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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.29 no.2 São Paulo dez. 2009

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

A dor do adoecer e do morrer

 

The pain of becoming ill and of dying

 

 

Maria Margarida M. J. Carvalho1

Universidade de São Paulo
Cad. nº 11, “Roger Bastide”

 

 


RESUMO

Cada dor é a dor de uma pessoa, com suas características: personalidade, história, raça, contexto, momento. Algumas condições de dor não podem ser curadas seja pelos tratamentos médicos ou auxílio psicológico. Estes são utilizados quando os tratamentos não são suficientes ou adequados para aliviar a dor do adoecer, a dor do morrer. Estas são dores complexas, profundas que envolvem paciente e família, medo, frustração, tristeza, espiritualidade.

Palavras-chaves: Adoecer, Morrer, Dor.


ABSTRACT

Each pain is the pain of a person, with its characteristics: personality, biography, race, context, moment. Some pain conditions cannot be cured by either medical or psychological treatment. When the best medical care cannot significantly reduce pain, psychological intervention is often undertaken to help the patient function while suffering with an ongoing pain problem. These are complex and very deep pains, that involve patient and family, fear, frustration, sadness, spiritualism.

Keywords: Becoming ill, Dying, Pain.


 

 

Introdução

Na definição de dor, formulada pela International Association for The Study of Pain (IASP) (1979), encontramos que esse comportamento é uma experiência sensorial e emocional desagradável, que é descrita em termos de lesões teciduais reais ou potenciais. A dor é sempre subjetiva e cada indivíduo aprende a utilizar esse termo através de suas experiências traumáticas. Segundo a IASP, o sistema complexo que envolve a percepção da dor demonstra que fatores psicológicos são de importância fundamental na mediação do processamento da dor. Podese afirmar que toda dor tem componentes psicológicos e estes são importantes em todos os tipos (aguda, crônica e recorrente) e todos os estágios da dor. Têm um papel preponderante na prevenção de dores desnecessárias e disfunções associadas, no amplo espectro da prevenção primária ao cuidado terminal.

Cada dor é a dor de uma pessoa, com sua história, personalidade, contexto, momento. A mesma dor, em diferentes situações, pode nem ser percebida ou ser muito forte, dada à distração ou atenção oferecidas a ela. Para tratá-la, é necessária a compreensão da complexidade e da realidade de todas as dores para quem a sente (Carvalho, 1999).

Carvalho (2004) afirma que os estágios avançados das doenças envolvem frequentemente muitas dores. Nos casos de câncer, as pesquisas revelam 60% a 90 % de pacientes com dor intensa. Há tratamentos médicos que podem minorar ou até mesmo eliminar a maioria das dores físicas. Mas a Ciência pode auxiliar na dor da perda da saúde, da perda da vida, na dor de morrer?

Fica evidente no estudo da dor não só a sua complexidade, mas possíveis significados dados a ela, as possíveis necessidades que estão sendo atendidas, os objetivos subjacentes. Atendemos uma mulher que conseguiu atenção da sua família quando apresentou um caso de dor oncológica. Os médicos receitaram analgésicos potentes, mas ela não os ingeria, alegando problema no estômago. Na verdade, ela temia perder o aconchego familiar, recém-adquirido graças à dor. A obtenção do afeto sem a necessidade da dor foi o objetivo de nossa ajuda. Este é um dos inúmeros casos de dor, no qual o sofredor é que precisa de cuidados e não a dor. Esta pode estar servindo certos objetivos úteis para a pessoa. Ela é um aviso persistente de necessidade de ajuda. Traz restrições físicas à atividade, mas frequentemente beneficia o sofredor.

 

2. Avaliação da dor

Segundo Mattos-Pimenta (1999), uma das maiores dificuldades no cuidar da dor é a sua avaliação. Esta vai abranger a lesão tecidual, substrato emocional, substrato cultural e ambiental das reações da dor, permitindo a compreensão da sua origem e da sua magnitude.

Os métodos para a avaliação são basicamente inferenciais, baseados no auto-relato do paciente, mas também no conhecimento do caso clínico (história da doença, exames físicos e laboratoriais) e técnicas para a aferição das características da dor e da sua repercussão nas atividades cotidianas (funcionamento psicológico e psicossocial).

Para a avaliação da dor, devem ser colhidos dados sobre instalação e duração da dor no paciente: localização, periodicidade e duração; padrão evolutivo, fatores agravantes ou atenuantes. Compreende ainda a avaliação dos fatores que concorrem para sua manifestação tais como: estado emocional do paciente; aspectos do histórico familiar relacionados à expressão e manejo da dor; atitudes, crenças e valores do doente e da família frente à dor.

