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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.33 no.85 São Paulo Dec. 2013

 

TEORIAS, PESQUISA E ESTUDOS DE CASO

 

A criança e a dança: observação clínica em grupo sobre o processo de individuação

 

Children and dance: a clinical observation in group about the process of individuation

 

El niño y la danza: observación clínica grupal sobre el proceso de individuación

 

 

Liliana Liviano Wahba1; Paula Sampaio Schmitt2

Pontifícia Universidade Católica PUC-SP

 

 


RESUMO

O artigo analisa um conjunto de observação clínica de grupo de crianças, fundamentada na abordagem da Psicologia Analítica. Promove uma reflexão sobre a dança como manifestação expressiva e criativa que propicia experiências significativas de aprendizado. Pressupõe um modelo educacional que visa despertar a potencialidade da criança, desenvolver trabalhos corporais e inserir na educação aprendizados por meio da vivência aliada à expressão livre. Investiga a percepção da criança a respeito do ato de dançar. É desenvolvido um plano de trabalho denominado "Atividade de Dança e Expressão Livre" realizado em quatro encontros com oito crianças do ensino Fundamental. Os procedimentos constituem-se na aplicação de desenho com o tema "O que é dançar para você" feito antes e depois das atividades de dança e uma entrevista com cada criança, a fim de compreender a sua percepção sobre à dança. Os resultados estimulam futuras pesquisas, posto que é observado que as crianças, além do prazer de participar das atividades e dançar, expressam sentimentos de vergonha e de liberdade, de interagir com colegas e de ampliar a consciência de seu corpo. Há indícios de ampliação de autopercepção corporal e de autoimagem, assim como maior percepção de si e do outro. Conclui-se ser necessário efetivar pesquisa com maior número de participantes, em grupo experimental e controle, para que o trabalho proposto possa constituir um modelo de projeto a ser aplicado na educação formal.

Palavras-chave: Dança, criança, educação, individuação.


ABSTRACT

The article develops a clinical observation group based on an Analytical Psychological approach. The article promotes a reflection about dance as an expressive and creative manifestation that allows meaningful experiences of learning. It refers to an educational model with the purpose of: awakening the potential of a child, developing body work, and inserting in the child's education the learning through body experience connected to the intellect. The objective is to investigate in the group the children's perception about the act of dancing. A work plan called "Dance Activity and Free Expression" is developed in four meetings with eight children from "Fundamental One Education". The procedures involve the application of drawings before and after the dance activities with the theme "What is dancing for you", and interviews with each one of the children, in order to understand their perception related to dance. The results stimulate future researches since it was observed that the children, besides the pleasure of attending the activities and dance, exposed some feelings such as shame and freedom, they interacted with their classmates and broadened the awareness of the body. There was an indication of enlargement in body self perception and self image, and stronger perception of self and other. The conclusion shows the need of researches with a bigger number of participants, experimental group and control group, in order to construct a model of project to be applied in formal education.

Keywords: dance, child, education, individuation, analytical psychology.


RESUMEN

Este artículo analiza un conjunto de observación clínica a un grupo de niños, basado en el enfoque de la Psicología Analítica. Promueve una reflexión sobre la danza como manifestación expresiva y creativa que ofrece experiencias significativas de aprendizaje. Presupone un modelo educativo que tiene como objetivo despertar el potencial del niño, el desarrollar trabajos corporales e incluir en la educación, aprendizajes a través de la vivencia de la libre expresión. Se investiga la percepción del niño sobre el acto de bailar. Se desarrolla un plan de trabajo llamado " Actividad de la Danza y la Libre Expresión", realizado en cuatro reuniones con ocho niños del enseñanza primaria. Los procesos son constituidos por la aplicación del diseño con el tema " ¿Qué es la danza para ti " realizado antes y después de las actividades de danza, así como una entrevista con cada niño participante, para poder entender su percepción acerca de la danza. Los resultados estimulan investigaciones futuras, ya que se observa que los niños, además del placer de participar en las actividades de danza, expresan sentimientos de vergüenza y de libertad, de interactuar con sus compañeros y aumentar la conciencia de su cuerpo. Existe evidencia de la expansión de la autopercepción corporal y de la autoimagen, así como una mayor conciencia de sí mismo y del otro. Se concluye que es necesario realizar investigación con un número mayor de participantes en grupos experimental y de control, para que el trabajo propuesto pueda se constituir un modelo a ser aplicado en la educación formal.

Palabras claves: Danza, niños, educación, individuación.


 

 

1 - Introdução e justificativa

O presente artigo constitui uma pesquisa inicial sobre a dança em crianças escolares sob o ponto de vista da Psicologia Analítica e suas contribuições no campo educacional. Contribuem, nesta direção, as palavras de Byington (1996) que afirmava ser a dança essencial para o desenvolvimento humano, o seu o corpo, a natureza, a sociedade, as imagens, as ideias e as emoções.

Para esse fim, considera-se a escola uma instituição fundamental para o processo evolutivo da consciência da criança. Jung (1928/1988) atribuiu a esta instituição duas funções complementares: a primeira abrange o ensino das matérias e o desenvolvimento da personalidade total, incluindo as dimensões conscientes e inconscientes; intelectuais, emocionais e intuitivas; a segunda enfatiza a importância de a escola propiciar à criança seu autoconhecimento, auxiliar o processo de desprendimento do contexto familiar, ampliar suas possibilidades de relação com o mundo e torná-la mais consciente de si. Jung (1927/2004) já ressaltava a importância de se trabalhar a favor de aspectos e habilidades além da racionalidade. Não devemos nos identificar com a própria razão, pois o homem não é apenas racional, não pode e nunca vai sê-lo (pp.111).

