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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.34 no.86 São Paulo  2014

 

Teorias, pesquisas e estudos de casos

 

 

Cuidar, rezar, falar: o soropositivo, memórias e religiosidades

 

Caring, pray, talk: the HIV positive memories and religiousness

 

Cuidar, rezar, hablar: el seropositivo, memorias y religiosidad

 

 

José Henrique Lobato Vianna1

Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ)

 

 


RESUMO

Este trabalho discorre sobre a memória de pessoas marcadas pela crença religiosa e que convivem com HIV/AIDS. Parte do pressuposto de que práticas, saberes e vivências de cunho religioso atravessam as subjetividades, criando e fortalecendo comportamentos, colocando-nos em contato com experiências que demarcam esse território das relações sociais da contemporaneidade: a AIDS. Sob vários prismas, o caleidoscópio de possibilidades relacionais e discursivas, expressas nessas personagens, mostra o quão diverso é o existir e o viver com AIDS e as formas de representar esse viver. O texto pretende colocar face a face as várias significações acerca da memória e o que ela guarda em si mesma a respeito da AIDS, bem como das expressões da ordem do sagrado se apresentam no campo discursivo. Compreende-se que a AIDS, bem como as experiências de cunho religioso constroem uma teia relacional constituída por visões e expectativas distintas em vivências de um cotidiano comum. A AIDS constrói, desconstrói e reconstrói conceitos acerca dos afetos, da sexualidade, da noção vida/ morte, tanto no âmbito social quanto no religioso. O discurso de ordem religiosa tem seu peso no imaginário do portador de HIV/AIDS, como em qualquer outra pessoa, podendo ser ou não inibidor de ações e afetos. A pesquisa utiliza-se de fontes primárias e secundárias, enfatizando a necessidade de considerar outras práticas e saberes à racionalidade biomédica, introduzindo outros elementos de subjetividade ao processo e vivência do portador do HIV/AIDS que produz representações sociais complexas acerca da experiência que o mesmo experimenta em relação ao seu cotidiano.

Palavras-chave: subjetividades; HIV/AIDS; religiosidades.


ABSTRACT

This paper discusses the memory of people marked by religious belief and living with HIV/AIDS. It assumes that practices, knowledge and experiences of a religious nature cross the subjectivities, creating and strengthening behaviors, putting us in touch with this experience that demarcate this territory of contemporary social relations: AIDS. From several perspectives, the kaleidoscope of relational and discursive possibilities expressed in these characters, show how diverse it is living with AIDS and the ways to represent this living. The text aims to bring face to face the various meanings of memory and what it holds within itself regarding AIDS, as well as the expressions of a sacred order that occurs in the discursive field. It is understood that AIDS, as well as the experiences of a religious nature construct a relational web consisting of different views and expectations on the daily common experiences. AIDS builds, deconstructs and reconstructs concepts about emotions, sexuality, the notion of life / death, both in the social as in the religious contexts. The discourse of religious order has its weight in the imaginary of the person with HIV / AIDS, like any other person and may or may not inhibit actions and affections. The research makes use of primary and secondary sources, emphasizing the need to consider other practices and knowledge to biomedical rationality, introducing other elements of subjectivity to the process and day by day living of the person carrying the HIV /AIDS, that produces complex social representations about the experience that the persons experience in relation with their daily lives.

Keywords: subjectivities; HIV/AIDS; religiousness.


RESUMEN

En este trabajo se analiza la memoria de las personas marcadas por las creencias religiosas y que viven con VIH/ SIDA. Parte del presupuesto que prácticas, conocimientos y experiencias de tipo religioso, atraviesan las subjetividades, creando y fortaleciendo conductas, poniéndonos en contacto con experiencias que delimitan el territorio de las relaciones sociales contemporáneas: el SIDA. Desde varias perspectivas, el caleidoscopio de posibilidades relacionales y discursivas expresadas en estos personajes, muestran cuán diverso es el existir y vivir con SIDA y las maneras de representar ese vivir. El texto tiene como objetivo poner cara a cara sobre los diversos significados de la memoria y lo que esta guarda sobre el SIDA, así como las expresiones de orden religioso que aparecen en el campo discursivo. Se entiende que el SIDA, así como las experiencias de tipo religiosas construyen una red constituida por puntos de vista y expectativas diferentes sobre algunas experiencias cotidianas. El SIDA construye, deconstruye y reconstruye conceptos acerca de las emociones, la sexualidad, la noción de vida/muerte, tanto en lo social como en el religioso. El discurso de tipo religioso, tiene su peso en el imaginario del portador de VIH/SIDA, como en cualquier otra persona y pudiendo ser o no inhibidor de acciones y afectos. La investigación utiliza las fuentes primarias y secundarias, haciendo hincapié en la necesidad de considerar otras prácticas y conocimientos a la racionalidad biomédica, introduciendo otros elementos de la subjetividad en el proceso y la experiencia del portador de VIH/SIDA que produce complejas representaciones sociales sobre las experiencias que este experiencia en relación a su cotidianidad.

Palabras-clave: subjetividad; VHI/SIDA; religiosidad.


 

 

Introdução

Imagens, símbolos e mitos, segundo Eliade (1952/1996), correspondem à necessidade de revelar as mais secretas instâncias do ser. No que tange ao ideário de cunho religioso de pessoas portadoras do HIV (vírus da imunodeficiência humana) / AIDS (síndrome da imunodeficiência adquirida), onde marcas simbólicas constituem discursos e alicerçam comportamentos, isso se apresenta com suas peculiaridades. O texto de Eliade (1952/ 1996) nos apresenta a ideia de que cabe ao produtor do conhecimento um modo de compreensão e interpretação que supere o nível mais simples de repetição do fato observado. Entende ele que cabe ao analista desbravar os sentidos destes enunciados.

O uso do discurso se justifica neste estudo. Segundo Moraes (2000), o discurso é produto de uma perspectiva sobre o mundo e, portanto, uma escolha. Trata-se de uma relação que se constitui e exige outro dotado de uma perspectiva semelhante. O discurso é um percurso que se produz no esforço de se atribuir sentidos e fazê-los hegemônicos socialmente, pois ele é sempre uma representação que depende e se constitui a partir das visões de mundo, do lugar no mundo, da forma de entendimento do mundo, por parte daquele que o produz e do receptor envolvido. Um discurso é um estar no mundo, um mundo de tensões e diferenças, que reinventa o mundo e as relações, portanto, reinventa as lutas e tensões.

