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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.35 no.88 São Paulo jan. 2015

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

Dimensões psicossociais da imigração no contexto familiar

 

Psychosocial dimensions of migration for the family

 

Dimensiones psicosociales de la imigración de la familia

 

 

Ana Paula Sesti Becker1; Lucienne Martins Borges2

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Florianópolis

 

 


RESUMO

O crescente fenômeno migratório no cenário contemporâneo engendra repercussões diversas no âmbito social, econômico e familiar dos migrantes. Desta forma, este artigo apresenta como finalidade analisar as dimensões psicossociais da migração no contexto familiar. Trata-se de um estudo qualitativo com delineamento exploratório, descritivo e transversal. Participam da pesquisa cinco famílias imigrantes de diferentes nacionalidades: Americana, Argentina, Boliviana, Haitiana e Peruana. Utiliza a entrevista semiestruturada para coleta das dados e para análise dos resultados obtidos, escolhe-se a análise de conteúdo temático categorial, emergindo-se quatro categorias de análise. Os dados demonstram que as dificuldades de moradia, aquisição da língua e questões financeiras e de trabalho constituem-se os maiores entraves no processo de adaptação; todavia, o apoio social recebido e as práticas religiosas tornam-se aspectos facilitadores na história da migração dessas famílias. No âmbito familiar, constatam-se mudanças na dinâmica relacional dos membros quanto à ausência de familiares que não imigraram, e ainda, o fortalecimento dos vínculos afetivos após a chegada ao país de acolhimento. Salienta-se que o processo migratório repercute novos padrões, valores e modos de funcionamento no universo familiar dos migrantes, os quais sob diversas circunstâncias encontram-se vulneráveis do ponto de vista psíquico devido ao rompimento com o seu contexto de origem.

Palavras-chave: Migração; Família; Psicologia Intercultural.


ABSTRACT

The growing phenomenon of migration in the contemporary scenario engenders several repercussions in the social, economic and family migrants. Thus, this paper presents the objective of analyzing the psychosocial dimensions of migration in the family context. This is a qualitative study with exploratory, descriptive and crosssectional design. The participants were five immigrant families of different nationalities: American, Argentinian, Bolivian, Peruvian and Haitian. We used semi-structured interview for data collection and analysis of the results, it was decided to categorical content analysis, emerging are four categories of analysis. The data show that the difficulties of housing, language acquisition and financial and work issues are the greatest obstacles in the adaptation process; however, the social support and religious practices have become facilitator aspects in the history of migration of these families. Within the family, changes were noted in the relational dynamics of the members regarding the lack of family members who did not immigrate, and also strengthening the emotional bonds after arrival in the host country. Please note that the migration process affects new standards, values and modes of operation in the familiar universe of migrants, which under different circumstances are vulnerable from a psychic point of view due to the disruption of their context of origin.

Keywords: Migration; Family; Cross-cultural Psychology.


RESUMEN

El fenómeno de la migración cada vez mayor en el escenario contemporáneo engendra varias repercusiones en los ámbitos sociales, económicos y familiares de quien migra. este artículo se presenta con el objetivo de analizar las dimensiones psicosociales de la migración en el contexto familiar. Se trata de un estudio cualitativo con un diseño exploratorio, descriptivo y transversal. Los participantes son cinco familias de inmigrantes de diferentes nacionalidades: americana, argentina, boliviana, peruana y haitiana. Se utilizó la entrevista semi-estructurada para la recolección de datos y análisis de los resultados se emplea el Análisis de Contenido Categórico, emergien cuatro categorías de análisis. Los datos mostran que las dificultades de vivienda, adquisición del lenguaje, las cuestiones financieras y de trabajo constituyen los mayores obstáculos en el proceso de adaptación. Sin embargo, el apoyo social y las prácticas religiosas se convirtien en aspectos facilitadores de la historia de migración de estas familias. Dentro del ámbito familiar se observaron cambios en la dinámica relacional entre los miembros sobre la falta de miembros de la familia que no emigraron, así como el fortalecimiento de los vínculos emocionales después de la llegada al país de acogida. Téngase en cuenta que el proceso de migración repercute en nuevos estándares, valores y modos de funcionamiento en el universo familiar de los migrantes, los que a su vez se encuentran en situación de vulnerabilidad desde el punto de vista psíquico debido al quiebre de su contexto de origen.

Palabras clave: Migración; Familia; Psicología Intercultural.


 

 

Introdução

As imigrações humanas constituem um fenômeno contínuo no cenário contemporâneo que repercute em diversos âmbitos social, econômico e familiar. Isso permite refletir que a necessidade de mudança integra a condição de existência, que por sua vez, propicia o desenvolvimento. A partir da interação com o meio ambiente e novos contextos sociais, os indivíduos recorrerão a diferentes estratégias para melhor se adaptarem a um novo estilo de vida.

De acordo com Rodrigues, Strey e Pereira (2007) o fenômeno migratório transcorreu diversas fases ante os registros históricos da humanidade. No período pré-histórico, a migração contribuiu para a evolução da espécie humana, por meio da capacidade de adaptação a diferentes ambientes. Na época do Império Romano, a finalidade que se destinavam as migrações era a colonização por meio da campanha das cruzadas no período das grandes navegações. Já a partir da Revolução Industrial, a migração passa a ser uma alternativa encontrada pelas classes camponesas para buscar melhores condições de sobrevivência.

