SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 número87A Entrevista Motivacional: conversas sobre mudançaComprovação empírica de uma medida psicológica sobre a percepção do suporte organizacional em trabalhadores de diferentes empresas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.34 no.87 São Paulo dez. 2014

 

Teorias, Pesquisas e Estudos de Casos

 

 

Infância e contextos de vulnerabilidade social – A atividade lúdica como recurso de intervenção nos cuidados em saúde

 

Childhood and Contexts of Social Vulnerability – The playful activity as a resource of intervention in health care

 

Los niños y los contextos de vulnerabilidad social - Una actividad lúdica como medio de intervención en la atención de la salud

 

 

Edda Bomtempo1; Mírian Ribeiro Conceição2

Universidade de São Paulo - USP

 

 


RESUMO

Este estudo nasce das inquietações da vivência prática das atividades lúdicas em um grupo de brincadeiras, como intervenção de promoção, prevenção da saúde e reabilitação, na Atenção Básica, desenvolvido em uma região de vulnerabilidade social, da cidade de São Paulo. Os questionamentos surgidos nesta atuação orientam os objetivos deste estudo, que visa detectar, por meio das atividades lúdicas, fatores que pudessem influenciar o desenvolvimento de crianças em situação de risco social, e entender de que forma o contexto, no qual os participantes estão inseridos, influencia este desenvolvimento e facilita propostas de intervenções de profissionais nas áreas da saúde e da educação, que utilizem como recurso as atividades lúdicas junto às crianças em situações de risco social. Para tal, utiliza-se de metodologia qualitativa, em observação participante de cinco crianças entre seis e dez anos, sendo criadas, para análise dos resultados, três categorias – o corpo, o encontro e o fazer - a fim de se obter discussões que contemplem a multiplicidade da coleta efetuada. Os resultados nos apresentam diferentes afetações e interrelações com atividades lúdicas, em especial as simbólicas e os contextos, aos quais pertencem. A brincadeira apresenta-se, então, como potente instrumento de cuidado no que tange à construção de vínculo e ressignificação dos contextos de vida das crianças, tornando-se, portanto, meio de comunicação e expressão na infância, bem como mecanismo protetivo e promotor do desenvolvimento saudável. Assim, estas percepções quanto ás atividades lúdicas ampliam e fazem relevância nas intervenções na infância em situação de vulnerabilidade social, como tecnologia de cuidado à infância para Atenção Básica de Saúde.

Palavras-Chave: Vulnerabilidade, Atividade Lúdica, Cuidados Primários em Saúde.


ABSTRACT

This study arises from the concerns of the practical experience of play activities in a play group, as promotion intervention, health prevention and rehabilitation, primary care, developed in an area of social vulnerability in the city of São Paulo. The questions arising from this action orient the objectives of this study, which aims to detect , through play activities , factors that could influence the development of children at social risk and understand how the context in which the participants are inserted, influence and facilitate these development proposals for interventions by professionals in areas of health and education, using as a resource playful activities with children in situations of social risk. For this, we used qualitative methods, participant observation in five children between six and ten years old, and created, for analysis of the results, three categories – the body, meetings and the doing - in order to get discussions that address the multiplicity at the collection performed. The results show the various affectations and interrelationships with play activities, in particular the symbolic play and contexts to which they belong. Play then presents itself as a powerful instrument of care when it comes to the construction of bonds and ressignification of the contexts of the children lives, becoming thus a means of communication and expression in childhood, as well as protective mechanism and promoter of healthy development. Therefore, these perceptions related to play activities strenghten and make relevance for interventions in children in situations of social vulnerability, such as child care technology to the Primary Health Care.

Keywords: Vulnerability, Play Activity, Primary Health Care.

 


RESUMEN

Este estudio surge de las preocupaciones de la experiencia práctica de las actividades lúdicas en un grupo de juego, como intervención para la promoción, prevención y rehabilitación de la salud en la Atención Básica, llevado a cabo en una región de vulnerabilidad social de la ciudad de São Paulo. Las preguntas planteadas en esta acción sustentan los objetivos de este estudio, que son detectar a través de actividades lúdicas, los factores que pueden influir en el desarrollo de los niños en riesgo social, y entender cómo este contexto influye en el desarrollo y facilita las propuestas de intervenciones de los profesionales de la salud y de la educación, se utiliza como recurso principal actividades lúdicas con los niños en situaciones de riesgo social. Para ello, se emplea metodología cualitativa, la observación participante con cinco niños con edades entre seis y diez años, creando para el análisis de los resultados tres categorías - el cuerpo, el encuentro y quehacer - con el fin de conseguir discusiones que contemplen la multiplicidad de la colecta de informaciones obtenidas. Los resultados muestran las diversas afectaciones y las interrelaciones con las actividades lúdicas, especialmente lo simbólico y los contextos a los que pertenecen. El juego entonces se presenta como un poderoso instrumento de cuidado con respecto a la construcción de vínculos y resignificación de los contextos de vida de los niños, convirtiéndose así en un medio de comunicación y expresión en la infancia, así como un mecanismo protector y promotor del desarrollo saludable. Por lo tanto, estas percepciones amplían y dan relevancia a las intervenciones pertinentes en la niñez en situación de vulnerabilidad social, como tecnología de cuidado para niños en la Atención Básica de Salud

Palabras-clave: Vulnerabilidad, Actividad lúdica, Atención Básica de salud.


 

 

Introdução

No Brasil, a mudança no modelo de atenção à saúde, pensada com a Reforma Sanitária, institui o Sistema Único de Saúde como política que preconiza e predispõe a transformação do cuidado baseado em intervenções centrada com foco na doença. Assim, a estratégia no Brasil de Saúde sobre a Família é implementada para a substituição e desconstrução de modelo assistencial individualizado para o entendimento do sujeito de forma singular em seus processos de saúde e doença.

Estabelecido desde 1994, o Programa de Saúde da Família - PSF, para tal, vale-se dos princípios da universalidade, equidade e integralidade da atenção na construção do cuidado não fragmentado e curativo, desenvolvimento de ações intersetoriais e interdisciplinares. Em definição Ministerial apresenta esta como:

Um modelo de assistência à saúde que vai desenvolver ações de promoção e proteção à saúde do indivíduo, da família e da comunidade, através de equipes de saúde, que farão o atendimento na unidade local de saúde e na comunidade, no nível de atenção primária (MS, 1994).

Na construção dialógica do que se é preconizado em Saúde Infantil, e os saberes populares quanto aos cuidados das crianças, há o entremeio destes contextos de desenvolvimentos. O entendimento da construção do cuidado e compreensão da infância é aqui produzido pela relevância histórica e social na cultura ocidental.