Observa-se, contudo, que no modelo de educação atual prevalecem práticas de ensino voltadas para o desenvolvimento intelectual e racional dos alunos. Valoriza-se o conhecimento analítico, descritivo e linear em detrimento de um conhecimento sistêmico, corporal, intuitivo (Byington, 1996; Marques,1997). Byington (1988) ressalta o empobrecimento na educação ao desmerecer a importância do corpo e de sua expressão. Autores de diferentes áreas abordadas nesse estudo destacam a importância do aprendizado da criança a partir de um trabalho que vise seu crescimento integral, propiciando o desenvolvimento de suas diversas potencialidades.

Centralizando no enfoque junguiano na educação, tem-se a Pedagogia Simbólica e a Pedagogia Profunda que fornecem subsídios teóricos da psicologia analítica à educação. A Pedagogia Simbólica valoriza o ensino vivencial, que se dá mediante atividades criativas, como desenhos, pintura, argila, dança, música (Byington, 1996). O aprendizado acontece a partir da aproximação da teoria com a experiência, o que favorece uma relação mais amorosa, participativa e prazerosa dos alunos com o saber. A pedagogia profunda ilustra a aplicação dos conceitos da psicologia analítica na prática educacional.

Considera-se, portanto relevante pesquisar este tema na prática, pois a psicologia e, em particular, a psicologia analítica - com a compreensão diferenciada a respeito do desenvolvimento humano -, contribui na educação com olhar atento às potencialidades da criança e do jovem, estimulando todas as funções da consciência e o processo de individuação de maneira integrada.

 

2 - Pressupostos do estudo

a) Essência dos estudos sobre dança e psicologia

A arte é considerada uma possibilidade investigativa na psicologia e há estudos que vinculam a dança à terapia (Fux, 1983; Cerruto, 2008; Fiamenghi, 2009). Uma proposta dessa união ocorreu em meados de 1950, nos Estados Unidos, com a criação do conceito Movimento Autêntico pela Psicologia junguiana por Mary Whitehouse. Entende-se por Movimento Autêntico uma manifestação espontânea e genuína, na qual o movimento flui, mas não dirigido pela consciência, mas expressa imagens e conteúdos inconscientes que são trabalhados entre terapeuta e paciente. Parte do princípio de que a consciência do movimento físico, vivenciado cotidianamente, produz transformações psíquicas (Whitehouse, 1999).

Desde 1966 a dança-terapia vem se desenvolvendo a ponto de tornar-se uma profissão nos Estados Unidos, com a criação da American Dance Therapy Association, agrupação que passou a promover estudos sobre psicologia e dança (American Dance Therapy Association, 2012 - http://www.adta.org).

Na abordagem da psicologia analítica, o principal conceito concernente à dança é a imaginação ativa (Fiamenghi, 2009). Carl Gustav Jung (2004), em 1916, propunha a investigação do inconsciente mediante associação de palavras, análise de sonhos e imaginação ativa, técnica esta que compreendia a expressão por imagens, desenhos e movimentos corporais.

Estes últimos são uma das inúmeras maneiras do inconsciente se expressar. Whitmont (1991) completa a ideia afirmando que a atividade corporal é uma via de acesso criativa às imagens do inconsciente e que possibilita a expansão da consciência.

b) Estudos sobre dança-educação

A proposta deste trabalho é educacional, mas segue alguns dos princípios válidos da psicoterapia, particularmente referentes à consciência corporal e autoimagem. Optou-se pela dança contemporânea e a dança espontânea por considerá-las uma prática que possibilita o trabalho corporal criativo e educacional das crianças. Laban (1990) foi o precursor da dança-educação; ele enfatizou a dança espontânea como um meio pelo qual a criança se relaciona com o mundo e com o corpo, pelo qual se conhece e reconhece o outro. Portanto, o espaço criativo pedagógico é fundamental para tal atividade, favorece que simples gestos do cotidiano adquiram um caráter expressivo, naturalmente.

Em consonância com autores da área da dança-educação como Marques (1997), Scarpato (2001), Strazzacappa (2001), os especialistas da Psicologia Analítica como Byington (1996) e Lorthiois (2008) destacam a relevância das atividades corporais no processo educacional. A dança configura, assim, um espaço por meio do qual é possível promover um ensino vivencial, uma experiência lúdica e emocional, a partir do corpo. É uma ferramenta favorável ao autoconhecimento da criança e ao conhecimento do outro, à expressão da psique partindo de sua dimensão corporal, ampliando seus limites, suas possibilidades e desafios.

Dançar é movimentar-se, expressar as profundezas do ser. As crianças coreografam suas vidas, delineando com seus corpos, suas alegrias, seus esforços, suas brincadeiras. Pois é um movimento que surge delas e se expressa a todo momento, girando, correndo, batucando, pulando. É importante deixá-las experimentar, ousar, pois só assim podem constituir seu repertório de movimentos e gestos. Afinal, o que é dançar? Para Lorthiois (2008, p.204) dançar é "antes de tudo utilizar o corpo para expressar a Liberdade, Alegria e Sentido". A dança é considerada como uma maneira criativa de executar movimentos, como um meio de expressão possível a todas as pessoas (Pregnolatto, 2004). Segundo Feldenkrais (1977), o movimento reflete os estados do sistema nervoso, uma atividade muscular, constitutivo da consciência. É considerado como uma forma de organização e relação entre o indivíduo e seu exterior, e é componente de suma importância no processo de desenvolvimento humano. Ninguém existe sem antes perceber o próprio corpo (Bertazzo, 1998, p. 34). A dança contempla diversos estilos e possibilidades (Strazzacappa, 2001); independente destes, pensa-se ser essencial que se preserve a criatividade, a expressividade daquele que dança.