Algumas considerações surgem acerca dessas tensões, tais como: poderiam ser as reminiscências religiosas presentes nos discursos, repletas de simbologia, ajudar as pessoas portadoras do HIV/AIDS em termos de positivação para a vida ou seriam elas pontos chaves de cerceamento dos afetos? Como a memória, passível aos símbolos, imagens e mitos e atravessada por representações, constitui e/ou constrói respostas ao viver com o HIV/AIDS?

Ao longo de onze anos (1996-2007), na participação do projeto de voluntariado intitulado Banco de Horas, constatamos quantas são as variações, no plano discursivo, daqueles que se encontram e se referenciam no grupo de pessoas soroconvertidas. Tal projeto era constituído por profissionais de saúde mental, de vários municípios do Estado do Rio de Janeiro, que desde outubro de 1993, atuavam de forma gratuita, em seus consultórios particulares, atendendo a pessoas portadoras do HIV/ AIDS e a seus companheiros (as) ou parentes.

De tal encontro resultou a ampliação desse universo de significados para o contexto acadêmico, baseando-se nas ideias de Vianna (2002), local propício a outras construções dialógicas, onde a discussão acerca do HIV/AIDS e a religiosidade tomaram maiores proporções. A relevância reconhecida em contextualizar tais discussões foi destacada, mas como tratar de temas tão complexos sem cair na "tentação" de privilegiar mais a um do que a outro? AIDS e religião poderiam ter o mesmo destaque ético no embate discursivo?

Nesse espaço, que propicia a escuta, pudemos estar próximos a expressões de afeto, como expunha, anteriormente, Spinoza (1676/1979) que entendia que o corpo humano podia ser afetado de várias maneiras pelas quais a potência de agir é aumentada ou diminuída, bem como as ideias dessa afecção. Em nosso percurso não ouvíamos apenas falas onde meramente a questão do HIV aparecia, outras inquietações surgiam trazendo reflexões pessoais acerca do existir, como por exemplo, as de ordem religiosa. Destes encontros surgiram também novos afetos representados nos textos produzidos acerca do mito bíblico de Jó e sua correlação com o advento da AIDS (Vianna, 2003a), bem como os encontros e desencontros entre a AIDS e o discurso religioso a partir da memória (Vianna, 2003b).

Entendemos que o social, o individual, o científico, o assistencial e o religioso, quando articulados ou combinados, segundo estratégias ou conjunturas, produzem uma nova situação para aqueles que participam deste encontro. Dimensões distintas se articulam produzindo novos sentidos e possibilidades.

A AIDS e as religiosidades se territorializando nos campos das subjetividades

Na inter-relação de forças, o sagrado e o profano emergiam demarcando territórios, como apropriação de subjetividades, trazendo em si símbolos, imagens, leis. A subjetividade então, será constituída pelo conjunto dos projetos e das representações nos quais vai desembocar pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos (Guattari & Rolnik, 1986, pp 323).

O sagrado, segundo Berger (1967 / 1990), se estabelece a partir da qualidade de um poder misterioso e temeroso, distinto do homem, mas relacionado a ele a partir de certos objetos da experiência. Para ele, tais objetos têm as mais distintas configurações simbólicas, podendo ser tanto um animal ou um ser humano, naturais ou artificiais, como pedras ou alimentos. Seria algo onde o cosmos sagrado transcende e inclui o homem, dotando-o de significados. O profano estaria relacionado a todos os fenômenos cuja presença, se estabelece pela ausência do caráter sagrado, sendo o antônimo deste último. Como num caleidoscópio onde as figuras se arrumam e rearrumam criando novas formas a partir da perspectiva do observador, tais expressões discursivas, apareciam trazendo em si afetos, sentimentos e ações que identificavam suas ideias acerca da vida e do existir.

A figura do divino era mais uma das expressões que se apresentavam nos portadores do HIV/AIDS estruturando discursos. Ora surgia como a ideia de um ser que castigava e os fazia padecer, por meio de uma doença incurável, pelos "excessos" cometidos em suas vidas, ora surgia como uma imagem cálida, que confortava e acolhia a todos indiscriminadamente e incondicionalmente. Verificamos que eles apresentavam dúvidas das mais diversas ordens. A diferença discursiva se mostrava clara, aparecendo, por exemplo, em falas temerosas da solidão, receosas das doenças oportunistas e suas consequências, ou meramente em falas que expressavam o desejo de engravidar e perpetuar a sua existência num outro ser. O HIV/AIDS os atravessava, pondo-os num grupo de iguais, mas suas diferenças se manifestavam das mais variadas formas. Cada qual trazia seu próprio entendimento a respeito do contágio e suas implicações, bem como a partir de suas experiências, teciam comentários distintos acerca da crença religiosa.

Os comportamentos, perante o viver com AIDS, apresentavam diferenças; as representações, acerca do vírus, tinham significados distintos. Alguns conseguiam repelir as ideias atravessadas pelo preconceito e desinformação; já outros sucumbiam a elas, imobilizando-se para a vida.

Neste texto, nos valemos de autores que se estruturam no conceito de memória como potência vitalista, isto é, resistência criadora, para a construção textual, para falar de territórios onde o social e o coletivo permeiem as reentrâncias da memória. Entendemos, como Guattari (1986), que a subjetividade se constitui a partir da sua fabricação e modelagem no registro do social. Portanto, a memória individual é algo forjado num contexto social, modelando, fabricando, construindo imagens, mitos e crenças.

A construção do discurso de ordem religiosa também participa dessa modelagem e fabricação de subjetividades. John Bowker (2000), estudioso das religiões, diz que elas se firmam por meio das narrativas, onde a informação é colocada em palavras, liturgias, festivais e peregrinações. Para o autor, as religiões fazem parte dos contos que as pessoas aprendem e traduzem, segundo a biografia pessoal, produzindo textos, recriando histórias, afirmando a existência do homem. Como outras histórias, que se firmam por meio da tradição oral e escrita, a religião traz, em si mesma, representações que traduzem a ideia de um grupo, a construção de uma história, a memória de uma sociedade.