Dentre os tipos de migração, Miranda, Martins-Borges, Pocreau e Pelletier (2004) definem as migrações voluntárias e involuntárias. A primeira configura-se como um fator planejado, uma vez que comporta um projeto de vida em que pessoas, por diversas razões deixam seu país de origem e se mudam para outra nação permeada por diferentes contextos sócio-políticos e culturais (Prado, 2006). Em contrapartida, as migrações involuntárias caracterizam-se pela migração de indivíduos que vivenciaram situações traumáticas, tais como: Guerra, genocídio, persecução política, catástrofes naturais, entre outros, cujos familiares e os próprios migrantes encontravam-se em perigo. Considera-se que muitos destes partem sem seus documentos e alguns, sem destino, cujas experiências podem repercutir impactos psicológicos significativos.

Os diferentes tipos de migração engendram repercussões contundentes no panorama econômico, social e familiar, assim como nas experiências individuais de cada migrante. Isso implica dizer, que o indivíduo que imigra fisicamente nem sempre imigra emocionalmente, uma vez que ultrapassar as fronteiras geográficas não se constitui a tarefa primordial da migração, mas sim transpor as barreiras sociais, econômicas, culturais e linguísticas (Rodrigues e outros, 2007).

Em vista do cenário das imigrações brasileiras, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE (2010) registrou que 286.468 imigrantes vindos de outros países, viviam no Brasil há pelo menos cinco anos e em residência fixa. O número foi 86,7% maior do que o encontrado pelo Censo Demográfico de 2000, quando foram registrados 143.644 imigrantes na mesma situação. Salienta-se ainda, que os principais países de origem dos imigrantes, foram os Estados Unidos (51.933), Japão (41.417), Paraguai (24.666), Portugal (21.376) e Bolívia (15.753). Levando em consideração o aumento de imigrações brasileiras, aponta-se ainda, o acréscimo dos fluxos migratórios familiares, de modo que aproximadamente 100 milhões de migrantes no mundo sejam famílias (Ramos, 2009).

Um dos focos prementes de estudos e intervenções da área pauta-se sobre a investigação da adaptação psicológica das famílias e indivíduos quando mudam de país (Muhlen, Dewes, & Leite, 2010; Sarriera, Pizzinato, & Meneses, 2005). Salientam-se algumas dimensões psicossociais que norteiam o âmbito relacional familiar, a partir do fenômeno migratório, como: Inversão dos papéis familiares, especialmente quando os filhos mantêm-se na função de apresentar uma nova cultura aos pais, uma vez que repetidas vezes, detêm maior facilidade com o novo idioma; bem como, a manutenção da conjugalidade à distância quando a imigração de um dos cônjuges não se torna possível; o processo de aculturação de retorno, padrões de repetição familiar, conflitos com a família estendida; redes sociais que os migrantes dispõem quando chegam a um novo contexto sociocultural e estado de vulnerabilidade entre os membros (Carter & Mcgoldrick, 1995; McGoldrick, 2003; Sluzki, 2003).

Oportuniza-se assim, destacar o conceito de família adotado nesta pesquisa. Partindo dos pressupostos da teoria Sistêmica, entende-se a família como um sistema ativo em constante transformação; como um organismo que se altera com o tempo para assegurar a continuidade e crescimento psicossocial de seus membros. Assim, ao mesmo tempo em que se permite o desenvolvimento como uma unidade, deve se assegurar também, a diferenciação entre seus componentes (Osório, 2002; Dessen & Braz, 2005). Por conseguinte, esta influencia e é influenciada pelo contexto no qual está inserida, permeando o movimento histórico dos processos migratórios.

Neste artigo pretende-se analisar as dimensões psicossociais na dinâmica de famílias que imigraram para o Brasil. Com o intuito de refletir sobre as diretrizes que orientarão o desvelamento do objeto de estudo, recorreu-se à epistemologia da Psicologia Intercultural e a Teoria Sistêmica para melhor compreender o fenômeno abordado.

 

Método

A pesquisa constituiu-se como um estudo qualitativo, com delineamento exploratório e descritivo. Participaram desta investigação cinco (5) famílias imigrantes de diferentes nacionalidades: Americana, Argentina, Boliviana, Haitiana e Peruana. A escolha dos participantes ocorreu a partir da técnica de amostragem denominada "snowball" ou bola de neve (Marquezino & Araújo, 2014), consoante os seguintes critérios de inclusão: Famílias que tinham imigrado para o Brasil há pelo menos 1 ano e Pai e/ou mãe estrangeiros e com pelo menos um filho nascido antes da migração.

Participantes

O quadro 1 apresenta os principais dados sociodemográficos das famílias participantes, cujas legendas exibidas significam respectivamente: P1 (Pai 1), M2 (Mãe 2), F1 (Filho 1) e assim, de modo sucessivo.

No momento da coleta de dados, duas famílias eram constituídas com filhos adolescentes; outras duas com crianças e uma com filhos adultos jovens. A média de idade dos pais é de aproximadamente 45 anos, variando entre 36 e 53 anos, enquanto que a média de idade dos filhos é de aproximadamente 14 anos, variando entre 5 e 26 anos.

Quanto à ocupação dos participantes, estas divergiram entre os segmentos comerciais, apresentados pela família Argentina e Boliviana; pelo segmento religioso - família Americana; pela área da saúde - família Peruana e pelo segmento operacional - família Haitiana. Salienta-se que três mães apresentaram como ocupação o cuidado do lar, de modo que nestas famílias, o provedor financeiro constituiu-se pelo esposo.

