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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.33 no.85 São Paulo dez. 2013

 

RESENHAS DE LIVROS

 

Thomas Reid, An Inquiry Into the Human Mind, on the Principles of Common Sense. Cambridge University Press, 2012 (Cambridge Library Collection). Reprodução da edição original publicada em 1818. ISBN 9781108040358.

 

 

Norberto Abreu e Silva Neto1

Cadeira 06 "Milton Rodrigues"

 

 

Thomas Reid (1710-1796), filósofo escocês e figura significante no Iluminismo desse país, escreveu este livro com base em suas aulas e o publicou pela primeira vez em 1764. Trata-se de um livro de "filosofia natural", disciplina que no século dezoito incluía as ciências naturais e o estudo científico da mente humana. Enquanto "filósofo natural", Reid trata a filosofia como disciplina científica e usa a abordagem do cientista empírico. Assim, a publicação desse livro tinha por objetivo dar ensejo à construção de uma análise científica da mente humana. Ele visava também refutar o cepticismo absoluto.

Reid era religioso e sua fé impregna o escrito e dá fundamento a suas teorias e sua visão de filosofia. Ele acredita em um deus providencial, criador do mundo natural, dos seres humanos, e dos poderes mentais da humanidade. Deus é a única realidade verdadeira à qual o mundo é reduzido; e, mente, senso comum (common sense), e razão são criaturas do autor supremo. Reid partilha da visão de natureza de seu século e defende a natureza como intermediária entre deus e o homem. Ele afirma que Deus criou a mente para que o ser humano conheça a realidade diretamente, e que as sensações são uma linguagem por meio da qual Deus comunica aos seres humanos em benefício destes. Nesse sentido, as sensações devem auxiliar o homem a colocar sua mente em contato direto com o mundo. E, nossos sentidos demonstram que o mundo externo deve existir.

Dessa forma, a pesquisa de Reid é dedicada ao exame dos cinco sentidos e das operações e capacidades da mente que são empregadas a fim de que os seres humanos possam obter conhecimento através desses meios. Suas pesquisas são centradas na crença de que o senso comum deve servir como fundação de toda investigação filosófica. Assim, juntamente com sua descrição da estrutura e funcionamento dos sentidos, Reid apresenta também os princípios da mente e aqueles da doutrina do senso comum.

A obra é composta por sete capítulos e uma "Dedicatória" na qual Reid fala brevemente da influência que recebeu de Descartes, Malebranche, Locke, Berkeley, e Hume. No entanto, considerando que os métodos de Descartes, combinados com os princípios de Locke, revistos e expandidos por Hume, levaram ao desenvolvimento do cepticismo, ele apresenta nessa Dedicatória sua posição contra esse modelo epistemológico. Ele contesta o modelo de Locke segundo o qual os fenômenos mentais são percepções de objetos mentais, e os estados da mente devem ser analisados divididos em ato mental e objeto mental. Em contraposição, Reid oferece uma concepção do mental baseada no ato: todos os estados da mente são atos e os objetos envolvidos no pensamento estão no mundo e não na mente.

No primeiro capítulo ("Introdução"), Reid defende a importância da mente como matéria de investigação filosófica, discute os meios de sua execução, e analisa os obstáculos ao nosso conhecimento da mente. Ele descreve sinteticamente o desenvolvimento da teoria da mente até o século dezoito, e, ao final, expõe seu método que envolve coletar dados por meio de observação e experimento.

No capítulo dois, Reid trata do olfato e analisa a relação que a sensação de olfação mantém com a memória e a imaginação da sensação olfativa, e com a mente ou sujeito. Sensação e memória são por ele descritas como distintas operações da mente, e ambas como "princípios de crença originais": "A sensação implica na existência presente de seu objeto; a memória implica na existência passada deste" (p. 31). No primeiro caso temos a crença na presença de um objeto e, no segundo, a crença em sua existência passada. Mas este não é o caso da imaginação, pois ela não é um princípio de crença: "a imaginação vê seu objeto nu, e sem qualquer crença em sua existência ou não-existência, e é portanto o que a escola chama apreensão simples" (p. 31). Outro princípio examinado neste capítulo refere-se à noção de si mesmo (self), ou seja, à crença em um sujeito de pensamentos e sensações (o si mesmo ou a identidade pessoal) o qual "precede todo raciocínio e experiência, e instrução" (p. 38) e que é obtido por meio de um princípio natural.

No capítulo três, Reid trata sumariamente do sentido do gosto, porque considerou que grande parte do que disse do sentido do olfato era facilmente aplicável ao do gosto, e que a aplicação podia ficar inteiramente a critério do leitor.