 

O conceito de memória na construção de discursos

Etimologicamente o conceito de memória é definido como: lembrança, reminiscência. Cunha (1997) comenta que sua origem é latina, de memor – oris, ou o que se lembra, e na mitologia Mnemósina, do grego Mnemosyne, vem associada ao verbo (mimnéskein) 'lembrar-se de'. No entendimento de Brandão (1996), Mnemósina representaria a personificação da Memória, amada pela divindade suprema da cultura indo-europeia, personificada em Zeus, cujo nome significava "o deus luminoso do céu", bem como ela simbolizava a mãe das nove Musas.

Brandão (1996) salienta ainda que na língua grega o vocábulo Musa se relaciona a algo que fixa o espírito a uma ideia ou à arte. Quais são então as filhas de Mnemósina e quais atributos personificam? O autor nos apresenta Calíope e sua maestria poética; Clio, a dama da história; Polímnia, espetacular em sua retórica; Euterpe e a sensibilidade musical; Terpsícore, bela dançarina; Érato e sua lírica coral; Melpômene e a dor da tragédia; Talia e a alegria da comédia; Urânia e o seu debruçar aos astros celestiais. Cada qual compondo esse universo simbólico, que incide diretamente na memória.

Tal relação constitui, numa narrativa mítica, um ideário, que prevaleceu por muito tempo, para esses povos, como ponto central da devoção às divindades. Na narrativa a "memória" está próxima de "deus". Poderíamos atinar que, a partir daí, vem uma das primeiras expressões em que o ser divinal se expõe "entranhado" na memória? Ou ainda que na própria memória pudessem existir ideias ligadas à existência de um ser da transcendência? A memória "grávida" de uma arte, de uma ideia ou mesmo de um deus? Como poderiam se dar essas construções?

Outros autores podem transitar de forma dialógica por esses territórios seletos da memória, no intuito de ajudar a entender melhor suas reentrâncias. O termo dialogismo, forjado por Bakhtin (1992), expressa a ideia, no campo dos discursos, de um procedimento em que acontecem novas interpretações, na medida em que o texto é escrito, da própria construção discursiva. Como num caleidoscópio, o discurso se rearranja e se configura a partir das tessituras do enredo.

Dymetman (1996) em seus estudos tece considerações acerca do entendimento da memória em Platão e Aristóteles. Diz ela que com esses autores acontece, parcialmente, a laicização da memória. Na leitura de Platão, a memória mesmo fazendo parte da alma, perde seu aspecto mítico, pois sua manifestação se dava ao nível do sensível, não procurando fazer do passado um acontecimento. Dymetman (1996) cita que em Platão a ideia de reminiscência está ligada à lembrança do que foi contemplado pela alma, numa vida anterior, quando a memória, ao lado dos deuses, teria visão direta das ideias.

Já em Aristóteles, a faculdade voluntária de evocar o passado se inscreveria num registro temporal, tempo esse que permaneceria rebelde à inteligibilidade. Segundo a autora, é com a laicização da memória que surgem as mnemotécnicas ou memórias artificiais, onde se constituem como lugares de memória, e considera que é na Idade Média que essa e as mnemotécnicas se cristianizam, onde surgem a memória litúrgica e a memória dos santos e dos mortos, bem como a memória no ensino e os tratados de memória (arts memoriae).

Para ela, o judaísmo e o cristianismo, são religiões que referendam o recordar, fato que pode ser encontrado no livro bíblico do Deuteronômio, onde a memória é vista como reconhecimento de Deus e fundadora da identidade judaica, e mesmo na passagem da Última Ceia como ato que funda a redenção na lembrança de Jesus de Nazaré, ou seja, o retorno à escatologia, doutrina essa que se volta para a ideia da consumação do tempo e da história, ou "tratado sobre os fins últimos do homem" (Ferreira, 1988, pp 262).

Outro autor que apresenta os embates acerca da vida foi Santo Agostinho, filósofo do século IV, que em suas Confissões (398 / 1984), traz suas inquietações em relação ao homem e o seu existir. Em 387, Agostinho escreveu o livro sobre a imortalidade do espírito e em 388 De quantitate animae, que surgiria como obra filosófica e, que pela luz da fé, traz a ideia da potencialidade da alma como estruturante de seu discurso. Sua filosofia percorria os caminhos da fé, constituindo o pensamento acerca da natureza da alma. Para ele, alma (em grego psyché e em latim animus) ou espírito (em grego pneuma e em latim spiritus) foram analisados sob dois aspectos: como princípio de vida e de animação (animus) e como substância própria e imaterial (spiritus), a alma com uma natureza própria, se distinguindo da natureza da matéria.

Agostinho aponta para a imaterialidade do espírito e essas questões fortalecem sua busca a algo que o instiga desde seus primeiros constructos, a definição do que vem a ser a Verdade. Para ele, a imagem divina estaria gravada na alma como uma verdade marcando "imortalmente na imortalidade do espírito" (1984, pp 16 ), sendo que, em seu entendimento, a origem da alma é Deus.

A inquietação agostiniana e sua busca por respostas remete à angústia humana perante a própria existência. Os símbolos, imagens, crenças acerca de um ser divino perpassa subjetividades há milhares de séculos, demarcando territórios, estruturando discursos. Ultrapassar os limites da memória, como diz Agostinho, soa como desejo de desvendar um mistério, ou melhor, o maior enigma existencial, que é a própria vida.

A busca de respostas para questões existenciais leva milhares de pessoas a recorrerem às teorias, aos conhecimentos e saberes que disponham de argumentos que reiterem ou tragam luz às inquietações do viver. O campo religioso, como um desses possíveis saberes, tenta criar mais um discurso que abasteça o conhecimento acerca da existência. Em Agostinho o que se dá é uma luta contra os limites do memorizar. Ele refuta qualquer possibilidade do "esquecer" de Deus. Seu anseio é que Ele permaneça presente, continuamente, em suas representações.