No referente à avaliação da dor na criança, requer, além da análise das qualidades sensoriais da dor (intensidade, qualidade, localização, duração), a análise das variações psicossociais e do contexto da dor. No recém-nascido, a avaliação tem sido feita a partir das observações: facial (franzir sobrancelhas, apertar olhos, abertura da boca, língua côncava), motora (movimentos difusos) e verbal (choro e gritos). Gradualmente a criança vai aprendendo a utilizar a dor para chamar a atenção, obter benefícios, afastar situações indesejáveis. E as expressões da dor vão tomando diferentes formas.

Kübler-Ross (1991) afirma que, no contato, deparamo-nos com os doentes gravemente enfermos, com dores muito complexas e profundas, existenciais, que se referem ao significado da vida e da morte. No estágio avançado das doenças, qualquer dor presente, seja física, psicológica ou espiritual pode e deve ser controlada e, se possível, abolida, visando um morrer sem sofrimento, tranquilo e em paz.

 

3. Dor total

A abordagem psicológica da dor teve início com a Psicanálise, em estudos sobre a dor psicogênica e na verificação da importância de aspectos inconscientes nos quadros dolorosos. A terapia que focaliza aspectos psicodinâmicos distancia-se da psicanálise enquanto forma de trabalho, mas mantém a compreensão do processo subjetivo envolvido no sentir a dor. A escuta freudiana do paciente permanece atual na análise de medos, desejos, mundo interior do paciente, que contribuem para o sofrimento da dor.

O conceito de dor total foi elaborado por Cicely Saunders, na Inglaterra. De formação multiprofissional - enfermeira, médica e assistente social - dedicou sua vida aos doentes fora de possibilidade de cura. Para ela, quando não era mais possível curar, era possível cuidar. E, com o objetivo de permitir que o paciente pudesse viver tão plena e dignamente quanto possível a doença e a morte, fundou o “Hospice” São Cristóvão, em 1967 (Saunders, 1991). A palavra “hospice” significa abrigo, albergue. Sua origem vem da Idade Média, quando nas longas peregrinações aos lugares santos, os viajantes aí encontravam hospedagem, alívio e apoio para seus males. Cansados e doentes, os viajantes muitas vezes morriam nos “hospices”, terminando sua árdua caminhada nesses albergues.

Inspirada no conceito dos antigos albergues, Saunders criou um “hospice” visando cuidar dos pacientes com uma equipe multiprofissional, composta por médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, religiosos, voluntários e outros profissionais quando necessários. Seus pacientes são os considerados irrecuperáveis pela medicina, ou seja, aqueles nos quais a doença é progressiva e nenhum tratamento pode alterar seu curso. Os cuidados nos “hospices” visam manter o paciente livre de dor e sofrimento; oferecer informações e controle das decisões ao paciente; ouvi-lo e acolhê-lo como ser humano, com suas dificuldades, medos, esperanças, crenças e valores.

No cuidado da dor, Saunders percebeu a presença de um estado complexo de sentimentos dolorosos no paciente terminal. Seus componentes são: dor física; dor psíquica (medo do sofrimento e da morte, tristeza, raiva, revolta, insegurança, desespero, depressão); dor social (rejeição, dependência, inutilidade); dor espiritual (falta de sentido na vida e na morte, medo do pósmorte, culpas perante Deus). Posteriormente, o autor acrescentou novas dimensões da dor: dor financeira (perdas e dificuldades); dor interpessoal (isolamento, estigma); dor familiar (mudança de papéis, perda de controle, perda de autonomia).

 

4. Cuidados paliativos

Esses cuidados são oferecidos aos pacientes nos cuidados paliativos. Esta é uma abordagem multidimensional que promove o alívio e controle dos sintomas incapacitantes e tem como objetivo a promoção de qualidade de vida. Não existe uma proposta de prolongar a vida e, sim, favorecer qualquer tratamento que promova a qualidade de vida (Kóvacs, 1999).

O atendimento da dor total nos cuidados paliativos pode ocorrer nos hospitais, nos “hospices” e no atendimento paliativo domiciliar. Este é considerado a melhor forma de atendimento, quando a família tem condições de cuidar do paciente com o auxílio da equipe especializada do hospital ou “hospice”.

