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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.29 no.2 São Paulo dez. 2009

 

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA

 

Psicoclínicas e cuidados da infância

 

Psycho clinics and childhood care

 

 

Carlos Monarcha1

Universidade Estadual Paulista

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta resultados de estudos sobre as clínicas de cuidados da infância criadas no Rio de Janeiro e em São Paulo, na década de 30 do século XX, e dirigidas por intelectuais representativos e integrantes da Liga Brasileira de Higiene Mental: Mirandolino Caldas, Arthur Ramos e Durval Marcondes (ex-ocupante da Cadeira nº. 1).

Palavras-chaves: Clínica de hábitos, Higiene mental, Educação da criança.


ABSTRACT

This article presents results of studies on the child care clinics created in Rio de Janeiro and São Paulo in the 1930s, and led by intellectuals and members representing the Brazilian League of Mental Hygiene: Mirandolino Caldas, Arthur Ramos, Durval Marcondes (former occupant of Chair no.1).

Keywords: Habits clinic, Mental hygiene, Children education.


 

 

Introdução

Por “psicoclínicas” nos referimos aos serviços de saúde mental e terapêuticos em conexão direta ou indireta com as escolas públicas brasileiras, nas décadas de 1930 e 1940. Hoje recebem os nomes “Clínicas Psicológicas” ou “Clínicas de Higiene Mental”.

Os métodos utilizados pelas equipes de profissionais, na efetivação do psicodiagnóstico, consistiam na aplicação de instrumentos psicológicos, exames de sinais de comportamento e análises da anatomia corporal, a fim de identificar e avaliar indicadores da personalidade e caráter. De modo geral, as psicoclínicas partilhavam de dois princípios: (i) as manifestações patológicas expressam conflitos psíquicos; (ii) as manifestações patológicas no adulto repetem a história infantil do sujeito.

No Brasil, os melhores exemplos de instituições de higiene e saúde mental da infância referem-se à Clínica de Eufrenia (1932), ao Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental (1934) e à Clínica de Orientação Infantil (1938), idealizadas e dirigidas, respectivamente, por Mirandolino Caldas, Arthur Ramos e Durval Marcondes (ex-ocupante da Cadeira nº. 1 desta Academia) (Monarcha, 2009).

De uma parte, esses serviços de atendimentos e cuidados aplicavam técnicas para conhecimento da pessoa enquanto interioridade psicológica e exterioridade social, quer dizer, como unidade biopsicossocial; de outra, seriam os “olhos para ver” e os “ouvidos para ouvir” as autoridades públicas envolvidas com a educação da infância, em época da escola de massas e precário rendimento do sistema de ensino. De fato, as estatísticas anuais (quadro nº. 1) relativas ao então ensino primário no período em apreço levantavam índices numéricos preocupantes.

 

 

Quanto ao atendimento e cuidados da infância, essas psicoclínicas diferiam das clínicas de psiquiatria infantil: as primeiras voltavam-se para o diagnóstico, profilaxia e terapia, as segundas centravam-se no diagnóstico e tratamento das “oligofrenias” (Assumpção Júnior, 1995).

De mais a mais, a ideologia cívico-nacionalista em voga na Era Vargas (1930-1945) parece ter favorecido as iniciativas de cuidados da infância, de sorte que termos como “eugenia”, “eufrenia” e “disgenia” frequentavam os mais variados discursos políticos e científicos. Segundo Stepan (2005): Pode-se ver um lento deslocamento da eugenia de volta à puericultura e preocupações com a saúde infantil na década de 40 (p.178). Com efeito, em demorada entrevista ao Diário de S. Paulo, Figueira de Mello, médico e Diretor do Serviço de Saúde Escolar, órgão responsável pelo Serviço de Higiene Mental, declarava:

Assim as escolas bandeirantes não são apenas um centro de aprendizado onde se ensina a ler e a escrever; são, sobretudo, verdadeiros laboratórios de nacionalização e de socialização. As crianças escolares, ao mesmo passo que recebem a necessária instrução, para o espírito, abrem os olhos à realidade da vida. Os professores e os médicos se encarregam de perscrutar a sua alma, fazendo vir à tona da sua personalidade todas as energias que, na sua ausência de estímulos naturais, permaneceriam embotadas. (Ramos, 1939, p.202).