As contribuições sobre a dança no espaço escolar possuem diversos caminhos, que são complementares. Dionísia (1995), por exemplo, defendia a movimentação corporal na escola como uma forma de desenvolver as habilidades motoras e também aponta para o valor emocional e cognitivo desta prática, definindo-a como a tomada de consciência de si, da relação com as pessoas, da imagem corporal, autoconceito, auto-estima e confiança. Já Bertazzo (1998) apontava para a relação entre a formação do aparelho locomotor e o desenvolvimento do aparelho neurológico. O primeiro influencia na construção do segundo; assim o autor valoriza nas escolas as atividades que contemplem movimentação e ação corporal para a constituição total do indivíduo. A dança também favorece a educação social da criança, constituindo-se um campo construtivo de crítica social, política, cultural (Marques, 1997).

Centralizando-se na dança na escola, tema deste estudo, esta possibilita a oportunidade para que o indivíduo desde a infância crie, aprenda e se manifeste pelo corpo. Constitui-se uma arte que, independente do estilo, é uma técnica corporal pela qual o ensino vivencial pode acontecer a favor de uma pedagogia que vise auxiliar o desenvolvimento da personalidade total da criança.

Para Burril (2011), o movimento corporal é fundamental para um aprendizado natural e, portanto, deveria ser incluído no currículo escolar. A fim de validar sua hipótese ela desenvolveu um estudo com crianças na educação infantil de uma escola pública, a partir da ferramenta avaliativa de movimento Kestenberg Movement Profile (KMP)". Os resultados mostraram que o modo como as crianças se movimentavam e se expressavam influenciaram o seu processo de aprendizagem e desenvolvimento.

A reflexão sobre o estilo da dança amplia-se para o questionamento da maneira como uma aula de dança, no contexto escolar, pode ser planejada (Strazzacappa, 2001). A partir da bibliografia consultada e a experiência dos autores desta exposição com as crianças, entende-se ser importante alternar em uma aula de atividades dirigidas com outra de momentos livres. A primeira favorece a ampliação do repertório gestual das crianças e auxilia o processo de conscientização do próprio corpo (Gaurady, 1973); e a segunda favorece a expressão corporal criativa e espontânea de cada uma delas.

Sobre a percepção da criança incentivada pela dança, em reportagem para a Revista Escola, o psicólogo argentino Esteban Levin (2007) enfatizou esta atividade como facilitadora da construção da imagem corporal, dando a importância de sua aplicação.

Diversos estudos pesquisam a relação da prática da dança e a construção da imagem corporal. Como, por exemplo, Burgess e outros (2005) investigaram os efeitos da dança na imagem corporal e autopercepção de 50 adolescentes inglesas, submetidas à questionários específicos aplicados antes, durante e após o período de 6 semanas da atividade de sessão diária de dança. O resultado constatou uma diminuição significativa da insatisfação da imagem corporal (elementos relacionados à atratividade e sensação de estar gorda) e um efeito positivo na autopercepção física das adolescentes. Swami e Harris (2012) identificaram, em pesquisa com mulheres adultas, que o tipo de dança praticado e o nível do praticante são variáveis influentes na constituição da imagem corporal em cada indivíduo.

Kallipuska (1989) pesquisou como a autoestima, empatia e criatividade eram afetadas pela dança em jovens. Diversos instrumentos e testes foram utilizados e aplicados com jovens bailarinos e jovens não bailarinos. Os resultados demonstraram índices de autoestima, empatia e criatividade maiores em jovens bailarinos do que em jovens não bailarinos.

Theodarku e Zervas (2003) compararam os efeitos na autoestima, de crianças entre 11 e 12 anos, de duas atividades físicas realizadas em uma escola pública: a educação física tradicional e a dança criativa. Foram objeto de estudo, 108 crianças divididas em dois grupos: um centralizado ao ensino da dança por meio da experimentação e improvisação e o outro na educação física tradicional. Após três meses de curso com 2 aulas semanais de 45 minutos, as crianças foram avaliadas com o teste Harter's Self-Perception Profile for Children (SPPC). Os autores constataram que as crianças do grupo da dança criativa demonstraram níveis mais elevados em questões relacionadas à competência e autoestima.

Os resultados das pesquisas fortalecem a noção de conexão entre a dança, nas suas diversas técnicas e manifestações espontâneas com a melhora da autoimagem e autoestima dos indivíduos nas diversas faixas etárias: infância, adolescência e idade adulta.

c) O processo de individuação e a infância

A individuação é um conceito chave da teoria de Jung no que se refere ao desenvolvimento da personalidade. Este conceito pode ser definido como um processo da pessoa tornar-se única, integrada, si-mesma.

A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva [...] Antes de tomá-la como objetivo, é preciso que tenha sido alcançada a finalidade educativa de adaptação ao mínimo necessário de normas coletivas (Jung, 1921/2008, par 853).

O autor pós junguiano Michael Fordham (1969/1994) ampliou, por meio de seus estudos clínicos com crianças, a concepção de desenvolvimento da personalidade considerando o processo de individuação presente desde a primeira infância, demonstrando-o como essencial ao amadurecimento do indivíduo.

Portanto, o conceito de individuação ressalta o importante papel da percepção e da consciência corporal para constituição do ego da criança. Sobretudo na fase escolar que é o período de vivências fundamentais para a formação do ser em desenvolvimento, para seu aprendizado não apenas intelectual, mas um aprendizado de si. A dança contribui para um processo de individuação saudável, característico nessa fase como o fortalecimento do ego, inserção no mundo, adaptação à cultura. Reafirma-se a relevância de se buscar no âmbito educacional trabalhos que visem educação corporal, cujos benefícios se mostram tanto nos aspectos físicos como nos psicológicos. Ao articular as áreas da psicologia analítica, dança e educação, abrange-se a reflexão sobre a escola como lugar potencial para o desenvolvimento que visa a criança ser o que ela é, mais profundamente.

