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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.35 no.89 São Paulo July 2015

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

"Em transe": um estudo quali-quantitativo sobre o papel das experiências dissociativas e somatoformes nas crenças e rituais religiosos

 

"In trance": a quali-quantitative study on the role of dissociative and somatoform experiences for religious beliefs and rituals

 

"En trance": un estudio cuali-cuantitativo sobre el papel de las experiencias disociativas y somatomorfas en las creencias y rituales religiosos

 

 

Everton de Oliveira Maraldi1; Wellington Zangari2

Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo - USP

 

 


RESUMO

As pesquisas internacionais têm sustentado a correlação entre experiências dissociativas e determinadas crenças e experiências religiosas ou alegadamente paranormais. Tais crenças e experiências estão também correlacionadas com outras variáveis ligadas à dissociação, como queixas somáticas e trauma infantil. Porém, há escassez de estudos no Brasil. A presente pesquisa emprega uma metodologia qualiquantitativa, abrangendo um total de 1450 respondentes brasileiros. Os resultados mostram que os membros de religiões mediúnicas, os esotéricos e ocultistas e os indivíduos sem afiliação definida não diferem entre si em termos de dissociação cognitiva, mas pontuam acima dos ateus e agnósticos e dos católicos e evangélicos. As religiões mediúnicas apresentam média significativamente maior em dissociação somatoforme (sintomas conversivos e psicossomáticos) comparativamente aos demais grupos. Quanto maior é o nível de crença paranormal, dissociação e transliminaridade (uma medida de experiências místicas e de alteração da consciência) dos participantes, maior é seu nível relatado de sincretismo religioso e de religiosidade individual. Não há diferença entre os grupos para os relatos de trauma na infância. As experiências dissociativas desempenham um papel de legitimação das crenças religiosas e espirituais, sobretudo, em contextos influenciados pelo sincretismo new age, ao facilitarem a alteração de consciência e a transição do quadro de referência cotidiano ao religioso.

Palavras-chave: dissociação, experiência religiosa, identidade, crença.


ABSTRACT

International research have been sustaining a correlation between dissociative experiences and religious beliefs or alleged paranormal experiences. In addition, such beliefs and experiences often correlate with other variables related to dissociation, as somatic complaints and childhood trauma. However, there is a scarcity of research in Brazil. The present study employs a quali-quantitative methodology, covering 1,450 respondents. Members from mediumistic religions, esoteric groups, and individuals with no defined membership do not differ in terms of cognitive dissociation, but score above atheists, agnostics, Catholics and Pentecostals. Mediumistic religions show significantly higher scores in somatoform dissociation (conversion and psychosomatic symptoms) compared to the other groups. The higher is the level of paranormal belief, dissociation and transliminality (a measure of mystical experiences and altered consciousness) of participants, the greater the reported level of religious syncretism and individual religiosity. There is no difference between groups for trauma reports in childhood. Dissociative experiences play a legitimizing role of religious and spiritual beliefs, especially in contexts influenced by new age syncretism, as they facilitate alterations in consciousness and the transition of daily life framework to religious frames of reference.

Keywords: dissociation, religious experience, identity, belief.


RESUMEN

Las investigaciones internacionales han sostenido la correlación existente entre las experiencias disociativas y ciertas creencias y experiencias religiosas o presuntamente paranormales. Tales creencias y experiencias también se correlacionan con otras variables relacionadas con la disociación, tales como las quejas somáticas y trauma infantil. Sin embargo, hay pocos estudios realizados en Brasil que aborden esta temática. La presente investigación utiliza una metodología cuali- cuantitativa, cubriendo un total de 1.450 encuestados brasileños. Los resultados muestran que los miembros de las religiones de médium, esotéricas y ocultistas, así como los individuos sin alguna filiación definida no difieren entre sí en términos de disociación cognitiva, pero puntúan por encima de ateos y agnósticos y de los católicos y evangélicos. Las religiones de médium presentan una media significativamente mayor en disociación somatomorfa (síntomas conversivos y psicosomáticos) en comparación con otros grupos. Cuanto mayor el nivel de creencia paranormal, disociación y transliminaridad (medida de las experiencias místicas y de alteración de la conciencia) de los participantes, mayor es su nivel reportado de sincretismo religioso y de religiosidad individual. No se encontraron diferencias significativas entre los grupos en cuanto a relatos de trauma en la infancia. Las experiencias disociativas juegan un papel legitimador de las creencias religiosas y espirituales, especialmente en contextos influenciados por el sincretismo new age, al facilitar las alteraciones de los estados de conciencia y la transición de las referencias cotidianas a lo religioso.

Palabras clave: disociación, experiencia religiosa, identidad, creencias.


 

 

Introdução

A dissociação pode ser definida como uma perda temporária ou persistente de informação ou controle sobre processos mentais ou psicomotores que se acham, ordinariamente, sob o domínio voluntário da consciência, do repertório comportamental usual ou do autoconceito (Cardeña & Carlson, 2011). O fenômeno da dissociação é multifacetado e pode variar da absorção imaginativa, passando pelos estados de transe, amnésia e fuga dissociativas - com a formação de lacunas mais ou menos significativas na memória -, até a alegada divisão do Eu em identidades distintas e conflitantes, como no chamado transtorno dissociativo de identidade (Carlson & Putnam, 1993). Definições mais recentes se referem a duas modalidades básicas de dissociação: a compartimentalização (compartmentalization) e o alheamento (detachment). A dissociação enquanto compartimentalização envolveria fenômenos em que se observa o isolamento funcional de conteúdos mentais diversos (e.g., sensações, lembranças, funções psicomotoras etc.), os quais passam a agir com maior ou menor autonomia em relação à consciência. A compartimentalização incluiria a amnésia dissociativa, os fenômenos histéricos e conversivos e outros exemplos de dissociação somatoforme. Já o alheamento corresponderia a experiências de ausência, envolvimento imaginativo e "alienação" frente a si mesmo e ao ambiente imediato, em que ocorreriam alterações da consciência. Em alguns casos, como nas experiências fora do corpo e na despersonalização / desrealização, o indivíduo se vê aparentemente em uma perspectiva de terceira pessoa, como se os eventos acontecessem com outrem, ou relata alterações significativas na imagem corporal e na percepção do ambiente. Aqui também se incluiria a dissociação peritraumática - isto é, a dissociação que se dá durante ou próxima de um evento traumático (Spitzer et al., 2006).

Muito embora a dissociação não esteja presente apenas em contextos religiosos, nem seja uma prerrogativa invariável de tais práticas e atividades sociais, as pesquisas têm sustentado, há bastante tempo, sua recorrente associação com determinadas crenças e experiências religiosas e alegadamente paranormais (Irwin, 1994a; Pekala, Kumar & Marcano, 1995; Richards, 1991). Entendemos como paranormais todas aquelas modernas alegações de eventos peculiares que, caso viessem a ser corroboradas empiricamente, poderiam contrariar certos princípios científicos já estabelecidos (tanto de ordem física quanto biológica ou psicológica), e talvez exigissem, para sua aceitação, uma revisão dos princípios e teorias que contestam ou pretendem ampliar (Tobacyk, 1995). Em geral, alegações de fenômenos paranormais acompanham a atribuição de propriedades mágicas e transcendentais a objetos ou seres vivos (Zusne & Jones, 1989). Os psicólogos que se dedicam ao estudo dessas crenças e experiências costumam incluir nessa definição termos tais como ‘telepatia', ‘premonição', ‘mediunidade', entre outros (Maraldi, 2011).