Deste modo, na infância, ao longo da evolução da sociedade, os olhares impressos às crianças formatam o cuidado que os é ofertado. As diferentes representações sociais ao longo da constituição das sociedades ocidentais, vêm corroborar com a forma que a criança é inserida, cuidada e educada na comunidade a que pertence. Em Moscovici (2000/2003), enquanto conceito, estas são levadas além de adições e transmissões transgeracionais de sistemas de pensamentos construídos na comunidade e internalizados por ator social, individualmente. O indivíduo torna-se sujeito atuante e ativo na construção das representações da sociedade. Por meio do senso comum, entrelaçados por elementos cotidianos, a produção de um conhecimento compartilhado corporifica as representações sociais no entendimento da Psicologia Social.

As ações humanas, pautadas por este conceito, produzem na vida cotidiana uma realidade concreta compartilhada, construída e justificada pelas representações sociais. Será a partir da experiência dividida com o outro, que o sujeito singular diferenciará sua realidade interna. Assim, nos cuidados em saúde com base territorial, o entendimento e compartilhamento de saberes seja na Educação Popular, seja no exercício da corresponsabilização entre profissionais e usuários, torna-se relevante a compreensão do que tange às representações das comunidades e territórios, aos quais pertencem as crianças.

A infância, então, constitui-se como categoria a partir dos pensamentos cotidianos da sociedade, criando representações que sofrerão mudanças ao longo da história, sendo registrada de diferentes formas. As experiências e o reconhecimento do mundo, imerso em uma cultura especifica faz da infância um período importante na vida de todo ser humano. Será na rotina da vida que, através do um intermediário, a criança assimilará os costumes e as normas das relações sociais, para daí começar a interagir e modificar o ambiente que a cerca (Heller, 1970/1985).

Nesta evolução histórica das representações, a criança percorre da imersão na sociedade nas funções e tarefas dos adultos à necessidade da educação e objeto de estudos. Da ideia da educação para a moralização nasce a curiosidade e a necessidade do entendimento da psicologia da criança para um melhor desempenho na tarefa de adequação do infante ao pertencimento social. Desta forma, a criança ocupa outro lugar na sociedade, começando não apenas a ser cuidada e educada em seu ambiente familiar, mas principalmente estudada. É neste período também que se inicia o interesse psicológico e as preocupações morais, que embasarão a educação do século XX (Ariès,1960/1981). A criança torna-se singular em seus processos, e a ela é reservado uma categoria que inspira cuidados específicos, e também uma ciência que a estuda, ampliando o entendimento do percurso de desenvolvimento infantil.

É no entendimento deste percurso histórico, que podemos perceber a contextualização do cuidado oferecido à criança pela representação que a sociedade possui para com a infância. Nesta discussão, de questões relacionadas ao desenvolvimento infantil, há o envolvimento de diferentes aspectos, dentre estes o da constituição do ser como ator de seu meio, bem como a atuação do entorno sobre o sujeito.

Segundo Jardim (2003) é no, e como também a partir do entorno, que a criança se constitui como ser singular/social, formando seus vínculos, afetos, paixões e desejos frente à vida. É deste modo que se constitui como parte atuante do meio em que se insere, o qual, de forma dialética, também a afeta. Desde demandas biológicas como necessidades físicas da criança, até cuidados e afeto proporcionados por um outro, configuraram-se como elementos pertencentes a contextos de desenvolvimento.

Entender como a infância e a criança são compreendidas como parte da sociedade, possibilita também a percepção e inserção da mesma em seu contexto. As representações caracterizam não somente os sistemas de valores e aspirações de uma sociedade, mas principalmente, os indivíduos que as criam e expressam. A representação social das crianças apresenta vantagem de referir-se também ao passado, sua descendência, como também o futuro de cada grupo humano, seus contextos e sua cultura.

Como parte da constituição da sociedade, na atualidade, as situações de vulnerabilidade social caracterizam grande parte dos contextos de inserção da infância no país, o que inscreve um cuidado e o entendimento do significado das situações de marginalidade de condições de vida bastante empobrecidas, que acabam por englobar diferentes núcleos de convivência da criança.

Na compreensão do percurso histórico das sociedades e os vínculos que tecem as redes sociais sobre as questões de exclusão encontramos uma mudança de foco na década de 70. Inicialmente, as situações de pobreza eram pensadas como uma inadaptação individual com relação à sociedade. Após este período, novo foco foi empregado, passando a sociedade a ser questionada em sua incapacidade de inserir seus membros de forma ampla. É a partir desta mudança que se começa a construir as discussões atuais sobre o assunto.

Na sociedade moderna então, o trabalho fornece a garantia de proteção e possui a função integradora das relações e da vida social. Castel, Wanderley e Wanderley (2000) pontuam, que "a questão social configura-se como uma dificuldade central, a partir da qual essa sociedade se interroga sobre sua coesão e suas fraturas" (p.12). A partir do entendimento das relações de trabalho como suporte na integração social, os autores discutem as situações de exclusão de alguns segmentos da população. Os meandros da exclusão ou marginalização de grupos sociais não se encontram nas situações ou indivíduos, mas na construção histórico social. A vulnerabilidade dos vínculos de trabalho, situações precárias de moradia e etc., mantêm uma rede frágil de proteção e suporte social, e, na medida em que alguns destes vínculos se rompem, levam a situações de exclusão (Castel, Wanderley & Wanderley, 2000). Portanto, as situações de vulnerabilidade social devem ser pensadas em sua magnitude a partir de olhares múltiplos para cenários e contextos singulares, ou seja, para estruturas específicas que propiciem um entendimento mais aprofundado das questões vulnerabilizantes e a implicação destas no cotidiano dos indivíduos.

A própria localização do acontecimento da vida cotidiana apresenta característica dos contextos sociais de vulnerabilidade, tanto nos espaços geográficos, segmentando territórios/classes, quanto na apropriação e identificação do indivíduo em sua inserção público/privada.

Os espaços compartilhados encontram-se dicotomicamente divididos em confrontos entre o Mundo e o Indivíduo, a globalização e a fragmentação, a objetividade e a intersubjetividade das interações neste meio (Santos, 2008). Neste sentido, a constituição, a localização e a configuração de um território será a produção dialética entre o indivíduo e a sociedade em que se insere influenciada por múltiplos fatores socioeconômicos e culturais. A qualidade destes processos está na interação constante do sujeito singular com a pluralidade do espaço. Estas interações são caracterizadas pela presença simbólica e suas representações, constituindo o indivíduo longitudinalmente em sua história de vida. A territorialidade, então, será apresentada pela transindividualidade e a compartimentação da interação humana no espaço (Santos, 2008).