 

3- Método da investigação

a) Participantes

O objetivo do estudo foi observar um grupo de crianças dançando e investigar a sua percepção sobre o ato de dançar.

Realizado em uma escola particular do ensino fundamental de uma cidade de grande porte, participaram oito crianças entre 8 e 9 anos, identificadas por idade, nomes fictícios e experiências em dança:

- Aline, 8 anos. Pratica sapateado na escola no período extracurricular;

- Gustavo, 9 anos. Pratica judô no período extracurricular da escola, mas diz que gostaria de fazer sapateado também, porém não pode pagar os dois cursos.

- Marcos, 8 anos pratica judô. Relata que prefere o sapateado ao judô, mas nunca perguntou à sua mãe se poderia trocar.

- Vagner, 9 anos, não pratica nenhuma atividade fora da escola. Conta que gostaria de aprender a tocar algum instrumento musical.

- Fernanda, 8 anos. Pratica jazz e sapateado em uma escola de dança fora da escola.

- José, 8 anos. Pratica sapateado na escola em período extracurricular.

- Maurício, 9 anos. Não pratica nenhuma atividade extracurricular. Conta que tem vontade de fazer sapateado, mas tem vergonha.

- Vitor, 9 anos. Frequenta muitos cursos, judô, inglês, futebol, mas gostaria de fazer também ballet clássico. Ao ser indagado se sua mãe permitiria realizar essa atividade ele responde que sim, se pudesse pagar.

A observação aconteceu em 4 (quatro) sessões semanais de 50 (cinqüenta) minutos cada, em período extracurricular. As sessões constituíram na aplicação de desenhos antes e depois do conjunto de atividades de aquecimento e dança e expressão livre, realizadas em grupo, seguidas de uma entrevista com cada criança. Optou-se por 4 encontros semanais em função da disponibilidade da escola que concedeu o espaço e horário extra para os encontros. Considerou-se também que 4 encontros seriam suficientes para se obter um resultado de pesquisa preliminar, como é o presente.

O protocolo do estudo foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da PUC-SP, de acordo com a deliberação 06/2007 de 25/04/ 2007.

A primeira parte de todos os encontros constituiu-se de aquecimento corporal o que era seguido da Atividade de Dança e Expressão Livre, baseando- se na experiência de uma das pesquisadoras, como bailarina e professora de dança. O aquecimento corporal - atendia à necessidade das crianças de se concentrarem e entrarem em contato com o próprio corpo -; os exercícios dirigidos - pela importância dos alunos vivenciarem e aprenderem um pouco da técnica de dançar, ampliando seu repertório corporal (Garaudy, 1973) e dança espontânea - por considerá-la propícia à expressão livre da criança.

A pesquisadora referida dirigiu as atividades e manteve uma atitude observadora, atentando para os aspectos subjetivos dos integrantes, com o intuito de ampliar o entendimento da experiência (May, 2004).

b)Desenhos e imagem corporal

Os desenhos foram realizados na primeira e quarta sessão após a atividade de dança dirigida e a de expressão livre, realizada em roda e no chão. Propôs-se às crianças que expressassem pelo desenho o que consideravam dançar, mediante a pergunta: "O que é dançar para você?". Ao terminar os seus desenhos pedialhes que contassem o que tinham feito: "Conte o que desenhou". Essas foram às únicas orientações dadas às crianças. Houve algumas perguntas da parte delas como "Mas, como assim?" "Não sei desenhar". Diante dessas indagações a pesquisadora esclarecia com a frase: "Desenhe, da maneira que quiser, o que é dançar para você".

A técnica de desenhos foi utilizada por constituir um legítimo meio de expressão não verbal capaz de comunicar, simbolizar (Furth, 2004). O desenho representaria a criança, e a folha de papel, o ambiente. Estas duas interpretações constituiriam para a compreensão do desenho elaborado(Van Kolck, 1968). Assim, procurou-se compreender de modo projetivo, a percepção das crianças sobre si, sua imagem corporal e sobre o ato de dançar.

A interpretação das figuras desenhadas teve como embasamento os estudos de Hammer (1991) e da analise de Van Kolck (1969). Segundo Hammer (1991), cada indivíduo constrói em seu aparelho psíquico uma imagem corporal, em grande parte inconsciente, do tipo de pessoa que é. E pelo desenho expressa aspectos corporais e psicológicos, cuja imagem é constituída por fatores interdependentes de sensações através das experiências sensoriais dos sentidos, das experiências motoras e afetivo-emocionais (Abraham, 1963). Portanto, a imagem corporal é a representação mental que formamos de nós mesmos, consciente e inconscientemente, e abrange ideias e sentimentos que temos de nós mesmos. Para Fisher e Cleveland (apud Van Kolck, 1969) a imagem corporal é um termo que se refere ao corpo como experiência psicológica, às experiências subjetivas dele derivadas e a maneira como foram organizadas.

Tais conceitos constituíram as bases para interpretar os desenhos no presente estudo.

c) Entrevistas

Aconteceram no 3º encontro, antes da atividade de dança. Foram de natureza semidirigida, agregando-se assim, informações à investigação e ao conhecimento da criança (Baptista & Campos, 2007). Cada uma delas conversou com a pesquisadora, separadamente, para que pudesse se expressar livremente sem se preocupar com críticas dos colegas e para não se influenciar com as respostas deles. As instruções iniciaram-se pela questão: "Agora farei umas perguntas sobre dançar":

Como é dançar para você? / O que você sente quando dança? / Gosta de dançar? Sozinho, em grupo? / De que jeito mais gosta de dançar? Como é o movimento? / Qual música mais gosta de dançar? Por quê? / Onde costuma dançar, em casa, festa, aula? / Dançar é para menino e menina? / É para todas as idades, do menor até o mais velho? / Já dançou em algum espetáculo de dança? Tem vontade? / Faz ou fez aula de dança?