Todos os participantes declararam possuir uma religião, sendo três famílias católicas e duas evangélicas. As famílias Americana, Boliviana e Haitiana, consideraram-se como praticantes de seu credo religioso.

A predominância dos países de origem das famílias pesquisadas concentrouse no contexto dos idiomas hispanófonos, caracterizado pelas famílias latinoamericanas: Argentina, Bolívia e Peru. Enquanto que somente a família Americana representou o contexto sociocultural da América Anglo-Saxônica, cuja língua predominante foi a inglesa e na região do Haiti, predominou-se o idioma crioulohaitiano.

No que se refere ao tempo de imigração, a média foi de 07 anos e quatro meses. No entanto, as famílias Americana, Boliviana e Haitiana apresentaram tempo inferior a 10 anos; enquanto que a família Argentina e Peruana expuseram tempo superior a 10 anos.

Procedimentos

A pesquisa seguiu os preceitos éticos vigentes pela Resolução nº 466/12 do Conselho Nacional de Saúde sob nº de parecer aprovado - 711.423 pelo Comitê de Ética em Pesquisa. Nestes termos, os participantes foram acessados pela pesquisadora sendo previamente agendada a coleta de dados. Para tanto, utilizou-se a técnica de entrevista semiestruturada delimitada em V eixos temáticos: (I) História da migração familiar; (II) Ciclo vital familiar e migração; (III) Mudanças na configuração e dinâmica familiar; (IV) Sentimentos atribuídos à migração e (V) Rede social; dos quais serão discutidos neste artigo, o primeiro e o terceiro eixo referente à história da migração e os significados atribuídos à imigração familiar.

Análise de Dados

Para analisar os resultados obtidos optou-se pela análise de conteúdo temático categorial que, conforme Bardin (2004), trata-se de uma técnica de investigação que visa interpretar comunicações por meio de uma descrição sistemática, a fim de compreender criticamente o sentido manifesto ou latente do conteúdo. As narrativas foram gravadas em áudio e posteriormente, transcritas na íntegra, dando continuidade às etapas de pré-análise, exploração do material para categorização, tratamento dos resultados e interpretação. Em seguida, agruparam-se três categorias de análise: 1 - Dificuldades no processo de adaptação cultural; 2 - Aspectos facilitadores no processo de adaptação e 3 - Avaliação da migração familiar.

 

Resultados e Discussão

Descrição das Famílias

Família Americana (FAm)

A família Americana é composta por P1 (46 anos), pastor de uma igreja evangélica batista, M1 (45 anos), responsável pelo cuidado do lar e auxiliadora do ministério religioso, F1 (17 anos) a filha mais velha, F2 (14 anos) e F3 de 11 anos. O casal se conheceu em 1988, casando-se em 1991 nos Estados Unidos.

Logo após o casamento, imigraram para a Hungria na cidade de Budapeste. Realizaram diversas atividades religiosas e missionárias por mais de 50 países. Em Budapeste no ano de 1997, nasceu F1. Após o nascimento da criança, retornaram para os Estados Unidos onde permaneceram por 16 anos. Em 2000, nasceu a segunda filha do casal, e em 2003, F3, ambos de nacionalidade americana.

As atividades profissionais realizadas nos Estados Unidos pautaram-se na continuidade do exercício religioso por meio da fundação de uma igreja e das práticas inerentes à ocupação de pastor. Em julho de 2013 a família imigrou para o Brasil, a fim de estabelecer uma igreja local segundo os mesmos princípios adotados nos EUA. Durante a entrevista, estiveram presentes todos os membros familiares.

Família Argentina (FAr)

A família Argentina é constituída por P2 (52 anos), empresário comercial de uma loja de artigos de praia e artesanato, M2 (53 anos), empresária do ramo hoteleiro de uma pousada do litoral catarinense e os filhos: F4 (27 anos) e F5 (25 anos). Em 1983 o casal se conheceu na Argentina quando M2 mudou-se de residência para o mesmo bairro que P2, tornando-se vizinhos. Após dois anos entre namoro e noivado, casaram-se em 1985 na mesma cidade. A primeira filha do casal nasceu em 1987 na Argentina e, em 1989, nasceu o segundo filho, também no mesmo país. Por motivos econômicos, tendo em vista a crise financeira da Argentina, imigraram para o Brasil em 2001 a fim de obter melhores condições de vida.

As atividades profissionais realizadas no país de origem por P2 e M2 pautavam-se na fabricação de artigos em cerâmica para a comercialização em shoppings centers. Após a imigração para o Brasil, a família realizou diversas ocupações, desde a prestação de serviços como faxinas e pinturas até comprarem uma fábrica têxtil. Posteriormente, estabeleceram uma loja de artigos de praia e cerâmica, bem como uma empresa do ramo hoteleiro em uma cidade do litoral catarinense. Durante a coleta de dados estiveram presentes o casal e o filho mais novo, uma vez que a filha mais velha reside em outra cidade.

Família Boliviana (FB)

A família Boliviana é formada por P3 (39 anos), representante comercial e consultor de Software, por M3 (39 anos), professora de língua inglesa e também consultora de Software, e dos filhos: F6 (11 anos) e F7 (08 anos). O casal se conheceu na Bolívia na mesma universidade que estudaram, sendo colegas de curso no ano de 1996. Em 2001, após 05 anos entre namoro e noivado, casaramse no mesmo país. O primeiro filho nasceu em 2003, sendo diagnosticado com uma doença genética aos cinco anos de idade. Após três anos do nascimento de F6, nasceu o segundo filho do casal, também boliviano.