Já em Matéria e Memória, o filósofo francês, judeu, Henri Bergson (1896/ 1999) traça seu estudo a partir da relação do espírito com o corpo. Para ele, a lembrança é a interseção entre espírito e corpo (ou espírito e matéria) e questiona o modelo dualista, cujo ideário passa pelo lema: corpo versus mente, e em cujo pensamento tal expressão dualista se apresenta na medida em que a imagem do corpo se separa da imagem do mundo, refletindo-a, representando-a. Seus apontamentos se estruturam a partir do duelo contra o mecanicismo cartesiano e newtoniano, bem como o positivismo cientificista. Seu pensamento se opunha ao discurso filosófico onde havia a predominância da matéria.

Para o autor, a matéria se constitui pelo conjunto de imagens, ou seja, ela é tudo aquilo que existe, inclusive o próprio corpo. O corpo é um condutor, segundo Bergson (1896 / 1999), que se encarrega de recolher os movimentos e se designa a transmiti-los, quando não os retém Com o pensamento de Agostinho, confrontamos a força simbólica que atravessa as representações de cunho religioso. Buscar respostas que elucidem os enigmas da existência humana via religião, surge como mais uma possibilidade de existência, de ressignificação da própria vida. Outros significados podem surgir a partir do momento em que a crença religiosa adentra o território subjetivo. O saber religioso, como qualquer outro, pode validar ou invalidar corpos e mentes. Seu poderio transforma almas e reconstrói ideias e ideais. A ideologia que perpassa o campo do saber direciona mentalidades, e a religião não passa incólume a isso, pois também sendo um saber, deixa impresso na memória, na cultura, considerações que direcionam seus seguidores e a rede social na qual transitam.

O discurso religioso, constituído de mitos, símbolos e imagens revela, também, a necessidade humana de dar sentido ao existir. Tais imagens se estruturam de forma multivalente, manifestando-se de modo contraditório, num exercício contínuo de lembranças e esquecimentos, construindo memória. A imagem enquanto conjunto de significações, como aponta Eliade (1996), e não meramente como tendo um único significado, é que desponta, sendo ela utilizada pelo espírito no sentido de captar a realidade profunda das coisas, onde tal realidade é expressa de maneira paradoxal, multivalente.

Há certos mecanismos motores, sendo estes determinados, caso a ação seja reflexa, e escolhidos, caso ela seja voluntária. Para ele, a percepção estaria fora do corpo, enquanto a afecção não. O corpo faz parte do sistema de imagens que ele denominou mundo material, em torno do qual se encontram as representações, onde são produzidas as afecções, ou seja, aquilo que ele identifica como as impurezas que se misturam nas imagens dos corpos exteriores, daquilo que a percepção capta para se aproximar da fidedignidade da imagem.

A dualidade, entre espírito e matéria, surge pela força dos contrários. Bergson (1896 / 1999) vê nessa força uma mudança sem precedentes, pois acontece em prol da ação do conhecimento, do movimento dos corpos, do tempo e da energia vital, acarretando a evolução de tudo e de todos. A sua concepção de memória é vitalista e sua perspectiva se volta para a evolução, de forma diferenciada da ideia de Darwin acerca da evolução das espécies. O tempo, para ele, é vida e evolução e sendo assim, a memória é capaz de criar e evoluir.

Em Bergson (1896 / 1999) a noção de memória é atravessada pelo tempo e pelo conhecimento. Neste sentido, o tempo é percebido como psicológico e sua origem é metafísica e ontológica. A ideia de espaço aparece como possibilidade dos espaços psicológicos dos estados mentais e seu esforço é contra o determinismo físico sobre o espírito. Ele minimiza o conceito materialista, que tampona a metodologia espiritualista, visto que seu objetivo é afirmar o pensamento empírico, matemático. Em seu entendimento tais afirmações se expõem como simulacros das subjetividades humanas, estas sim, vistas por ele, como verdadeiras objetividades capazes de lidar com a singularidade do tempo interno. Apresenta ainda, a ideia do tempo como memória criadora, onde matéria e espírito se coadunam, em contraponto a Santo Agostinho que entendia que os corpos só podiam se mover no tempo.

Na leitura agostiniana, o tempo seria uma extensão da própria alma, sendo que é no espírito que se constituiria a sua medição. Por essa perspectiva o que se expressa é o entendimento de que não existe tempo algum antes da criação. Agostinho afirma que o "eterno Criador", está presente antes de todos os tempos, nenhum tempo seria coeterno a Ele. Haveria um Criador eterno das almas, que as constitui e as potencializa em espírito, em memória.

Bergson e Agostinho se aproximam ao trazerem a importância da memória/ espírito/alma na construção subjetiva, que por sua vez determina afetos, discursos, ações. Potência essa que cria e recria narrativas no grupo social. Ao percorrer outros autores vemos o quanto às questões da ordem do "espírito", das construções subjetivas, incidem na matéria, no corpo, afirmando e sustentando comportamentos.

 

Docilização de corpos: AIDS e religiosidades

No caso específico da soroconversão muito se é dito em relação ao comportamento, principalmente, no que tange ao aspecto sexual. Com o passar do tempo, o entendimento acerca da AIDS foi tomando outros sentidos além daquele associado a doença dos gays, porém, isso ainda tem sua força no campo dos discursos, tendo em vista a própria construção social em relação as sexualidades.

Costa (1992) fazendo todo um apanhado histórico acerca do homoerotismo aponta para o construto da ideia de anormalidade, como algo estabelecido no sentido do desvio dos padrões sexuais vigentes. Ele percorre territórios onde se constroem as interpretações da moral sexual civilizada que orienta e afirma as condutas dos afetos, como por exemplo, a encontrada na construção literária de Richard von Kraft-Ebing e sua Psychopathia sexualis, de 1886, e seus comentários acerca dos "desvios" sexuais. Costa (1992) cita que esse autor tinha como herança aspectos teóricos pinçados das correntes positivistas naturalistas do século XIX, tais como o instintivismo, o evolucionismo, o psicofisicalismo, dentre outras, que se estruturavam sob as noções de norma e de desvio naturais. Kraft- Ebing passou a classificar e arquivar aberrações, degenerações, anormalidades e anomalias sexuais que embasavam suas teorias sob um duplo eixo semântico: da linha do prazer e da linha de reprodução.