Historicamente, sintomas histéricos (e.g., dissociativos, somatoformes e conversivos) foram considerados pelos psicólogos e psiquiatras como a base de muitas experiências místicas e espirituais (por exemplo, Janet, 1889). Crenças e experiências paranormais estão também frequentemente correlacionadas com outras variáveis ligadas à dissociação, como sintomas depressivos e ansiógenos, queixas somáticas e trauma infantil. Sharps, Matthews e Asten (2006) verificaram correlação positiva entre crença paranormal e sintomas de depressão, hiperatividade e dissociação em uma amostra de estudantes. Também se descobriu associação semelhante entre crença paranormal e queixas somáticas (Houran, Kumar, Thalbourne & Lavertue, 2002). Outros estudos identificaram evidências, ainda, de uma correlação entre crença paranormal, ansiedade, estresse e afetos negativos (Dudley, 2000; Machado, 2009; Roe & Bell, 2007), bem como tendências maníacas e depressivas (Thalbourne & French, 1995). Seligman (2005) foi capaz de estabelecer interessantes e bem fundamentados paralelos entre manifestações dissociativas de cunho ritualístico, fatores sociais desencadeadores de estresse e diversas alterações fisiológicas. Por sua vez, Irwin (1992, 1994b) observara que indivíduos com maiores pontuações em crença paranormal haviam também relatado mais experiências traumáticas. Tais resultados parecem convergentes com o chamado modelo do trauma (Dalenberg, Brand, Gleaves, Dorahy, Loewenstein, Cardeña, Frewen, Carlson & Spiegel 2012), que entende a dissociação como uma resposta defensiva contra vivências traumáticas e estressantes. Nesse sentido, Ross e Joshi (1992, p. 361) defenderam que as experiências paranormais "podem representar um aspecto da dissociação normal [não patológica] ou uma parte da reação dissociativa a um traumatismo crônico durante infância". Merckelbach, Muris, Horselenberg e Stougie (2000) também sugeriram que a dissociação e a crença paranormal poderiam estar relacionadas, não em função de um trauma infantil real, mas de mecanismos cognitivos compartilhados com o fenômeno das falsas memórias, da tendência à fantasia e da criatividade.

Alguns poderão concluir, em face desses dados, que a origem dessas crenças e experiências residiria em determinados processos patológicos. Embora existam evidências contundentes a esse respeito, é possível, do mesmo modo, que os resultados não indiquem uma relação causal obrigatória entre as duas variáveis, mas simplesmente reflitam tentativas das pessoas envolvidas em atribuir explicações metafísicas, a partir de determinadas referências culturais, às suas experiências e sintomas, quer sejam realmente patológicos ou comuns na população mais ampla. Sharps e outros (2006) lembram que os sintomas de determinadas patologias - como depressão ou transtorno de déficit de atenção e hiperatividade - podem ser encontrados em amostras não clínicas sob a forma difusa de tendências impulsivas, estresse e tendências depressivas, nem sempre preenchendo os critérios para o diagnóstico adequado de algum desses transtornos.

As pesquisas também indicam variações nas relações entre dissociação e crença religiosa / paranormal que dependem dos grupos estudados, da cultura e das variáveis analisadas. Houran, Irwin & Lange (2001) descobriram que apenas determinadas crenças paranormais estariam positivamente correlacionadas com tendências dissociativas, como foi o caso da crença na reencarnação, na astrologia e na percepção extra-sensorial (isto é, modalidades de crença new age). Roxburgh & Roe (2011) não acharam diferenças significantes entre um grupo de médiuns espiritualistas do Reino Unido e um grupo controle em medidas de dissociação e psicopatologia. Parte dos estudos aponta para uma correlação positiva entre dissociação e experiência religiosa / paranormal, enquanto outros sugerem apenas a crença como variável relacionada (Tobacyk, 1995). Evidências também indicam que a dissociação estaria vinculada a determinadas práticas religiosas e ritualísticas, mas não necessariamente a outras variáveis ligadas à religiosidade (Schumaker, 1995). De nossa parte, ressaltamos haver pouca informação na literatura concernente a possíveis diferenças no nível de dissociação entre grupos religiosos e não religiosos, bem como entre grupos religiosos distintos, o que tende a dificultar o estabelecimento de comparações e a generalização de hipóteses.

Cada vez mais, coloca-se hoje em evidência o fato de que um sintoma (ou conjunto de sintomas) não é capaz, por si só, de apontar a existência de um transtorno, mas sempre depende da sua inserção em um contexto de ocorrência específico para ser denominado como tal. Essa sensibilidade cultural veio a desempenhar um papel importante na criação da categoria de Problemas Religiosos e Espirituais do DSM-IV (Evrard, 2012). Pesquisas recentes indicam, por exemplo, que relatar alucinações - incluindo aquelas de cunho religioso ou paranormal - não representa uma evidência necessária de transtorno mental (Bentall, 2000). Parece indubitável a existência, segundo Evrard (2012, p. 231), de uma ligação parcial entre crença / experiência paranormal e psicopatologia, "mas uma pesquisa mais aprofundada pode melhorar a qualidade do diagnóstico diferencial". O autor salienta, ainda, que a "psicopatologia e as experiências excepcionais estabelecem, portanto, relações complexas, uma podendo contribuir com a outra, e variáveis terciárias podendo contribuir com as duas".

Qual seria o papel desempenhado pelas crenças e práticas paranormais / religiosas no manejo e interpretação desses sintomas e experiências? Vários estudos têm apontado, por exemplo, a função terapêutica e adaptativa dessas práticas no controle de sintomas variados e no enfrentamento de situações de vida adversas e estressantes, enquanto outros sugeriram efeitos nocivos à saúde por parte de algumas dessas práticas (Cf. Maraldi, 2014 para uma revisão). Koenig (2012) fornece uma extensa revisão de estudos que tendem a sustentar a importância das práticas religiosas no manejo dos mais diversificados problemas físicos e psicológicos. Não obstante, essas pesquisas têm também recebido críticas importantes. Enquanto se observa grande quantidade de estudos apontando associações positivas entre práticas religiosas e saúde mental, notase, por outro lado, escassez significativa de investigações psicológicas com respondentes ateus (Farias, 2013). Instituições em defesa desses grupos têm surgido e se expandido nos últimos anos no Brasil, a exemplo da ATEA-Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos. Como a maior parte das pesquisas com ateus foram realizadas, até o momento, nos Estados Unidos, as investigações em contextos culturais diferenciados são bem-vindas.

Para investigar melhor as questões supracitadas, a presente pesquisa aprofundou não apenas as categorias mais cognitivas da dissociação, mas igualmente sua interação com sintomas conversivos, somáticos, depressivos e ansiógenos, de modo a verificar se os padrões observados nas pesquisas internacionais e estudos anteriores dos autores (Maraldi, 2011; Maraldi & Zangari, 2012) se confirmariam em uma amostra de respondentes religiosos e não religiosos, e se auxiliariam na compreensão de certas crenças religiosas ou paranormais - presumivelmente relacionadas a interpretações particulares de experiências dissociativas e de cunho somatoforme.

Todavia, não se trata aqui de reduzir a experiência religiosa a um simples receptáculo cultural para expressões patológicas universais - como se supôs, no passado, em relação à histeria - mas de entendê-la como resultado de um processo psicossocial que, a partir de certa cosmovisão, permite a assimilação de uma série de manifestações ou tendências humanas - em parte idiossincráticas; em parte socialmente construídas - delas se utilizando e a elas remodelando segundo um determinado arcabouço de crenças. Segundo tal modelo, aquilo que se define como "normal" ou patológico deve ser sempre compreendido a partir da complexa intermediação entre o social e o individual (Spink, 2003). Isso não significa negar, em absoluto, que o sofrimento psicológico exista, ou que nenhuma relação tenha com a constituição neurofisiológica ou hereditária de um indivíduo; trata-se, antes, de pensar em seus usos e sentidos culturalmente compartilhados, no papel condicionante do contexto grupal e institucional sobre tais experiências, e em suas significações simbólicas e funções pragmáticas. Sob esse ponto de vista, faz-se necessária uma abordagem mais ampla, que não se atenha exclusivamente a encontrar correlações ou fatores, no nível de interações mecânicas entre diferentes variáveis, mas que igualmente possibilite uma abordagem conceitual sensível à dimensão social dos problemas apresentados. Há razões para supor, por exemplo, que muito da fenomenologia da dissociação tenha adquirido seu lugar, no Brasil, entre determinadas religiões. As análises clínicas ou científicas da dissociação devem levar seriamente em conta seu aspecto psicossocial, dado que, especialmente em nosso país, "práticas de cura e sistemas de representação oferecidos por religiões afro-brasileiras, pentecostais e pela psiquiatria fariam parte de um mesmo sistema, ainda em que em muitas situações representem antagonismos" (Kimati Dias & Santos, 2006, p. 586).

