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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.30 no.1 São Paulo jun. 2010

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

Música e mente

 

Music and mind

 

 

Elsa Lima Gonçalves Antunha1

(Cad. 29)
Instituto de Psicologia – Univ. São Paulo – Brasil

 

 


RESUMO

O artigo tece considerações sobre a relação entre música e cérebro, apoiandose sobretudo no esquema conceitual oferecido por Robert Jourdain em sua obra: "Música, cérebro e êxtase", cuja trajetória é por ele definida na sequência: som, tom, melodia, harmonia, ritmo, composição, desempenho, escuta, compreensão, êxtase. Analisa neuropsicologicamente esses aspectos, mostrando a importância da experiência musical para a atividade clínica do psicólogo.

Palavras-chave: Música; Cérebro; Neuropsicologia.


ABSTRACT

The paper makes considerations about the relationship betweeen music and brain, having mostly as support the conceptual scheme offered by Robert Jourdain in his work "Music, brain and extasis", which trajectory is defined by the author as: sound, tone, melody, harmony, rhythm, composition, performance, hearing, comprehension, extasis. All these aspects are analysed from the neuropsychological point of view, showing the importance of musical experience for the clinical activity of the psychologist.

Keywords: Music; Brain; Neuropsychology.


 

 

A música, desde tempos imemoriais, acompanha a humanidade em seus momentos de prazer, dor, trabalho, repouso, meditação, morte.

Robert Jourdain (1998), pianista e compositor, em seu instigante livro "Música, Cérebro e Êxtase" define a trajetória deste esquema conceitual, traçando-o do som ao tom... à melodia... à harmonia... ao ritmo... à composição... ao desempenho... à escuta... à compreensão... e ao êxtase.

Mesmo antes do aparecimento do homem no planeta, o ruído do trovão ou do desmoronamento de uma montanha já impressionava, cada um a seu modo, a incipiente organização do ouvido de répteis, insetos, aves, morcegos, a fim de alertá-los quanto aos perigos e preservar-lhes a existência.

Do ruído ao som e daí ao tom e à melodia (sons arrumados em uma certa sequência), já se prenuncia, na antropogênese, o trabalho da mente a qual agora atua não apenas como um sistema de defesa, mas também como fonte de prazer, buscando para isso a harmonia a fim de que a experiência sonora não seja dissonante, ferindo o ouvido.

O cérebro, como informa Ratey (2002), com sua base biológica, desenvolve o senso rítmico, associando-o ao movimento físico e explorando, como o fazem, a seu modo, as diversas culturas, no sentido de produzir as mais variadas composições musicais. Ao mesmo tempo, o homem busca na natureza materiais suscetíveis de produção sonora, aliados às suas próprias praxias, sobretudo relacionadas à boca, aos lábios, ao sopro, aos pés, às mãos e daí envolvendose no canto e na dança.

A experiência musical inicia-se na criança através da captação sensóriomotora das vibrações atmosféricas, da escuta das canções de ninar, no íntimo relacionamento com a mãe e na totalidade dos sons que marcarão sua vida adulta, moldando seu cérebro por meio das diversas modalidades de relações melódicas, de harmonia e rítmo.

A mente musical vai-se constituindo através da captação dos sons pelo ouvido interno e das consequentes modelagens básicas que se estruturarão por todo o sistema nervoso a partir do analisador auditivo, coadjuvado pelo analisador motor.

Mais do que pelo aspecto artístico em si, os neurocientistas estão, hoje, cada vez mais envolvidos na pesquisa sobre as áreas cerebrais relacionadas com todos estes aspectos da música.