 

4 - Resultados

a) Atividades de Dança e Expressão Livre

Aconteceram nos quatro encontros, nos quais foi mantida uma sequência de, primeiramente os exercícios de aquecimento corporal, seguido dos dirigidos e dança espontânea.

Para a atividade de dança e expressão livre utilizou-se, cds de diversos estilos musicais. Optou-se por músicas de Bob Marley por serem tranquilas, do estilo Hip Hop da banda Black Eye Pies por serem adoradas pelas crianças, em geral, CD Café Del Mar, com estilo musical house, músicas do Gilberto Gil, como uma referência da música brasileira, músicas dos Beatles por serem do tipo de rock, e Mozart, representando músicas clássicas.

A etapa do aquecimento corporal teve início com o espreguiçar, com o objetivo de relaxar, sensibilizar o corpo e aguçar a sua percepção. No início, as crianças pouco se mexiam, permaneciam deitadas, de barriga para cima e olhos abertos. Depois começaram a rolar, mexer e levantar os membros, cochichavam entre si e riam baixinho. A seguir, foi realizado um aquecimento das articulações, para aguçar a percepção corporal, a concentração e favorecer a musculatura para a próxima atividade de dançar. Este aquecimento consistiu basicamente em dobrar e esticar os joelhos, fazer movimentos circulares com os tornozelos, punhos, cotovelos, ombros e cabeça. De pé, o alongamento foi o de soltar o tronco para frente, com braços estendidos e cabeça relaxada; pular de forma ritmada, soltando os membros, a cintura, a cabeça. A trilha sonora deste momento foi, nos quatro encontros, composta pelas músicas de Gilberto Gil.

Para os exercícios dirigidos foi proposta uma atividade de rolamento corporal. As crianças a aceitaram com muita alegria. O objetivo desta proposta foi o de propiciar- lhes uma vivência com o corpo a partir do contato com o chão e a necessidade de locomover-se nesta situação. O exercício se deu em duplas, cada criança se direcionava de um lado para o outro, oposto do espaço. Foram ensinados dois tipos de rolamento, um com as pernas e braços esticados, e outro com a pessoa sentada, com os joelhos dobrados e braços esticados para frente. As crianças demonstraram maior facilidade para realizar o primeiro tipo de rolamento.

Propôs-se, a seguir, que elas atravessassem a sala em um só pé, alternando os pés em forma saltitante - como se fosse um jogo de amarelinha. Para esta caminhada foi preciso que as crianças aprendessem a esperar sua vez, para atravessar a sala, que observassem a chegada dos colegas, bem como sua própria dupla para fazer o percurso juntos. Os exercícios dirigidos foram acompanhados pelas músicas do cd Café Del Mar, por possuírem uma diversidade de ritmos e batidas inspiradoras para execução dos movimentos.

Ensinou-se uma dança circular, a tarantela. Versão de Fred Rovella cd Tutti Tarantela. As crianças se entusiasmaram muito com a dança, o riso e a excitação foram constantes todas as vezes em que foi realizada.

A dança espontânea foi acompanhada por trechos de música de diversos estilos musicais: rock, música clássica, reggae. Para o rock tocou-se Shake it baby dos Beatles; para a música clássica, a Sinfonia 40 de Mozart; para o hip hop, Lets get started do Black Eye Pies e para descansar, Natural Mistic de Bob Marley. Ao dançarem livremente foi possível observar diversas manifestações como construções, danças individuais, mas principalmente coletivas. Foi constante a interface entre o movimento e a criação de brincadeiras. Os meninos, principalmente, inventaram jogos como polícia e ladrão, pega-pega, luta. As meninas interagiram entre elas e também criaram suas próprias brincadeiras. Houve também alguns desentendimentos entre alguns meninos, situação na qual a pesquisadora se posicionou tranquilamente, a fim de mediar um diálogo entre eles, quando este se mostrou necessário, e permitiu que pudessem lidar com suas emoções.

Atuar no ambiente descontraído desse fazer pedagógico é um desafio para o professor, uma vez que a descontração não significa desordem, e é bastante tênue o limiar entre uma atuação a favor de um limite necessário à turma e a imposição de uma ordem disciplinadora (Lorthiois, 2008). A técnica utilizada possibilitou que as crianças se expressassem espontaneamente, ou seja, que rissem, conversassem, pulassem e até brigassem.

Trabalhou-se com as crianças sobre a importância de se atentar ao lugar que cada uma ocupava no espaço, a fim de não machucar o colega em uma movimentação; de observar o movimento do outro e esperar por sua vez. Isso porque, inicialmente em alguns exercícios, as crianças começavam a se movimentar sem esperar o comando da pesquisadora sinalizando sua vez e sem considerar a vez do amigo, o que resultou em desordem, falta de espaço e algumas trombadas.

Os escolares, em estudo, demonstraram empolgação e divertimento nos dois momentos, dirigido e espontâneo, reiterando a importância das atividades propostas. Marques (1997), Scarpato (2001) e Strazzacappa (2001) bem como autores da psicologia analítica reiteram a importância de se propor à criança atividades em que ela possa expressar seus sentimentos, explorar sua criatividade, sua imaginação. A dança circular "tarantela" e a dança espontânea, ambas vivenciadas pelas crianças observadas, são exemplos de atividades que abordam esses aspectos.