A maneira como uma dada experiência é culturalmente percebida e interpretada parece afetar diretamente o modo como o indivíduo a elabora, bem como a percepção que adquire de si mesmo em função das expectativas e percepções sociais. As crenças e experiências paranormais / religiosas possuem um importante impacto na compreensão da identidade (Maraldi, 2011; Zangari, 2003). Assim, o presente estudo se valeu de uma abordagem ao mesmo tempo quantitativa e qualitativa. Mediante questionários e escalas, abordou relações mais amplas entre as variáveis estudadas. Por meio de observação participante e entrevistas, investigou a fundo os aspectos grupais e individuais dos fenômenos em pauta. Estaria a dissociação relacionada ao nível de crença religiosa ou paranormal? Será que determinados religiosos, como os umbandistas e espíritas (transe mediúnico), os esotéricos (experiências místicas) e os católicos carismáticos e pentecostais (dons do espírito) seriam mais propensos à dissociação do que os ateus, as pessoas sem afiliação definida ou outros religiosos mais tradicionais? Qual a extensão e o impacto dos processos dissociativos e das crenças e práticas religiosas na formação da identidade e na história de vida? Como o contexto grupal e social de inserção dos participantes contribui para a construção de suas crenças e experiências, e para um eventual manejo de sintomas considerados patológicos?

 

Método

Participantes

Os participantes do questionário quantitativo da pesquisa foram 1450 respondentes (67,9% homens), maiores de 18 anos (M = 29,32, DP = 11,27), que integraram um survey online sobre dissociação e variáveis relacionadas. Embora a amostra citada seja uma amostra de conveniência, cujos participantes foram convidados por meio da divulgação do questionário a pessoas do conhecimento do primeiro autor - mediante a participação em redes sociais (Facebook e Orkut), mala direta (lista de contatos do pesquisador e de amigos ou conhecidos), e visitas a diferentes grupos religiosos para observação etnográfica -, o questionário veio a se espalhar pela internet - como de ordinário ocorre nesse tipo de pesquisas - atingindo localidades as mais diversas do país, não obstante uma maior concentração de respondentes do Estado de São Paulo (41,51% da amostra total). A amostra é composta por respondentes de 23 estados brasileiros, mais o distrito federal. Os únicos estados não participantes foram o Acre e o Amapá. Além disso, um número pequeno de participantes do questionário afirmou residir fora do país (Canadá, Estados Unidos e Alemanha). Um pré-teste realizado no início de 2012 com 23 participantes não indicou maiores problemas com o preenchimento das questões.

Os participantes do estudo foram divididos em três grupos hipotéticos: 1) religiosos "dissociadores", 2) pessoas sem afiliação definida e outros religiosos e 3) ateus e agnósticos. A divisão foi pensada de forma que nos permitisse estabelecer comparações e diferenciações entre os participantes quanto às variáveis analisadas. No grupo dos religiosos "dissociadores", pensamos em pessoas que possuíssem algum envolvimento mais ostensivo com práticas religiosas e / ou paranormais potencialmente relacionadas à dissociação, como mediunidade (espíritas e umbandistas), glossolalia / dons do espírito santo (carismáticos católicos e pentecostais) e experiências extra-sensoriais, extracorpóreas, místicas e meditativas (membros de círculos esotéricos como Rosacruz, Teosofia, Racionalismo Cristão, Cientologia etc.). Tal classificação não implica, absolutamente, que uma dada experiência só possa ocorrer em alguns grupos e não em outros. Trata-se apenas de uma divisão arbitrária baseada naquelas experiências que julgamos mais frequentes ou estimuladas em cada contexto. Os critérios de inclusão / exclusão adotados foram especulativos, tendo sido colocados à prova pela pesquisa.

Por participantes "sem afiliação definida" entendemos todos aqueles que não incluíram referência a uma afiliação ou explicitamente negaram envolvimento com afiliações particulares. Por sua vez, tais participantes também não se definiram como ateus ou agnósticos. Alguns deles empregaram as seguintes frases sobre seu posicionamento: "sem religião", "não pertenço a nenhuma religião", "não tenho religião, mas sou monoteísta", "religião interior", "não acredito em religiões e não faço parte de nenhuma", "acredito em Deus e na Bíblia, sem denominação". No grupo dos descrentes figuraram, por sua vez, indivíduos autodeclarados céticos, ateus ou agnósticos, incluindo membros ativos de sociedades ou movimentos assim designados, bem como suas variações (humanismo secular etc.). Curiosamente, a participação dos ateus foi maciça, talvez por se acharem hoje grandemente reunidos pelas redes sociais, como a página do Facebook da ATEA. Por sua vez, a adesão dos evangélicos pentecostais e católicos carismáticos foi baixa.

 

 

No que diz respeito à frente qualitativa, o número de entrevistas biográficas (22) e de observações de campo foi determinado com base no princípio de saturação (Cf. Maraldi, 2011 para uma revisão), sendo realizadas até o momento em que as categorias estabelecidas se mostrassem analiticamente frutíferas e não recaíssem em excessiva monotonia. Os entrevistados podiam tanto preencher inicialmente o questionário online quanto participar previamente da entrevista. No caso destes últimos, o convite para a entrevista se justificava, em geral, por serem membros dos grupos religiosos visitados que haviam aceitado colaborar no estudo, aos quais era enviado depois o questionário online para complementação dos dados. Entre os que preencheram primeiramente o questionário, deu-se ênfase (na seleção para a entrevista) para aqueles que obtiveram escores elevados (ou muito baixos) na escala de dissociação, de forma a viabilizar comparações entre casos extremos. Os demais dados desses participantes (e.g., afiliação religiosa ou não religiosa) foram posteriormente comparados. Tomou-se, ainda, o cuidado de estabelecer certa diversidade e equilíbrio na seleção dos entrevistados, sempre que isso fosse possível, em termos de gênero e idade. A nota de corte para o recrutamento foi de 20 ou + no escore geral da DES (conforme instruções dos autores da escala, Carlson & Putnam, 1993). Os indivíduos dentro dessa faixa foram considerados como potencialmente mais propensos à dissociação do que aqueles que ficaram abaixo da nota de corte.

 

 

Considerando-se que o número de questionários quantitativos foi substancial, e que nem todos os respondentes do questionário online seriam chamados para uma entrevista, utilizamo-nos de uma tabela de números aleatórios (gerada por meio do site Research Randomizer, www.randomizer.org), no intuito de garantir que todos tivessem a mesma chance de serem entrevistados. Apesar de o questionário online cobrir um número bem maior de respondentes, a maior parte das entrevistas e observações foram conduzidas com pessoas e grupos da cidade de São Paulo, pela proximidade ao pesquisador. Aos entrevistados de outras localidades, concedeu-se a oportunidade de uma entrevista por telefone ou e-mail, sendo que todos preferiram a utilização do e-mail. Em algumas poucas ocasiões, tivemos igualmente a oportunidade de entrevistar familiares das pessoas entrevistadas, o que nos permitiu contrastar o discurso dos participantes com pessoas de sua convivência. Outras informações sobre as entrevistas constam do estudo original (Maraldi, 2014).

Procedimentos e instrumentos

O projeto de pesquisa foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, mediante o envio dos documentos pela Plataforma Brasil, CAAE: 09629712.0.0000.5561. A realização do projeto contou com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (nº do processo 2011/05666-1). No intuito de responder às perguntas da pesquisa e avaliar hipóteses psicossociais, cognitivas e psicopatológicas da literatura sobre as relações entre as variáveis estudadas, aplicou-se a seguinte relação de escalas e questionários:

-Escala de experiências dissociativas (Dissociative Experiences Scale ou DES - Carlson & Putnam, 1993) é o questionário mais utilizado mundialmente para rastrear e quantificar fenômenos dissociativos. A escala contém 28 questões relativas a experiências que se pode ter no dia a dia, quando não se está sob o efeito de drogas ou álcool. Até o momento, a DES já foi aplicada em aproximadamente 2.000 estudos e traduzida para vários idiomas, além de apresentar boas propriedades psicométricas e forte correlação estatística com outros questionários sobre dissociação. Em nosso estudo anterior (Maraldi, 2014), a DES denotou ótima consistência interna total (α = 0,945) e subescalas.