O corpo sendo marcado por leis, dogmas e preceitos, onde as noções de conduta deviam se homologar dando o sentido de normatização e docilização do mesmo. Costa (1992) apresenta uma consideração teórica que demarca o território da sexualidade, sendo esse um campo fértil para construções discursivas da moral e da ética. Traz a ideia de que é no corpo, por meio dos registros impressos nele, que se alojam as regras sexuais, produzindo fontes de controle, que amoldam os desejos e determinam os comportamentos. Controlar a sexualidade, é controlar as paixões, é controlar as memórias desejantes. Criar teorias que apontassem para o cumprimento normal da sexualidade, norteou estudiosos que produziram conceitos acerca de tal tema. O autor observa que a necessidade de catalogar e dar nomes aos atos da ordem do corpo, do sexo, fez crescer uma vasta literatura que determinou o certo e o errado em temos dos afetos. Como um exemplo disso, podem ser observadas as construções discursivas acerca da AIDS.

Ela vem marcada com uma carga de conotação sexual muito intensa, pois os primeiros casos foram associados à contaminação via contato sexual. As pessoas foram levadas a associá-la aos castigos divinos, devido aos supostos desvios sexuais, em particular dos homossexuais, que seriam desviantes, amorais e anormais, visto não se enquadrarem nos moldes "kraft-ebingnianos" de procriação e reprodução da espécie, propalados pelos conceitos morais que regem importantes espaços sociais. Trata-se de um estigma que tais corpos "devem" carregar. Além de levarem um vírus em seu interior, tais pessoas, por vezes, podem levar outro em seu exterior. O "vírus" que o preconceito tenta impor pode vir a ser muito mais cruel do que a própria contaminação.

Já Goffman (1988) diz que os gregos tinham uma relação próxima com o termo estigma, devido ao fato de marcarem com sinais visuais determinados corpos, para deixarem registrados sob a pele a memória de um êxito ou de uma derrota. Os sinais eram feitos com cortes ou fogo no corpo e estabeleciam a condição do portador do estigma, podendo ele ser distinguido como um escravo, um criminoso ou um traidor. Era tido como pessoa poluída, marcada, via todo um ritual de exposição, devendo ser evitado nos espaços públicos. No período em que o cristianismo assume um papel preponderante nas esferas sociais, as representações se dão por meio de dois níveis metafóricos: o primeiro refere-se aos sinais corporais da ordem da graça divina que apareciam em flores em erupção sobre a pele, o segundo nível surge como expressão médica a essa alusão religiosa, referindo-se aos sinais corpóreos oriundos de distúrbios físicos.

Nos corpos, os registros da diferença se apresentam quando são estigmatizados. Aquilo que destoa já não pertence mais à ordem dos "normais". O estigma, então, no nível das representações, torna-se um modo de agir ligado ao preconceito. Há uma apropriação desse território, por vezes, transformando-o num lugar estéril, infecundo de significados. Ideias como, por exemplo, "estar velho, é não servir para mais nada", ou ainda "estar com AIDS é igual a contaminar todo mundo com um abraço", se encaixaram nos ditames sociais na tentativa de jogar tais atores para um campo de sombras, para o esquecimento. Por meio dos sinais, dos signos impressos no corpo, se formam construções simbólicas que instituem o castigo e o "aprisionamento" da matéria ao espírito, à memória.

A memória como existência nos é apresentada toda vez que a voz embargada, silenciada, desapropriada dos desejos rompe as amarras, saindo dos lugares de penumbra, trazendo a lembrança da vida. Acima de qualquer coisa, se deve viver. Herbert Daniel (1994) descreveu esta relação de uma memória vitalista:

Anunciaram a minha morte, nomeando-a com uma sigla de quatro letras que não são as da palavra amor. São as letras da palavra dias: Estes, que vivemos, ou aos quais sobrevivemos. Não quero esses dias, não aceito essa morte anunciada. AIDS é só uma doença desses nossos dias, uma qualquer, não aceito que façam dela sinônimo do último dia. Ela nada mais significa senão uma infecção por um vírus que causa uma epidemia que vamos vencer. Com todas as letras do amor: s-o-l-i-d-a-r-i-e-d-a-d-e (1994, pp. 23).

Daniel (1994) demonstrava a existência de um discurso que associava a AIDS ao término da vida, pois:

Toda uma linha do ativismo da AIDS se gerou precisamente para contestar a equação 'AIDS = morte', propondo em seu lugar, os slogans 'silêncio = morte' e 'ação = vida'. (Parker, 1994, pp 32).

Desconstruir discursos paralisantes determinou ações dos grupos ativistas, em relação ao que se entendia e se dizia acerca do HIV/ AIDS logo nos primórdios dessa manifestação em que a sociedade se viu tomada pela dúvida e preconceito. A ideia de "estar com AIDS era estar com a morte ao lado", como se esta não fosse tão próxima da vida, e desse modo todos os seres humanos viventes, dela não se aproximassem. A ideia de morte passaria a ter outras abordagens, não mais vinculadas, por exemplo, às questões de punição. Os registros na memória estariam associados a percepções mais brandas e mais passíveis de compreensão. A morte é algo inerente à vida, nada mais do que isso.

O corpo, território propício a "arquivar" discursos e afetos, pode ser inscrito das mais variadas formas pelas leis que atravessam o contexto social. Território fecundo de discursos, a matéria, o corpo, armazena conceitos que estipulam ações. As imagens que instituem comportamentos estão sob o crivo do espírito, da memória, seja na ordem do indivíduo em sua própria singularidade, seja na esfera grupal. Para falar dessa particularidade pessoal acerca da singularização, trazemos à cena Guattari e Rolnik (1986) que a veem como o:

"modo pelo qual os indivíduos vivem sua subjetividade, oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes de subjetividade" (Guattari & Rolnik: 1986, pp 33).

Consideramos então, as imagens como registros que se armazenam na memória produzindo lembranças, nesse processo de criação e reapropriação das forças subjetivas.

Quanto ao corpo, o mesmo pode ser entendido como começo e comando de um tempo da lei: como princípio da natureza ou da história, que apresenta sua própria constituição física, histórica e ontológica, onde o ser se constrói na sua integralidade.

Como princípio da lei, tal tempo estabelece discursos que determinam a ordem. Força discursiva que põe o sujeito perante o desejo de outrem, de uma autoridade alheia a sua vontade, que determina o que deve fazer e desejar.

