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vol.36 issue90AFFONSO, Carlos Rolim. Universidade, Fonte do Conhecimento (2015). São Paulo: Cultor de Livros, 141 pp.MORAIS, J. (2013). Criar leitores - Para professores e educadores. Barueri, SP: Manole, 154 p. ISBN: 978-85-7868-077-0 author indexsubject indexarticles search
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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.36 no.90 São Paulo Jan. 2016

 

RESENHAS DE LIVROS

 

 

TRINCA, Walter. Viagem ao coração do mundo: a apreensão da imaterialidade. São Paulo: Vetor, 2014. 176 p.

 

 

Dóris Lieth Peçanha (Cad. nº19)1

Universidade Federal de São Carlos

 

 

Constitui privilégio e alegria ímpares a tentativa de apresentar uma "Viagem ao coração do mundo", obra do querido colega, o acadêmico e Prof. Titular, Dr. Walter Trinca, cuja trajetória pessoal e profissional (clínica, docência e produção científica) o distingue entre os mais eminentes e criativos psicólogo e psicanalista de nosso tempo. Nela se pode apreciar a coerência do autor e a continuidade de seu trabalho corajoso, cultivando sementes lançadas em livros anteriores, também publicados pela Editora Vetor, como "O ser interior na psicanálise: fundamentos, modelos e processos" (2007); "Psicanálise compreensiva: uma concepção de conjunto" (2011) e, ainda, no sugestivo título "Psicanálise e Expansão da Consciência - apontamentos para um novo milênio" (Trinca, 1999). Nesta, o Dr. W.Trinca já falava da sensorialidade da mente, caracterizando-a com qualidades operatórias, factuais como diriam os psicossomaticistas franceses; e do seu contraponto, a experiência da imaterialidade que se aproxima, mas vai além, da capacidade de mentalização em psicossomática. Esses autores, muito provavelmente, não se conhecem, e as concepções de W. Trinca não são sinônimas daquelas produzidas no âmbito da Escola de Paris. Contudo, é interessante constatar certas similitudes na compreensão do funcionamento mental, com o diferencial de que o Dr. W. Trinca transcende o conhecimento psicanalítico atual, ao elaborar, de forma inovadora, uma arqueologia do ser interior, da expansão da consciência e do seu relacionamento em bases imateriais, possibilitando ir "ao coração do mundo", por meio da apreensão de uma realidade distinta, luminosa e harmoniosa que subjaz aos fenômenos.

A seguir, apresento noções que perpassam os textos do Dr. W.Trinca, ciente de que, se uma obra é aberta, na concepção de Humberto Eco, tal qualidade se intensifica quando se trata de uma "viagem ao coração do mundo". O autor costuma alertar para a distinção entre ser interior e self. Estes podem estar relacionados, mas o primeiro diz respeito a um núcleo fundamental, unitário, integrador, singular, fonte de vida e organizador da vida mental; enquanto que o segundo é uma instância mental de execução, um meio de efetivação da consciência, composto de inumeráveis constituintes, muitas vezes em conflito e em estado de fragilidade. Em síntese, o ser interior diz respeito à verdade interior, com a qual o self pode ter diferentes níveis de contato, ou nenhum, quando predomina, por exemplo, a sensorialidade da mente. A aderência ao sensório pode constituir uma defesa contra a fragilidade do self. Por outro lado, o ser interior tenta manter sua efetividade sobre o self, imprimindo seus movimentos. Essa influência liga-se à saúde mental ou a diferentes alterações psíquicas, dependendo do grau de ação que o ser interior consegue exercer sobre o self. A sensorialidade da mente refere-se às qualidades da concretude do eu, de suas relações e do mundo externo. Trata-se de um fenômeno que vai além do que registram os sentidos, refere-se a objetos ou qualidades da concretitude (palavra do autor) que saturam a mente (assim como os elementos beta, descritos por Bion), criando um mundo coisificado pela escassez de relações entre ser interior e self. O Dr. W.Trinca discorre sobre ruídos que podem saturar o self, como o uso abusivo das tecnologias contemporâneas. A aderência "aos padrões das máquinas significa, também, tendência ao alinhamento e ao condicionamento lato sensu pelos padrões do establishment e pelos sistemas dominantes de todo tipo" (pp. 92-93). Importa registar que não se trata de eliminar o self, mas de cessar o turbilhão da mente, tal como difundido pelo sistema filosófico do Yoga. Quando superada a oposição entre ser interior e self, a atenção sem esforço torna-se experiência de união e totalidade.

