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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.35 no.89 São Paulo July 2015

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

Norberto Abreu e Silva Neto (ex-ocupante da Cad. nº6) (1988). Fragmentos da metamorfose: cuidado materno e cuidado psicoterapêutico. São Paulo: EDUSP, 123 pp.

 

 

Dr. Marcelo M. Nicaretta1

 

 

Publicado em 1988 pela EDUSP como parte da série "Linguagens da Psicologia", que agraciava as melhores obras dos docentes do Instituto de Psicologia da USP, o livro "Fragmentos da Metamorfose: cuidado materno e cuidado psicoterapêutico" é um clássico da psicologia no Brasil. Esse belo trabalho é uma pequena modificação da tese de doutorado desenvolvida na USP, entre os anos de 1979 a 1985, pelo professor Dr. Norberto A.S. Neto, membro da Academia Paulista de Psicologia e recentemente falecido.

Norberto iniciou seu livro expondo suas inquietações. Ele explica que a necessidade do trabalho adveio de questionamentos nascidos no seu cotidiano, tanto como professor, quanto como psicoterapeuta. Como docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, seu principal problema era a "formação do psicólogo". Como clínico, influenciado pelas ideias de Melanie Klein e Carl Rogers, seu interesse estava voltado para "os mistérios da relação terapêutica". A essa altura Norberto não sabia, mas a problematização sobre a formação do psicólogo acabaria por se tornar o objeto premente do seu estudo. Aparentemente deixando-o de lado, Norberto passou então a proceder sua pesquisa dedicando-se a compreender as características da "boa relação terapêutica".

Partindo do método científico tradicional, o autor se dedicou inicialmente a esclarecer sobre o "instrumento" desenvolvido para avaliar a atitude das mães com o intuito de obter dados sobre o "tradicionalismo e modernidade nos métodos de educação dos pais". Norberto explica que ao se dar conta que os discursos da psicologia científica agiam como um "agente modelador das atitudes de pais com relação à boa educação das crianças" a pesquisa mudou radicalmente de rumo: "não me interessava mais o discurso das mães modulado pelo instrumento científico, mas aquele sobre a mãe e seus modos de proceder na educação dos filhos, particularmente o apresentado na literatura de orientação psicanalítica (p.15)".

O que era para ser um "estudo científico" sobre a "boa mãe" acabou se tornando um estudo sobre como o discurso psicanalítico determina o modo como às mães devem se relacionar com os seus bebês. Tal questionamento levou a interrupção da pesquisa em 1983, sendo retomada apenas 1985, porém em outra direção, influenciada pelo Antropólogo Marcel Mauss e pelo filósofo francês Michel Foucault. Esses autores forneceram ferramentas para que a pesquisa prosseguisse, contudo não mais como um estudo exploratório acerca de interesses da psicologia clínica, mas como uma análise crítica sobre o uso da linguagem da psicologia científica como uma tecnologia de produção de "Eus" (selfs).

Interessante notar a vanguarda do autor, na medida em que o conceito de base por ele utilizado para pensar a psicologia como uma prática de modelagem social, "tecnologias do eu (self)", foi desenvolvido pelo filósofo francês durante a década de oitenta, no mesmo período em que sua pesquisa se desenrolou. O uso desse conceito não apenas permitiu à retomada da pesquisa interrompida, como também tornou possível juntar os dois campos de interesse do autor, o "formar-se (educação)" e o "cuidar-se (psicoterapia)".

Definidos os novos conceitos, o autor passou a esclarecer os motivos pelos quais a sua pesquisa mudou seu sentido original. O questionário desenvolvido anteriormente para a obtenção isenta do relato das mães, passou a ser visto como "um hipotético manual para a vida cotidiana". Como esse material havia sido desenvolvido com base nas teorias psicanalíticas sobre a relação mãe/bebe, com a mudança de viés da pesquisa, onde antes o autor observava o "bom comportamento das mães", ele passou a enxergar "preceitos, crenças e normas" sobre como a psicanálise determinava que as "boas mães" deveriam se comportar com seus filhos.

Por fim, o autor demonstrou que esse amoldamento produzido pelo discurso psicanalítico traz como questão prática à dificuldade de se enxergar a socialização das crianças fora desse olhar especializado, o que só é possível através da aproximação entre o forma-se (educação) e o cuidar-se (psicoterapia). Por isso, como solução para o impasse gerado por sua pesquisa, Norberto aproximou os conceitos de cuidado materno e cuidado terapêutico, mostrando que aquilo que ambos possuem em comum nada mais é que o ato de cuidar. Essa noção de cuidado, na visão do autor, se aproxima da idéia de um cuidar para a morte, segundo a perspectiva existencialista de Martin Heidegger. Por fim, Norberto concluiu que é o ensino desse cuidado que deve estar na base da formação do psicólogo, não mais visto como um "bom cuidado" segundo os cânones da psicologia científica, mas como um cuidar para a vida real, visando à autossuficiência dos indivíduos e o cuidado de si.

 

 

1 Premiado pela Academia Paulista de Psicologia, Doutor em Psicologia Clínica e Cultura, psicólogo 526 clínico e psicoterapeuta. Contato em Brasília: SHLN 516, bloco K sala 304; marcelo.nica@uol.com.br

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