Estudos mais recentes revelam a interdependência de ambos os hemisférios cerebrais, se bem que, para alguns destes aspectos haja o predomínio de um hemisfério sobre o outro. No caso do ritmo, por exemplo, o lado esquerdo parece estar melhor provido para estabelecer o objetivo de uma sucessão de sons ou de formas sônicas irregulares sob variadas combinações.Todavia, outras pesquisas revelam que as capacidades rítmicas básicas encontram-se preservadas, mesmo quando todo o hemisfério esquerdo ficar desativado propositalmente por algum tempo (imposição de anestesia através de injeção de sódio-amital em artéria do pescoço). O motivo dessa preservação deve-se ao fato de que a função rítmica é disseminada por todo o cérebro, permitindo assim uma notável capacidade de recuperação, após certo tempo, fato que também ocorre em muitos tipos de cognição (Brain, 1994 e Damásio, 1994).

Já no caso da harmonia, ou seja, o "design" da música em torno de centros tonais, ela é uma qualidade puramente auditiva. É a arte de combinar sons – consoantes – e que consigam veicular esses sons a níveis neurais mais internos do sistema nervoso, sons capazes de modelar padrões, estabelecendo uma relação significativa.

A sensação musical começa na criança com uma emoção de prazer puramente auditiva, a qual evolui integrando-se aos outros analisadores: táctilcinestésico, visual e motor, compondo assim esquemas amplificadores que envolvem regiões integrativas do cérebro, desde a cóclea até as áreas préfrontais, aí incluída a participação subcortical do hipocampo-memória, bem como os centros límbicos de recompensa: amígdala, septo e nucleus accumbens, facilitadores da produção de neurotransmissores como a dopamina, serotonina, noripinefrina e endorfina, cujos efeitos podem levar à alegria, felicidade e ao êxtase.

O canto e o manejo de instrumentos permitem ao indivíduo extravasar afetos, emoções, sentimentos.

O campo da arte musical muitas vezes encontrou sua inspiração na captação da natureza. Tratando-se da visão, estímulos como um amanhecer ou um pôr de sol são trazidos para a tela do pintor onde permanecem imobilizados. Já a visão de uma cascata, com seu ritmo e movimentos constantes, apesar de quebrados de quando em quando pela dinâmica da corrente, é um fenômeno da natureza que encerra musicalidade, uma vez que contém som e movimento, portanto: harmonia e melodia.

Na literatura musical, é sempre lembrado o flagrante aspecto do som na natureza, que se pode observar nos bruscos embates "wagnerianos" das ondas do mar contra os rochedos ou então na suavidade da chuva descendo sobre os jardins de Debussy.

A seu modo, encontramos, na natureza, todos os componentes de uma peça musical. Cabe ao espectador a escuta, o discernimento, pois a natureza oferece o produto bruto, a matéria-prima na qual predomina a sinestesia, em que os sentidos se entrecruzam, fundem-se, não mais se podendo afirmar o que é visão, audição, tato, movimento, vibração ou ritmo.

Maria Bethânia foi mais longe e afirmou: "Música é perfume". Como o perfume, a música nos invade, preenchendo todos os recantos do nosso ser, elevando-nos a planos ainda indecifráveis de luz, criação, inspiração e, às vezes, angústia.

Ao contemplar a natureza, cabe ao homem reunificar, através da ordenação do seu sistema nervoso, todos os elementos entrantes. Na solitária escuta de um sino anunciando uma missa ou um funeral, cabe ao ouvinte, mobilizando suas memórias e sua imaginação, compor a cena, prazerosamente sorrindo ou tragicamente desfeito em lágrimas.

Isso é o que a música faz. Isso é o que ocorre numa sala de concertos, ouvindo Neschling reger a Sinfonia "Primavera" de Schumann. Estas coisas mágicas, espantosas foram feitas também por Beethoven quando compôs o Concerto "Imperador", Dvorak ao produzir a "Sinfonia Oito" e as "Danças Eslavas", Handel quando criou a "Música Aquática" e os "Fogos de Artifício do Rei" e também nos seus magníficos corais do "Messias" e "Israel no Egito", Mendesshon e a sua Sinfonia "Italiana", assim como Mozart e a Sinfonia "Haffner" ou Rachmaninov no último movimento do seu "Concerto N° 2 para piano e orquestra".