 

2. Antecedentes

As psicoclínicas foram estruturadas à época da implantação da obrigatoriedade escolar na Europa e nos Estados Unidos; extensão do ensino elementar e detecção de distúrbios prejudiciais da aprendizagem, sobretudo, entendia-se, nesse tempo, que a instituição escolar e sua disciplina moral normalizariam a agitada e heteromorfa natureza infantil. Como protocolo de ação, as equipes técnicas dispunham-se a compreender e acompanhar os casos designados de “criança problema” ou “criança difícil”, na sua trajetória de adaptação e mudança.

Hans Zulliger, professor do então ensino primário e depois eminente psicólogo na cosmopolita Suíça de início do século XX, foi um dos precursores das psicoclínicas, além de ter introduzido na pedagogia escolar a designada metapsicologia de Sigmund Freud. Atribui-se a Zulliger o pioneirismo no concernente à formulação de uma pedagogia psicanalítica para análise, segundo sua nomenclatura pessoal, das “crianças difíceis”, crianças com dificuldades de aprendizagem, apesar de suas habilidades e capacidades de adaptação à vida social e desenvolvimento cognitivo (Zulliger, 1920).

Nos Estados Unidos dos anos de 1930, as psicoclínicas, ou “child guidances clinics”, “child garden clinics” e “habit clinics”, conheceram floração inédita e serviram de modelo e fonte de inspiração para todos aqueles preocupados com a instabilidade e baixo rendimento dos sistemas escolares estaduais aqui existentes. De todo modo, algo parece ser indiscutível: na origem das psicoclínicas, encontram-se as cogitações teóricas de Alfred Binet a respeito das possibilidades positivas atribuídas à “ortopedia mental”.

Da mesma forma que a ortopedia física endireita uma espinha dorsal, a ortopedia mental endireita, cultiva, fortifica a atenção, a memória, o julgamento, a vontade. Não se procura ensinar às crianças uma noção, uma lembrança, e sim colocar suas faculdades mentais em forma. (Binet, 1911, p.35).

O posicionamento de Alfred Binet causou uma reviravolta na cena médica e pedagógica. De fato, até então o diagnóstico de “debilidade” associava a pessoa à falta de vigor físico ou psíquico, ou, ainda, à existência de patologias orgânicas; diferentemente, as cogitações de Binet referiram o “débil” ao escolar com baixo aproveitamento, melhor dito, a dimensão deficitária expressava as dificuldades intelectuais para realizar tarefas. Dessas teorizações, o chamado fisiologista formulou os conceitos norteadores dos debates e soluções sobre a infância, a saber: os “anormais de asilo” (idiotas) e os “anormais de escola” (os débeis).

Em resumo, desde o ponto de vista das psicoclínicas, o que importava não eram as patologias graves e suas etiologias, mas os desajustes verificados dentro dos parâmetros da normalidade, por consequência, elas renovaram de maneira surpreendente o interesse e a percepção da infância em situações de aprendizagem e socialização.

 

3. A Clínica de Eufrenia

A Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) foi fundada em 1922 e, entre os associados, constavam médicos-psiquiatras, juristas, jornalistas e professores. Os estatutos da LBHM elegeram as seguintes prioridades:

a) prevenção das doenças nervosas e mentais pela observância dos princípios da higiene geral e especial do sistema nervoso;
b) proteção e amparo no meio social aos egressos dos manicômios e aos deficientes mentais passíveis de internação;
c) melhoria progressiva nos meios de assistir e tratar os doentes nervosos e mentais em asilos públicos, particulares ou fora deles;
d) realização de um programa de Higiene Mental e de Eugenética no domínio das atividades individual, escolar, profissional e social.
(Estatutos, 1925).

Como se nota, a Liga voltava-se para ações preventivas e terapêuticas, a fim de promover a criação de “bons hábitos mentais” e perfeita adaptação à vida social. À “higiene mental” caberia ajustar as funções psíquicas individuais ao meio social e, com isso, prevenir desequilíbrios geradores de patologias psíquicas. Os quadros dirigentes da Liga pretendiam regenerar as populações desde o ponto de vista mental e moral e promover o aperfeiçoamento biológico e psicológico. Para atingir as metas, foram promovidas campanhas de combate ao alcoolismo, controle da reprodução humana e da imigração estrangeira, de higiene mental na escola e de educação sexual (Costa, 1989).