- Questionário sobre traumas na infância (Childhood Trauma Questionnaire ou CTQ - Bernstein & Fink, 1998), que consiste em 28 perguntas relacionadas a diferentes eventos traumáticos, que compõem cinco subescalas: abuso físico, abuso emocional, abuso sexual, negligência física e negligência emocional. Além desses cinco componentes, o questionário inclui uma escala controle de minimização / negação das respostas. No estudo de Maraldi (2014), todas as subescalas mostraram consistência interna satisfatória ou excelente, com exceção da subescala de negligência física.

-Escala revisada de crença paranormal (Revised Paranormal Belief Scale ou RPBS - Tobacyk, 2004), que é considerada a escala mais comumente empregada em pesquisas sobre crenças paranormais. É constituída de 26 itens do tipo escala Likert com sete pontos que variam de "discordo totalmente" a "concordo plenamente", os quais abarcam diferentes modalidades de crença paranormal e religiosa, como vida após a morte, reencarnação, ação direta da mente sobre a matéria, Deus, céu e inferno. Em nossa amostra, foram identificadas cinco subescalas por análise fatorial exploratória: Espiritualismo, Crenças Religiosas Tradicionais, Psicocinese (ação da mente sobre a matéria), Magia e Adivinhação e Superstição. A escala de crença paranormal revisada foi traduzida e adaptada para português por membros do Laboratório de Psicologia Social da Religião do IP-USP. Em nosso estudo anterior (Maraldi, 2014), o instrumento apresentou boas propriedades psicométricas, incluindo excelente consistência interna total (α = 0,947) e subescalas.

- Escala de sintomas (Symptom Checklist - 90- Revised ou SCL-90-R -Derogatis, 1994), uma escala multidimensional de auto relato, de caráter diagnóstico, que avalia nove dimensões de sintomas, contabilizando um total de 90 itens cujos escores variam de 0 (nem um pouco) a 4 (muito). Como era nossa intenção averiguar apenas os fenômenos somatoformes, bem como variáveis com as quais estivessem intimamente relacionados (conforme a literatura apresentada anteriormente) consideramos aqui para aplicação apenas as subescalas de somatização, depressão e ansiedade. A primeira subescala avalia queixas ligadas aos sistemas cardiovascular, gastrointestinal e respiratório. Dores musculares e outras formas de desconforto corporal são também rastreadas. A subescala de depressão registra sintomas de distúrbio do humor e da afetividade, como sinais variados de: retraimento, baixa autoestima, falta de motivação, pensamentos suicidas etc. Já a última subsescala considerada, a de ansiedade, mede sintomas como nervosismo, tremor, pânico e experiências semelhantes de medo ou terror (fóbicas). Dado que houve forte correlação entre os fatores e que a soma de todos os itens empregados denotou um alpha elevado (.954), decidiu-se utilizá-la como uma medida composta de sintomas psicossomáticos (somatização e seus correlatos).

- Escala original de sintomas conversivos (doravante apelidada de "ESC7"). Foi elaborada tendo como referência a literatura clássica e atual sobre fenômenos histéricos e conversivos. Essa escala de validade aparente (facevalid) foi desenvolvida para ser aplicada em conjunto com as subescalas da SCL-90-R, embora seguindo um modelo diferenciado de pontuação - cinco pontos que variam de "nunca" a "sempre", o mesmo empregado para o questionário sobre traumas na infância (ver abaixo). A ESC-7 aborda experiências conversivas clássicas, como episódio convulsivo, paralisia psicogênica, cegueira e surdez psicogênicas, alucinações visuais, desmaios e perda de consciência, "afonia histérica" e marcha instável (problemas de locomoção).

- Escala de transliminaridade (Thalbourne, 1998), contendo 29 itens do tipo "verdadeiro" ou "falso". Segundo seus autores, a escala avalia uma "hipotética tendência para que um conteúdo psicológico atravesse fronteiras dentro e fora da consciência" (Lange, Thalbourne, Houran & Storm, 2000, p. 594). Tal definição abrangente incluiria diversas experiências anômalas e fenômenos de natureza mais ou menos subliminar (isto é, derivados ou relacionados a processos inconscientes ou semiconscientes) como hiperestesia, tendência à fantasia, vivências de absorção com a natureza, experiências místicas, pensamento mágico, impulsividade, experiências paranormais e tendências excêntricas. Apesar dos itens variados que a compõem, a versão que utilizamos da escala demonstrou boa consistência interna em nossa amostra anterior (á = 0,869). A transliminaridade tem apresentado correlação positiva e significante com as variáveis de dissociação, esquizotipia, propensão a ter alucinações, crença paranormal, sonhos lúcidos e outros tipos de estado alterado de consciência - uma revisão da literatura sobre transliminaridade pode ser encontrada no segundo capítulo da Parte Um da tese de Maraldi (2014).

Todas as escalas possuem estudos de adaptação e validação em amostras brasileiras - com exceção das escalas de transliminaridade e sintomas conversivos (Maraldi, 2014).

A pesquisa também incluiu um extenso levantamento de dados sociais e demográficos dos participantes, como Idade, Sexo (biológico), Estado civil, Orientação afetiva / sexual, Grupo étnico/racial etc. As escalas foram disponibilizadas pela internet (numa página específica da rede, via Google Docs), de forma didaticamente detalhada. Produziu-se várias versões do questionário, cada qual com a sequência das perguntas diferenciada, para evitar efeitos de ordem. Nos casos em que o participante não tinha acesso à rede ou preferia responder por escrito, o pesquisador disponibilizou o material impresso necessário. A compilação, a verificação de frequências e o cruzamento dos dados coletados foram feitos com o auxílio do Statistical Package for Social Sciences (SPSS), na sua versão 17 para Windows, e do programa Microsoft Excel, na versão 2010.

Em função das várias análises efetuadas e do número substancial de participantes, decidimos adotar um critério de significância estatística ligeiramente mais conservador (p < 0,01). Decidiu-se não empregar o ajuste de Bonferroni para cada análise por aumentar muito as chances do erro do tipo II (Perneger, 1998). A descrição das variáveis categóricas consistiu na apresentação das frequências de ocorrência e das porcentagens. As comparações entre os grupos foram feitas com base no teste de qui-quadrado. Para determinar a direção do efeito, recorreu-se à análise dos resíduos ajustados (ra > ou = a 2), por meio da função de tabulação cruzada no SPSS. As comparações entre as médias foram realizadas por meio da ANOVA de um fator. No caso de comparações não planejadas foi utilizado o teste post hoc de Games-Howell, devido às diferenças de tamanho entre os grupos e às diferenças de variância. Para avaliar o efeito de possíveis covariáveis na relação entre a VD e a VI, empregou-se a ANCOVA. As análises correlacionais, por sua vez, basearam-se no coeficiente produto-momento de Pearson.

Para a realização das entrevistas, o único material utilizado foi um aparelho gravador de áudio, sendo requisitada a permissão dos participantes quanto a essa forma de registro, antes do início dos relatos, por razões éticas.

Posteriormente, o relato gravado foi resumido, categorizado e analisado. A categorização dos dados qualitativos tomou por base os critérios propostos por Bardin (2003) para a análise (temática) de conteúdo, no intuito de facilitar a organização e a apresentação didática dos dados. O número de observações participantes foi de 31, abarcando um total de 9 contextos diferentes, entre templos esotéricos, terreiros de Umbanda e igrejas católicas e evangélicas. Relatórios detalhados foram elaborados para as visitas (Maraldi, 2014), com foco nos fenômenos grupais e ritualísticos potencialmente relacionados a experiências dissociativas e somatoformes.

 

Resultados

Afiliações e nível de crença religiosa / paranormal

Em relação ao escore geral da escala de crença paranormal, a análise de variância revelou diferenças significativas entre os grupos, F (2,1447) = 1112, 148, p < 0,001. O teste post hoc de Games-Howell mostrou que o grupo um (M = 102,10, DP = 26,31) pontuou significativamente mais (p < 0,001) do que o grupo dois (M = 76,45, DP = 26,05) e os ateus e agnósticos (M = 42,09, DP = 16,30). O grupo dois obteve média significantemente maior (p < 0,001) que a dos ateus e agnósticos, o que seria esperado, considerando-se que havia religiosos nesse grupo e que os indivíduos sem afiliação podem, não obstante, adotar certas crenças religiosas e paranormais. As diferenças mencionadas entre os grupos se mantiveram mesmo com o controle estatístico da idade e do sexo como covariáveis, F (2,1445) = 771,75, p < 0,001 (essas duas variáveis haviam diferido entre os grupos, como veremos adiante).

