde se incentivam o trabalho em equipe e a formação de novos técnicos munidos dessa nova visão da prática psiquiátrica (Silva Filho, 1990, p.94-95).

De Tilio (2007) nos aponta que foram as obras de Foucault (“Vigiar e punir” e “História da loucura”) e de Goffman (“Manicômios, prisões e conventos”) os grandes impulsionadores das críticas dirigidas às instituições classificadas como totais, como os hospitais psiquiátricos, no pós-Segunda Grande Guerra. O funcionamento do hospital psiquiátrico encontrava-se, naquele momento, marcado por características como medidas punitivas, excesso de medicação e vigilância total sobre os internos. Após a Segunda Guerra, surgiram, no ocidente, movimentos que, segundo Birman & Costa (1994), redimensionaram o campo através da promoção de saúde. São eles: as Comunidades Terapêuticas na Inglaterra, a Psicoterapia Institucional na França, a Psiquiatria de Setor na França e a Psiquiatria Comunitária/Preventiva nos EUA. De Tilio (2007) destaca que as práticas desenvolvidas por estes movimentos tinham, grosso modo, como objetivo promover o tratamento o mais próximo possível do contexto social originário dos pacientes, ou seja, não apresentavam o caráter marcadamente isolacionista e focado na intervenção do psiquiatra. Emergia, assim, como parte do tratamento, a necessidade de organização do trabalho a partir de equipes multi/ interdisciplinares e da participação dos familiares e redes de suporte social ao paciente. A partir deste novo modo de ver, no dispositivo institucional estaria presente a necessidade de incorporação das regras de relações sociais mais amplas, as quais seriam reinterpretadas e ensinadas ao doente que, por sua vez, deveria reeducar seus hábitos sociais por meio da internalização das regras (Silva Filho, 1990, p.95).

Todavia, aqueles classificados como psicóticos apresentavam poucas respostas a este tipo de tratamento, mesmo com as teorias que os apresentavam como representantes de desajustes e tensões familiares. “Passava o próprio grupo familiar a ser objeto de intervenções terapêuticas muitas vezes mais que os próprios doentes” (Silva Filho, 1990, p.96).

Após este período, na década de 60 do século XX, apareceram outros movimentos Reformistas, como a Antipsiquiatria na Inglaterra e nos Estados Unidos, e a Psiquiatria de Tradição Basagliana, na Itália. Segundo Cooper, para a Antipsiquiatria, no hospital psiquiátrico seriam repetidas as situações que, no seio familiar, foram ou ainda seriam enlouquecedoras para o paciente (Rosa, 2003). A Antipsiquiatria deu voz ao louco, ao mesmo tempo em que reduziu a complexidade do fenômeno da loucura, colocando o doente como vítima de sua família (Melman, 2002; Rosa, 2003).

Para o grupo americano envolvido com a Antipsiquiatria, sob a influência de Thomas Szasz, a família do doente mental seria um grupo que, em conluio, poderia tentar livrar-se deste componente pela internação (Szasz, 1978). Já para o grupo inglês, a esquizofrenia poderia ser compreendida por meio de rígidas estruturas familiares que impediriam a individualização de um de seus membros (Rosa, 2003).

Já segundo o movimento iniciado por Basaglia, no hospital seria reproduzida a violência que o paciente viveria na família e/ou na sociedade (Basaglia, 1985 apud Rosa, 2003). Aos poucos, e sob influência destes movimentos, a Psiquiatria voltava-se para o atendimento comunitário e, desta maneira, novas formas de intervenção que englobavam a relação do paciente com sua família foram consideradas na prática e nas teorias desenvolvidas a partir de então (Rosa, 2003).