A família viajou para os Estados Unidos em 2008 para descobrir qual era a deficiência de F6. Ao certificarem-se do diagnóstico recebido, imigraram para o Brasil, a fim de obter tratamento médico para o filho, uma vez que na Bolívia, tal prescrição medicamentosa não se encontrava disponível. Antes da imigração, o casal administrava a oficina mecânica familiar e M3 era professora de inglês. Ao imigrarem para o Brasil, estabeleceram uma empresa de consultoria de software e M3 continua ministrando aulas particulares e em uma escola de língua inglesa. Durante a entrevista todos os membros familiares estiveram presentes.

Família Haitiana (FH)

P4 (38 anos), auxiliar operacional de uma empresa de utensílios culinários, M4 (35 anos), responsável pelo cuidado do lar, e os filhos: F8 (9 anos) e F9 (2 anos), compõem a família haitiana. P4 era viúvo de sua primeira esposa já tendo sua filha F8 quando conheceu M4 em 2008. O casal encontrou-se pela primeira vez em um culto na igreja onde frequentavam, na República Dominicana. Em 2010 se casaram e mudaram-se para o Haiti, onde nasceu o filho mais novo de P4. Tendo em vista as dificuldades financeiras que assolaram o país de origem nos últimos anos e a baixa qualidade de vida, a família imigrou para o Brasil em 2013. Todavia, P4 imigrou antes da esposa e dos filhos, para conseguir um emprego e um local para a família residir. Após um ano no Brasil, M4 imigrou trazendo as crianças.

Antes da imigração, P4 trabalhava como vendedor ambulante de acessórios e roupas, enquanto que M4 ocupava-se em uma confecção têxtil, na organização do estoque de roupas femininas. Após a vinda para o Brasil, P4 passou a trabalhar como auxiliar operacional em uma empresa de utensílios culinários, enquanto que M4 mantém-se no cuidado das atividades domésticas e das crianças. Durante a entrevista todos os membros familiares estiveram presentes.

Família Peruana (FP)

A família Peruana é composta por P5 (56 anos), médico pediatra, por M5 (51 anos), responsável pelo cuidado do lar, e pelos filhos: F10 (18 anos) e F11 (15 anos). Contudo, apenas o filho mais novo reside com os pais, tendo em vista a saída de casa do filho mais velho para cursar Medicina em outra cidade. O casal se conheceu através de amigos, em uma festa de aniversário. Tornaram-se amigos e depois de um ano, começaram a namorar. Após 10 anos de namoro e 02 anos de noivado, casaram-se no Peru em 1991. O primeiro filho do casal, nasceu em 1996 no país de origem e em 1999 nasceu o segundo filho no Brasil, após dois anos de imigração.

Em 1997 a família imigrou para o Brasil por motivos econômicos, a partir de uma oferta de trabalho que P5 recebeu para cursar especialização médica. Inicialmente imigrou sozinho e, passado dois meses, M5 imigrou com o filho mais velho, que na época, tinha um ano e meio. Antes da imigração, P5 atuava como pediatra em Lima e M5 trabalhava no Poder Judiciário até o nascimento de seu filho. Ao imigrarem para o Brasil, P5 continuou atuando como pediatra em uma unidade básica de saúde, enquanto que a M5 passou a dedicar-se às atividades do lar e no cuidado com os filhos. Durante a coleta de dados, esteve presente somente o casal, tendo em vista que F10 reside em outra cidade e o F11 não pôde participar.

Categoria 1 - Dificuldades no processo de adaptação cultural

Esta categoria teve como finalidade apresentar as principais dificuldades vivenciadas pelas famílias migrantes no país de acolhimento, cujas subcategorias são discutidas a seguir.

Todas as famílias pesquisadas apontaram como um dos maiores entraves no processo de adaptação, o sentimento em relação às perdas (subcategoria 1.1) de amigos e parentes que não imigraram, falecimento de pessoas significativas no país de origem, sendo discutidas também, algumas estratégias utilizadas de manejo. Alguns relatos são demonstrativos:

Só sinto uma lembrança, porque eu tenho muito bons amigos na Argentina. Nós falamos pela internet, eles vem pra cá e nossos filhos se dão muito, eles também vão pra lá. Sinto saudades desses amigos, de domingo quando fazíamos algo juntos, dos almoços... (FAr - M2)

Dia 23 de dezembro do ano passado meu sobrinho morreu, isto tocou meu coração por eu estar muito distante, mesmo não sendo muito próxima dele eu me sinto muito culpada por estar distante de minha família (...) Mesmo se tratando dos pais do meu marido, eles têm 78 anos, e o fato de fazermos a escolha de ficar muito tempo no Brasil, é que eles vão morrer enquanto nós estivermos por aqui. Isso deixou claro e óbvio pra mim que as dificuldades da distância são grandes.... (FAm - M1)

As perdas ou afastamento das referências fundadoras, do quadro ou "envelope" cultural e a ruptura dos laços significativos podem fragilizar a identidade e comprometer o planejamento futuro dos imigrantes (Martins-Borges & Pocreau, 2009). Isto, porque elaborar a perda ou luto demanda um processo de reorganização interna e familiar, tendo em vista a dificuldade de encontrar sentido na experiência migratória nas etapas iniciais de ajustamento (McGoldrick, 2003). É comum que nos primeiros tempos de adaptação os membros familiares experimentem sentimentos de tristeza, saudosismo, vazio e desamparo, os quais poderão ser elaborados de forma e num tempo diferenciado mediante o processo individual de cada um.