A Clínica de Eufrenia foi implantada pela LBHM no Distrito Federal, em 1932. Esse serviço de atendimentos e cuidados consistia na prevenção das doenças nervosas da infância, correção das reações psíquicas anormais e sublimação do caráter da juventude. Nas palavras de seu diretor, Mirandolino Caldas, a clínica foi idealizada como

[...] Serviço não apenas com finalidades corretivas ou do reajustamento psíquico, mas também com objetivos construtivos, isto é, de aperfeiçoamento do psiquismo, através de uma atuação médica-pedagógica direta no período inicial do desenvolvimento mental infantil. (Caldas, 1932, p. 65).

Num folheto de propaganda intitulado “Exortação às mães”, os mentores da LBHM alertavam sobre os perigos representados pelo descuido da infância:

Urge, pois, que se estabeleça como norma o exame mental periódico das criancinhas. Teu filho é tímido, ciumento, desconfiado? É teimoso, pugnaz exaltado?
Cuidado com esses prenúncios de constituição nervosa!
Teu filho tem defeito na linguagem, é gago? Manda-o examinar para saber a sua verdadeira causa.
Teu filho tem vícios de natureza sexual? Leva-o ao especialista para que te ensine a corrigi-lo.
Teu filho é mentiroso, ou tem o vício de furtar? Trata-o, sem demora, se não quiseres possuir um descendente que te envergonhe.
Teu filho tem muitos tiques ou cacoetes?
É um hiperemotivo. Procura evitar a desgraça futura do teu filho que poderá ser candidato ao suicídio.
Teu filho progride nos estudos? Antes de culpar o professor, submete-o a um exame psicológico. Conhecerás, então, o seu nível mental, o seu equilíbrio emotivo, e terás, assim, elementos para melhor encaminhar na vida.
Lê e reflete: a felicidade do teu filho está, em grande parte, nas tuas próprias mãos.

Assim, realçava-se a importância da clínica como via de melhoramento da pessoa.

O termo Eufrenia — do grego: eu + phren; phrenós: bom + mente, espírito — foi proposto por Mirandolino Caldas. Segundo ele, a ciência da “eufrenia” comportava especialidades, a saber: “eufrenia genealógica” — estudo dos antecedentes psiquiátricos e psicológicos; e “eufrenia médica-pedagógica” — formação da “boa cerebração” desde a “fase evolutiva intra-uterina”.

A “eufrenia médica-pedagógica”, especificamente, visava à formação do psiquismo infantil, estimulando os bons hábitos e atenuando as “predisposições mórbidas hereditárias”. Enquanto especialidade, subdividia-se em “eufrenopedia” — remoção dos fatores “endógenos ou exógenos” prejudiciais à evolução do psiquismo; “ortofrenopedia” — correção do psiquismo com desenvolvimento anormal ou retardado, pelo “trabalho ativo de ortopedia mental”. Com o auxílio dessas especialidades, Mirandolino Caldas pensava eliminar os efeitos negativos da hereditariedade e constituir as novas gerações conforme um padrão biopsicológico saudável.

Para ele e os demais, a escola pública seria a via ideal para a prática da higiene mental e, portanto, de combate às patologias provocadas pelo alcoolismo, aglomeração populacional, delinquência infantil e juvenil, baixo rendimento escolar, entre outros.

Nos anos 30 do século passado, a Clínica de Eufrenia fez intervenções no marco escolar carioca: aplicou testes psicológicos, divulgou a psicologia como ciência de “bases lógicas e úteis”, observou “alunos problemas” desde que “tivessem ‘QI’ muito baixo ou muito alto”, defendeu junto às autoridades a organização de classes escolares - não por idade escolar, mas conforme o nível de evolução psíquica do aluno.

Os homens de ciência da LBHM classificavam as crianças em duas categorias: os “falsos anormais” — crianças avaliadas como capazes de superarem o déficit intelectivo e ingressarem no “padrão normal”, desde que submetidas a regime específico de aprendizagem oferecido em classes anexas às escolas comuns; e os “verdadeiros anormais da inteligência e do caráter” — débeis e instáveis (distraídos, anormais dos sentidos e da palavra, débeis físicos e atrasados), os quais seriam encaminhados aos institutos de reeducação para aprenderem atividades laborais.