Baseados em pesquisas sobre espiritualidade e religiosidade individual, desenvolvemos cinco opções de resposta predefinidas (de escolha única) que foram também oferecidas no objetivo de tornar mais completa a descrição das afiliações, principalmente nos casos em que o indivíduo se considerasse sem afiliação (embora outros participantes também pudessem selecionar tais itens). Dentre os que escolheram alguma das opções de afiliação adicionais (63,5% da amostra), os ateus e agnósticos foram os que mais pontuaram o item "A vida não possui sentido definido" (43,6% deles, ra = 15,9) comparativamente ao grupo um (1,3%, ra = -12,3) e ao grupo dois (3,2%, ra = -7,8). Os ateus e agnósticos também escolheram com mais frequência a opção "Eu simplesmente não tenho certeza sobre a minha perspectiva a respeito da vida, e não estou disposto a buscar por explicações" (3,8%, ra = 3,1), especialmente quando comparados ao grupo um (0%, ra = -3,3). A opção 1 (Possuir um lado espiritual independente de religiões ou filosofias) foi pontuada com maior frequência pelo grupo dois (28,2% deles, ra = 5,6), apesar de também ter sido consideravelmente selecionada por integrantes do grupo um (19,8%, ra = 3,5), mas foi pouquíssimo selecionada pelos ateus e agnósticos (9,5%, ra = -6,8). A opção 2 (Integração de visões de diferentes religiões e filosofias de vida) foi com maior frequência pontuada pelo grupo um (32,9%, ra = 14,8), seguido pelo grupo dois (21,2%, ra = 4,9), mas muito pouco pelos ateus e agnósticos (1,4%, ra = -16,2). Pode-se dizer, assim, que os integrantes do grupo um (particularmente, os espíritas, umbandistas e esotéricos) tendem a adotar uma visão religiosa mais sincrética. Como há um bom número de pessoas sem afiliação no grupo dois, é compreensível que a opção "possuo lado espiritual independente de religiões" tenha sido bastante pontuada. Por sua vez, a ausência de atribuição de sentido ou significado especial à vida parece ser uma atitude frequente entre os ateus.

Além das perguntas específicas sobre afiliação e perspectiva de vida individual, três questões foram incluídas sobre o grau de envolvimento dos participantes com suas respectivas afiliações. Houve diferença significativa entre os grupos com relação à frequência de participação, X2 (8) = 826,03, p < 0,001, V de Cramer = 0,53, p < 0,001. Os ateus e agnósticos (87,1% deles, ra = 26,2) pontuaram com maior frequência a opção "Nunca frequentei (ou não frequento mais)". O grupo um prevaleceu frente aos outros em relação à frequência de participação, tendo pontuado mais vezes a opção "mais de uma vez por semana" (36,2%, ra = 17,2). Também houve diferença significativa entre os grupos com relação à importância dada à afiliação, X2 (8) = 436,96, p < 0,001. Os ateus e agnósticos parecem considerar com maior frequência a sua afiliação como sem importância (42,9% deles, ra = 14,7) ou indiferente (20%, ra = 7,8), enquanto os integrantes do grupo um tendem a considerar frequentemente mais as suas afiliações como essenciais em suas vidas (55,7% deles, ra = 13,8). Por fim, os grupos diferiram com relação à prática de suas afiliações ou filosofias de vida, X2 (8) = 361,87, p < 0,001. O grupo um pontuou significantemente acima do acaso as opções de participação "mais de uma vez por semana", "diariamente" e "mais de uma vez ao dia" em comparação com os grupos dois e três.

Dados sociodemográficos

Houve diferença significante entre as médias dos grupos com relação à idade, F (2,1447) = 148,63, p < 0,001. Pelo teste post-hoc de Games-Howell, as médias de idade do grupo um (M = 37,33, DP = 13,52) e do grupo dois (M = 33,60, DP = 12,43) foram significativamente maiores (p < 0,001) que a dos ateus e agnósticos (M = 26,25, DP = 8,65), mas não houve diferença significante entre os dois primeiros grupos. A maioria dos participantes do estudo (n = 828) concentrou-se na faixa dos 18 aos 27 anos de idade. Observou-se correlação positiva entre a variável idade e o escore geral da crença paranormal e de suas respectivas subescalas. Não houve diferenças significativas entre a idade e os outros principais instrumentos da pesquisa, com exceção de uma pequena correlação positiva com a transliminaridade (Maraldi, 2014).

Em relação ao gênero, constatou-se diferença significativa entre os grupos, X2 (2) = 137,464, p < 0,001, V de Cramer = 0,30, p < 0,001, sendo que, pela análise dos resíduos ajustados, os religiosos do grupo um (55,4% deles, ra = 9,6), seguidos pelo grupo dois (49,4%, ra = 4,9) apresentaram maior número de mulheres do que os ateus e agnósticos (22,5% deles, ra = -11,7). As mulheres também diferiram dos homens em diversas outras variáveis do estudo, incluindo maiores níveis de crença religiosa e paranormal, dissociação e sintomas somatoformes e conversivos (Maraldi, 2014). Dos diversos outros dados sociodemográficos compilados na pesquisa (orientação sexual, renda mensal domiciliar, nível educacional etc.), não foram encontradas diferenças entre os grupos ou as diferenças observadas eram melhor explicadas pelas diferenças de idade e gênero já apontadas. O único achado que parecia contrariar essa regra e se mostrava de interesse era a inexistência de significância estatística para a diferença entre os grupos com relação ao trabalho voluntário, já que outras pesquisas sugeriram os religiosos como mais propensos a comportamentos altruístas e à participação em atividades voluntárias (Koenig, 2012).

Experiências dissociativas e sintomas psicossomáticos e conversivos

Por razões de brevidade, indicamos ao leitor a tese de Maraldi (2014), onde é possível encontrar as tabelas com as médias e desvio padrão para cada grupo. Uma vez que a idade e o gênero diferiram bastante entre os grupos, essas variáveis foram subsequentemente controladas nas análises de variância. Sendo assim, nós incluímos, ao longo do texto, as médias marginais estimadas, isto é, as médias ajustadas para o controle estatístico das covariáveis.

Em relação à escala de experiências dissociativas, os resultados indicaram diferença significativa entre os grupos, F (2,1445) = 32,60, p < 0,001. O grupo um (M.Adjusted = 24,86) e o grupo dois (M.Adjusted = 24,50) apresentaram médias de dissociação bastante semelhantes entre si (p = 0,818, Adjusted d = 0,02), conquanto maiores (p < 0,001) que a dos ateus e agnósticos (M.Adjusted = 16,58) - Tamanho do efeito: grupo um vs. grupo três - adjusted d = 0,52; grupo dois vs. grupo três - adjusted d = 0,50. As análises post hoc não apontaram para diferenças significativas (p = 0,325) entre as médias dos espíritas e umbandistas (M.Adjusted = 25,96) e dos esotéricos (M.adjusted = 28,12). A média dos católicos carismáticos e evangélicos pentecostais (M.Adjusted = 17,41) diferiu significativamente (p = 0,001) da média das religiões mediúnicas e da média dos esotéricos (p < 0,001). Tanto os esotéricos quanto as religiões mediúnicas pontuaram mais do que os ateus e agnósticos (p < 0,001). Não houve diferença entre a média dos católicos carismáticos e evangélicos pentecostais em relação aos ateus e agnósticos (p = 0,696). Os resultados foram virtualmente idênticos para as diferenças entre os grupos nas três subescalas de dissociação (absorção, despersonalização e amnésia dissociativa).

No caso dos sintomas de somatização, depressão e ansiedade combinados, houve diferença significativa entre os grupos, F (2,1445) = 6,50, p = 0,002, sendo que o grupo um (M.Adjusted = 31,56) pontuou mais (p = 0,003, Adjusted d = 0,29) do que o grupo dois e do que os ateus e agnósticos (p = 0,001, Adjusted d = 0,24). Analisando os subgrupos de religiosos, novamente encontramos diferença significativa, F (4,1443) = 5, p = 0,001, sendo que as religiões mediúnicas (M.Adjusted = 33,48) pontuaram mais do que os ateus e agnósticos (p < 0,001) e do que o grupo dois (p = 0,001). Houve diferença fronteiriça entre os esotéricos (M.Adjusted = 33,38) e os ateus e agnósticos (p = 0,010), mas não houve diferença destes últimos com relação aos evangélicos / católicos (M.Adjusted = 23,69, p = 0,592).