Dentre vários estudos que têm contemplado a migração familiar, e, sobretudo, a adaptação cultural de sujeitos e famílias imigrantes (Soto, 2012; Martínez, 2009; Coutinho & Ramos, 2012; Becker & Martins-Borges, 2014; Calvo, 2006) o luto ou perda, salienta-se enquanto um aspecto premente neste processo, uma vez que o processo migratório envolve perdas materiais, psicológicas e sociais que resultam na elaboração de um luto.

Outros fatores que obstaculizaram o ajustamento após a chegada ao país nortearam às questões burocráticas quanto à documentação (subcategoria 1.2), questões financeiras e de trabalho (subcategoria 1.3), as quais são fundamentais para a manutenção da vida familiar e social. Os relatos a seguir detalham esses dados:

Viemos para uma cidade nova sem ter ideia de qual bairro iríamos morar (...) como não conheço ninguém aqui, não tinha fiador, foi quase impossível para nós alugarmos uma casa, assim se você se muda pra o Brasil sem conhecer ninguém, é difícil, pois todo mundo precisa de fiador (FAm - P1)

O início até conseguir trabalho, não foi fácil. Não tinha dinheiro pra mim, muito menos pra mandar pra lá! Logo pensei "quero voltar pro Haiti!" Mas, nem passagem pra voltar eu tinha... Eu cheguei a passar fome (...) Depois, como eles vieram, eu tenho mais três pra sustentar e 1.200 reais pra pagar 800,00 reais de aluguel, água, luz, alimentação... E ainda mandar dinheiro pro meu pai pagar sua casa lá na República Dominicana, não sobra nada! (FH - P4)

As narrativas citadas apontam as dificuldades de documentação referente à moradia e problemas financeiros e de trabalho. As famílias Americana, Argentina e Boliviana mencionaram a falta de contatos a quem pudessem recorrer na chegada, o que dificultou as transações documentais no aluguel de um imóvel. Situações como essa estão presentes na vivência de muitos imigrantes ao chegarem ao país de acolhimento, o que varia de acordo com a legislação e os deveres previstos na normatização migratória vigente.

Nesta perspectiva, o estudo de Queiroz (2008) apresentou que as famílias imigrantes no contexto brasileiro encontraram dificuldades no que se referem às burocracias exigidas nas atividades rotineiras, tais como locação de imóvel e ingresso dos filhos na escola. Por tais motivos, é importante atentar para um adequado planejamento familiar, pois conforme Falicov (2001), a falta de preparo para a migração pode constituir-se um fator de risco para as famílias migrantes, tendo em vista o estado de vulnerabilidade dos imigrantes em um novo contexto, por vezes, desconhecido e com baixo acesso a redes de contato.

Além disso, a falta de trabalho e dificuldades financeiras constituíram-se desafios expressivos em quase todas as famílias do estudo. Tais achados se assemelham aos estudos de Marin & Pozobon (2010) cuja análise do choque cultural evidenciado pelas famílias migrantes pautou-se, especialmente, nas dificuldades para encontrar trabalho e habitação, bem como na documentação e questões burocráticas.

Convém salientar, que além das dificuldades de conseguir trabalho e manterse economicamente, a família Haitiana mencionou os desafios de enviar remessas financeiras para os familiares no país de origem. Esta situação é comum na realidade de famílias imigrantes, que dentre as várias motivações para imigrar, também apontam o auxílio financeiro para os familiares que não imigraram, o que se coaduna com as pesquisas de Martínez (2009); Caplan (2007); Soto (2012) e Mercer (2012), em que as remessas financeiras constituíram-se um dos objetivos prementes para as melhores condições de vida dos familiares que ficaram no país de origem.

Ainda na Categoria 1, as dificuldades referentes à língua (subcategoria 1.4) caracterizaram-se dimensões psicossociais de ajustamento ao novo contexto cultural, evidenciados por três famílias pesquisadas. Alguns relatos são ilustrativos:

Aprender o idioma tem sido um processo muito lento para mim, o que me frustra, isto me causa insegurança, eu acredito que minha adaptação por completo somente vai acontecer quando eu aprender o idioma... (...) A língua ainda tem sido um dos maiores desafios. (FAm - M1)

Falo melhor em espanhol, porque minha língua mesmo é o crioulo. Lá no Haiti a gente aprende, além do crioulo, o francês, o inglês e o espanhol. (...) Pra mim, o português é o mais difícil. O importante é que eu comunico, meio misturado com o espanhol, mas tem que falar (...) Acho que eles (filhos) tão sentindo dificuldade, é com o idioma... (FH - P4)

Compreende-se que a língua atue como uma parte integrante do desenvolvimento psíquico, inserida na construção da linguagem simbólica do sujeito (Martins-Borges, 2013). Não obstante, outra função que a língua exerce é na diferenciação entre os membros de um grupo. Rodrigues (2012) salienta que para se diferenciar de outros grupos, farão da língua seu principal símbolo identitário, ou seja, quem desconhece a língua fica excluído do grupo, ao passo de que aquele que a domina, o integra. Logo, a língua não é apenas a ferramenta própria de cada membro da sociedade, mas sua posse significa o pertencimento ao grupo, sociedade, cidade ou país. Pode-se pensar que a ausência de domínio de uma nova língua, pode predispor a falta de inclusão em um grupo do país de acolhimento, como observou-se na família Americana.