Saindo da clausura espaço-temporal, libertando-se a mente das marcas ou situações sensoriais pode ocorrer o alargamento de consciência ou a experiência de imaterialidade. No livro, alvo desta resenha, o Dr. W.Trinca discorre sobre muitas formas de relacionamento da pessoa consigo e com o mundo que incluem a consciência da imaterialidade. Cita a arte que, ao longo do tempo, continua a sensibilizar o ser humano e que é concebida como verdadeiramente uma obra de arte quando é capaz de produzir a experiência de imaterialidade. Ou seja, ela pode levar o indivíduo a experienciar liberdade, leveza, alegria, beleza, amplidão, bem como o silêncio e o sagrado. O autor continua a nos encantar, falando da estética do infinito, de atenção flutuante, de memória espiritual pela qual o planeta é concebido como um templo sagrado, um lugar em que a vida constrói a memória do espírito em laços de fraternidade universal que se estende a todos os seres vivos e ao planeta Terra. Discorre ainda sobre ruído e silêncio, abertura à experiência, sonhos, radiância do mundo, vida, luz, harmonia que "diz respeito à experiência de contato bem sucedida com o ser interior" (p.59) e, por fim, das feições primordiais da realidade que se desnuda como imaterialidade. Seu texto alinha-se com o pensamento de grandes filósofos, desde a antiguidade, e de sistemas que buscam religar o homem à sua fonte interior. Em especial, discute premissas caras ao pensamento oriental mais afeito à apreensão da imaterialidade, enfoque principal desta obra. O autor também analisa a arte, a ciência e a filosofia do século XX que, marcadas pelo desencantamento, rumam agora para a sua superação, pensamento esse que acredito em consonância com as perspectivas delineadas por autores como o sociólogo francês Edgar Morin, relativamente ao século XXI e aos pilares que devem nortear a educação mundial: (1) Ensinar as cegueiras do conhecimento: o erro e a ilusão; (2) os princípios do conhecimento pertinente; (3) a condição humana; (4) a identidade terrena; (5) enfrentar incertezas; (6) ensinar a compreensão e (7) a ética do gênero humano. Relacionando os dois autores, entendo que o homem deste século é sapiens e demnes, faber e ludens, empiricus e imaginarius, economicus e consumans, prosaicus e poeticus. E é tudo isso em unidade (si mesmo) e dualidade (self). Enfim, o psicanalista Walter Trinca, com seu método científico, estético e intuitivo, permite-nos entender o homo complexus, apesar da unidade/dualidade, numa busca de apropriação e vinculação aquele núcleo diferenciado e único que o torna humano e cósmico. Ou seja, a harmonia interna mostra-se consoante àquela que se encontra no cosmo. Para os gregos, Kosmos referia-se a ordem harmoniosa dos objetos eternos, "à qual se submetiam os próprios deuses" (p. 112).

Por fim, trata-se de obra original que constitui um convite a um relacionamento mais sensível e aberto consigo mesmo e, nas palavras do autor, uma vitória sobre a pulsão de morte que corrói os vínculos. O Dr. W. Trinca oferece, por meio de uma visão de mundo fundamentada na espiritualidade fenomênica, o que entendo como um raro e pertinente modelo para a compreensão da evolução psíquica e da saúde mental, compreendida como o contato com o ser interior que possibilita a consciência luminosa de inserção num universo de beleza e harmonia, com o qual nos conectamos com profundo respeito, amor e gratidão.