É importante ressaltar o treinamento específico dessa equipe. Ela é composta por profissionais capacitados para escutar atentamente o paciente, captar e identificar os problemas dele e de sua família, individualizar as queixas e reconhecer sinais de emergência; reconhecer dores expressas por diferentes formas; considerar que as metas são curtas e que a intenção não é prolongar a morte.

 

5. O cuidador

No momento em que a equipe de cuidados paliativos domiciliares não estiver presente, deverá haver um cuidador na casa. A tarefa de cuidar de um parente em fase terminal de vida é difícil e requer grande disponibilidade. O desgaste físico e emocional no cuidado ao doente, acrescido da dor da perda eminente, penalizam o cuidador. Este pode chegar a um grave quadro de estresse.

Um fator complicador reside na faixa etária do cuidador. Se este é muito jovem, seus sentimentos são de desamparo, frustração, tristeza e revolta. Sua vida fica interrompida - muitas vezes seus estudos, sua vida social e seu lazer precisam ser abandonados. Sua revolta pode gerar culpa e o quadro psíquico complicar-se cada vez mais (Mazorra & Tinoco, 2005). Se é um adulto, sua vida profissional frequentemente entra em crise pela dificuldade de dividir o tempo entre o cuidado com o doente, as tarefas e o horário de trabalho. Sua vida pessoal também fica afetada e seus sentimentos são com frequência ambivalentes; irritabilidade, momentos de raiva e tristeza caracterizam o seu comportamento.

Segundo Carvalho (2004), o cuidador idoso tem suas próprias deficiências - suas doenças, suas limitações físicas, suas próprias dores. Sua tendência é deprimir-se no sentir a realidade das mortes, do doente e a sua própria, também próxima, nos seus últimos anos de vida.

E todos esses cuidadores, em todas as idades, além das dificuldades objetivas, enfrentam o sentimento de perda do familiar enfermo. Os aspectos subjetivos presentes - emocionais, morais e espirituais - geram uma vasta gama de sentimentos difíceis, desgastantes, complexos e doloridos (Franco, 2005).

A presença da morte traz à tona a certeza da própria morte. Neste momento, a grande ajuda vem da espiritualidade. Não necessariamente da religiosidade, mas no sentido de transcendência, de imortalidade da alma, do espírito que permanece vivo. A morte digna e consciente é facilitada pela noção de passagem de uma forma de vida à outra (Keleman, 1997).

Um exemplo muito significativo de permanência de vida, sem religiosidade, foi o de um paciente de 36 anos, ateu, engenheiro, que estava morrendo de câncer. Conversando sobre a morte e pós-morte, ele dizia que para ele a morte era o fim da vida e que seu corpo virava material de adubo. Informamos-lhe que os adubos são ótimos fertilizantes e que sobre o seu túmulo poderia crescer um jardim.

Surpreendido e encantado com a ideia, ele começou a projetar um jardim com suas flores favoritas. Ele passou suas últimas sessões, até morrer, criando um jardim colorido, planejado, belíssimo. Sua morte foi tranquila e sem dor - apenas uma chama de vida se apagando. Mas, a vida, na sua grandeza, permanecendo através das flores plantadas por ele, na realidade da sua imaginação.

No atendimento domiciliar, o psicólogo vai atender todas as dores da casa, muitas vezes encontrando-as maiores na família do que no próprio paciente.

Este, na fase de cuidados paliativos, pode estar no estágio de aceitação do final da vida e aproximação da morte. Nesta fase o paciente que vai morrer aceita em paz esta realidade. A família, entretanto, pode estar ainda revoltada, culpada por possíveis omissões ou erros de conduta, triste, desamparada, perdedora.

Fonseca (2004) destaca que o atendimento domiciliar à dor total requer atenção à família e um conhecimento do trabalho com esta. O estar na casa do paciente traz à tona a necessidade de informações sobre terapia familiar e aspectos específicos de terapia domiciliar. O terapeuta vai atender necessariamente a várias situações que estarão ocorrendo naquela casa.

Ele não vai atender apenas a um caso de dor, mas à dor de uma pessoa em seu contexto familiar. Quem é essa pessoa nesta casa: um filho? Uma mãe? Uma avó velhinha? Qual seu papel, sua importância na estrutura familiar? E como o psicólogo estará sendo recebido nessa estrutura: Um apoio? Um intruso?