Nos momentos de dança espontânea, os participantes criaram brincadeiras, jogos como pega-pega, trenzinho, representaram bandas tocando as músicas que ouviam. São exemplos de criações conjuntas de significados, de interações, de meios pelos quais a criatividade de cada uma favorece a construção coletiva e pela qual puderam expressar, corporalmente, suas emoções, sua felicidade e também suas desavenças. A dança implica no olhar para si e para o outro, é um jogo constante de interação. É uma interação prazerosa, desafiadora, a partir da qual se lida constantemente com o próprio limite e com o limite do outro.

b) Leitura dos Desenhos

Os desenhos foram organizados a partir de uma minuciosa observação e elaboração de categorias de análise, em função do conceito das técnicas projetivas e simbólicas do grafismo, a fim de se identificar os elementos expressivos principais de cada produção. Levantaram-se as seguintes categorias: 1) impressão geral, 2) contexto/tema, 3) elementos da natureza, 4) animais, 5) personagens animados, 6) pessoas, 7) movimento representando algum tipo de atividade, e como esta é representada, 8) música, 9) elementos gráfico.

As impressões gerais suscitadas pelos desenhos foram basicamente: alegria em 5 desenhos; animação/descontração em 4; tranqüilidade em 3; leveza em 1; isolamento em 2; tristeza em 1 e timidez em 2.

As principais emoções suscitadas pela dança, segundo as crianças, – a alegria e a vergonha – forneceram subsídios para uma indagação a partir da hipótese de que o dançar configura a possibilidade de vivenciar e aprender a lidar com aqueles aspectos. A vergonha foi conceituada como: adaptação/ conformidade social e integridade individual; um afeto que surge a partir da consciência de ser visto por outros, uma autoconsciência do eu (Schmitt, 2006). Algumas crianças que se mostraram envergonhadas, introvertidas, necessitando de um olhar aberto e receptivo do pesquisador para que o trabalho corporal pudesse ser uma atividade profícua.

Nos desenhos, a maioria das crianças fez uma paisagem no primeiro desenho e os elementos representados foram: montanha, sol, céu, nuvens, grama, exceto uma criança que desenhou nada ao que se esperava, fez gaivotas e um gato. Esses desenhos, por sua representação, puderam ser relacionados à percepção da dança mais abstrata e profunda, e por isso, de difícil definição. Relacionam-se ao aspecto mais natural e genuíno da própria relação entre o homem e sua arquetípica, característica de expressar-se, artisticamente.

A espontaneidade de dançar e de sentir o corpo em movimento pode ser vinculada à representação da natureza nos desenhos produzidos. A natureza indicaria a dança como expressão natural do ser humano.

No segundo desenho – todos, exceto um, o José -, tentaram representar uma pessoa. Desenharam uma pessoa, dançando ou ouvindo música. O fator do movimento foi representado em todos os desenhos. De modo geral, as crianças desenharam alguém dançando, seja no primeiro desenho, e / ou no segundo; neste geralmente na discoteca. A representação de alguém de pé, com as pernas semiabertas e um dos braços para cima indicando uma dança, foi quase que unânime entre os desenhos. Vitor foi a criança que disse claramente, em primeira pessoa, que em seu desenho "era ele dançando sapateado", o que indica identificação da criança com tal figura. Maurício, Marcos, Aline, Gustavo, Fernanda o fizeram, na terceira pessoa, em ação de dançar na discoteca. A identificação das crianças com o seu desenho corroborou com as concepções de Von Kolck (1969) de que o desenho da figura humana é a representação do indivíduo que a faz.

O fato de metade das crianças ter reproduzido, no segundo desenho, uma pessoa dançando no ambiente da discoteca, suscitou algumas reflexões. Entendeuse a discoteca como um lugar socialmente valorizado, onde se dança e se representa um contexto próprio para tal atividade. Expressa um lugar de divertimento e festas ocupado socialmente pela dança. Na discoteca, a dança perpassa as relações que se configuram entre os presentes e é na maioria das vezes mais estereotipada e limitada. Remete a um afunilamento em que a liberdade de experimentar fica condicionada ao que se espera do dançar. Dançar de modo uniforme. Quanto ao ensino da dança na escola se mostra diferente da situação anterior; é relevante ao configurar uma oportunidade para as crianças experimentarem a dança, o corpo, a sensibilidade, de forma mais rica, espontânea e única. Expressar-se de modo inesperado, diferentemente dos valores estéticos e expectativas externas pode ser produtivo e importante para elas se conhecerem, desafiarem os próprios limites do corpo e agirem criativamente.

Considerando a transição de representações gráficas entre o primeiro e segundo desenho - infere-se que as Atividades de Dança e Expressão Livre realizadas durante os quatro encontros possam ser significativas na ampliação da autopercepção corporal e na formação da auto-imagem das crianças. As atividades teriam concretizado de tal maneira a vivência do corpo, a ponto de, em um segundo momento, ter sido possível representá-lo. De desenhos de Pokemóns as crianças passaram a representar pessoas dançando em discoteca, sapateando. Houve indícios de um processo de autopercepção, constituição da auto-imagem. A consciência corporal é fundamental para a constituição do ego de um indivíduo (Jung, 1927/2004). Sugere-se uma continuidade de pesquisas para legitimação de tal inferência, considerando distintas variáveis que possam interferir nos resultados.

As crianças do estudo encontram-se no processo de formação do ego, característica da primeira etapa do processo de individuação. Por isso, os resultados da experiência indicam a relevância do trabalho corporal para favorecer– lhe percepção de si, auxiliando no desenvolvimento de seu ego. Corroboram com os apontamentos de Scarpato (2001) de que a consciência corporal proporcionada pela dança promove a compreensão de si e do mundo, sendo em certa maneira mais espontânea de se expressar.

c) Leitura das Entrevistas

As entrevistas foram sistematizadas e organizadas em categorias de análise e expressadas por: 1) emoção - como as crianças se sentem dançando, 2) socialização – interação no dançar em grupo; sozinho; a pertinência da atividade, se é, ou não, para todas as idades e gêneros; 3) interesse - preferência de estilo de dança e as músicas que inspiram a dançar; 4) percepção do corpo - características físico-corporais relacionadas à dança e 5) comportamento de dançar - relacionados à prática da dança, a frequência com que dançam, onde costumam dançar - em casa, escola -, se já tiveram experiências de apresentação teatral.