A novidade da obra está em que ela vai além das reflexões teóricas e clínicas sobre as perturbações psíquicas explorando uma área basicamente ignorada em psicanálise, ou seja, as qualidades de um sistema mental saudável, caracterizado pela mobilidade psíquica, incluindo-se nesta a abertura à experiência. "Na liberdade interior, tudo escorre como água e volatiza-se como vento. Não há prisões. E o mundo pode se mostrar ao simples ato de acolhê-lo pelo coração" (p.64). Não se trata de um apelo ao que está além do mundo, mas sim ao que nele existe. A imanência, deixando sobressair a espiritualidade fenomênica, num jogo dialético entre ambas, caracteriza a transcendência. Essa experiência pode alterar nossa relação com o planeta, revertendo os atuais processos de exploração e destruição da vida e possibilitando respostas significativas a questões fundamentais como: origem, destino, existência, individuação, sofrimento, morte, felicidade, impermanência, entre outras. A consciência da imaterialidade possibilita atentar para as características distintivas dos fenômenos, numa apreensão diferenciada daquela que constitui o senso comum. Para tanto é essencial a observação do self e o depuramento das condições mentais a fim de que as interferências sobre o conhecimento sejam mínimas.

O Dr. W.Trinca atinge o objetivo de apresentar uma perspectiva observacional e de estimular à experiência da imaterialidade, como atitude e como "atividade de contato com a realidade interna e externa, ocorrendo sob a influência da mobilidade psíquica e em estado de expansão da consciência" (p.11). No encontro de duas profundidades: a da mente com o mundo, o autor evidencia a pertinência e a relevância do método psicanalítico. Este, caracterizado pela atenção flutuante e por liberdade associativa, permite a sintonia com o invisível e o desconhecido que se esconde sob os fenômenos visíveis e, aparentemente, conhecidos. Apoiado em psicanalistas históricos (Freud, M. Klein e Bion), considero que o autor lança bases clínicas e metodológicas para a psicanálise do século XXI que deverá considerar a evolução psíquica para estados de expansão da consciência, de individuação e integração cósmica, superando inclusive a posição depressiva descrita por M. Klein. Nessas condições, a evitação da morte e o medo dessa pulsão deixarão de caracterizar o mundo ocidental, sendo ressignificados por experiências de inteireza e de ligação com a profundidade luminosa das origens. Não se trata de êxtase, nem de idealização ou alienação, mas do contato com as fontes profundas da Vida...

Por fim, para expressar um pouco do que constitui a experiência de uma "vigem ao coração do mundo, necessito sair da linguagem lógica para ingressar na estética:

"...farei os poemas do meu corpo e do que há de mortal, pois acredito que eles me trarão os poemas da alma e da imortalidade"; "A afeição ainda resolverá os Problemas da Liberdade; Aqueles que se amam Se tornarão invencíveis" (Walt Withman, Leaves of Grass, 1855). "É bem possível que alguma vez a luz interior venha a brotar de nós mesmos, de maneira que não teremos mais necessidade de nenhuma outra" (Goethe, s.d.). "Somente quando ocorre o grande despertar é que se sabe que tudo não passou de um grande sonho" (Chuang-Tse, Oeuvre complete, 1985). "Os grandes pensamentos estão além do tempo; os grandes empreendimentos, fora do tempo. As imagens, que elevam os homens / Em dignidade, não provêm do tempo" (W. Trinca, Quase Poesia, 2010).

 

 

1 Profª. Dra. Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos, Membro da Academia Paulista de Psicologia (Cadeira No. 19, antecessor Cesar Ades). Coordenadora do Laboratório de pesquisa VIDA - Vivência Intrapsíquica e Desenvolvimento Ambiento-Organizacional e Líder do Grupo de mesmo nome (Certificado pela UFSCar - Base Lattes CNPq). Para informações: Laboratório VIDA - Rodovia Washington Luiz Km 235, C.P.: 676. Departamento de Psicologia, São Carlos, São Paulo. CEP 13565-905 Tels: 0XX (16) 3351.8361 e 0XX (16) 3361.1134. E-mail: doris@ufscar.br

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