Outro aspecto que chama a atenção nas dificuldades relacionadas à língua refere-se ao processo dos membros familiares em sua aquisição. No caso da família Peruana, o pai salienta que sua aprendizagem ocorreu de modo mais rápido que sua esposa, conforme se pode observar o relato:

Eu me adaptei mais rápido, talvez (...) na verdade aprendi o português aqui no Brasil através das consultas e da comunicação. Acredito, porque eu saía para os atendimentos. Já a Elisa, ficava em casa... (FP - P5)

O participante atribui que sua adaptação linguística foi favorecida a partir da inserção no contexto laboral, o que lhe permitiu maior contato e comunicação com o país de acolhimento, enquanto que o processo de aprendizagem de sua esposa pode ter sido mais lento, já que suas atividades destinavam-se ao cuidado do lar e dos filhos. Semelhantemente ao caso da família Peruana, observou-se que a aquisição do idioma pela família Americana foi mais facilitada para o pai e os filhos, já que estes estudavam e o pai ocupava-se com o trabalho; enquanto que para a esposa, o processo foi mais lento, uma vez que a ocupação laboral restringia-se às atividades domésticas e familiares.

Situações assim são comuns no caso de migrações familiares, pois como esclarece Sluzki (1997), o processo de adaptação ao novo ambiente, e neste caso, da aprendizagem de um novo idioma, pode ser vivenciado de modo e intensidades diferentes pelos membros familiares, podendo emergir desequilíbrios interpessoais nas relações, os quais implicarão na estrutura familiar consoante aos papéis e funções exigidos em cada subsistema que podem ser alterados pelo evento da migração na trajetória dessas famílias.

Convém apontar que outras dificuldades, tais como, a adaptação escolar, preconceitos e documentações referentes à obtenção do visto, constituíram-se, os demais, entraves no processo de adaptação ao novo contexto cultural vivenciado pelas famílias estudadas. Na perspectiva sistêmica, pode-se compreender que o processo migratório vivenciado pelas famílias constitue-se como pontos de flutuação no sistema familiar. As flutuações aludem às perturbações/crises no sistema que desencadeiam um processo de auto-organização, buscando encontrar outras formas de funcionamento a partir de soluções possíveis. Ou seja, entendese que as dificuldades encontradas no processo de adaptação caracterizam-se como eventos perturbadores ou estressores na dinâmica familiar, de modo que após a migração, a família busca novas formas de funcionar para garantir a autoorganização de seu sistema.

Categoria 2 - Aspectos facilitadores no processo de adaptação

Esta categoria buscou discutir alguns recursos e estratégias de enfrentamento vivenciadas pelas famílias imigrantes frente ao processo adaptativo ao contexto majoritário. Assim, emergiram-se duas subcategorias: (Práticas Religiosas - 2.1) e (Apoio Social - 2.2).

A vivência da religiosidade foi um aspecto observado em duas famílias pesquisadas, as quais atribuíram à dimensão do Sagrado, o auxílio em momentos de crise e a esperança em situações adversas:

Me ajudou muito participar dessa igreja batista daqui quando cheguei (...) Eu ia pra igreja e Deus me ajudava (...) Eu acredito que quando você precisa, Ele nunca te deixa, Ele te ajuda! (FH - P4)

Sabe, quando você olha as nações da terra onde se vê opressão e olha para as dificuldades, parecendo não ter esperança, mas daí... Você adora a Deus e olha pra Ele e vê o quanto Ele é grande, isto te enche de fé e te capacita a fazer grandes orações, pois você está diante de um grande Deus. (FAm - M1)

O envolvimento com a igreja e com as práticas religiosas, como a oração, parece funcionar como uma estratégia de enfrentamento do tipo religioso no processo de adaptação vivenciado, uma vez que além da participação eclesiástica, emergem percepções de senso religioso, ao mencionar que "quando você precisa, Ele nunca te deixa, Ele te ajuda!". Essa concepção vai ao encontro do que propõe Amatuzzi (2000) acerca das experiências religiosas, as quais se tratam de acontecimentos marcantes que o sujeito estabelece em relação ao Sagrado, atribuindo significados e expectativas.

Walsh (2003) salienta que o exercício da religiosidade mediado pelas crenças e práticas religiosas pode atuar enquanto recurso ao enfrentamento de crises familiares, especialmente àquelas que se encontram num estado de vulnerabilidade, entre as quais, destaca-se a migração.

Foram encontrados nos estudos de Portes e Rumbaut (2006) e Assunção (2011), indicativos de que as práticas religiosas e o apoio das igrejas constituemse subsídios importantes na adaptação cultural de imigrantes no auxílio à integração com a comunidade local e no apoio prestado a situações adversas. Além disto, Vasquéz e Ribeiro (2007) verificaram que a religiosidade serviu para a construção de sentido ao processo de migração vivenciado por imigrantes e seus familiares em um ambiente desfavorável, vinculando tal processo à experiência da espiritualidade mediada pela crença em Deus.