Observou-se que, em relação como as crianças se sentiam dançando, todas elas expressaram emoções positivas; como a manifestação de alegria, bem estar e felicidade de modo geral. A vergonha também acompanhou a fala de alguns deles; Aline, Vagner, Fernanda, Maurício, Vitor e José, demonstraram outros sentimentos que a dança desperta nas crianças.

Quanto à socialização da dança as respostas variaram: para algumas foi indiferente dançar sozinho ou em grupo, como aconteceu com Vagner, Fernanda, Vitor, José. Outras preferiram dançar sozinhas, porque assim se sentiam mais à vontade, como: Maurício e Gustavo. Outras ainda preferiram em grupo porque "é mais legal" ou porque sentem apoio dos amigos, Aline e Marcos. Ainda em relação a esta categoria as entrevistas mostraram que as crianças revelaram que dançar é livre e deve ser permitido a todos; meninos, meninas e a todas as idades.

As preferências por estilos de dança variaram entre sapateado, country, dança de rua e funk e algumas crianças mencionaram diretamente as características físico-corporais relacionadas à dança. Citaram, também, os seus benefícios referentes à saúde, à sensação de leveza e de energia que ela traz.

Há dois aspectos a acrescentar: o primeiro é a experiência de palco: metade já se apresentou (Aline, Fernanda, Vitor e Marcos); metade gostaria de realiza-la (José e Gustavo), e a outra metade, não (Vagner e Maurício), por vergonha; o segundo, é que todos já fizeram algum tipo de aula de dança. Chamou a atenção que a grande maioria delas costuma dançar em casa. Apenas duas citam a escola como local possível de se dançar (Fernanda e Vitor).Essas experiências são importantes e que devem ser consideradas em estudos futuros.

 

5 - Discussão

O estudo desenvolvido tem o caráter de uma pesquisa inicial a fim de contribuir para o entendimento concernente à percepção das crianças sobre o ato de dançar. Elas demonstraram que a dança é uma atividade alegre, divertida, que lhes possibilita se sentirem felizes. O sentimento da vergonha também se mostrou presente e foi possível lidar com ele de forma respeitosa e tranquila. Houve uma situação, por exemplo, de uma menina muito tímida, Fernanda, que não queria tirar os sapatos como as outras, para dançar. Foi permitido que dançasse com eles, pois se notou que dessa forma se sentia mais segura, do contrário ficava quase que imóvel. No primeiro encontro ela se mostrou muito tímida e receosa. Buscava um olhar de aprovação para o que fazia. Ao longo dos encontros ela se soltou corporalmente, se tornou mais participativa e comunicativa. A partir do terceiro encontro ela mesma quis tirar os sapatos, o que muito facilitou em sua dança. A situação descrita foi percebida com empatia e tranquilidade pela pesquisadora, a menina foi aceita tal como se apresentava, com sua timidez. A partir dessa aceitação e abertura, a menina pôde, ao seu tempo, lançar-se à nova atividade com leveza e espontaneidade. Precisava usar os sapatos, inicialmente, para amparar-se diante do novo, mas logo que conseguiu relaxar-se e sentir-se segura, eles se tornaram dispensáveis e desconfortáveis e ela não precisou mais usa-los.

Verificando a alegria, o prazer e o bem estar que as crianças revelaram ao dançar, aponta-se uma estratégia para o estabelecimento de uma relação prazerosa com o aprendizado. Considerando, de acordo com os autores pesquisados, que há um distanciamento entre o que se ensina e o que se vive, lança-se a hipótese de que a dança constitue um importante complemento ao sistema educacional vigente, suscitando outras formas para a educação integral acontecer. A dança contribui com a possibilidade de se entender a criança integralmente.

Comprovou-se que a dança que, mesmo em uma proposta mais livre, convocou a relação com o grupo e o respeito às regras básicas de convivência, de interação. Aprender a se relacionar foi primordial para o desenvolvimento total da criança. O processo de individuação consistiu-se em poder ser quem se é; individualmente diferenciado e coletivamente adaptado. As ideias de individuação (Fordham, 1969/1994) envolveu adaptação às normas coletivas e ao aprendizado de conviver com o outro. A experiência do estudo sinalizou, portanto, a atividade de dança e expressão livre como situações favoráveis para vivenciar e elaborar relações. Entendeu-se que a dança contém em si a individualidade e a coletividade. No âmbito individual, por meio do corpo, possibilita a apropriação de si, diferenciação de quem se é e de quem se é com o outro. Na coletividade, convida a criança a relacionar-se com o grupo e conhecer-se nessa relação.

As atividades de dança e expressão livre destacaram a possibilidade da dança como uma atividade socializadora, por meio da qual foi possível vivenciar os prazeres e as vicissitudes do encontro com o outro. É um recurso que abre a possibilidade de auxiliar a escola em problemas de difícil enfrentamento, para os quais, muitas vezes, os professores carecem de meios adequados para lidar, como, por exemplo, o bullying - e outros comportamentos destrutivos.