Uma outra proposta sobre a relação estabelecida entre a família e o portador de sofrimento mental, ou em “existência-sofrimento”, foi colocada pela tradição basagliana. Para esta, o papel da família não é de mera coadjuvante ou informante para o tratamento, mas sua posição é de protagonista. Segundo Rosa (2003):

Atualmente, o que é postulado, sobretudo a partir da influência da experiência basagliana, é o protagonismo da família, como parceira na organização das propostas de cuidado social, planejadora e sujeito dos serviços de saúde mental, nas pesquisas, na formação e capacitação de recursos humanos e nos projetos de trabalho, coautora nas decisões e nas ações (Rosa, 2003, p.75).

c) Estudos sobre emoções expressas e sobrecarga familiar

A relação entre as atitudes dos familiares e a compreensão da doença mental deu origem, também após a Segunda Grande Guerra, ao termo Emoções Expressas (EE), fator preditivo de recaídas/reagudizações do quadro psiquiátrico. Índices altos de EE seriam indicativos de potencial de recaída por parte do paciente e sua medida envolve a avaliação de comentários críticos, do grau de hostilidade e a presença de hiperenvolvimento emocional da família frente ao doente (Montagna, 1981; Melman, 1998).

O termo “sobrecarga familiar” (do inglês “family burden”) surgiu no bojo dos estudos sobre EE, referindo-se aos aspectos econômicos, físicos e emocionais a que se encontrariam submetidos aqueles familiares que se encarregavam do cuidado de um paciente psiquiátrico (Miles, 1992; Melman, 1998).

Segundo Pereira & Almeida (1999), a sobrecarga ou o peso da doença mental para a família (traduzida, no Brasil, por alguns autores também com “fardo”) é de difícil definição e pode ser atrelada ao conceito de “caregiving”, do inglês, que os autores traduzem, de forma livre, como “prestação de cuidados”. Desta forma, na relação entre aquele que presta cuidados de forma não remunerada em relação a outrem (o cuidador familiar) e aquele que recebe o cuidado, por apresentar incapacidades de realizar algumas ou diversas obrigações recíprocas próprias das relações interpessoais adultas (Pereira & Almeida, 1999, p.162), poderia estar presente a sobrecarga.

A sobrecarga familiar, no que se refere ao fator econômico, é colocada como resultado da frequente dependência do paciente no custeio de medicação, tratamento, alimentação, vestuário e transporte, pela usual condição de improdutividade econômica do usuário de serviços de saúde mental, que permanece fora do mercado de trabalho, em virtude do aparecimento da doença ou mesmo nunca tendo sido nele inserido (Miles, 1992; Melman, 1998; Pegoraro & Caldana, 2006). Além dos custeios cotidianos que o usuário requer, a família, em muitos casos, depara-se com dificuldades para manutenção de emprego, por alterações de horário ou faltas necessárias para o acompanhamento do doente. A família pode ver-se frente à reorganização de seus horários para aumentar a renda, ou para a realização de tarefas para a manutenção do lar (limpeza, alimentação), implicando em sobrecarga física. Esta reorganização pode levar a um distanciamento da família de seu círculo de amigos, conhecidos, parentes, sendo restringido o tempo dedicado ao lazer, vulnerabilizando-a emocionalmente (Campos, 1980; Miles, 1992; Melman, 1998). Os demais relacionamentos da família podem ficar prejudicados se ocorrer uma sobrecarga no vínculo, com cobranças de exigências do familiar para si e para o paciente de quem cuida: falta tempo e espaço para outros vínculos. Melman (1998) destaca que muitas vezes é o familiar mais envolvido com o cuidado aquele que menos suporta alterações advindas do aparecimento da doença mental, já que a cura é muitas vezes compreendida como retorno à situação anterior ao aparecimento da doença. Do ponto de vista emocional, a sobrecarga é evidenciada por meio de uma gama de sentimentos que a convivência com o usuário provoca, como culpa, raiva, insegurança, medo, ansiedade, solidão, e que podem ser gerados por comportamentos, por parte do paciente, com os quais a família não sabe lidar como silêncios longos, fala desordenada, imprevisibilidade no agir (Miles, 1992; Ortiz & Tostes, 1992). O contato do paciente com crianças e como explicarlhes a doença também podem gerar sobrecarga no cuidador familiar (Miles, 1992).