No que tange os sintomas conversivos, observou-se diferença significativa entre os grupos F (2,1445) = 13,27, p < 0,001. O grupo um (M.Adjusted = 1,60) pontuou significativamente mais (p < 0,001, Adjusted d = 0,38) do que os ateus e agnósticos (M.Adjusted = 0,87). Houve também diferenciação (p = 0,004, Adjusted d = 0,28) entre as médias do grupo um e do grupo dois (M.Adjusted = 1,05), mas não se observou diferença significante entre o grupo dois e os ateus e agnósticos (p = 0,290). Em relação aos subgrupos de religiosos do grupo um, F (4,1443) = 11,47, p < 0,001, os testes post-hoc mostraram que as religiões mediúnicas (M.Adjusted = 1,90) e os esotéricos (M.Adjusted = 1,68) obtiveram médias significativamente maiores (p < 0,001 e p = 0,001, respectivamente) que a dos ateus e agnósticos. Novamente, as religiões mediúnicas pontuaram significativamente acima (p < 0,001) dos católicos carismáticos e evangélicos pentecostais (M.Adjusted = 0,61). Foi observada também diferença estatisticamente significante entre os esotéricos e os evangélicos / católicos, p = 0,002.

Em geral, os resultados indicaram que o grupo um (em particular, espíritas, umbandistas, esotéricos) e pessoas sem afiliação definida não parecem diferir na escala de experiências dissociativas (dissociação cognitiva), embora pontuem acima dos ateus e agnósticos e de alguns religiosos mais tradicionais, como católicos e evangélicos. Por sua vez, o grupo um (em especial, as religiões mediúnicas) indicaram pontuações mais elevadas em sintomas psicossomáticos e conversivos comparativamente aos outros dois grupos. Ao contrário de nossa hipótese inicial, católicos carismáticos e evangélicos pentecostais não diferiram dos ateus e agnósticos em diversas dessas medidas.

Experiências traumáticas na infância

As comparações entre os grupos não ofereceram resultados significativos para nenhuma das subescalas do questionário sobre traumas na infância: negligência física, F (2,1445) = 0,35, p = 0,703, negligência emocional, F (2,1445) = 3,65, p = 0,026, abuso emocional, F (2,1445) = 1,92, p = 0,146, abuso físico, F (2,1445) = 2,20, p = 0,111 e abuso sexual, F (2,1445) = 1,45, p = 0,234. Não foram encontradas diferenças significativas entre os grupos com relação à subescala de minimização / negação do trauma.

Transliminaridade

A comparação entre as médias dos grupos revelou diferenças significativas, F (2,1445) = 151,27, p < 0,001. O grupo um (M.Adjusted = 13,29) pontuou significativamente acima (p < 0,001, Adjusted d = 0,72) do grupo dois (M.Adjusted = 9,72) e dos ateus e agnósticos (M.Adjusted = 6,91, Adjusted d = 1,2). O grupo dois também obteve média significativamente maior (p < 0,001, Adjusted d = 0,56) que a dos ateus e agnósticos. Comparando as médias dos subgrupos de religiosos do grupo um com os demais participantes, F (4,1443) = 122,80, p < 0,001, observou-se que as religiões mediúnicas (M.Adjusted = 14,85) pontuaram significativamente acima do grupo dois, dos ateus e agnósticos e dos evangélicos pentecostais e católicos carismáticos (M.Adjusted = 6,11), porém, os mediúnicos não diferiram dos esotéricos (M.Adjusted = 15,37), p = 0,431. Não houve diferença entre os evangélicos / católicos e os ateus e agnósticos (p = 0,259).

Correlações entre as variáveis

Na tabela 3, é possível observar as correlações entre os principais instrumentos do estudo. Tomou-se o cuidado de controlar os efeitos do gênero e da idade (correlações parciais), considerando-se os resultados anteriores acerca das variáveis sociodemograficas. A escala de experiências dissociativas correlacionou positiva e significantemente com instrumentos com os quais se esperava que viesse a correlacionar com base na literatura (como a medida composta de sintomas psicossomáticos, a escala de sintomas conversivos, a crença paranormal / religiosa e a transliminaridade).

Análises adicionais revelaram um possível papel da transliminaridade na relação entre algumas dessas variáveis. Empregando a transliminaridade como covariável na análise foi possível descobrir que a correlação entre dissociação e crença diminuiu drasticamente, uma vez controlados os efeitos da transliminaridade, r = -.081, p = 0,001. O mesmo padrão foi observado comparando as subescalas de dissociação com as de crença paranormal (em contrapartida, o controle dos efeitos da crença não afetou substancialmente a correlação entre dissociação e transliminaridade, r = .445, p < 0,001). As correlações entre a dissociação e os indicadores de envolvimento com a afiliação religiosa ou filosófica, bem como as correlações entre a crença e as escalas de sintomas conversivos e psicossomáticos também se tornaram não significantes com o controle da transliminaridade pela correlação parcial (em contrapartida, as correlações entre dissociação e sintomas conversivos e psicossomáticos não foram substancialmente afetadas). Uma análise de regressão múltipla incluindo a dissociação, a transliminaridade e os sintomas conversivos e psicossomáticos como variáveis explicativas e o escore total de crença paranormal como variável de critério - R múltiplo = 0,64, 41% da variância explicada, F (4,1445) = 257,25, p < 0,001 - mostrou que a dissociação (β = -0,06, t = -2,46, p = 0,014), os sintomas conversivos (β = 0,05, t = 2,30, p = 0,021), e a medida composta de sintomas psicossomáticos extraídos da escala de sintomas (β = -0,06, t = -2,60, p = 0,009) não foram bons em predizer a crença no paranormal, ao contrário do que se constatou com a transliminaridade (β = 0,67, t = 27,65, p < 0,001).

Síntese das entrevistas qualitativas e observações participantes

Uma boa parte dos entrevistados com escores elevados na escala de experiências dissociativas denotou personalidade regredida e impulsiva, além de relatar mais experiências anômalas espontâneas, de cunho religioso ou alegadamente paranormal (como alucinações, escrita automática ou compulsiva, episódios de sinestesia etc.). Os relatos de abuso na infância foram mais frequentes entre os high do que entre os low scorers - esse resultado também se confirmou para a amostra total da pesquisa (Maraldi, 2014). As características apresentadas pelos high scorers parecem associadas a formas de defesa narcísicas e a uma manutenção excessiva da fantasia na vida adulta, o que talvez predisponha esses indivíduos a uma série de experiências insólitas, para as quais buscam sentido, e que são interpretadas depois como místicas ou religiosas, conforme o sistema de crenças adotado.

Comparando-se os dados quantitativos e qualitativos dos entrevistados e dos grupos visitados, sugeriu-se uma distinção entre dois tipos gerais de dissociação: uma tendencial, geralmente vivenciada desde a infância por indivíduos predispostos, e outra contextual, limitada à estimulação de certas práticas religiosas ou espirituais. Essa segunda forma de dissociação se sustenta, simplesmente, no fato de que qualquer pessoa está potencialmente apta a vivenciar fenômenos dissociativos, desde que estimulada adequadamente para tanto. Já a dissociação tendencial não se acha restrita a um contexto, e pode ser devida tanto a características estimuladas ao longo do desenvolvimento, as quais se tornaram relativamente estáveis (ex: tendência à fantasia), quanto oriunda de uma base genética ou mesmo de experiências traumáticas que tornaram o indivíduo predisposto à dissociação. O mais importante a se ter em mente é que, apesar de a dissociação tendencial também sofrer a estimulação de fatores contextuais, ela não depende inteiramente deles para sua irrupção, e já se caracteriza, antes mesmo de maiores reforços exógenos, como uma tendência ou disposição particular. É, sobretudo, essa forma de disposição que a DES ou outros instrumentos que avaliam a dissociação cognitiva e somatoforme são capazes de captar.