As situações de vulnerabilidade social, como apresentadas anteriormente, inserem-se e conformam-se dentro de espaços interrelacionais de sujeitos singulares e sociedades globalizadas. Desta forma, as dificuldades de acesso, a inexistência de recursos e serviços, a baixa infra-estrutura de suporte e redes sociais são produtos e, concomitantemente, elementos constituintes da hermenêutica dos processos das situações de rupturas e fragmentação das relações humanas, por meio da divisão de classes, da segmentação de sistemas e ofertas de trabalho – o que dificulta uma reestruturação e inserção igualitária de diferentes parcelas da população, e mantém os meios e situações de vulnerabilidades. Em ambientes empobrecidos, estas condições fazem com que as estruturas relacionais apresentem-se de forma diversificada. As questões do trabalho precário, apontadas anteriormente, como o esfacelamento das redes de suporte e de identidade social apresentam impacto direto na constituição familiar.

No panorama nacional encontramos grande parcela da população em extrema desigualdade social. Nestas condições, a família como instituição de proteção à criança encontra cada vez mais dificuldade no desempenho deste cuidado. Situações de miséria e empobrecimento configuram famílias e contextos que propiciam rupturas e vulnerabilidade de vínculos e afetos. Famílias desestruturadas, com princípios contraditórios, que se encontram em condições socioeconômicas degradantes, proporcionando cuidados precários básicos à infância criam fatores de risco ao desenvolvimento saudável do infante (Azevedo, 2006). Assim, a interrelação de cenários macros de condições sociais e os cenários micros de rupturas de vínculos e afetos familiares configuram um importante fator de influência do desenvolvimento infantil.

É possível observarmos que em territórios onde as condições de vida são precárias, a sobrevivência dar-se-à geralmente em ambientes que se configuram de maneira hostil, já que as relações tendem a ser mais impessoais e os cuidados às crianças encontram-se deslocados para sua própria responsabilidade, além da possibilidade de serem responsáveis pelo cuidado de seus irmãos menores, desempenhando funções não pertinentes as suas idades.

Estas situações configuram-se em um cuidado negligente que pode ser definido como a falha de prover as necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente, tais como de alimentação, de vestuário, de saúde, de educação, de higiene ou de supervisão das atividades dos filhos de modo a prevenir riscos e danos (Alberton, 2005). Tais situações são caracterizadas como situações de risco, nas quais é encontrada frequentemente, segundo Azevedo (2006), a presença de elementos como famílias marginalizadas e desestruturadas (baixo nível de expectativa em relação aos filhos, más relações entre o casal, negligência e etc.), que desenham um ambiente de grandes contradições e desfavoráveis ao desenvolvimento saudável da criança.

Em condições de desenvolvimento, tais como estas, permeadas por fatores de risco faz-se necessário a criação de fatores de proteção à personalidade diante das situações adversas de sobrevivência em que se encontram as crianças em vulnerabilidade social, a fim de se minimizar os impactos desta no desenvolvimento infantil. Deste modo, o brincar, então, caracteriza-se como fator protetivo nestas situações, pois proporciona em sua essência alguns dos mecanismos que permitem a resiliência da criança contra processos invasivos.

 

O brincar e o desenvolvimento da criança

O entendimento da criança, em seu ‘estar no mundo', faz-se necessário desde a tenra idade para que possamos compreender os processos de constituição do brincar como fenômeno natural e inato. Por meio das atividades lúdicas é que a criança reconhece, explora e vivencia experiências com o mundo.

O vir a ser humano será um processo pautado na indeterminação da vida, não havendo regras pré-estabelecidas, mas uma percepção não aditiva e nem linear do cotidiano da criança, facilitado por um ambiente relacional de suporte para os diferentes aspectos envolvidos neste processo. Contudo, devemos ressalvar que o ambiente não é determinador de um desenvolvimento emocional saudável, mas o facilitador das condições saudáveis ao processo de amadurecimento (Oliveira, 2003).

O contexto em que as experiências de vida da criança está inserido terá papel primordial na relação com o mundo externo e os processos de constituição de seu self e de seu desenvolvimento psíquico; profundamente fundido com a progressiva separação com a mãe e a descoberta do mundo dentro de uma relação confiável (Winnicott, 1971/1975).

Dentro das brincadeiras iniciais entre a mãe e o bebê, todo o potencial criativo da criança vai se constituindo, para que gradualmente a criatividade do infante possa ser utilizada em experiências diretas com o meio, em períodos mais independentes do desenvolvimento. O autor apresenta então, o brincar como uma experiência criativa com continuidade de espaço-tempo, uma forma de viver (Winnicott,1971/1975). Será, portanto, neste processo de integração gradual e não linear do alojamento da psique no soma, de percepção da realidade externa, dos processos de experimentação e elaboração do que é ‘não-eu' através das brincadeiras, que o indivíduo transforma-se em unidade, constituindo, assim, sua personalidade, afetando e sendo afetado em relação ao outro e ao meio em que se insere.

É como atividade importante ao desenvolvimento da criança que localizamos o brincar. Esta palavra possui diferentes significados na língua portuguesa tais como: entreter-se com um objeto ou uma atividade qualquer; pular; correr; agitarse; distrair-se com jogos infantis, representando papéis fictícios e etc. Muitos destes sentidos ligam-se à ordem prática das atividades lúdicas, porém, etimologicamente, a palavra possui uma denotação que amplia estas interpretações. Segundo Huizinga (1938/2007), o caráter lúdico das atividades apresenta-se como um fenômeno social produzido pela interação humana. Em sua essência o elemento lúdico promove divertimento, fascinação, distração, excitação, tensão, alegria, arrebatamento, ação e emoções que perpassam as necessidades imediatas da vida humana.

O brinquedo é mais um elemento do campo das atividades lúdicas. Neste a interrelação íntima com a criança está preestabelecida. O brinquedo permite a representação, estimulação, reprodução de imagens advindas do real. Por fim, a brincadeira será considerada o lúdico em ação, será a concretização das regras do jogo. Neste sentido, o homem através do jogo, do brinquedo, da imaginação, cria um outro mundo, um mundo poético, que se relacionará à cultura em que este está inserido (Huizinga,1938/2007). Segundo o mesmo o autor, para a atividade ser considerada como lúdica, deve apresentar algumas características: ser livre do ritmo cotidiano, ter um campo de criação diferenciado da vida real, apresentar isolamento e limitação de tempo/espaço, ser um campo de ordem e regras, possuir a capacidade de absorção total do jogador.