Segundo Miles (1992), em alguns casos, a doença mental pode ser encarada como fatalidade, mesmo em meio ao sofrimento desencadeado por ela, e em outros a doença pode mesmo ser vista como uma forma de trazer benefícios aos que prestam o cuidado, sendo o paciente visto como companhia, forma de aplacar a solidão. Deste modo, a sobrecarga experimentada pelo cuidador estaria relacionada ao sentido que o familiar atribui ao ato de cuidar e ao impacto/alterações que o exercício desta função provoca em sua vida.

Aos estudos a respeito da sobrecarga familiar relacionam-se aqueles que investigam a rede de apoio do familiar e/ou usuário. Se a rede de apoio é fechada, havendo proximidade entre parentes e amigos da família, e um maior controle social informal, é possível que haja mais disponibilidade de cuidar do membro doente (Miles, 1992).

Portanto, conhecer e ativar a rede social do portador de transtorno mental e de sua família permite acionar e criar recursos e potencialidades que podem agir como fator estimulador de saúde mental, fornecendo suporte social, afetivo e material. (Rosa, 2003, p.74).

 

4. Algumas considerações sobre a criação de novos serviços de atenção psicossocial no Brasil e a inclusão das famílias nas estratégias de cuidado

Ao final da década de 70, as denúncias sobre maus-tratos a pacientes em hospitais psiquiátricos em diversos cantos de nosso país, o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental e a presença de Franco Basaglia permitiram a criação de um cenário para discussão das formas até então empregadas no tratamento da loucura, sob o predomínio da internação a longo prazo.

Nascido sob influência das ideias basaglianas, o movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira destaca a “cidadania” e a “atenção integral” como palavraschave das ações em saúde mental e ancora-se no conceito de Desinstitucionalização para fundamentar seus ideais, princípios e práticas. Amarante (1995) assinala que desinstitucionalizar não é o mesmo que desospitalizar, já que

significa tratar o sujeito em sua existência e em relação com suas condições concretas de vida. Isto significa não administrar-lhe apenas fármacos ou psicoterapias, mas construir possibilidades. O tratamento deixa de ser a exclusão em espaços de violência e mortificação para tornar-se criação de possibilidades concretas de sociabilidade a subjetividade. Portanto, desinstitucionalizar é mais que um processo técnico, administrativo, jurídico, legislativo ou político; é, acima de tudo, um processo ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direito e novos direitos para os sujeitos. (p.493-494)

Movimentos pioneiros nas cidades de Santos, São Paulo e Campinas permitiram, sob a óptica da desinstitucionalização, a criação de novas formas de cuidar e acolher em saúde mental, envolvendo não apenas os profissionais e usuários destes serviços, mas também seus familiares. Nasciam, no início da década de 90, os Núcleos e Centros de Atenção Psicossocial (NAPS e CAPS), equipamentos extra-hospitalares formados por equipes multiprofissionais e que, atualmente denominados apenas como CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), regulamentados pela Portaria 336/00 (Brasil, 2004), são serviços organizados ambulatorialmente, que atendem usuários em diferentes modalidades (individual, grupo, familiar) e por meio de diferentes atividades (oficinas, psicoterapia, assembleias). Com foco em usuários chamados “graves” (psicóticos e neuróticos graves), as estratégias de atenção dividem-se em cuidados intensivos (frequência de 5 dias/semana), semi-intensivos (3 dias/semana) e não intensivos (semanal, quinzenal ou mesmo mensal).

A Portaria nº. 251/GM do Ministério da Saúde (Brasil, 2004), publicada em 2002, apresenta diretrizes e normas para a assistência hospitalar em psiquiatria e pode ser vista, segundo Rosa (2005, p.210), como um dispositivo para a mudança das relações entre os serviços psiquiátricos e a família, pois prevê

no desenvolvimento dos projetos terapêuticos [dos usuários], o preparo para o retorno à residência/inserção domiciliar e uma abordagem dirigida à família, no sentido de garantir orientação sobre o diagnóstico, o programa de tratamento, a alta hospitalar e a continuidade do tratamento.