Ao contrário, a dissociação contextual é mais refratária a esse tipo de avaliação, e se circunscreve, em geral, às vivências relatadas durante o serviço religioso. Não é necessário, sob esse aspecto, que o indivíduo tenha alguma tendência marcada à dissociação e ao transe; são as próprias condições contextuais e o treinamento realizado em grupo que promovem a ocorrência desses fenômenos, inclusive nos low scorers: o ritmo dos tambores na gira umbandista, a luz baixa, a monotonia hipnótica dos movimentos, as expectativas frente ao ritual etc. É talvez por essa razão que certas comunidades, percebendo a diferença que havia na capacidade individual para a dissociação, dedicaram-se então ao uso do álcool e das substâncias psicoativas, ou recorreram ao emprego de certos recursos extremos, como o isolamento sensorial, a autoflagelação e assim por diante, de modo a sanar uma lacuna que sabiam existir entre seus membros quanto à maior ou menor predisposição aos estados dissociativos. Há, inclusive, toda uma série de mecanismos psicossociais de mimetismo e desempenho de papéis durante os rituais, os quais podem ser confundidos com fenômenos dissociativos, à maneira do ator que, de tanto se identificar com o personagem, passa a diluir as fronteiras entre ele mesmo e o papel que desempenha. Com efeito, as práticas mediúnicas e outras práticas religiosas de transe não parecem se associar à perda de consciência com posterior amnésia, como geralmente se pensa, mas muito mais à absorção e ao envolvimento imaginativo.

Muito embora a dissociação contextual prescinda de uma predisposição particular do indivíduo, não se pode negar, por sua vez, que aqueles que possuem uma facilidade maior para a dissociação são, geralmente, bem vistos em seus grupos. É certo que essa característica, considerada isoladamente, não lhes garante os mais elevados postos ou a liderança do grupo, como se poderia imaginar, mas não deixa, por isso, de torna-los modelos ou referências aos demais. Na Umbanda, por exemplo, os colegas mais "aflorados" na mediunidade acabam por se destacar, e são lembrados dentro do grupo. O Espiritismo diferencia claramente os médiuns "ostensivos" dos médiuns "facultativos". Essa noção de que haveria indivíduos mais predispostos ou desenvolvidos incita em muitas pessoas o desejo de também se desenvolverem daquela forma. É a isso que chamamos de "aristocracia da experiência". As vivências mais nítidas e realistas estão, geralmente, circunscritas a certas pessoas, e nossa hipótese é de que são elas as portadoras da dissociação tendencial. Parecem haver casos, inclusive, em que alegações de fenômenos anômalos / paranormais são utilizadas com propósitos claramente narcísicos, megalômanos e de gerenciamento da impressão, frequentemente de modo compensatório a alguma baixa autoestima subjacente, embora os escores em instrumentos de dissociação e transliminaridade sejam baixos. Esses últimos indivíduos estão tentando demonstrar uma predisposição que não possuem; querem fazer parte da "aristocracia" sem podê-lo.

Por outro lado, não se deve menosprezar o fato de que a relação dos membros do grupo com aqueles cujas manifestações dissociativas são mais ostensivas possui também ambivalências. Não são raros os participantes que, temendo interagir diretamente com o mundo transcendente ou espiritual, rejeitam posições como médiuns ou líderes religiosos. Há também os que as aceitam depois com relutância, mais por receio de descumprir uma missão ou tarefa que lhes foi designada, do que por admiração ao posto outorgado. Muitos desses indivíduos enxergam a "missão" ou "propósito" que receberam como uma obrigação, geralmente atrelada à necessidade de controle e manejo de seus sintomas.

 

Discussão

Os resultados da pesquisa confirmaram os estudos em outros países: as experiências dissociativas (envolvimento imaginativo, despersonalização, amnésia dissociativa) e somatoformes (sintomas psicossomáticos e conversivos) são mais relatadas por religiosos, sobretudo, por grupos que pontuaram mais na escala de crença paranormal e são mais influenciados pela mentalidade e sincretismo new age (religiões mediúnicas, esotéricos e religiosos sem afiliação definida). Nesse sentido, pouca diferença parece haver entre religiosos afiliados a uma instituição ou grupo particular e religiosos sem afiliação (religiosidade individual), a não ser para os sintomas somatoformes e conversivos, que se mostraram mais comuns nas religiões mediúnicas - o que é, aliás, convergente com muitas práticas e rituais umbandistas e espíritas, os quais envolvem o corpo de maneira importante, como já discutido em outros trabalhos (Maraldi & Zangari, 2012; Zangari, 2003). Curiosamente, religiosos tradicionais (como católicos e evangélicos) se assemelharam aos ateus e agnósticos em várias medidas, talvez sugerindo que o movimento ateísta é tão pouco místico e dissociativo quanto a religiosidade mais tradicional. Ao contrário do que se esperava, os evangélicos pentecostais e os católicos carismáticos da nossa amostra não relataram níveis substanciais de dissociação e outros sintomas.

Em oposição ao que defenderam outros autores (e.g., Hamayon, 1993/ 2007) nossa pesquisa mostrou a importância dos conceitos de transe e dissociação para o entendimento de certas práticas religiosas. Todavia, é preciso reconhecer que a dissociação (onde a sensação e presença do transcendente se fariam mais evidentes para o adepto) é meta possível, e não pré-condição do ritual religioso. Para que a dissociação ocorra, é preciso que uma série de fatores contextuais entrem em jogo. Por sua vez, alguns indivíduos estão mais predispostos do que outros. Assim, a controvérsia entre os autores que defendem um modelo centrado no transe (teoria da dissociação e da alteração de consciência), e aqueles que defendem um modelo centrado na performance e no desempenho de papéis (teoria sócio cognitiva), pode ser explicada pelo fato de que, enquanto os primeiros pretendem abarcar todo o ritual com base naquilo que lhe é especial, os segundos se frustram com a infrequência das condições alegadas pelos primeiros, a ponto de quase negarem o papel da dissociação. Para os religiosos, de qualquer modo, o grande desafio permanece sendo o de romper as barreiras da consciência e da identidade que constrangem seu acesso ao mundo divino, espiritual ou mágico.

Apesar de os high scorers terem relatado significativamente mais experiências traumáticas na infância, tais episódios não diferiram entre os grupos e não se mostraram de relevância para um entendimento das crenças e experiências religiosas / paranormais. Sob esse aspecto, nossos dados não fornecem respaldo para o modelo do trauma, defendido por Irwin (1994b) e outros autores. É provável, assim, que boa parte da dissociação vivida nesses contextos tenha origem distinta daquela ocasionada por processos patológicos derivados de experiências traumáticas.

A transliminaridade revelou um papel importante na relação entre crença e dissociação. Muitos dos itens dessa escala avaliam experiências paranormais e místicas e fenômenos de alteração da consciência. Desse ponto de vista, portanto, quando se descobre que a correlação entre dissociação e crença parece influenciada pelos efeitos da transliminaridade, isso significa, entre outras coisas, que a dissociação está mais relacionada a relatos de experiências desse tipo do que à crença nesse tipo de fenômenos. O nosso estudo parece demonstrar, assim, que a crença religiosa / paranormal só se associa à dissociação graças ao fato de certos indivíduos que relatam experiências paranormais e místicas também relatarem experiências dissociativas. A crença desempenha aqui o papel de um construto mais amplo, que diz respeito a certas escolhas e posicionamentos ideológicos do sujeito, e que é apenas parcialmente explicada pela vivência do transcendente ou por experiências anômalas. A forte correlação positiva entre crença e transliminaridade atesta o fato de certas experiências desse tipo afetarem o posicionamento ideológico do sujeito e vice-versa. Na verdade, ao que nos parece, a dissociação atua como uma espécie de veículo ou instrumento que facilita a ocorrência de sintomas e fenômenos insólitos, os quais são explorados pelo sistema de crença como provas da existência do transcendente. É assim, por exemplo, que dores ou anestesias experimentadas em certas partes do corpo são interpretadas como a captação de sensações de um espírito desencarnado relacionadas à sua causa mortis (Maraldi & Zangari, 2012), e que alterações de identidade e estado emocional são atribuídas à mediunidade ou a mudanças nas energias que cercariam o indivíduo. Ao facilitarem a transição do quadro de referência cotidiano ao religioso, as experiências dissociativas e transliminares desempenham um papel de legitimação, sobretudo, em indivíduos ou contextos influenciados pela mentalidade new age e que arrogam validade objetiva e quase científica para suas crenças (Maraldi, 2011, 2014). Sob esse aspecto, os contextos umbandistas visitados se achavam muito mais associados a uma fusão com o Esoterismo e o Xamanismo, do que com o Espiritismo, o Catolicismo ou raízes africanas. O apelo a conceitos para-científicos e neo-esotéricos não era infrequente (Maraldi, 2014).