Essas composições, segundo pesquisas neuropsicológicas, revelam-se adequadas para a terapia de quadros de depressão ou ansiedade.

Outros estados de ânimo, tais como raiva, tédio, pensamentos obsessivos são desviados ou reorientados pela audição de peças como "A Sagração da Primavera" de Stravinsky ou o "Concerto para Flauta e Harpa, K.299" de Mozart.

Uma pesquisa liderada pelo cientista Teppo Sarkano conclui que a exposição à música estimula a atividade cognitiva e age até mesmo sobre áreas cerebrais afetadas por derrame, auxiliando ainda na atenuação da depressão nesses pacientes.

Nesses casos, ouvir música pode ser considerado um tratamento adicional, coadjuvando outras modalidades terapêuticas de afecções do sistema nervoso, tal como consideraram Sacks (1973), Jourdain (1998) e outros pesquisadores, referindo-se à influência da música junto a pacientes portadores da doença de Parkinson. Eles mostram que certas audições estabelecem um fluxo no cérebro enquanto, ao mesmo tempo, estimulam e coordenam as atividades cerebrais, auxiliando as antecipações do paciente para u’a marcha correta.

No entanto - Sacks (1973) é quem faz o seguinte comentário -, percebeuse, observando e analisando o comportamento de muitos pacientes, que a influência da música nem sempre era a mesma. O paciente, antes de mais nada, precisa ser musicalmente sensível, tem que estar na disposição adequada de espírito para permitir ser dominado pela música.

Tais pesquisas são ainda incipientes e requerem abordagem multidisciplinar e multiprofissional em que arte, ciência, emoção, inspiração e outros paradigmas entrem em cena. Desfazer o mistério da interrelação destas instâncias talvez seja, segundo as palavras de Damásio (1994), ultrapassar uma das últimas fronteiras na compreensão do ser humano em suas dimensões: razão, emoção e conação.

Mais do que conhecer as reais dimensões da música, é usar este conhecimento para poder elaborar um futuro mais luminoso e cheio de esperanças, no qual criaturas cada vez melhores vivam em paz e harmonia, aproveitando o que o homem tem de realmente humano.

Entre outras considerações pode-se concluir que a música deve ser experimentada em todos os seus aspectos. Não se podendo, como fazem os compositores, criar peças musicais, ou nem mesmo executá-las, como fazem os instrumentistas, restará o inefável prazer da escuta e da solitária elaboração da mensagem musical.

E, por último, restará manifestar o reconhecimento e a gratidão por poder, ao ouvir as peças musicais, conjugar com os sentimentos dos seus autores, que mesmo depois de mortos mantêm-se vivos, dentro de nós, em salas de concertos ou numa trilha de disco.

A terapia musical, quando baseada em renovados constructos relacionados ao cérebro e à música, pode representar uma "virada" na reorganização das centenas de milhões de neurônios e de suas milhares de conexões sinápticas. Algo parecido com o "Efeito Borboleta".

Não existe maior poesia que aquela contida numa nota musical!

Poderão os tratamentos do futuro, caminhando através do som... do tom... da melodia... da harmonia... do ritmo... e do êxtase, atingir a felicidade?

 

Referências

• Damasio, A. R. (1994) Descartes’ Error: Emotion, Reason and the Humain Brain (1994) New York: G.P. Putmam’s Sons.

• Jourdain, R. (1998) Música, Cérebro e Êxtase. Rio de Janeiro. Objetiva.         [ Links ]

• Ratey, J. S. (2002) O Cérebro. Rio de Janeiro. Objetiva.         [ Links ]

• Sacks, O. (1973) Awakenings. New York. Harper Collins.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 16/12/2009
Aceito em: 08/03/2010

 

 

1 Professora Titular de neuropsicologia no IPUSP. Contato: Rua Tácito de Almeida, 180 – Sumaré - São Paulo, SP. – Brasil - CEP 01251-010. Tel. recado: (11) 3862-4405. E-mail: elsa.antunha@terra.com.br