Realizada no mesmo ano de 2002, a III Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM) trouxe em seu relatório a reafirmação de reorientação do modelo assistencial [para] garantir a humanização do sistema de saúde. E, também, promover a integração dos serviços de saúde de forma a garantir assistência integral aos usuários de saúde mental (Brasil, 2002, p.27-28) com a garantia do desenvolvimento de estratégias diversas de ofertas de serviços de saúde mental pautadas nas possibilidades dos indivíduos, das famílias e dos serviços, para prestar cuidados e não apenas na identificação de “patologias” (p.28).

As propostas documentadas em Relatório da III CNSM são indicativas de uma política de desinstitucionalização em saúde mental, que visa à superação do modelo asilar e têm como requisito a criação de uma rede substitutiva de cuidados, que respeite as necessidades de cada localidade e que se fundamente em dados epidemiológicos, enfocando atenção integral, território, acesso, gratuidade e intersetorialidade (Brasil, 2002, p.41), e que exige a potencialização do papel dos familiares nos cuidados dos portadores de transtornos mentais (p.37). Deste modo, podemos dizer que a família, no começo deste século não continua apenas em cena, mas tornou-se um dos pilares da política de desinstitucionalização em saúde mental no Brasil.

Os novos equipamentos públicos têm despertado o interesse de pesquisadores por este novo universo de cuidado. A literatura nacional aborda, no tocante às famílias, as condições de sobrevivência e sobrecarga frente ao processo de desinstitucionalização e como suporte para a permanência do usuário na comunidade, em especial, o suporte prestado por mulheres nas famílias.

 

5. Desinstitucionalização, sobrecarga e condições de vida das famílias

O tema da condição de vida das famílias de usuários frente à proposta de desinstitucionalização da assistência não é novo. Tânia Tsu, em 1993, já discutia a condição das famílias pobres no cuidado do usuário de serviços de saúde mental vinculados ao SUDS (Sistema Único Descentralizado de Saúde), a partir de sua tese de doutorado. De lá para cá, o País assistiu a criação do SUS (Sistema Único e Saúde) e de diferentes serviços extra-hospitalares, como já assinalamos, mas as dificuldades apresentadas pelas famílias pobres para conviver com o usuário em crise e a compreensão da internação como forma de obter dias, semanas ou mesmo meses de alívio no cuidado, enquanto o usuário permanece hospitalizado, pouco mudaram.

Para Tsu (1993) as condições de implementação de cuidados extrahospitalares devem considerar as situações de vida da classe trabalhadora,

penalizada duramente e sem condições de arcar com despesas básicas relativas à sobrevivência, pois sem a melhoria das condições concretas de existência, as experiências de desospitalização podem não funcionar, já que: Sobrecarregada pelas dificuldades decorrentes da baixa renda, a família não suporta o convívio com a psicose, tanto devido a fatores de ordem emocional, como também por motivos financeiros ligados ao fato de ter de prover as necessidades de um adulto improdutivo e carente de cuidados especiais (Tsu, 1993, p.69).

Tsu defende também a ideia de que o acompanhante do usuário, em crise ou em grave sofrimento, tenta convencer o profissional de saúde que atende a internar e/ou a prolongar o tempo de internação, usando como argumento comportamentos do paciente declarados como intoleráveis pelo grupo familiar, como risco à segurança física do paciente ou familiares, ou ameaça aos bens familiares.

A internação permite que a família deixe a cargo do Estado, através das equipes de saúde, algumas de suas tarefas cotidianas no cuidado ao usuário. Esse período em que o usuário encontra-se internado permite à família menos gastos, seja pela diminuição de encargos como alimentação e medicação, seja pela possibilidade de que, na ausência do usuário, o cuidador consiga reingressar no mercado de trabalho. Ainda ocorre a diminuição da tensão cotidiana motivada por comportamentos do paciente que incomodem os familiares. Ou seja, a internação aparece como forma de alívio da sobrecarga no cuidado diário e familiar.