O apoio social (subcategoria 2.2) também se constituiu um aspecto facilitador importante no processo de adaptação, sido mencionado por quatro famílias pesquisadas. Os aspectos referentes à documentação tais como o visto e à moradia, constituíram-se como fatores de dificuldades vivenciadas por algumas famílias, como se discutiu previamente na subcategoria 1.1. Todavia, o apoio recebido por representantes religiosos e contatos da rede familiar, favoreceu a resolução das dificuldades encontradas e reforçou o sentimento de segurança, conforme se observa:

Chegando aqui, tivemos a graça de encontrar pessoas que foram maravilhosas, como o Padre da paróquia e a funcionária da imobiliária que nos ajudou com o aluguel do apartamento... Eu lembro do Padre dizendo: "A gente vai dar um jeito, a gente vai fazer isso, vamos tentar o visto pela residência permanente, se conseguirmos por um ano, depois fica mais fácil para conseguirem permanente e assim, pronto (...) Pra nós que estávamos muito abalados, porque a gente não sabia o que fazer, ele apareceu, abriu os braços e disse que iria nos ajudar nisso e que estava conosco." (FB - M3)

Compreende-se por apoio social, a interface entre o indivíduo e o sistema social, cuja finalidade é auxiliar a pessoa na adaptação a determinadas situações de estresse, tais como o ajustamento social (Siqueira, Betts & Dell'Áglio, 2007), e neste caso, da migração. Além disto, visa ressaltar os aspectos positivos das relações sociais e os vínculos estabelecidos na percepção de autoconfiança e obtenção de recursos para adaptação ao meio, bem como o compartilhar de informações e o auxílio em momentos de crise (Andrade & Vaitsman, 2002; Bao, Hass & Pi, 2007).

No que tange às funções do apoio social recebidas, foram mencionadas as funções afetivas, instrucionais e de ajuda material. Alguns depoimentos são representativos:

Não conhecia ninguém quando vim. Mas, Deus sempre colocou pessoas em meu caminho para ajudarem, não deixou faltar nada! (...)Aqui recebemos apoio de oração, ajuda financeira e amizade das pessoas. (FH - P4)

(...) A gente conheceu um casal de amigos que tinha um grupo de amigos de outros países (...) Nos reuníamos pra tomar um chá e conversar e daí, fomos convidando os esposos também... (FB - M3)

O que me ajudou muito, é que quando eu falava coisas erradas, meus amigos davam risada, mas eles também me ajudavam a corrigir, os professores me ajudavam bastante, principalmente a professora de português, isto me ajudou muito com o idioma e por já ter amigos tive uma experiência melhor com as pessoas. (FAm - F2)

Os relatos expressam diferentes situações de auxílio conferidas, desde o aprendizado de uma nova língua, ajuda material e afetiva no país de acolhimento. Destaca-se que a percepção em relação ao outro de disponibilidade e comprometimento em ajudar, associa-se aos recursos que o migrante encontra para lidar com situações difíceis, contribuindo para a promoção da autoestima e autoeficácia.

Segundo Marandola e Dall Gallo (2010) o apoio social fornece aos migrantes um espaço de segurança, novas aprendizagens e uma estratégia para a adaptação e sustentabilidade em um novo contexto cultural. Deste modo, pode atuar no amortecimento ao impacto das mudanças territoriais por permitir o incremento da autoestima, senso de eficácia, autoconfiança e possibilitar o senso de pertença que se estabelece a partir da identificação e cooperação entre os integrantes da rede social.

Categoria 3 - Avaliação da migração familiar

Por fim, esta categoria apresentou como finalidade refletir sobre as expectativas familiares e as percepções ante ao processo de migração realizado, resultando em duas subcategorias: (Antes da migração - 3.1) e (Após a migração - 3.2).

Quatro famílias pesquisadas teceram reflexões quanto às expectativas sustentadas antes da migração (subcategoria 3.1), cuja possibilidade de adquirir valores materiais e modos de superação no aspecto ocupacional que desenvolviam constituíram-se objetivos prementes, conforme se evidenciam os relatos da família Haitiana e Americana:

Queria trabalhar, juntar um dinheiro e comprar uma casa pra morar com minha esposa e meus filhos... (FH - P4)

(...) Aqui parecia o lugar onde nossa família iria se superar, ser bem sucedida naquilo que estaríamos fazendo! (FAm - M1)

A ênfase atribuída ao aspecto ocupacional e à busca por melhores condições materiais representaram as expectativas iniciais dessas famílias. Estes achados vão ao encontro dos resultados advindos de Coutinho e Ramos (2012), cuja amostra de imigrantes residentes na cidade de Genebra/Suíça, apresentaram os valores materiais e a possibilidade de aquisição como maiores motivadores para a imigração e expectativas.

Por outro lado, no que se remete às percepções após a migração (subcategoria 3.2), com exceção da família Argentina que não esclareceu este aspecto, todas as demais salientaram no momento presente, maior estabilidade e adaptação ao país de acolhimento, a partir da superação das dificuldades iniciais e da retrospectiva da migração familiar. Alguns discursos representam a respeito:

Agora que já se passaram cinco anos, eu acho que a gente já se adaptou né? Não me desespero mais em pensar "o que vamos fazer amanhã? Estamos mais estabilizados (...) Acho que a gente não tem muito problema com as crianças na escola, agora a gente tem um outro tipo de trabalho também, estamos mais tranquilos... A gente tá fazendo consultoria aqui em casa, nós trabalhamos em casa. (FB - M3)

Eu sinto que agora estou começando a aprofundar minhas raízes, estou ficando mais relaxado, os primeiros seis meses eu estava muito estressado, tudo era difícil e tudo deu errado. Eu sempre pensei que depois de uns seis meses eu poderia relaxar e aconteceu, agora eu não preciso gastar tanta energia para viver aqui... (FAm - P1)