Na educação atual faltam espaços em que a criança possa manifestar-se agressivamente de modo saudável; é comum que frente a brigas entre alunos os professores tentem acalmá-los, e a obrigá-los a pedir desculpas, sem considerar o conflito que permeia a briga em si, sem tentar dar um sentido junto com as crianças ao que ocorreu. Aceitar a agressividade e ter um espaço onde o confronto de polaridades possa ser vivenciado é importante na medida em que a criança desde cedo ensaia suas experiências na relação com o outro e com o mundo. Durante a Atividade de Dança e Expressão Livre, por exemplo, houve alguns desentendimentos entre os meninos, como já foi referido anteriormente. Foi preciso parar e ouvi-los, dar voz às suas insatisfações para que pudessem se expressar e esclarecer o mal entendido. A pesquisadora deu continência às desavenças do grupo e, ao restabelecer o sentido da situação, as crianças seguiram na atividade proposta, inicialmente.

Outro aspecto da percepção das crianças, participantes do estudo a respeito da dança, retratou, de forma geral, duas dimensões: uma concernente ao contexto sócio-cultural da atividade, ao lugar ocupado no cotidiano das pessoas atualmente, despertando alegria e descontração; a outra relacionada ao que lhes é mais natural e espontâneo, à insondável e única dimensão de cada um.

A pluralidade dos estilos de dança explicitados pelas crianças, suas falas relacionadas ao prazer de dançar, sozinha ou com amigos, de maneira livre apontam para a relevância de trabalhos que valorizem a liberdade de expressão, a criatividade e ao processo de individuação, no que diz Jung. Há uma concordância entre os autores pesquisados sobre a necessidade de as crianças construírem a sua dança, explorarem, se soltarem, amparados e incentivados pelo educador. Os encontros reafirmaram a relevância de articular a liberdade com o ensino da técnica, ampliando o repertório gestual e cultural dos alunos. A dança espontânea e a dança circular constituíram possibilidades de estilos para o desenvolvimento da individuação no ambiente educacional. Pesquisas futuras e projetos dirigidos à dança, neste contexto, são essenciais, pois se constituem referenciais à compreensão e significação da criança a respeito de experiências únicas e subjetivas.

Entre os benefícios e a importância da dança na educação elucidados na teoria junguiana, a consciência corporal foi um aspecto relevante a ser destacado. As atividades da dança, em expressão livre, parecem ter propiciado experiências novas para as crianças participantes, estimulando a expressão criativa que envolve seus corpos.

Os achados do presente estudo - caracterizado como um projeto inicial – corroboram com as pesquisas mencionadas. Foi observado que a dança na educação constitui uma estratégia que visa auxiliar o desenvolvimento da personalidade total da criança. Assim, ressalta-se a tomada de consciência da própria criança, sua individuação e sua relação com os demais. Autores como Theodorakou e Zervas (2003) entre outros confirmam os efeitos da dança para a autor-estima e Strazzacappa (2001) e antigamente Gaurady (1973) notaram o efeito na conscientização do corpo.

Bertazzo (1998) realça nas escolas atividades que contemplam movimentação e ação corporal para a constituição total do aluno. Para Marques (1997) a dança favorece a educação social da criança, constituindo-se um campo construtivo de crítica social, política, cultural. Já, Burril (2011), constatou que o modo como às crianças se movimentavam e se expressavam influenciou o seu processo de aprendizagem e desenvolvimento, e Levin (2007) e Burgess e outros (2005) enfatizaram a dança como facilitadora da construção da imagem corporal, decorrendo disso a importância de atividades de expressão corporal nas escolas.

Os resultados das pesquisas assinaladas apontam para melhora da autoimagem e autoestima dos indivíduos na infância, e possivelmente na adolescência e idade adulta.

 

6 - Considerações finais

O presente estudo teve o intuito de contribuir para o entendimento da dança no contexto educacional e de seus diversos benefícios para o autoconhecimento das crianças, seu desenvolvimento corporal, emocional e intelectual. Para confirmar os resultados observados é necessário desenvolver futuras pesquisas empregando o modelo realizado com grupos experimentais e de controle e maior número de participantes.

A dança, como manifestação arquetípica, tem em si as diversas polaridades: o trabalho com o individual e o coletivo, o corpo e a psique, a autopercepção e a percepção do outro, o contato com o cultural coletivo e o resgate de suas mais profundas raízes, a vivência da dança no cotidiano, o divertimento e o sagrado; é uma arte que congrega diversas possibilidades de experiências e significações. A vivência observada alinha-se a resultados de pesquisas descritas em dançaeducação mostrando que a arte, neste caso a dança, complementa um sentido mais amplo de educação, entendida por Jung (1928/1988) como um processo para o desenvolvimento da criança como um todo.

Pesquisas em dança-educação endossam a importância de se trabalhar, no campo educacional, o desenvolvimento integral da criança em suas diversas dimensões: emocionais, intelectuais, corporais. Visam atender a criança em seu processo de individuação, auxiliá-la a se preparar para o mundo, com respeito por si mesma, pelo ambiente e pelo outro. Espera-se que novas pesquisas possam acrescentar conhecimento nesta área que se assevera fundamental a projetos educacionais. Poderá ser verificada a funcionalidade do modelo desenvolvido, que parece revelar-se profícuo para implementar um projeto educacional a ser introduzido no currículo do ensino fundamental.

 

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Recebido: 25/01/2013
Corrigido: 23/04/2013
Enviado a Parecerista: 24/06/2013
Aceito: 26/09/2013.

 

 

1 Laureada pela Academia Paulista de Psicologia. Psicóloga. Profa. Dra. do Programa de Estudos Pós Graduados em Psicologia Clínica - PUC-SP. Analista junguiana. Contato: Rua Turiassu, 390, conj 125, CEP 05005-000, São Paulo, SP – Brasil. Tel 3673-5091. E-mail: lilwah@uol.com.br
2 Biopsicologia no Instituto Visão Futuro. Bailarina formada pela Royal Academy of Dance. Profissional do Sopro Cia de Dança. Contato: Alameda Munique, 459, CEP: 06475-250, Barueri, SP - Brasil. E-mail: paulasampaioschmitt@gmail.com

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