Sadisgursky (1997), em tese de doutorado, identificou que a presença do doente em casa era preferida pelas famílias quando ele não se encontrava em crise ou em fase aguda e que o controle do comportamento (ausência de comportamentos indesejáveis) era fortemente associado ao uso de medicação psicotrópica. Os mesmos apontamentos foram realizados pelos familiares entrevistados por Pegoraro & Caldana (2006) em trabalho posterior.

A internação, segundo os entrevistados por Sadisgursky, era vista como solução em situações onde havia recusa de medicação pelo paciente, em situações muito ansiogênicas para a família, como a percepção de que uma descompensação poderia ocorrer. Nestes casos, a busca pela internação pode estar relacionada a outra busca: da manutenção do equilíbrio ou da estrutura familiar.

As dificuldades financeiras também foram tema de discussão por Oliveira & Loyola (2004), que investigaram famílias de egressos da internação hospitalar do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ).

Estando em casa, supõe-se que o paciente divida o quarto com poucas pessoas, tenha horários para refeição, tenha roupa de cama limpa e passada, tenha acesso ao telefone e à televisão, coma diariamente, entre outros aspectos que caracterizam a casa como um suposto lugar de cuidado. (p.220)

No entanto, a realidade encontrada foi diferente das expectativas das pesquisadoras: não havia cama, água encanada, nem dinheiro para a subsistência familiar.

A pesquisa desenvolvida por Rosa aponta que, na eclosão das primeiras crises psiquiátricas, a família tende a ser mais receptiva às orientações dos trabalhadores em saúde mental e adere ao tratamento com maior facilidade. No entanto, ela, em geral, só procura pelos serviços porque se encontra em crise, uma crise já instalada, com uma história e várias tentativas de debelá-la. Ou seja, a família, num primeiro momento, tende a resolver o problema sem o auxílio de um serviço de saúde mental e, tendo insucesso nesta empreitada, chega ao serviço com sentimentos de impotência, exaustão, culpa, desespero. É uma das últimas formas de divulgar uma questão que preferiria, se tivesse opção, resolver no plano privado (Rosa, 2005, p.210).

Apesar dos relatos acima, que consideraram a família como parte do tratamento de um de seus componentes, em muitos casos ela é colocada em segundo plano pelos serviços, servindo apenas como informante do histórico do paciente, para realizar visitas e para buscá-lo quando ocorrer a alta, ou seja,

sua incorporação na abordagem do serviço é periférica, sobretudo por meio de visitas e reuniões nas quais predomina uma orientação diretiva em que a técnica da palestra e do aconselhamento com diferentes profissionais predomina (Rosa, 2003, p.248-249).

O estudo de Rosa (2003) aponta para o predomínio da desinformação entre os familiares no momento da alta após a primeira internação psiquiátrica. Colocada num lugar passivo pelo serviço de saúde, que lhe promete a cura, a família é retratada como visita e, muitas vezes, classificada como inconveniente, em momentos em que questione ou faça queixas sobre o atendimento prestado. A pesquisa aponta também para uma alteração, provocada por reinternações, no modo como a família concebe e relaciona-se com o usuário. Surgem sentimentos de superproteção, infantilização e tutela. A dependência do usuário frente aos familiares ou mais especificamente ao seu cuidador pode ser parcial ou total, ou seja, pode ser identificada em ações da família com o intuito de impedir o usuário de trabalhar, de administrar seu próprio dinheiro, ou mesmo de ir a uma consulta ambulatorial, sendo, neste caso, representado por um familiar, o que, de acordo com a autora representaria a dependência total do usuário.