Um mundo paralelo à vida cotidiana cria-se com a presença do lúdico - dentro deste espaço irreal, o sujeito se expressa, apresenta um universo simbólico particular e suas representações advindas da experiência cultural própria. Assim, o brincar, desde a mais tenra idade, permite o contato com a mãe, a busca do seu corpo e a apreensão de objetos externos como pertencente a si próprio. A exploração do meio e a evolução para níveis mais integrados fazem da brincadeira um instrumento de apropriação do mundo, um mundo de trocas e aprendizado. Então, não apenas como uma atividade prazerosa, o brincar é entendido como parte constituinte do desenvolvimento, como ponto fundamental na percepção e assimilação do mundo real e na criação da subjetividade da criança.

Winnicott (1971/1975) apresenta uma terceira área que será espaço intermediário entre o dentro do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo. É neste espaço denominado potencial que as atividades lúdicas, a ilusão criadora, as experiências culturais, encontram morada. Este campo será constituído e construído individualmente pela experiência pessoal vivida em cada ambiente de desenvolvimento.

É na brincadeira que a criança relaciona-se com o estar e o sentir-se no mundo, sendo estes estados singulares, resultantes da experiência de cada sujeito com seu entorno, vinculando passado, presente e futuro. A situação imaginária permeará qualquer tipo de jogo/brincadeira por permitir criar-se uma atmosfera lúdica entendida dialeticamente nas características apontadas anteriormente por Huizinga (1938/2007). Desta forma, os processos imaginativos se fazem necessários para possibilitar a criação de um momento limitado em tempo e espaço fora do ritmo cotidiano, ou seja, uma situação lúdica.

Dentre os diferentes tipos de brincadeiras, há as específicas que evidenciam a situação simbólica. Estes jogos possuem diversas denominações – jogo imaginativo, jogo dramático, jogo de faz-de-conta, jogo de papéis ou jogo sociodramático – contudo a essência destas atividades encontra-se na "simulação", no faz-de-conta, que possui grande potencial no desenvolvimento infantil (Bomtempo, 2003).

A situação de simulação, dentro de uma brincadeira de faz-de-conta como apresentado por Lillard1 (1993 como citado em Bomtempo, 2000, p.131), necessita envolver alguns aspectos: um faz-de-conta; uma realidade; uma representação sobre a realidade de tal forma que ela exista no mesmo espaço e tempo; a consciência desses elementos acima apresentados e por fim a ação que põe em prática as elaborações simbólicas do jogo.

Os jogos de faz-de-conta, que podem ser individuais ou coletivos, são realizações das situações imaginativas, permeadas por regras, que permitem ao grupo criar um espaço fora do cotidiano, possuindo limites de tempo/espaço, mas também que possam ser compartilhados em suas diferentes ressignificações da realidade – para que haja o entendimento coletivo do jogo.

No faz-de-conta as crianças inventam histórias, papéis e enredos, ou tentam inserir-se no enredo dos colegas, obedecendo a regras para o desempenho dos papéis. Os jogos dramáticos, as brincadeiras narrativas apresentam intensa interação com o contexto/ambiente/social em que a criança se insere (Paley, 1990), (Singer, 1973). Assim, é nas atividades simbólicas que a realidade externa se expressa na subjetividade da criança, que pode recriar o contexto em que está inserida. Os papéis representados pela criança na brincadeira de faz-de-conta relacionam-se diretamente com os elementos culturais aos quais ela integra (Bomtempo, 2003).

Como forma de apreensão, elaboração e assimilação, é na brincadeira de faz-de-conta que a criança pode entender e interpretar papéis cotidianos, muitas vezes até compensar as dificuldades vividas na realidade. É ressignificando o real que a criança apodera-se do desconhecido e se expressa no mundo como sujeito-ator de seu contexto. As interações, por meio das brincadeiras, acontecem não apenas com o meio, mas com o outro que também se constitui de experiências e representações. A possibilidade de vivências coletivas em espaços intersubjetivos, como o compartilhamento da atenção, emoção e significados, faz do brincar uma experiência de vinculação.

A situação imaginária, o simbolismo, a ilusão criadora, não apenas nas brincadeiras de faz-de-conta, são condições sine qua non das atividades lúdicas. A presença destes elementos, principalmente com relação ao imaginário, são encontradas em diferentes autores tais como, Piaget (1967/1968), Winnicott (1971/ 1975), Vygotsky (1978/1994), Kishimoto (1996) e Bomtempo (2003).

A vivência dessas experiências em contextos muito empobrecidos traz certa peculiaridade aos elementos lúdicos – os objetos cotidianos dessas crianças – e o cenário da brincadeira, que acabam por configurar-se em ambientes coletivos como as ruas. A experiência lúdica encontra-se compartilhada não apenas em sua intersubjetividade, mas também em um núcleo maior do que o privado, onde o brincar acontece disperso entre vizinhos, comerciantes, outras pessoas pertencentes ao contexto da criança (Koller & Silva, 2002). Desta forma, em situações de vulnerabilidade, o brincar, além das diferentes funções apresentadas anteriormente, torna-se mecanismo de proteção da integridade psíquica do infante. Azevedo (2006) discute esta função, pois o brincar torna-se um espaço de vinculação e elaboração da realidade vivida de forma livre, sem julgamentos com relação a manifestações comportamentais.

O brincar vincula não somente a internalização de realidade externa e a sua elaboração para que sejam constituintes da subjetividade da criança em seus mecanismos de aprendizado, mas também possibilita a expressão desta realidade e a criação de mecanismos protetivos que permitem a elaboração de situações evasivas de forma lúdica.

 

Método

Entender as relações, contextos e as brincadeiras como forma de expressão das crianças e produção de espaços de resiliência, são considerar uma realidade não quantificável, sendo o foco do presente trabalho o modo e a qualidade do desenvolvimento inserido em contextos específicos. Assim, a pesquisa caracterizase como qualitativa e trabalha, segundo Minayo (1994) com "o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, ou seja, aborda o mundo dos significados das ações e relações humanas" (p.22). Deste modo, a coleta de dados foi sistematizada em dois momentos: um primeiro momento de observação das atividades grupais e a produção de um registro destas observações; e um segundo momento que pode ser subdividido em duas etapas independentes, a de observação individual em uma atividade focal, e as entrevistas de apoio à construção de um conhecimento sobre a história de vida e cotidianos das crianças.

Ainda, como métodos de coleta dos dados foram realizadas entrevistas com cuidadores para prestar suporte e apoio aos dados coletados junto às crianças. A presença de informações pertencente à história de vida e do cotidiano deixou uma lacuna no entendimento global dos conteúdos expressos nos grupos e atividades. Assim, optou-se pela utilização de mais este instrumento a fim de se complementar as discussões. A escolha deste procedimento ocorreu por permitir a obtenção da visão dos sujeitos sobre seu próprio meio, além da fidelidade das experiências e interpretação do autor do relato, sobre o mundo e o ambiente de desenvolvimento da criança (Haguette, 1992), possibilitando, assim, o reconhecimento de dados objetivos e subjetivos referentes aos participantes da pesquisa.