O psicólogo está frente a um paciente e a uma família interagindo no sofrimento de estarem sofrendo perdas - a família perdendo um de seus membros, o paciente perdendo a vida. O reconhecimento da problemática e das necessidades especiais de cada um são fundamentais na atuação do terapeuta, tanto no auxílio psicológico às dores físicas como nas dores psíquicas.

Nas dores físicas, as medicações podem ter falhado, seja porque o médico subestimou a dor ou falhou na administração dos analgésicos. Ou porque o paciente e a família não aderiram ao tratamento medicamentoso por crenças, medos, desinformação, problemas econômicos. E dentro desse quadro com tantas variáveis possíveis, o psicólogo vai buscar atender à dor total.

 

6. Formas de luto

O sentimento de perda de todos os implicados leva a um estado de luto antecipatório, que requer também atenção especial do terapeuta. Sabe-se que o processo de luto não começa com a morte e com as relações existentes antes da morte. As dores do luto acabam por se confundir com as dores físicas e todas elas interagem no processo de sofrimento (Fonseca, 2004).

Este quadro acaba muitas vezes levando a um desejo de acabar com a própria vida, com um suicídio. O psicólogo deve estar preparado para interpretar o seu apelo. Na maioria das vezes, a ideia de suicídio é um pedido de ajuda, de alívio do sofrimento da dor total. E esse pedido pode ser revertido com o atendimento às suas necessidades (Dias, 1991).

Para Parkes (1998), o desejo de não sofrer, de manter o controle, de ser lembrado pelas pessoas que amam, como eram antes, motiva alguns indivíduos a escolherem a hora da própria morte. Contudo, certamente há pessoas que jamais escolheriam o suicídio, que recebem a morte de braços abertos, pessoas para quem a morte é a libertação.

Assim, quando atendemos a dor total de um paciente em momentos finais de vida, temos que estar preparados para enfrentar a dor da morte ou a aceitação da morte, mas sempre enfrentar a dor da perda da vida. Esta vida acaba e este sentimento de finitude causa grande dor ao homem.

 

Referências

• Carvalho, M.M.M.J. (1999) (org.) Dor: um estudo multidisciplinar. São Paulo, SP: Summus Editorial         [ Links ]

• Carvalho, M.M.M.J. (2004). A dor no estágio avançado das doenças. In: Angerami-Camon (org.) Atualidades em psicologia da Saúde. São Paulo, SP: Pioneira Thomson Learning.         [ Links ]

• Dias. M.L. (1991) Suicídio: testemunhos do adeus. São Paulo, SP: Editora Brasiliense.         [ Links ]

• Fonseca, J. P. (2004) Luto antecipatório. Campinas, SP: Editora Livro Pleno.         [ Links ]

• Franco, M.H.P. (org.) (2005) Nada sobre mim sem mim: estudos sobre a vida e a morte. Campinas, SP: Editora Livro Pleno.         [ Links ]

• International Association for the study of pain (1979) Terms: a list with definitions and notes on usage. In: Pain, 6,p. 249-252.         [ Links ]

• Keleman, S. (1997) Viver o seu morrer. São Paulo, SP: Summus Editorial.         [ Links ]

• Kóvacs, M.J. (1999) Pacientes em estágio avançado da doença, a dor da perda e da morte. In Carvalho, M.M.M.J. (org.) Dor: um estudo multidisciplinar. São Paulo, SP: Summus Editorial         [ Links ]

• Kübler-Ross, E. (1991) Sobre a morte e o morrer. São Paulo, SP: Editora Martins Fontes.         [ Links ]

• Mazorra, L. & Tinoco, V. (orgs.) (2005) Luto na infância. Campinas, SP: Editora Livro Pleno.         [ Links ]

• Mattos-Pimenta, C. A. (1999) Fundamentos teóricos da dor e sua avaliação. In Carvalho, M.M.M.J. (org.) Dor: um estudo multidisciplinar. São Paulo, SP: Summus Editorial         [ Links ]

• Parkes, C. M. (1998) Luto: estudos sobre a perda na vida adulta. São Paulo, SP: Summus Editorial.         [ Links ]

• Saunders, C. (1991) Hospice and palliative care: an interdisciplinary approach. Londres. Edward Arnold.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 08/08/2009
Aceito em: 30/09/2009

 

 

1 Especialista em Psico-Oncologia. Introdutora do Programa Simonton no Brasil. Contato: Rua Piauí, 1.114, ap.72, Higienópolis - São Paulo, SP. CEP 01241-000. Tel.: (11) 3666-0868; tel/fax: (11) 3259-9042.

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