Nos últimos anos, algumas publicações têm discutido a sobrecarga em cuidadores de usuários de serviços públicos no Brasil. Dentre eles, destacamos Borba, Schwartz & Kantorski (2008), Navarini & Hirdes (2008) e Pegoraro & Caldana (2006), que discutiram a sobrecarga emocional, prática/no cuidado cotidiano e financeira a partir de entrevistas com familiares de usuários de CAPS, além de Bandeira, Calzavara & Castro (2008) em estudo sobre validade de escala para avaliar sobrecarga familiar no contexto brasileiro.

Outra realidade entre familiares que cuidam de portadores de sofrimento mental é o predomínio de mulheres responsáveis por homens mais jovens, no geral, com esquizofrenia (Pereira & Almeida, 1999; Gonçalves & Sena, 2001; Rosa, 2003; Teixeira, 2005; Pegoraro & Caldana, 2006; Navarini & Hirdes, 2008). Estas mulheres, no geral, apresentam idades acima dos 65 anos, o que pode indicar uma associação entre o peso da doença mental de um familiar e o peso da própria idade. Quando o cuidado é exercido na família por um idoso, gera ansiedade frente à possibilidade de que ele adoeça ou sofra de alguma incapacidade física que lhe impeça de exercer o cuidado.

Conhecer a realidade das famílias dos usuários e suas concepções a respeito do tratamento são fatores essenciais para os serviços de saúde mental hoje. Na realidade dos serviços de atenção psicossocial, como ressaltam Schrank & Olschowsky (2008), a técnica de escuta e acolhimento fazem-se presentes na rotina de atendimento e são viabilizadas através das diferentes atividades/ estratégias ali realizadas (oficinas, atendimento individual, visita domiciliar, busca ativa e grupo de família). Tais estratégias têm como função a inserção das famílias na rotina dos CAPS, caracterizando-se como intervenções em movimento, exigindo dos profissionais negociação e interlocução nesse processo de parceria que deve ser criado, criticado e revisto diariamente (p.133). As famílias também são inseridas em estratégias de cuidado e reabilitação por meio de outras diferentes atividades executadas nos CAPS, tais como: assembleias, festas e grupos, cuja finalidade é a construção de laços entre usuário-família-equipe.

O vínculo ao serviço entra também como um recurso de vencer as resistências da família nessa parceria, pois no convívio diário, na troca das informações, no esclarecimento das dúvidas, na descoberta de diferentes modos de fazer o cuidado em saúde mental é que vão estruturarse propostas de atenção, de agir, de considerar, de aceitar as individualidades dos usuários e das famílias. (Schrank & Olschowsky, 2008, p.131)

Nos equipamentos de atenção psicossocial, a visita domiciliar é uma prática essencial para cuidado de usuários e suas famílias, pois

proporciona a oportunidade de acolher esses atores no meio em que vivem e oferece modos de cuidados alternativos àqueles centrados na instituição, possibilitando o conhecimento das reais necessidades do usuário e familiares, possibilitando que a equipe conheça a dinâmica familiar e viabilizando a interação do profissional com essa família, visando à busca de uma parceria no cuidado do usuário (p.132). Além disso, é uma atividade em que a equipe também pode utilizar para identificar as famílias que não participam das atividades do CAPS ou que demonstram dificuldades em cuidar do usuário, oportunizando uma aproximação que possa gerar um trabalho conjunto entre equipe e família, constituindo-se, desse modo, como uma estratégia para buscar a parceria da família no cuidado. Através das visitas domiciliares, os profissionais têm a oportunidade de fundamentar suas intervenções com base na realidade experienciada juntamente com a família (Schrank & Olschowsky, 2008, p.132).

Ainda que a literatura registre experiência de serviços de atenção psicossocial bem sucedidos, é importante registrar que o processo de desinstitucionalização da assistência em saúde mental não possui “receita pronta”, como assinalam Alverga & Dimenstein (2005). Ao contrário, precisa ser incessantemente inventado, não sendo possível atrelá-lo a um local em específico, seja ele o CAPS, a unidade básica de saúde, a escola, ou o domicílio. A responsabilidade da Reforma relaciona-se, sim, à ética, ao produto que o encontro com a loucura produz em cada um dos trabalhadores e pesquisadores em saúde mental.