A audição é o tema do capítulo quatro e nele Reid discute as variedades e propósitos do som e a parte da experiência de aprendizagem nestes fenômenos. "Aprendemos a distinguir a ambos, o lugar de coisas e sua natureza, por meio de seu som" (p.51). Na segunda parte deste capítulo, ele toma como objeto a relação da linguagem cotidiana com sons e senso comum, e introduz seu conceito de "linguagem natural", que continuará a desenvolver nos capítulos seguintes.

O capítulo cinco é dedicado ao tato e nele Reid salienta a diferença entre este sentido e aqueles da olfação, do gosto e da audição. Ele nos diz que por meio do tato os seres humanos percebem muitas qualidades e de diferentes espécies, o que não acontece com os outros três sentidos, sendo as principais: "quente e frio, dureza e suavidade, rugosidade e lisura, figura, solidez, moção, e extensão" (p. 55). Assim, com base na discussão sobre tais qualidades, ele expõe o principio natural segundo o qual, "nossa sensação de tato indica algo externo, estendido, figurado, duro ou suave" (p. 73).

O sexto capítulo trata da visão e é o mais extenso do livro: ocupa quase sessenta por cento do total, e, nele, Reid faz uma anatomia do ato de ver e defende que o que é produzido por esse ato é superior à sensação. Ele argumenta que a evidência da razão é chamada ver e não sentir, cheirar, ou degustar. Ele discute o fenômeno da "aparição visível de objetos", e argumenta que estes são por intenção da natureza sinais ou indicações; uma linguagem usada pela natureza para informar o ser humano sobre distância, magnitude, e figura de objetos. E, defende também que, a figura visível leva o homem que vê diretamente à concepção do real, figurado, do qual ela é um sinal (p. 82).

Outros temas tratados nesse capítulo: considerações materiais sobre a figura visível; moção paralela dos olhos; a visão de objetos eretos por meio de imagens invertidas; visão de objetos com dois olhos e o efeito do costume sobre o ver; as leis da visão em animais selvagens; e, considerações hipotéticas e fatos relativos ao estrabismo. Destaca-se nesse capítulo a teoria da percepção de Reid, de acordo com a qual o ato perceptivo deve ser distinguido de ambos: da sensação e do conhecimento de objetos dos sentidos obtido por meio da razão. Percepção não implica o exercício da razão, mas esta tira conclusões a partir de percepções. E, são estas conclusões da razão que Reid nomeia "entendimento comum", um instrumento, diz, "por meio do qual os homens conduzem a si próprios nos negócios comuns da vida, e por meio do qual são distinguidos dos idiotas" (p. 175).

Para a conclusão foi reservado o capítulo sete, no qual Reid discute as opiniões de filósofos sobre a mente humana, diferenciando a filosofia em antiga, ou greco-romana, e nova, aquela começada por Descartes. Ele observa que o sistema antigo tinha como fundamentos os princípios do senso comum, mas que o novo sistema tinha como princípio apenas um dentre aqueles do senso-comum: a consciência (p. 214). Por outro lado, traça nesse capítulo algumas conclusões gerais sobre a operação dos sentidos: primeiro, que, por sua própria natureza, toda operação dos sentidos "implica julgamento ou crença, assim como a simples apreensão" (p. 218). E, segundo, que este julgamento ou crença não é obtido por comparação de ideias mas que está incluído na natureza própria da percepção. Para Reid, tais julgamentos naturais são uma parte do "equipamento que a natureza deu ao entendimento humano" e servem para dirigir os homens nos "negócios comuns da vida" e como uma base para o exercício da razão. "Eles são uma parte de nossa constituição, e todas as descobertas de nossa razão estão fundamentadas nestes [julgamentos naturais]. Eles constituem o que foi nomeado o senso comum da humanidade" (p. 219).

Consciente de que os princípios de crença descritos em seu exame dos cinco sentidos não esgotavam os princípios do senso comum que pesquisava, Reid, ao encerrar seu livro adverte o leitor de que mais princípios poderiam ser descobertos quando outras faculdades da mente fossem examinadas. Assim, ele assevera que: "Os poderes da memória, da imaginação, do gosto, do raciocínio, da percepção moral, da vontade, das paixões, dos afetos, e todos os poderes ativos da alma, apresentam um campo vasto e ilimitado de investigação filosófica..." (p. 221). Estas matérias serão objetos de suas pesquisas e tratadas em dois livros que publicará posteriormente: em 1785, Ensaios sobre os Poderes Intelectuais do Homem, e, em 1788, Ensaios sobre os Poderes Ativos do Homem.