 

4. A Seção de Ortofrenia e Higiene Mental

Quando Anísio Teixeira esteve à frente do Departamento de Educação do Distrito Federal, Arthur Ramos, médico psiquiatra e membro da LBHM, assumiu, em 1933, o recém-criado Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental do Instituto de Pesquisas Educacionais.

O citado serviço implantou seis Clínicas Ortofrênicas anexas às escolas. Partidário da psicanálise, especialmente de Freud, Adler e Melanie Klein, e da antropologia social de Franz Boas e Levy-Bruhl, Arthur Ramos estava determinado a intervir nos meios familiares e escolares, para remover ou mesmo atenuar os bloqueios que impedem o florescimento da personalidade infantil livre de inibições e distúrbios neuróticos. De fato, em Educação e psicanálise diria:

É hoje um ponto dominante da Escola Nova, a colaboração estreita entre a escola e o lar. A escola já não mais considerada como desempenhando simples atividade de instrução, desinteressada do aspecto educativo em geral da criança. Hoje é ela um centro de grande atividade social, centro de coordenação e de disciplina, onde se aprendem, não só as matérias instrutivas, mas as disciplinas de vida. Ela é chamada a intervir e largamente na vida do lar, orientando e educando. (Ramos, 1934, p.388- 389).

Para avaliar o estado físico e mental dos escolares, as Clínicas Ortofrênicas contavam com equipes técnicas integradas por professores, assistentes sociais, professores-visitadores, psicólogos (antes denominados psicologistas), médicos clínicos e psiquiatras. Nessas clínicas de cuidados, eram estudadas as bases fisiológicas da personalidade, as atividades instintivas, como fome, sede, funções de eliminação, sono, repouso, atividades de sexo, manifestações emocionais e afetivas.

Preocupado com intervenções preventivas e corretivas, o “higienista mental”, segundo Arthur Ramos, atuaria na “formação de hábitos normais, corrigindo os precoces desajustamentos encontrados”. Sensatamente, ele aconselhava:

A escola completará a obra, procurando compreender a criança, não como uma entidade isolada, portadora de “vícios hereditários”, de “constituições delinqüenciais” e outras coisas cerebrinas, mas como um ser vacilante, afetivo, em formação, no meio de constelações afetivas dos adultos. (Ramos, 1934, p. 388-9).

O objetivo da clínica, em última análise, seria atender a “criança problema”. Por “criança problema”, Arthur Ramos designava os escolares com dificuldades de ajustamento às situações de aprendizagem ou conduta, geradas, na maioria das vezes, segundo ele, por injunções prejudiciais externas.

A nossa experiência no exame dos escolares “difíceis” mostrou que havia necessidade de inverter os dados clássicos da criança chamada “anormal”. Essa denominação - imprópria em todos os sentidos - englobava o grosso das crianças que por várias razões não podiam desempenhar os seus deveres de escolaridade, em paralelo com os outros companheiros, os “normais”. [...] A grande maioria, porém podemos dizer os 90% das crianças tidas como “anormais”, verificamos na realidade serem crianças difíceis, “problemas”, vítimas de uma série de circunstâncias adversas [...] e, entre as quais avultam as condições de desajustamentos dos ambientes social e familiar. (Ramos, 1939, p.13).

Aludindo às crianças diagnosticadas como portadoras de “atraso mental”, dizia serem na verdade “falsos atrasados”:

Elas foram “anormalizadas” pelo meio. Como o homem primitivo cuja “selvageria” foi uma criação de civilizados, também na criança, o conceito de “anormal” foi antes de tudo, o ponto de vista adulto, a conseqüência de um enorme sadismo inconsciente de pais e educadores. (Ramos, 1939, p. 13).

Noutras palavras, Arthur Ramos relevava as “condições deformantes” do meio social e cultural, adversas à “saúde do espírito”.

Já a “criança anormal” seria aquela portadora de defeitos constitucionais hereditários ou defeitos físicos e sensoriais (surdas, mudas, cegas), ou, ainda, de desequilíbrio das funções neuropsíquicas, não sendo possível educá-la em escola comum.