Para obtenção dos relatos foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro cuidadores das crianças de nossa pesquisa, a fim de se garantir não apenas a percepção destes sobre o contexto de desenvolvimento mas também as expectativas e o olhar impresso a estas crianças, bem como os dados que pudessem complementar os dados coletados no grupo.

Participantes

Para a realização desta pesquisa foram selecionadas cinco crianças, moradoras da área de abrangência da Unidade Básica de Saúde onde eram realizados os grupos, que obedecessem aos critérios em seguida descritos e cuja frequência e vinculação ao grupo de brincadeiras ocorreram desde o início do mesmo – de forma a garantir maior vinculação com a participação efetiva na pesquisa e um maior conhecimento do cotidiano e das dinâmicas das relações constituídas entre estas e os outros participantes, crianças e proponentes do grupo, bem como familiares e/ou cuidadores.

Os critérios foram elencados a fim de se obter uma amostra homogênea em relação a acessos aos serviços de saúde e educação, sendo de fundamental importância a aceitação por livre escolha da colaboração neste trabalho. Desta forma para a participação na pesquisa foram considerados os seguintes critérios:

• Famílias que sejam atendidas pela Unidade Básica de Saúde em que se desenvolveu a pesquisa;

• Famílias que aceitem realizar mais encontros, quando necessário, para a coleta de dados;

• Famílias que autorizarem, por responsável maior de 18 anos, a observação das crianças;

• Crianças que estejam entre 06 e 10 anos e que apresentem funções cognitivas preservadas;

• Crianças que estejam regularmente matriculadas no ensino fundamental;

Os cuidadores das crianças participaram ativamente no esclarecimento de dados que pudessem ser relevantes para o entendimento da história de vida e de relações no contexto das crianças. O papel coadjuvante dos relatos está caracterizado apenas como forma de apoio às análises aqui realizadas. Contudo, como critérios para inclusão destes relatos determina-se que deveriam ter parentesco direto com a criança observada.

Cenários:

- O Bairro:

O cenário da pesquisa é composto por uma das áreas de abrangência de UBS do cidade de São Paulo. Faz-se necessária a caracterização deste ambiente, por este ser parte constituinte dos ambientes de desenvolvimento das crianças participantes.

O território é o cenário no qual os sujeitos da pesquisa se articulam e desenvolvem-se, envolvidos em uma cultura e valores. Assim, o modo como o espaço é constituído e a maneira que seus moradores apropriam-se e identificamse com o mesmo, está presente na vida cotidiana das famílias ali moradoras.

Na região moram aproximadamente 350 famílias em condições de vida precária, ou seja, com um perfil sócio-econômico de baixa renda, o que as coloca em situação de vulnerabilidade e risco. Ali foram locados, em caráter emergencial, em um conjunto habitacional inacabado, há aproximadamente 18 anos.

Outro ponto relevante na configuração do espaço é a relação dos moradores do conjunto habitacional e os proprietários das casas que foram construídas no loteamento. Não apenas a rua divide os espaços, mas também portões e muros construídos nas entradas das ruas desses domicílios. O perfil socioeconômico dos residentes das casas é mais elevado, sendo diferenciada também a origem destes e a forma de ocupação do bairro. Isso se torna foco constante de preconceitos, conflitos e segregação entre os moradores. Ainda para acesso aos serviços de educação e saúde é necessário transporte ou uma caminhada longa, pois ambas as instituições encontram-se em outros bairros. É importante ressaltar que todos os participantes do estudo habitam a região dos prédios de apartamento, sofrendo, portanto, com os conflitos entre as áreas em diferentes situações de circulação em relação a serviços, trabalho e transporte coletivo.

-O Grupo:

A ideia da formação de um grupo de brincadeiras aconteceu a partir de intervenções domiciliares da Terapia Ocupacional nas regiões atendidas pela UBS. No encontro com a comunidade e a população com deficiências diversas pode-se perceber a necessidade de um trabalho com as crianças que, em muitos dos casos, ou encontravam-se nas ruas ou possuíam um papel responsável de cuidadores de doentes e deficientes ou de irmãos mais novos.

Os grupos de brincadeiras começaram a ser implantados em encontros semanais com duração de duas horas; em média costumavam ter entre 30 e 40 participantes, com aproximadamente de 04 a 12 anos. Para melhor organização e acolhimento das demandas das crianças, sistematizamos os encontros em três momentos: o inicial, que consiste no acolhimento da chegada das crianças, com brincadeiras de rodas; o segundo momento, que abarca as atividades de construção e/ou atividades artísticas; e um último momento de fechamentos onde oferecemos jogos coletivos que são divididos de acordo com os interesses das crianças.

Vale ressaltar que, esta estrutura não se configurou de forma imediata: a prática e as diversas tentativas anteriores de formatação dos encontros nos deram o caminho de um maior acolhimento e uma efetivação dos objetivos perseguidos pela intervenção. A preocupação com uma configuração dos encontros deu-se pela percepção, por meio das atividades realizadas, de graus diferentes de adesão e organização no ambiente das crianças. À medida que fomos conhecendo as dinâmicas estabelecidas entre os processos de chegada e realizações das brincadeiras preocupamo-nos em repensarmos estratégias que pudessem efetivar nossas propostas.

Quanto ao uso de atividades, desenvolvemos: brincadeiras populares – cantigas e brincadeiras de roda (escravos de jó, corre-cotia, história da serpente, lencinho branco, adoleta, etc), atividades corporais (massagens com bolas e bambus e circuitos de tarefas), teatro (pequenas encenações, fantoches e casamento caipira), atividades de construção (confecção de brinquedos com sucata, quadros e cartões em datas comemorativas), jogos de tabuleiro. Em todas as atividades houve a preocupação na adequação ao perfil e interesse das crianças, numa perspectiva de aprendizagem, desenvolvimento de habilidades, de aquisições cognitivas, emocionais e sociais, principalmente pela existência de participantes de uma faixa etária muito extensa e pela presença de crianças com deficiência.

 

Resultados e Discussão:

A criança em seu desenvolvimento constitui-se como ser integrado e ativo em seu contexto, por meio das interações e atuações do em torno sob seu aprendizado e sob sua constituição. O devir humano acontece de forma não linear e não susceptível a mera soma de experiências vivenciadas pela criança, o qual acontece de forma dialética e dinâmica com o contexto em que as mesmas pertencem.