As práticas e os processos embutidos no que se convencionou chamar de Desinstitucionalização, ancorados no aumento da oferta de serviços em saúde mental desde a década de 1980, quanto aos modelos adotados (Centros e Núcleos de Atenção Psicossocial, Hospitais-Dia, lares abrigados), ou às categorias profissionais envolvidas nesta assistência (difusão da assistência em equipes multiprofissionais), são decorrência das concepções que fazem parte do cotidiano das instituições e do processo de instalação de programas de saúde mental propostos por governos estaduais e municipais. Essas concepções referem-se aos âmbitos político, técnico e da história pessoal dos envolvidos e podem ser tidas como determinantes para a compreensão do processo saúde-doença que sustenta a desinstitucionalização. Desta forma, acreditamos que é necessário que os profissionais de saúde reflitam sobre o tipo de assistência prestada. Um serviço oferecido fora de um ambiente manicomial não é garantia de que suas práticas o sejam.

A desconsideração da origem do usuário do serviço, seus costumes, crenças, modo de entendimento e enfrentamento - ou não - da doença, acabam por tornar o contato entre equipe ou profissional e usuário localizado fora da realidade daquele a quem se busca tratar, ou seja, quando passamos a encarar o paciente como produto de relações e interações de indivíduos inseridos em situações de vida de modo concreto.

É inegável a importância do conhecimento, por parte das equipes de saúde, do contexto de vida da clientela e seus cuidadores. São pessoas excluídas de um universo cultural, do qual fazem parte os profissionais que as atendem, mas, a partir da consideração da realidade na qual se inserem, as informações que as equipes julgam necessárias podem ser passadas, e as estratégias de atenção, de modo mais efetivo, serem traçadas, fornecendo a estas famílias um outro importante recurso para o enfrentamento do sofrimento mental.

A participação feminina no mercado de trabalho, e os novos arranjos familiares, não apenas com a mulher na posição de chefe de família, mas também na diminuição do número de famílias mais extensas, crescentes a cada dia, vem tornando cada vez mais difícil os cuidados com doentes e o trabalho emocional a este ligado, e termina por afetar a unidade doméstica. Pensando no atual contexto das políticas de egressos do hospital, podemos imaginar que a participação feminina nos cuidados domiciliares vem sendo, a cada dia, contraditoriamente, mais necessária

 

5. Considerações Finais

No atual contexto de desinstitucionalização da assistência em saúde mental no Brasil, a presente revisão contribui para a reflexão a respeito das condições emocionais e materiais de famílias menos abastadas - sabidamente as que recorrem aos serviços públicos de saúde mental - tanto para a gestão de seu cotidiano com um usuário em crise/sofrimento, quanto para o vínculo que possam vir a ter com as equipes de saúde. Se colocadas de volta no cenário da atenção à loucura e ao louco, ao longo do Século XX, é preciso um cuidado mais que especial, no apoio às famílias que funcionam como suporte para a permanência do usuário em comunidade. O sucesso de serviços comunitários, como os CAPS, encontra-se, a nosso ver, atrelado às estratégias não apenas de estabelecimento de vínculo entre equipes e famílias, mas na criação de estratégias de cuidado às próprias famílias, de modo que elas permaneçam em cena e, tal qual o usuário, sendo o foco de atenção, e não apenas compreendidas como fonte de informação sobre a doença e o doente.

 

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Recebido em: 19/07/2009
Aceito em: 10/09/2009

 

 

1 Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo - Campus Ribeirão Preto. Contato: Rua 227, Qd 67A, Lt 3/4 - Ed. Costa do Sol - ap. 1303 - Goiânia - GO - CEP 74605-080. Tels: (62) 36612855 / (62) 93018489 - E-mail: rfpegoraro@yahoo.com.br

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