Entre 1934 e 1939, o Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental estudou centenas de casos. No estudo era registrado na “Ficha do Serviço”, as equipes valiam-se do “método de observação poligonal” — observação incidental e sistemática, descrições qualitativas, narrativas biográficas, questionários, medidas objetivas, dados obstétricos da mãe, condições de moradia, dados antropométricos, “fachada” temperamental e caracteriológica.

Reticente quanto à eficácia da análise direta e ortodoxa de Anna Freud, Arthur Ramos declarava partido pela análise indireta de Melanie Klein, realizada com jogos seguidos de interpretação simbólica. De qualquer maneira, da visão condoída das equipes de profissionais sobre os “desajustamentos emocionais” surgia uma tipologia baseada em copioso repertório de sujeitos em desarmonia: “criança quieta”: “criança mimada”, “criança escorraçada”, “filho único”, “criança turbulenta”; e de síndromes preocupantes: “tiques e manias”, “fugas escolares”, “problemas sexuais”, “medo e angústia”, “timidez”.

 

5. A Clínica de Orientação Infantil

A Seção de Higiene Mental Escolar do Departamento de Educação do Estado de São Paulo foi criada em 1938. Sob a chefia de Durval Marcondes (exocupante da Cadeira nº. 1 desta Academia), médico psiquiatra vinculado à Liga Paulista de Higiene Mental e pioneiro da prática psicanalítica, a seção tinha por fim combater os fatores psicopatogênicos atuantes na infância, “colaborando dessa maneira com as autoridades e técnicos do ensino no propósito de assegurar um sadio desenvolvimento às funções mentais da criança” (Marcondes, 1941a, p. 255).

A Seção de Higiene Mental mantinha a Clínica de Orientação Infantil para atendimento de “escolares psiquicamente desajustados”. Segundo Durval Marcondes (1941): Nela se estuda, de modo completo, a criança nervosa ou com desvio de conduta, focalizando e corrigindo as circunstâncias desfavoráveis que degeneram a evolução de sua personalidade. (idem, p. 255)

O “estudo múltiplo” do escolar era realizado nos moldes das clínicas de cuidados e hábitos norte-americanas, especializadas na profilaxia e terapêutica dos “casos-problema”. Na efetuação do diagnóstico, atuavam o médico psiquiatra, o médico internista, a então “psicologista” e a visitadora psiquiátrica. Ao exame médico geral e especializado, seguia-se o exame psicológico e o “estudo da história pessoal e social da criança”, realizado pela visitadora psiquiátrica.

O caso-problema é encarado, portanto, de maneira integral, abrangendose desde a etiologia física até a que se relacione com as minúcias da vida familiar. Após a colheita de dados, reúne-se o pessoal técnico que trabalhou no caso, expondo cada um suas conclusões e sugestões, para firmar-se uma síntese diagnóstica e uma diretriz harmônica no trato do problema.
A clínica age, portanto, sobre a criança de dois modos: 1) diretamente, por meio de tratamento médico e psicoterápico; 2) indiretamente, modificando o ambiente imediato (lar, escola, etc) pela correção das atitudes daqueles cuja situação em face da criança implica na função de modeladores de sua personalidade (pais, mestres, etc).
(Marcondes, 1941 a, p. 258).

Portanto, o “caso-problema” era analisado de maneira global, isto é, desde a etiologia física e mental às particularidades da vida familiar; em seguida, a equipe técnica firmava as diretrizes da terapêutica a ser aplicada.

A “criança problema”, para quem Durval Marcondes utilizava terminologia alternativa, o “instável escolar”, era encaminhada pelos pais, professores, diretores ou médicos escolares ou educadores sanitários: As queixas abrangem as diversas formas de desadaptação psíquica: timidez, mitomania, mentira, furto, rebeldia, medo mórbido (Marcondes, 1946, p.38).

Em artigo científico, Durval Marcondes (1941 b) argumentava a favor da higiene mental, invocando índices desalentadores de promoção escolar: São Paulo, 59,98%; Distrito Federal, 56,11%; Rio Grande do Sul, 52,04%; Minas Gerais, 44,01%; Bahia, 34,01%; e Pernambuco, 22,32%, levando-o a justificar a utilidade da Clínica de Orientação Infantil, enquanto instituição a serviço da “racionalização administrativa”.