Aqui, os olhares construídos na prática que fomentou a pesquisa são focados tanto para cada um dos sujeitos como ser singular, com características e processos ímpares de constituição de seu self dentro de um mesmo contexto, como também para o grupo como um espaço de trocas que traz características do fora, do contorno e da presença do que se foi construído por cada participante. Assim, as mesmas experiências nos levam a diferentes olhares e a percepção da relação dialética do singular com o todo.

Dialética esta marcada nos dados coletados, a criança em sua multiplicidade ao chegar aos espaços aqui referidos apresentava seus contextos de diferentes formas. Para facilitar a análise foram criadas categorias, tais como:

-Olhares – o corpo: observações quanto às condições de higiene, as adequações de vestuário com a temperatura do dia, se vinham sozinhas ou acompanhadas e até mesmo a alimentação.

- Olhares – encontros: observações de como se davam as relações no espaço do grupo, tanto entre terapeuta e criança, como entre os participantes.

-Olhares – o fazer: observações quanto a realização das atividades lúdicas, na construção de brinquedos, na possibilidade de aprender e ensinar brincadeiras, brincar com o outro, brincar com o corpo, imaginar o brincar, a criatividade, sendo dada maior ênfase às atividades simbólicas.

E do que falam as experiências ali vivenciadas? Os autores com que conversamos nos apresentam a criança em seu desenvolvimento biopsicossocial, sendo este último resultante tanto de cuidados físicos, como de processos relacionais, como forma de assimilação da cultura e da constituição de suas subjetividades. O brincar, neste contexto, seria o espaço e instrumento para que isso ocorra (Piaget, 1967/1968), (Winnicott, 1988/1990); (Vygotsky,1978/1994). A constituição do self, da apropriação gradual do mundo que as cercam, com seus significados e símbolos, e da criação dos processos subjetivos, existentes a partir das vivências das realidades compartilhadas entre o sujeito e o outro (Safra, 2005).

Então, pensar o devir humano em suas especificidades, no contexto em que nosso trabalho está inserido, não é possível e muito menos se encerra no sujeito, nem no momento exato das ações da pesquisa. O entendimento caminha por histórias e pelo outro que não participa ativamente da pesquisa, mas que está presente no contexto das crianças significando e ressignificando seu cotidiano.

No trabalho, os contextos de vulnerabilidade e risco social apresentavam uma busca cotidiana pela sobrevivência, havendo a necessidade diária da priorização sobre as ações a serem desenvolvidas. Assim, a criança no entendimento de suas necessidades, muitas vezes, como apresentado nas historias dos sujeitos participantes, encontrava-se pouco acolhida com relação aos afetos. A busca constante de garantia das necessidades básicas de sobrevivência acaba por esfacelar os vínculos e afetos despendidos nas relações, principalmente no cuidado com as crianças. Então estes passam a assumir um papel ativo sobre seu cuidado, sendo responsabilizadas por ações de cuidado também de irmãos e da casa, que acabam por não serem pertinentes as suas idades. Tal situação apresenta a configuração de uma condição em que as crianças são miniadultos, sem supervisões sobre suas ações, com responsabilidade que muitas vezes são incapazes de exercer com segurança, remetendo-nos, ao entendimento da infância e de seus cuidados tal qual nas sociedades medievais (Ariès, 1960/1981).

O cuidado no contexto deste trabalho é entendido pelos cuidadores como a garantia do alimento na casa, a possibilidade de oferecer escola, roupas e outros bens. Cabe a criança as escolhas quanto às suas ações e ao seu futuro.

O outro significativo encontra-se distante, deste modo, o que se assimila nos processos subjetivos, como simbólico das relações de afetos e cuidados, bem como valores são aprendidos tanto com as famílias, como com vizinhos entre outros meios em que a criança desde muito nova encontra-se imersa.

O cuidador, então, não é uma referência fixa, este pode ser um adulto ou uma outra criança – o outro era, em alguns momentos, as coordenadoras do grupo. Assim, a possibilidade de estarmos juntos mesmo que em poucas horas por semana permitia o significar e o ressignificar de algumas das ações, encontrando outras formas de expressão, de valor e de desejos frente a diferentes situações.

Pelo compartilhar nas atividades lúdicas, podem-se experimentar novas formas de encontros entre o eu e o outro. No espaço potencial de cada um dos presentes, há o compartilhamento de vivências, a experimentação de outras possibilidades de ser e estar no mundo em que habitamos. O encontro, então, apresentava-se em três âmbitos: o relacionar-se com as coordenadoras do grupo, com as crianças participantes do mesmo e com as atividades lúdicas propostas em cada um dos dias.

Em todo esse processo, o vínculo foi se construindo ao longo dos semestres. Este, como a confiança, ia se estruturando a partir do brincar junto e, em todo esse movimento, o contexto de ruptura constantemente vivido pelas crianças expressava-se na agressão e destruição como forma de expressão. Neste processo as coordenadoras, permaneciam vinculadas e confiáveis diante destes impulsos.

Os constantes conflitos entre as crianças e delas para as coordenadoras permitiam imprimir diferentes olhares a essas reações e expressões. Não deslocados do contexto em que se encontravam, bem como as histórias apresentadas por um dos participantes individualmente, era possível entender algumas destas manifestações.

A falta e o pouco, a inabilidade e a ausência de outro repertório de expressões e reações eram algumas das explicações às formas de enfrentamento dos diferentes conflitos surgidos durante o grupo. Assim, o em torno dos participantes os constituíam trazendo elementos que integravam o subjetivo de cada um assimilados em seu contexto. As expressões de agressividade pareciam ser parte deste meio, bem como os sentimentos vivenciados como intrusivos a de situações de violência –resultando em comportamentos retraídos, paralisando e tolhendo possibilidades de criatividade frente ao outro.

A presença de um adulto, muitas vezes como mediador destes conflitos, tinha um papel de ampliação nos repertórios de resolução de problemas, na possibilidade de compartilhar sem disputa. Algumas das vivências proporcionadas pelas atividades lúdicas tinham a intenção de que se fosse experienciado de outra forma pelos participantes o compartilhar, o estar e o ser no mundo. Assim, no ambiente protegido do grupo de brincadeiras, a partilha, as escolhas e o fazer eram planejados e organizados a fim de se propiciar um espaço de troca em que as frustrações pudessem ser elaboradas e não vivenciadas como rupturas. A ação terapêutica, portanto, seja com o auxílio e/ou o fazer junto, seja com as ressignificações, tentávamos proporcionar novas experiências que não fossem sentidas como intrusivas e que possibilitassem sentimentos ímpares aos vivenciados nos contextos de vulnerabilidade.