Em se tratando das marcas registradas nos corpos por meio da afirmação da lei, Clastres (1988) comenta como a sociedade dita a sua lei a todos os seus membros e inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos. Marca que representa a esse não esquecimento da norma e que serve de fundamento à vida social. A partir dessa formulação, ele aponta para uma forma ordenada de obedecer aos desígnios da lei. Os membros do universo social são amoldados de forma que mantenham, sob os auspícios da ordem, o texto da lei.

São corpos e mentes, matéria e memória, fabricados e modelados de maneira que a manutenção da ordem se estabeleça de forma igualitária. Pensar a diferença, em tal território, é polemizar. A AIDS, bem como as religiosidades, em si mesmas, remetem a campos onde os registros são expressos por vários materiais. Suas inscrições fomentam sensações que vão desde o desamparo total, "geradora de angústia" (Laplanche & Pontalis, 1967, pp 156) até o acolhimento irrestrito, o que nos remete a redefinições em relação ao morrer e ao viver, ou mesmo ao crer e ao descrer, por exemplo. Os corpos de pessoas soropositivas são marcas de uma lei, onde suas singularidades podem ser percebidas como registros de conceitos, fontes de criação de memórias vitalistas.

O corpo está sujeito aos mandos e desmandos da ordem social, onde absorve regras, normas e dogmas, como, por exemplo, os de cunho religioso que trazem consigo preceitos e diretrizes, afirmando o que pode e o que não pode fazer caso abracem determinadas crenças. Para se verem "acolhidos" os corpos devem se submeter aos crivos da lei; devem arquivar condutas, ideias, discursos. Começo e comando se misturam, constituindo e formatando corpos "dóceis", propensos a aceitar qualquer mando. A matéria como uma guardiã da docilização, da subjugação, da ordem nos expõe o corpo como um espaço propício para esse tempo da lei.

Nas representações que percorreram séculos e séculos, sustentando ideias em detrimento de outras, nota-se o registro da ordem, da lei. A intolerância foi algo que configurou os espaços que demarcaram territórios dos chamados grupos das minorias, como os dos loucos ou dos soropositivos. A AIDS e as marcas que ela trouxe transformaram as impressões acerca de ideias pertinentes a saúde/ doença, sexualidade, vida/morte, enfim, em questões diretamente ligadas à ordem filosófica, ética, moral e estética, onde determinados espaços, dessa rede social, buscaram desconsiderar a construção desses processos.

O conviver com o HIV/AIDS, ou com qualquer outra possibilidade da diferença, pode vir a ser uma experiência próxima de comportamentos de intolerância e a sorologia passou a ser mais um dos estigmas construídos socialmente, que impuseram ao portador uma determinada marca, um sinal, que o nominava "escravo da doença", despossuído de direitos e desejos, mas sujeito a subordinação do status social.

Ricoeur (1995) fez um percurso acerca da questão da tolerância e da intolerância. Ele recorreu ao significado etimológico dos termos para discutir melhor os temas num contexto religioso e teológico. A ideia de tolerância estaria associada ao fato de tolerar alguma coisa, de não interditar ou exigir quando se poderia fazê-lo, sendo uma liberdade que resulta dessa abstenção, ou mesmo uma atitude que consiste em admitir no outro uma maneira de pensar ou agir diferente da que pessoalmente se adota. Já a intolerância seria a tendência a não suportar, a condenar o que desagrada nas opiniões ou na conduta do outro. Ambas se desenvolveriam sob o bastão dos pensadores laicos.

Tal autor distingue como cultura leiga aquela contrária ao pensamento católico e que traz seu pensamento divergente dos dogmas da Igreja, instituição, até então, compreendida como potência dominante e que se concebia como um poder de intervenção no plano institucional e como um magistério exercido sobre os saberes, as práticas e as consciências (Ricoeur, 1990, pp 182). A época das Luzes cria uma cultura secular independente da tutela eclesiástica, fato esse propiciador para o desenvolvimento da ciência.

Mas independentemente das intolerâncias e patrulhamentos, pensar as possíveis contribuições que a religiosidade pode trazer às pessoas acometidas por algum tipo de sofrimento físico ou psíquico torna-se algo que enfatizamos. Como pensar a respeito disso quando destacamos o cuidado em relação à saúde como ponto preponderante ao existir do ser humano?

Mais do que um "efeito placebo", a religiosidade se tornava mais um saber que atravessava as teias da rede social, podendo, inclusive, alterar comportamentos. Valla (2000) sustenta, a partir da teoria do apoio social, que o sentido de pertencer, desenvolvido nas pessoas de comunidades religiosas, pode modificar comportamentos, alicerçando-se não só nos códigos de conduta que as religiões em si direcionam, mas também na própria rede de relações que se forma.

Esse apoio é definido como sendo "qualquer informação, falada ou não, e/ ou auxílio material, oferecidos por grupos e/ou pessoas que se conhecem, que resultam em efeitos emocionais e/ou comportamentais positivos" (Valla, 2000, pp. 41). Tal conceito se apresenta por meio da reciprocidade, pois os efeitos positivos podem ser tanto para quem os emite quanto para quem os recebe, dando o sentido de que as pessoas sempre dependem umas das outras. O ser religioso pode vir a criar mecanismos de sobrevivência perante aquilo que o atemoriza, a partir de um olhar de fervor e credulidade próximo ao ser da transcendência, do divino, do luminoso.

Do latim cogitare, a ideia de cuidar tem em sua etimologia os seguintes significados "cogitar, imaginar, pensar; tratar de, dar atenção a; cuidado com a saúde de, curar" (Cunha, 1997, pp 232).

Imaginar uma certa memória do cuidado trouxe à cena várias considerações, lembranças, reminiscências de possibilidades, exteriores ou interiores, em que o tratar se vislumbra. Tratar de uma ferida que se faz ao cair de um carrinho, isso se temos um bebê que carece de tal olhar, ou de algum tipo de ferimento mais grave que a própria situação assim imponha, são possibilidades de um cuidado. Quando o tema AIDS se transforma em evidência no processo de subjetivação, o lidar e o cuidar daqueles que se veem "padecendo" de uma enfermidade que aparece com mais destaque; cuidado esse tanto da ordem terapêutica, quanto da afetividade.