Para identificar as causas relacionadas com os índices de reprovação, o SHM promoveu um inquérito numa população de 541 alunos repetentes, em sete dos então grupos escolares de áreas urbanas e suburbanas da Capital de São Paulo. Com base em interrogatórios metódicos, levantavam-se estes percentuais — 65,6% dos escolares apresentavam “problemas de personalidade de conduta”; 20,7%, “mau gênio”; 16,6%, “conduta perturbadora”, 15,5%, “instabilidade”; 15,3%, “timidez”; 13%, “mentira”; 10,1%, “enurese”; 10%, “fobias”; 7,9%, “onicofagia”; 7,5%, “distúrbios da palavra”; 6,3%, “apatia”; 4%, “fantasia excessiva”; 3,5%, “fugas”; 3,3%, “chupar dedo”; 2%, “furto”; 2%, “maus hábitos sexuais”; 1,6%, “tics”.

Entre os quadros profissionais da clínica, constavam nomes representativos da medicina psiquiátrica e de conhecimentos científicos em fase de autonomização e profissionalização — Armando de Arruda Sampaio, Diná Mascarenhas do Amaral, Joy Arruda, Lígia Alcântara do Amaral, Margarida Lisboa Vieira Cunha, Maria José de Morais Barros (ex-ocupante da Cadeira nº. 28), Maria de Lourdes Vederese, Maria Rita Garcez Lobo, Mário Vélez, Oraíde de Toledo Piza e Virginia Leone Bicudo (ex-ocupante da Cadeira nº. 1).

 

6. Pensando as psicoclínicas

Revestidos de élan humanitário, os métodos psicoclínicos, no afã de promover a “higiene mental” como sinônimo de “saúde mental”, propagaram técnicas de cuidados preventivos e corretivos nos casos denominados “criança problema”, “crianças difíceis” ou “instável escolar”, fundamentalmente tipos psíquicos desarmônicos, para precaver desajustamentos e conflitos geradores de angústia, sofrimento e incapacidade de ação. Sabia-se que entre o “normal” e o “patológico” havia uma gama de fragilidades, ou melhor, de condutas portadoras contrárias à higiene e saúde mental, fato que justificava perante as autoridades a necessidade e a relevância das clínicas, em conexão direta ou indireta com as escolas e/ou sistemas de ensino.

Para Paul Bercherie (2001):

A descoberta de que toda manifestação psicopatológica é o resultado de um conflito psíquico e que esse conflito, em sua expressão atual no adulto, repete a história infantil do sujeito, adquire no quadro da clínica infantil uma ressonância muito própria, pois é de uma situação conflitiva atual, ou pelo menos recente, que depende, então, as perturbações psicológicas. (p. 136)

De outro modo, tal distribuição de investimentos de cuidados com a infância presumia sanar os desarranjos conflituosos de seres sem domínio de vontade e consciência, por serem desprovidos de saúde mental e incapazes de se integrarem, por si só, nos grupos sociais. Seja como for, a visão científica tendia a perceber a infância pelo ângulo da causalidade negativa: impulsos, instintos, recalques, complexos, renúncias, derivações, fixações, fenômenos que, segundo os profissionais, conspiravam contra o aparecimento da pessoa madura e racional. Donde a urgência de efetuar uma psicoterapia com vista à formação do Eu normal, por ser adequadamente socializado e autenticamente individualizado, daí o ímpeto de transportar os progressos da ciência para a escola e para o lar e propiciar correta formação mental em alunos, professores e pais.

 

Referências

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Recebido em: 03/09/2009
Aceito em: 23/09/2009

 

 

1 Professor Adjunto (Livre-Docente em História da Educação) na Faculdade de Ciências e Letras da Unesp de Araraquara. Organizador, com Ruy Lourenço Filho, da Coleção Lourenço Filho, publicada pelo INEP-MEC, disponível na Internet em www.inep.gov.br. Contato: Av. São Geraldo, 631, ap.26 - Araraquara, SP. CEP 14801-210. E-mail: monarcha@sunline.com.br

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