 

Comentários

Esta resenha é um produto da atividade de pesquisa do autor, no campo da filosofia da psicologia: na atualidade, o desenvolvimento de um projeto sobre o conceito de senso comum (Common Sense), noção fundamental na produção do conhecimento em muitas disciplinas científicas e para as práticas que levam à coesão social e promovem a vida social. Podemos encontrá-lo no cerne da educação, da política, e da retórica.

Aristóteles foi quem primeiro usou essa expressão com significado psicológico: senso comum designava para ele uma faculdade da psique. Por sua vez, os escritores clássicos e os estoicos desenvolveram um significado não psicológico para sensus communis, noção que expressa costume, sensibilidade comum, espírito público, gosto, modo comum de viver ou de falar, e o sentido que dá fundamento à comunidade. Na modernidade, dentre outras, destacam-se as concepções de Descartes e de Giambatista Vico. O filósofo francês entendeu "senso comum" como concepção epistêmica: "a capacidade racional de reconhecer o que vem diante da mente como uma ideia clara e distinta"; a capacidade que nos permite, quando as encontramos, "reconhecer verdades racionais" (R. Descartes, Discurso do Método. São Paulo; DIFEL,1962, p. 41). A concepção do filósofo italiano contém elementos de todas as concepções anteriores. Assim, Vico define sua noção: "o julgamento sem reflexão que é partilhado por toda uma classe, todo um povo, uma nação, ou toda a raça humana" (G. Vico, Princípios de uma Ciência Nova. México: Fondo de Cultura Económica, 1987, p. 45). No entanto, para fugir do individualismo a que levam as concepções aristotélica e cartesiana, colocou ênfase no conceito estoico de "espírito público" e "sensibilidade comum".

Dentro desse quadro se insere a teoria de Reid sobre os princípios de senso comum, considerada a mais elevada expressão alcançada da filosofia do senso comum (A. Broadie, History of Scottish Philosophy. Edinburgh University Press, 2009, p. 235). E, no século vinte, a doutrina de Reid será referência para o filósofo inglês, George E. Moore, que, entre 1925 e 1941, publicou três trabalhos fundamentais em defesa do "senso comum": "A defense of common sense"; "Proof of an external world" e "Certainty". Ele entendia, como Reid, que as crenças de senso comum e as proposições de senso comum juntas compunham a "visão de mundo de senso comum", construída nos termos de nossa linguagem normal ou comum. E, ele aceitava, que, pelo fato de serem claramente evidentes para todo competente usuário de linguagem, as proposições de senso comum deveriam ser aceitas como ponto inicial para a reflexão filosófica. Moore considerava evidente a verdade dessas proposições e jamais se preocupou em produzir argumentos para defender sua posição sobre tal certeza. Seu esforço era no sentido de realizar a análise correta das proposições de senso comum.

Wittgenstein jamais mencionou a doutrina de Reid mas recebeu sua influência através da longa amizade e conversações que manteve com Moore. O livro de Wittgenstein, Sobre Certeza (New York: Harper and Row, 1972) contém anotações sobre conhecimento, dúvida, e crenças, que foram escritas em diálogo com os trabalhos de Moore em defesa do senso comum. Wittgenstein não usa a expressão senso comum mas fala de "visão de mundo" ou "imagem do mundo" e de nosso "background herdado". Nesse livro, ele estabelece a diferença conceitual entre conhecimento e certeza. Conhecimento é conceito epistêmico que pertence aos jogos de linguagem; e, certeza é conceito não epistêmico, que está fora dos jogos de linguagem e, ao mesmo tempo, lhes dá fundamento.

Moore e Wittgenstein tinham ambos a convicção de que existe algo como certeza e que, para fazermos uma descrição acurada as certezas devem ser consideradas. Os princípios de senso comum apresentados por Reid em seu An Inquiry into the human mind... compõem grande parte destas certezas. A obra de Thomas Reid não se limita a fazer a defesa dos princípios de senso comum como fundação de todo o fazer filosófico-científico, mas toca em todos os problemas e verdades da psicologia científica do século vinte.

E, para encerrar, uma observação sobre a tradução do título. Como traduzir "an inquiry into the human mind"? Literalmente, "uma investigação dentro da mente humana". A mente é concebida como algo que tem um dentro penetrável (into the). Reid pesquisou as operações que acontecem "dentro" da mente e as capacidades ou poderes desta. É este o espírito de sua obra. E, considerando a intimidade entre sua fé religiosa e seu fazer científico, investigar "into the mind" pode ser o caminho para a vivência de uma experiência mística através da leitura de seu livro.

 

 

1 Professor Associado do Instituto de Psicologia da USP e Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica da UnB, aposentado de ambos os cargos. Contato por e-mail: norberto.abreu@uol.com.br

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