 

Uma palavra no horizonte: so-li-da-ri-e-da-de

Como mais um potencializador desse cuidado, Parker (1994) nos aponta para o conceito de solidariedade ligada fundamentalmente à percepção da diferença. Solidariedade entendida aqui como "a capacidade humana de entender e nos identificar com a dor e sofrimento dos outros, apesar de tudo que pode diferenciá-los de nós" (1994, pp 19). Ele sustenta, também, que a solidariedade tem sido talvez a arma mais poderosa e eficaz contra a AIDS, pois uma política da solidariedade teria emergido, sobretudo das diversas comunidades afetadas pela epidemia, bem como das organizações e associações baseadas nestes grupos. Segundo ele, a construção dessa troca de afetos teria por base a compreensão de que o sofrimento das pessoas com HIV ou AIDS faz parte do sofrimento de todos, pois a opressão social, cultural, econômica e política dos grupos mais vulneráveis em face da epidemia, na verdade, faz parte de uma opressão maior expressa em todos os homens. O cuidado perpassado pelo olhar da solidariedade.

Essa possibilidade de afeto, segundo esse autor, constrói outros significados para aqueles que convivem com o vírus: uma memória que amplia a resistência e aumenta a autoestima, uma aproximação, como diz Bergson, entre corpo e espírito, não só da ordem metafísica, mas também na relação com o outro, com a alteridade, que também é corpo e espírito.

Compreender que um soropositivo sofre não só a ação do vírus, mas também do preconceito, da opressão, faz pôr em contato com uma esfera mais abrangente ao nível sócio-cultural-econômico e político, como sugere Parker. São construções discursivas que remetem ao preconceito, mas também, são elas que podem apresentar outros olhares perante o soropositivo. Uma ideia que ganhou força em alguns lugares como, por exemplo, nos EUA, devido à crise da saúde pública daquele país, foi o que chamaram de apoio social, já descrito anteriormente.

Valla (1999) expõe o apoio social como mais uma proposta para os cuidados com a saúde, visto que o modelo biomédico não responde a todos os anseios da rede social. A categoria de apoio social se baseia na reciprocidade entre os grupos e/ou pessoas que interagem mutuamente, resultando em efeitos emocionais e/ou comportamentos positivos. Este fato faz com que as pessoas aprendam que todos necessitam uns dos outros, uma proposta próxima ao que se pode chamar: solidariedade.

Diz também que uma das premissas principais dessa base teórica está na ideia de que o apoio social exerce efeitos diretos sobre o sistema de imunidade do corpo, no intuito de aumentar a capacidade direta das pessoas lidarem com o estresse. Ao participarem dos grupos, as pessoas criam possibilidades de resistência perante a dor, o sofrimento, a doença. Viver em comum-unidade pode vir a ajudar na construção da confiança perante aquilo que os atemoriza. Tal abordagem acredita que a participação em tais espaços ajuda a reforçar a defesa do sistema imunológico do corpo, tornando-o mais resistente às suscetibilidades da doença.

O apoio social pode então ser caracterizado como uma forma de cuidar e o espaço comunitário demarca o território. As ações são estabelecidas, via de regra, no embate com o outro. Isso aponta para uma nova possibilidade de construção solidária, num universo cada vez mais marcado pela indiferença e individualismo.

O cuidado com o corpo, com a matéria, tem diferentes significados. Dependendo de qual espaço o sujeito está inserido o olhar perante o corpo terá significações específicas. Boltanski (1971 / 1989) faz uma análise acerca das representações sociais que atravessam subjetividades em relação aos cuidados com o corpo. As classes populares têm no corpo, um instrumento de trabalho, subordinado às funções que se esperam dele. A doença se estabelece de forma brutal, visto que, como não prestavam atenção ao corpo, o sentido que dão é de um acidente súbito e imprevisível. Os membros das classes superiores têm uma percepção aguçada das mensagens que o corpo manifesta. A doença para eles tem uma história: um começo, uma evolução, um fim. Lidam com o fato de maneira que não sugerem uma diferença tão definida entre o estado de saúde e o estado de doença.

O olhar para a doença, segundo Boltanski (1971 / 1989), tem suas peculiaridades. Para a população menos favorecida, social, cultural e economicamente, os cuidados com o corpo têm uma dimensão utilitarista, visto que o corpo é força motriz de trabalho. Os cuidados são de outra ordem, sendo assim, poder-se-ia levar isso em conta quando há crescimento de casos de AIDS nesses segmentos populacionais. Um espaço propício para o alastramento da AIDS é criado, visto que o cuidar tem outra função. Enquanto nas classes média e alta, a taxa de contaminação vem diminuindo, na classe baixa vem ocorrendo o inverso já há um bom tempo, pois aumenta o número de infectados. O que num primeiro momento foi associado a uma doença de ricos, agora toma cada vez mais forte outros territórios. O corpo maltratado, pelas diferenças sociais, seria no advento da AIDS, um espaço carregado de significações, onde a dor física e o sofrimento psíquico são expostos de forma clara e concisa.

Como contraponto a essa diferença tão acentuada nas construções de valores, cabe retomar a ideia de apoio social como atenuante a essa desigualdade de cuidado com o corpo nos mais diferentes campos sociais.

Desconstruindo os territórios discursivos de domesticação do corpo, sob efeito dos auspícios de especialistas, o apoio social revigora o potencial de autonomia do sujeito portador de qualquer doença. Na AIDS, percebe-se o quão válida é essa reapropriação do espaço corpóreo. Quanto mais uma pessoa tenha informação acerca de seu corpo, mais tem poder de negociação com quem o trata. Um número bem expressivo de soropositivos dialogam com seus terapeutas de forma consciente, ajudando-os nas resoluções do tratamento.

Ao percorrermos os saberes onde o tratar/cuidar é objeto de estudo, nos defrontamos com a pergunta filosófica: o que vem a ser um terapeuta?