Desta forma, as atividades lúdicas integraram o repertório das intervenções não apenas como um recurso terapêutico ou por estas serem atividades primordiais da infância, mas pela possibilidade destas vivências coletivas serem espaços intersubjetivos, com o compartilhamento de atenção, emoção e significados, fazendo do brincar uma experiência da vinculação (Winnicott, 1971/1975).

Além dos vínculos, ainda, como Azevedo (2006), que na brincadeira há a possibilidade de ressignificação de situações muitas vezes invasivas nas vivências sociais degradantes, sendo também considerada um fator de proteção em contraponto às situações e fatores de risco.

Para que isso ocorresse, no início do fazer era preciso haver o encontro não apenas fisicamente no horário marcado. Com a preparação do espaço e a criação da atmosfera lúdica, que percebe e permite um encontro de fato, um compartilhamento, o ritmo de fora permanecia fora e a sintonia com o outro possibilitava a criação da situação lúdica no grupo de brincadeiras, fora do contexto real (Huizinga,1938/2007). Assim, as cantigas de roda, foram percebidas como a atividade que permitia o encontro com o outro, os olhares, a sincronia do ritmo que seria criado no coletivo.

No segundo momento, as atividades lúdicas foram pensadas no âmbito da criatividade. O espaço potencial encontra-se na área de transição entre os processos subjetivos e a realidade. Então, a criação de uma atmosfera lúdica no primeiro momento, defronta, no segundo momento do encontro com o potencial criativo de cada um. Como lugar subjetivo, é possível entrar em contato com o contexto de fora, agora como parte do subjetivo inerente a cada um dos participantes.

O fazer criativo, neste espaço, confronta-se com a expectativa do que se irá produzir e com o medo das frustrações sobre o desejo do que se quer produzir Assim, como explicitado nos dados, em muitos momentos o fazer criativo só se tornava concreto quando se proporcionava possível espaço de compartilhamento e acolhimento das angústias do processo paralisado pela expectativa sobre o produto. Lima (1997) discorre sobre o assunto, pontuando que:

A criação implica suportar uma experiência disruptiva provocada pela permeabilidade ao estranho, que ao ser acolhida, leva a subjetividade a novas configurações, nos exigindo a composição de um novo corpo que possa encarnar a novidade que foi acolhida. (…) A experiência de criação é, portanto, uma experiência limite, que nos coloca na fronteira de nós mesmo, no limite de abandonarmos uma antiga configuração e nos fazermos outro. Coloca em jogo a experiência do informe e a capacidade de dar forma de criar novas formas.

O terceiro momento, o dos jogos, coloca-nos principalmente em contato com o compartilhar e com as regras. Os jogos, em sua essência, proporcionam o contato com o outro e com o eu, e as diferentes possibilidades e inserções nesta atividade, seja como organizador, participantes ou torcedor. Além disto, as regras são importantes, pois delineiam as ações que nos permitiam compartilhar a atividade em seu desempenho pleno.

Como apresentado nos dados, o momento dos jogos no grupo despertava diferentes reações quanto à motivação, agressividade e frustração frente ao outro – muitas vezes em situações competitivas. Assim, era necessário não apenas a mediação dos conflitos, mas também a preocupação com as regras, adaptandoas quando necessário.

As situações imaginárias permearam todo o espaço do grupo de brincadeira como campo das atividades lúdicas. Para o entendimento das regras, para os processos criativos e etc., fez-se presente os processos imaginativos para possibilitar ao grupo um momento limitado em tempo e espaço fora do ritmo cotidiano (Huizinga,1938/2007).

Assim, ressaltando essa função como importante em todo o processo da pesquisa, atemo-nos, no quarto e último momento do trabalho, as atividades simbólicas, no que tangem os jogos de faz-de-conta e sua interação dialética com os contextos socioculturais em que se inserem os sujeitos participantes do trabalho (Bomtempo, 2003); (Paley, 1990); (Singer, 1973).

Desta forma, nesta relação dialética pretendia-se no momento do faz-deconta, na criação do livro de estórias com os participantes, aproximar-se não apenas dos processos simbólicos, mas do discurso sobre os diferentes contextos por onde circulam, contados entre desenhos e conversas, sob as perspectivas das próprias crianças.

As estórias criadas neste momento contam simbolicamente um pouco de cada um – seja o cuidado com a prole, a presença de muitos amigos, os desejos de uma outra situação familiar ou o cotidiano de acordar cedo. Isso proporcionou o contato com a elaboração que cada um apresenta sobre sua realidade. As estórias trazem na fantasia o contexto da realidade da responsabilidade e das situações familiares vulneráveis. Os elementos cotidianos, então, nos foram apresentados em seus significados ou ressignificados pelo faz-de-conta em situações vulneráveis e modos precários de cuidado.

As conversas que aconteciam durante a realização do livro de estórias, contavam dos espaços reais de produção de vida, imersos em contextos de violência nos domicílios ou em outros lugares por onde circulam, mas também diziam de outros espaços de resiliência – cuidados de avós, viagens de férias, brincadeiras diversas nas ruas ou nos apartamentos com primos e colegas – que constituíam e impulsionavam formas saudáveis de estar e ser nestes lugares fortemente marcados por situações degradantes no que tange aos ambientes facilitadores do desenvolvimento saudável.

Desta forma, a pesquisa apresenta a construção de um olhar que se completa por diferentes perspectivas para o objeto do estudo, o sujeito e seu contexto, que, de forma dialética com as referências utilizadas, permitiu ampliar o entendimento do desenvolvimento infantil interrelacionando a crianças e seus espaços de produção de vida, bem como pensar a atuação prática de profissionais que utilizem as atividades lúdicas com crianças em situações de vulnerabilidade e risco social.

 

Considerações finais

A importância desse trabalho foi, durante o processo e as vivências junto às crianças, ganhando diferentes dimensões. Das ansiedades da experiência prática no início, das descobertas no percurso dos diversos olhares sobre o tema, às inseguranças na produção deste material fizeram deste estudo relevante na nossa vida acadêmica, tanto quanto na nossa vida pessoal, tanto nas experiências pessoais, como nas contribuições para ressignificar formas de intervenções na Atenção Básica.

A possibilidade de aproximação teórico-prática permitiu a mudança do olhar tanto na ótica da academia quanto nas experiências de campo. Assim, algumas das angústias surgidas na "práxis" puderam, por muitas vezes, ser acalentada pela teoria, e esta por sua vez, tornou-se mais sólida e dialética com as vivências enquanto profissional.