A natureza supostamente adaptativa e terapêutica das práticas religiosas dissociativas se mostrou tema controverso, para o qual os dados não fornecem uma resposta clara. As suposições nesse sentido se confirmam apenas se considerarmos os relatos entusiasmados de alguns entrevistados sobre sua conversão religiosa, a par dos relatos de cura e transformações de personalidade e comportamento pelas quais teriam passado ao exercerem tais práticas. Uma avaliação mais atenta e aprofundada das evidências, porém, sugere outro cenário. Vimos que tanto os religiosos do grupo um quanto aqueles do grupo dois pontuaram significativamente acima dos ateus e agnósticos em dissociação, sendo que o grupo um (mais sincrético) pontuou acima dos grupos dois e três em sintomas conversivos e em somatização, depressão e ansiedade combinadas, apesar de sua frequência maior de participação e envolvimento com a afiliação religiosa, e mesmo depois de controlados os efeitos do gênero e da idade. Muitos dos participantes entrevistados buscaram tratamento medicamentoso paralelamente à sua participação nos contextos mencionados, mas jamais haviam recebido atendimento psicoterapêutico. De fato, a média de visita à psicoterapia foi menor que um na amostra total (M = 0,53, DP = 0,89, Moda = 0). Tal resultado é compreensível em uma amostra não clínica, mas quando consideramos as entrevistas e observações grupais surge outra hipótese, complementar àquela: muitas dessas pessoas podem estar procurando ajuda terapêutica nas religiões, ao invés de ajuda profissional especializada. Mas estariam obtendo melhora?

Não devemos olvidar o fato de que a transformação religiosa, além de constituir um dado da experiência, é também um elemento retórico e ideológico; queremos dizer com isso que nem sempre a transformação se efetua. Quando se entrevista um religioso, é comum que ele / ela descreva sua experiência religiosa em termos transformadores (milagre da cura de uma doença considerada grave; libertação frente a algum vício após um sonho profético, uma visão ou outra vivência durante um culto; mudanças diversas de comportamento etc.). Isso, todavia, deve ser considerado como um novo estado da pessoa (não transitório), ou como adequação do discurso às expectativas religiosas? É bem verdade que as entrevistas qualitativas com os participantes ateus e agnósticos nem sempre renderam mostras de elevada adaptação, muito pelo contrário, e um novo artigo certamente surgiria da análise exclusiva dos dados dos ateus. Em alguns casos, constatou-se a presença de sintomas depressivos, ansiógenos e ideações suicidas. As narrativas de desconversão religiosa dos ateus nos ofereceram outras tantas ilustrações do quanto a adesão desses indivíduos ao ateísmo não se deu sob bases muito invejáveis. Comparativamente aos demais grupos, os ateus também assinalaram com maior frequência que a vida não possui sentido e que sua afiliação lhes seria irrelevante. Ainda assim, não houve diferença significativa entre os ateus e agnósticos e os evangélicos e católicos, ou mesmo entre os ateus e agnósticos e os participantes do grupo dois em algumas das variáveis analisadas. Também não houve diferença entre religiosos e não religiosos em experiências traumáticas, nem em relação ao trabalho voluntário, o que parece contrariar a suposição de que pessoas religiosas seriam frequentemente mais solidárias ou socialmente engajadas. A nossa pesquisa tende a apresentar, destarte, uma paisagem bastante diferente daquela que muitos (religiosos ou não) gostariam de ver realizada. Conforme os autores haviam defendido em estudo anterior (Maraldi & Zangari, 2012) o mais provável é que, não sendo as práticas religiosas inerentemente patológicas, nem saudáveis, nem por isso deixam de ser afetadas por processos de ordem psicopatológica que (antes de representarem sua principal causa) são uma demonstração de como certos transtornos ou sintomas por elas se manifestam, nelas encontram sentido e algum controle, mas por vezes também as deformam. Por fim, não se deve olvidar o papel das concepções culturais e grupais de saúde e adaptação, as quais exigiriam posicionamentos distintos frente ao binômio religião-saúde mental.

Na tese que deu base a este artigo (Maraldi, 2014) vários fenômenos psicossociais foram discutidos para explicar os resultados, como o empobrecimento da relação com o sagrado no contexto da sociedade de consumo, a aplicação de uma lógica de mercado ao contexto religioso, os abalos na noção de família tradicional e a tentativa de resgate desses valores por meio da religião, entre outros fatores ligados ao surgimento e expansão do sincretismo new age, da secularização e do ateísmo. Trata-se de hipóteses que precisam ser melhor avaliadas e testadas em investigações futuras, que avaliem ao longo do tempo e mesmo transculturalmente o impacto de diferentes práticas religiosas e não religiosas no desenvolvimento de tendências dissociativas e diferentes indicadores de saúde mental e bem-estar físico e psíquico.

 

Conclusão

O presente estudo foi o primeiro no Brasil a avaliar dissociação, crença paranormal e transliminaridade em uma amostra grande de respondentes brasileiros (N = 1450), apesar de não representativa da população. Além disso, o nosso estudo foi provavelmente o primeiro a contemplar, a partir da metodologia esposada, uma avaliação das diferenças entre grupos religiosos diversos em relação às medidas supracitadas, considerando-se, ainda, os dados de participantes ateus e agnósticos, o que avançou de modo importante o estudo do tema, ao incluir um subgrupo antes negligenciado nessas investigações. A pesquisa também contou com controles importantes, como a diminuição dos efeitos de ordem na aplicação das escalas, a avaliação das características psicométricas dos instrumentos e a triangulação dos dados mediante o estabelecimento de frentes variadas de coleta quantitativa e qualitativa.

Apesar de alguns dos participantes do pré-teste não terem manifestado apreensão quanto ao tamanho do questionário, as densas e variadas questões propostas podem ter desencorajado alguns ou afetado, de algum modo, os resultados do estudo. O fato é que, a despeito dessas desvantagens, os instrumentos utilizados demonstraram boa consistência interna, e muitas das variáveis se comportaram de modo congruente com o que sabemos acerca delas com base na literatura. Por outro lado, nossa amostra foi de conveniência, não aleatória, e com pouca adesão de alguns grupos, o que pode ter enviesado os resultados de muitas maneiras. Deve-se salientar, por fim, que determinadas hipóteses seriam melhor respondidas se houvéssemos recorrido a uma metodologia longitudinal e transcultural. Essas são limitações que os autores esperam considerar em projetos e investigações futuras.

 

Agradecimentos

O primeiro autor agradece à FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pelo auxílio concedido à sua pesquisa de doutorado.

 

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Recebido: 05/07/2015 / Corrigido: 14/09/2015 / Aceito: 15/09/2015.

 

 

1 Laureado pela Academia Paulista de Psicologia - Gestão 2013-2015. Psicólogo, mestre, doutor e pós-doutorando pelo programa de Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP, pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicologia Social da Religião do IP-USP e do Inter Psi - Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais da USP. Contato: Rua José de Alcântara Machado Filho, nº 30, Jardim Guapira, São Paulo, SP. CEP: 02316-220 - Brasil. Tel: (11) 22422417. E-mail: evertonom@usp.br .
2 Laureado pela Academia Paulista de Psicologia - Gestão 2010-2012. Professor do Depto. de Psicologia Social e do Trabalho do IP-USP. Pesquisador do Inter Psi - Laboratório de Psicologia Anomalística e Processos Psicossociais e do Laboratório de Estudos em Psicologia Social da Religião, ambos do Instituto de Psicologia da USP. Contato: Av. Prof. Mello Moraes, 1721, Bloco A, Sala 111 - Cidade Universitária - São Paulo, SP - CEP 05508-900. Tel: (11) 9892-9944. E-mail: w.z@usp.br .

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