Leloup (1997) nos põe em contato com o pensamento do filósofo judeu Fílon de Alexandria acerca dos Terapeutas. Fílon, contemporâneo de Jesus de Nazaré, apresenta considerações acerca do cuidado terapêutico e o significado que dava ao termo terapeuta podia ter dois sentidos: "servir, cuidar, render, culto" e "tratar, sarar". Tal terminologia, em grego, apresenta a oposição que aparece entre "therapeia (terapia), cuidar do ser, a iatrike (medicina), cuidar do próprio corpo" (Leloup, 1997, pp 35).

Para o filósofo, a oração pela saúde do outro também deveria ser apresentada, pois era a partir desta manifestação que se chamava sobre ele a presença e energia do Vivente, o único que poderia curar o enfermo de toda a doença. Em sua interpretação o terapeuta não cura, ele cuida, pois quem trata e cura é o Vivente. A presença do terapeuta seria para pôr o doente nas melhores condições possíveis para a atuação do Vivente que traz a cura.

Segundo Leloup (1997), Fílon estudava essas imagens que apareciam por meio dos sonhos, de forma mais precisa. Ele vigiava o imaginário e o imaginal, que se alimentavam das imagens mais estruturantes possíveis. Para Fílon, era nos livros sagrados que essas imagens podiam ser encontradas na forma mais pura.

O primeiro efeito terapêutico dos Terapeutas seria apontar para o homem a finalidade de seu desejo, e entendiam que o objeto do desejo seria o encontro do próprio O On (Ser), pois a fonte da infelicidade e doença do homem era o esquecimento, e o sofrimento advinha do recalque do desejo essencial do Ser. Para eles, a cura psíquica estaria ligada ao conhecimento metafísico; quando se perdia a consciência do Ser que É o homem adoecia.

Perdendo a memória, o homem perde-se a si mesmo. Mas o Terapeuta também era aquele que cuidava por meio da oração, visto que é disso que se estabelece uma religação ao Ser único.

Os Terapeutas, segundo Leloup (1997), dirigiam seus cuidados para os elementos quaternos: basar, soma, cuja representação significa a dimensão corporal; nephesh, a ideia de alma; nous, considerado como a consciência sem objeto e como a dimensão da "paz" psíquica e rouah, pneuma, ou o sopro, a dimensão espiritual; e as formas de cuidar não eram excludentes, pelo contrário, se somavam mutuamente.

Assim sendo, corpo, alma e espírito eram respeitados e consequentemente, tratados. Não havia superposição de valores entre corpo, alma e espírito; cada qual tinha sua distinção, sua natureza, interagindo de forma solidária em função do bem-estar do homem.

Em grego, a palavra saúde tem a mesma origem da palavra salvação: soteria. Segundo Leloup (1997), não existe saúde que não tenha ao mesmo tempo a salvação e as correlações entre tais elementos delineavam a forma como o homem era visto.

Já Boff (2000) conceitua isso de holismo, que no grego designa totalidade. O homem visto em sua totalidade, não havendo, portanto, separações entre parte orgânica e parte emocional ou espiritual.

 

Considerações finais

A partir de toda uma construção científica, o homem foi sendo analisado e estudado sob diversos saberes que muitas vezes o segmentaram, o repartiram em vários "membros". A criação das várias especialidades, onde cada qual tem um domínio, um controle das partes repartidas do corpo, demonstra a estruturação da apropriação dos espaços.

O território corpóreo será dominado pelos especialismos e deles dependerá para se manter enquanto campo de possibilidades. Como diz Valla (1999 e 2000), as propostas holistas e psicossomáticas receberam, no Ocidente, respostas não muito favoráveis a sua compreensão de totalidade do ser humano. O modelo que assumiu o controle máximo de cuidado com o corpo foi o dualista cartesiano. Corpo e mente, seriam vistos como espaços fronteiriços, mas isolados para "melhor compreensão" terapêutica. As possibilidades de cuidado com o corpo têm, nesse momento, um referencial pautado pelo saber do especialista, cabendo a ele o trato e manejo terapêutico.

A linguagem se alastra pelos territórios da medicina, dominando os espaços. O poder discursivo vem a afetar as subjetividades e a memória, força vital que age diretamente no corpo, na matéria, fazendo com que tais preceitos determinem ações onde o aprisionamento dos afetos pode ser percebido.

Numa cultura, onde o hedonismo é ponto central, a forma de lidar com o cuidado tem, em seu direcionamento, investimentos estruturados no culto ao corpo, na exaltação do belo, numa postura marcada pela individualização, cada vez mais intensificada, do ser humano. O poder se estrutura num contexto onde o cuidado se restringe ao individual; o que é coletivo passa ao longe. O discurso propalado em relação ao corpo, em tal modelo, se mostra excludente, segregacionista, remetendo ao "vale das sombras", ao campo do esquecimento, tudo o que não é "perfeito". O cuidado, nesse sentido, determina o espaço dos iguais, não aceitando a diferença. Quais são as possibilidades de que uma dada memória do cuidado pode trazer para a contemporaneidade nesses tempos de AIDS? O que ela possibilita ou não, em termos de mudanças para o coletivo?

Pensar em possibilidades onde a memória vitalista institui o cuidado, seja com o próprio corpo, seja com o do outro, nos permitiu percorrer caminhos em que o discurso religioso se apresentava como um de seus expoentes. Como a memória individual se constrói a partir de acontecimentos – reais, desejantes ou simbólicos – que forjam outros acontecimentos, percebemos a importância de expor passos, reminiscências acerca do encontro entre HIV/AIDS e crença religiosa. Encontrar esse outro, pensando como Clarice, por meio do amor, do cuidado ou mesmo da atenção, nos possibilita compreender nossa própria existência e pode nos tornar, parafraseando Friedrich Nietzsche, mais demasiadamente humanos, dependendo do caminho que escolhemos. Cabe então caminhar a esses encontros encarando e assumindo nossos próprios riscos...

 

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Recebido: 10/09/2013 / Corrigido: 16/10/2013 / Enviado ao Parecerista: 17/10/2013 / Aceito: 20/10/2013.

 

 

 

 

1 Psicólogo Clínico, Doutor em Psicologia Social pela UERJ e Mestre em Memória Social pela UNIRIO. Contato: Rua Uruguai, 318/701 – Tijuca – Rio de Janeiro. Brasil. E-mail: josehenriquelobato@uol.com.br

 

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