Olha, é estranho, porque não é fácil você largar tudo, deixar teus pais e o lugar onde você viveu... Então, vir pra cá, foi uma mudança! Foi uma questão de circunstância também,... Ficar aqui no início, sem minha família foi o pior! Hoje estou feliz! Acho que valeu à pena! (FH - P4)

De modo geral, os depoimentos representados pelos membros familiares, apontaram aspectos satisfatórios a partir da conquista de uma estabilidade material, ocupacional e afetiva após a migração. Todavia, não ocultaram dificuldades percebidas nos primeiros momentos em que chegaram ao país de acolhimento. Infere-se que o aspecto de tempo de imigração contribua para o processo adaptativo dessas famílias, uma vez que a média do tempo de imigração foi discrepante entre os participantes, de modo que a família Americana e Haitiana que possuem um ano de imigração no país de acolhimento, ainda encontram-se num período mais recente de ajustamento.

Segundo Marin e Pozobon (2010) no processo migratório há um período de idealização ao novo contexto cultural em que muitas vezes, os imigrantes frustramse posteriormente, por nem sempre alcançarem de imediato o que havia sido proposto. No entanto, com o passar do tempo e com a dedicação, os sonhos profissionais e aspirações em estudar, bem como dominar uma nova língua e auxiliar com remessas financeiras os familiares que ficaram, podem tornar-se possíveis, a partir dos recursos internos e externos encontrados.

 

Considerações Finais

Esta pesquisa teve como finalidade analisar as dimensões psicossociais na dinâmica de famílias que migraram para o Brasil. Os pressupostos teóricos adotados permitiram uma visão integradora do fenômeno na medida em que o enfoque intercultural considerou a influência dos fatores culturais e familiares no desenvolvimento humano e nos significados atribuídos à migração; enquanto que a Teoria Sistêmica permitiu refletir o processo migratório à luz de novos paradigmas científicos, tais como a complexidade e a instabilidade. Vislumbra-se, assim, uma perspectiva dinâmica e interacionista da migração na medida em que se observa a interposição dos níveis individuais, familiares e sociais, como aspectos indissociáveis para a compreensão do fenômeno.

Evidenciou-se que as dificuldades encontradas pelos participantes no processo de adaptação cultural, tais como a moradia, as questões de trabalho e financeiras, aquisição da língua, preconceitos, adaptação escolar, constituíramse como elementos que dificultaram a inserção social das famílias. É importante considerar que a migração por si só, é um evento desencadeador de mudanças, as quais podem ser vivenciadas de um modo mais ou menos conflituoso ou harmonioso; o que irá depender dos recursos psicológicos e sociais dos imigrantes, assim como das políticas e condições de acolhimento do país receptor e do tipo de migração realizada pelos sujeitos e famílias estrangeiras. Neste sentido, os dados parecem ter demonstrado que com a presença de aspectos facilitadores na história da migração dessas famílias, tais como o apoio social encontrado no país de acolhimento, a vivência das práticas religiosas e as estratégias relacionais, o processo adaptativo foi facilitado. Não obstante, avaliou-se a imigração como um evento bem-sucedido até o momento presente para as famílias, tendo em vista o alcance da estabilidade material, ocupacional e afetiva encontrada.

Em relação aos aspectos metodológicos, aponta-se que a pesquisa qualitativa contribuiu para a compreensão aprofundada do fenômeno estudado, na medida em que possibilitou identificar e interpretar os significados atribuídos às mudanças na dinâmica das famílias participantes que migraram para o sul do Brasil. No tocante às limitações encontradas, aponta-se a aplicação da técnica de coleta de dados se fosse utilizada em outro contexto cultural, neste caso, deveria ser adaptada a fim de possibilitar maior uniformidade para compreensão dos termos adotados. Observa-se também, que o tempo de imigração discrepante entre as famílias participantes é um aspecto que precisa ser considerado na temática investigada em estudos similares.

Com base nas questões apontadas, sugere-se ainda, fenômenos que podem nortear pesquisas futuras como: I) Estudos longitudinais para investigar as dimensões psicossociais da migração familiar; II) As funções e atributos dos vínculos das redes sociais de famílias imigrantes e III) O impacto psicossocial da migração na dinâmica de famílias refugiadas.

Enfatiza-se que o crescente fenômeno migratório presente nos diversos contextos públicos, exija esforços na reformulação de estratégias legais e de políticas públicas com vistas à melhoria da qualidade de vida, à saúde, ao acesso aos serviços públicos e ao cumprimento de direitos com enfoque integral no processo de adaptação cultural e nas vivências psicológicas, familiares e sociais dos migrantes.

 

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Recebido: 12/02/2015 / Corrigido: 01/04/2015 / Aceito: 09/04/2015.

 

 

1 Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina. Contato: Rua 1201 nº 120 apt 903 - Centro - Balneário Camboriú/SC - CEP: 88330-792. Tel: (47) 9746-2000; e-mail: anapaulasbc@hotmail.com
2 Doutora em Psicologia. Docente em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina; email: Departamento de Psicologia da UFSC. Contato: Centro de Filosofia e Ciências Humanas. Campus Universitário Trindade, CEP: 88040-500, Florianópolis - SC - Brasil. Tel/Fax: (48) 3721-9984. E-mail: lucienne.borges@ufsc.br

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