E na constituição da prática encontra-se o brincar como forma de intervenção, de comunicação e expressão e, principalmente, de vinculação. O lúdico aqui era mais do que o fazer, era o encontro e o cuidado. O faz-de-conta acontecia no espaço compartilhado e a cada um dos encontros, não importando que fossem a dois, a três ou em muitos.

Assim, nestes processos, o presente estudo contribui na ampliação do entendimento das atividades lúdicas enquanto potente instrumento de intervenção pois são em seus espaços potenciais que se desenvolvem novas possibilidades de habitar lugares de produção de vida.

Ainda, este trabalho pode contribuir na construção de olhares mais amplos no que diz respeito ao desenvolvimento infantil em diferentes contextos, a partir do entendimento do ser em sua constituição em constantes atravessamentos entre suas ações, seus simbolismos e afetações mútuas entre o meio e o mesmo.

Especificamente, o contexto que o trabalho explicita é de situações de vulnerabilidade social, no qual nos é apresentado cotidianamente o esfacelamento de vínculos com lugares ásperos de produções de vidas. Neste enredar de vivências intrusivas, o brincar, em seus mecanismos protetivos, torna-se possibilidades de novas formas de ser e estar nestes espaços ásperos de trocas.

Assim, os encontros no espaço de brincadeiras produziam o saber de como é ou como se deve ser ali, que em muitos momentos só é possível ser o que se faz-de-conta ser. Estar no mesmo lugar, compartilhando formas de habitar as fendas deixadas pela ruptura dos laços, o brincar para produzir vida.

 

REFERÊNCIAS

Alberton, M. S.(2005). Violência da infância: crimes abomináveis: humilham, machucam, torturam e matam! Porto Alegre: AGE, 151-158.         [ Links ]

Ariès, P.(1981). História Social da Criança e da Família (2a ed). (Dora Flaksman, Trad). Rio de janeiro: LTC (Original publicado em 1960).         [ Links ]

Azevedo, A., C. P.(2006) "Brincar na brinquedoteca: crianças em situação de risco". In: E. Bomtempo, E.G. Antunha, V. B. Oliveira (org.) Brincando na escola, no hospital, na rua... Rio de janeiro: Walk, p.143-159.         [ Links ]

Bomtempo, E. (2003). A brincadeira de faz-de-conta: lugar de simbolismo, da representação, do imaginário. In: T. M. Kishimoto (org.). Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a Educação. São Paulo: Cortez, 2003, p. 56-87.         [ Links ]

Bomtempo, E. (2000). Brincar, fantasiar, criar e aprender. In: V. B. Oliveira (org.). O brincar e a criança do nascimento aos seis anos. Petrópolis: Vozes, 2000, p.127-149.         [ Links ]

Castel, R.,Wanderley, L.E.W., & Wanderley, M. B.(2000) Desigualdade e a questão social (2a ed). São Paulo: EDUC.         [ Links ]

Haguette, T.M.F.(1992) Metodologia Qualitativa na Sociologia. 2ª ed. Petrópolis: Vozes, p. 69-74.         [ Links ]

Heller, A.(1985) O cotidiano e a história (4a ed).(Leandro Konder, Trad). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 20 (Original publicado em 1970).         [ Links ]

Huizinga, J.(2007) Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (5a ed).(João Paulo Monteiro, Trad). São Paulo: Perspectiva (Original publicado em 1938).         [ Links ]

Jardim, C.S. (2003) Brincar – um campo de subjetivação na infância. São Paulo: Anna Blume, p.13-30.

Kishimoto, T. M.(2003) O jogo e a educação. In: T. M. Kishimoto (org.). Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a Educação. São Paulo: Cortez, p. 13-43.         [ Links ]

Koller, S. H., & Silva, L. N. (2002) A rua como contexto de desenvolvimento. In: Loredelo, E.R., Carvalho, A.M., & Koller, S.H. (org.). Infância brasileira e contextos de desenvolvimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 205-230.         [ Links ]

Lima, E. A. (1997) Clínica e criação: a utilização de atividades em Instituições de Saúde Mental. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.         [ Links ]

Minayo, M.C. S. (org.) e outros (1994). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Rio de Janeiro: Vozes.         [ Links ]

Ministério da Saúde (MS) (1994). Saúde da Família: Uma Estratégia para a Reorientação do Modelo Assistencial. Brasília: MS.         [ Links ]

Moscovici, S.(2003) Representações sociais: investigações em psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 167-214.         [ Links ]

Oliveira, E.D. (2003). A teoria do amadurecimento de D. W. Winnicott. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Paley, V. G. (1990) The Boy Who Would Be a Helicopter: the uses of storytelling in the classroom. Cambridge: Harvard University Press.         [ Links ]

Piaget, J.(1968). Seis estudos de Psicologia. (Maria Alice de Magalhães D'Amorim e Paulo Sergio Lima Silva, Trad). Rio de Janeiro: Forense Universitária (Original publicado em 1967).         [ Links ]

Safra, G.(2005). A Face Estética do Self – teoria e clinica (4a ed). São Paulo: Unimarco Editora.

Santos, M.(2008). A Natureza do Espaço. São Paulo: EDUSP, 313 – 327.

Singer, J.L. (1973) The child's world of make-believe: experimental studies of imaginative play. New York – London, Academic Press.

Vygotsky, L.S.(1994). A formação social da mente – o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. (5a ed). (José Cipolla Neto, Luis Silveira M. Barreto, Solange C. Afeche, Trad) São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1978).

Winnicott, D.W.(1975). O Brincar e a Realidade. (José Octavio de Aguiar Abreu e V. Nobre). Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1971).         [ Links ]

Winnicott, D.W.(1990). Natureza Humana.(Davi Litman Bogomoletz, Trad) Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1988).         [ Links ]

 

Recebido: 24/07/2014 / Corrigido: 03/08/2014 / Aceito: 20/08/2014.

 

 

1 Graduada em Pedagogia – Unesp, Rio Claro, mestrado em Psicologia Social e Experimental e doutorado em Ciências (Psicologia) pela Universidade de São Paulo. Professora Associada da Universidade de São Paulo. Contato: Rua Cristiano Viana. 670. apto. 112 CEP: 05411-000 - São Paulo - SP - Brasil. E-mail: eddabomtempo@uol.com.br
2 Graduada em Terapia Ocupacional – Faculdade de Medicina- USP, mestre em Ciência pelo IPUSP. Terapeuta ocupacional do Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF) do Projeto Região Oeste da FMUSP; e preceptora do PET Saúde (Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde) PUC/SP. Contato: Rua Constance Mayer, 188 CEP: 05372-130 – São Paulo- SPBrasil. E-mail: mirianrcon@gmail.com

LILLARD, A.S (1993). "Pretend play skill and the child's theory of mind". In: Child Development, 64, 348-371.

 

Creative Commons License