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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.36 no.91 São Paulo jul. 2016

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

Experiências anômalas tipicamente contemporâneas e psicologia: uma revisão da literatura1

 

Typically contemporary anomalous experiences and psychology: a literature review

 

Experiencias anómalas típicamente contemporáneas y la psicología: una revisión de la literatura

 

 

Leonardo Breno Martins2

 

 


RESUMO

Este artigo realiza uma revisão da literatura em psicologia e em ciências sociais sobre experiências anômalas tipicamente contemporâneas. Experiências anômalas podem ser definidas como vivências subjetivas irregulares ou incomuns que, a despeito de poderem ser experimentadas por muitas pessoas, são controversas em sua cultura de origem e não possuem relação obrigatória com patologia ou anormalidade. Entre os exemplos mais estudados pela psicologia estão a "mediunidade" e as curas "espirituais". Aliteratura aponta como a mais importante categoria tipicamente contemporânea de experiência anômala os alegados contatos com "alienígenas". Esta revisão de literatura abarca temas como perfis psicológicos e a saúde mental dos protagonistas, dinâmicas psicossociais em grupos e outros contextos marcados por essas experiências, suas dimensões religiosas e espirituais, entre outros. A inclusão de estudos em ciências sociais se deve, por um lado, à relativa raridade de estudos psicológicos a respeito e, por outro, às articulações que se podem construir com a psicologia, especialmente a psicologia social. Concluiu-se que o estudo das experiências anômalas tipicamente contemporâneas presta diversas contribuições à construção de conhecimento em psicologia e em ciências próximas, além de sinalizar diversas lacunas explicativas a seu respeito e sobre fenômenos psicológicos mais amplos.

Palavras-Chave: psicologia, religião, espiritualidade, óvni.


ABSTRACT

This article conducts a literature review in psychology and social sciences on typically contemporary anomalous experiences. Anomalous experiences can be defined as irregular or unusual subjective experiences that, despite being experienced by many people, are controversial in their culture of origin and do not have mandatory relationship with pathology or abnormality. Some examples most studied by psychology are "mediumship" and "spiritual" healing. The literature points out as the most important category of typically contemporary anomalous experience the alleged contacts with "aliens". This literature review covers issues such as psychological profiles and mental health of the protagonists, psychosocial dynamics in groups and other contexts marked by these experiences, their religious and spiritual dimensions, among others. The inclusion of studies in the social sciences is due, on the one hand, the relative rarity of psychological studies about the matter and, on the other, the articulations that can be built with psychology, especially social psychology. It was concluded that the study of typically contemporary anomalous experiences provides several contributions to construction of knowledge in psychology and related sciences, as well as indicates various explanatory gaps about the topic and broader psychological phenomena.

Keywords: Anomalous experiences, psychology, religion, spirituality, UFO.


RESUMEN

En este artículo se presenta una revisión de la literatura en psicología y ciencias sociales alrededor de las experiencias anómalas típicamente contemporáneas. Experiencias anómalas se pueden definir como experiencias subjetivas irregulares o inusuales que, a pesar de poder ser experimentado por muchas personas, son controvertidos en su cultura de origen y que no tienen relación obligatoria con la patología o anormalidad. Los ejemplos más estudiados por la psicología son la "mediumnidad" y la curación "espiritual". La literatura señala que la categoría más importante de la experiencia anómala típicamente contemporánea son supuestos contactos con los "extraterrestres". Esta revisión de la literatura abarca temas tales como perfiles psicológicos y de salud mental de los protagonistas, dinámicas psicosociales en grupos y otros contextos marcados por estas experiencias, sus dimensiones religiosas y espirituales, entre otros. La inclusión de los estudios en las ciencias sociales se debe, por una parte, a la rareza relativa de los estudios psicológicos sobre y, en segundo lugar, a las articulaciones que se pueden hacer con la psicología, especialmente la psicología social. Se concluye que el estudio de las experiencias anómalas contemporáneas puede proporcionar varias contribuciones a la construcción del conocimiento en psicología y ciencias cercanas, además de indicar varias lagunas explicativas sobre ellos y sobre fenómenos psicológicos más amplios.

Palabras clave: psicología, religión, espiritualidad, UFO.


 

 

Introdução

Um dos temas principais em psicologia é a experiência humana, a qual é tanto produto quanto fundamento de uma série de processos intra e intersubjetivos pelos quais a ciência psicológica se interessa, como memória, percepção, atitudes, atribuição de sentido, comportamento grupal etc. Contudo, a despeito da profícua trajetória da psicologia desde o século XIX, uma parcela relevante das experiências humanas tem recebido atenção ainda aquém de sua importância. Trata-se de episódios cuja estranheza e impacto subjetivo afetam cotidianamente a vida de seus protagonistas e grupos nos quais se inserem, além de cativarem a imaginação do grande público em filmes, livros e toda sorte de boatos: experiências ligadas ao "paranormal".

Em anos recentes, esses episódios subjetivos vêm sendo chamados de experiências anômalas, isto é, aquelas que divergem das experiências cotidianas e/ou do consenso habitual em dado contexto cultural sobre a realidade, embora não possuam relação obrigatória com patologia ou anormalidade. A psicologia tem investigado por vias quantitativas, qualitativas e mistas tais experiências, que incluem alucinações, sinestesias, sonhos lúcidos, experiências "fora do corpo", memórias de "vidas passadas", experiências de "quase morte", curas "espirituais", experiências místicas, entre outras (cf. ampla revisão em Cardeña, Lynn & Krippner, 2014).

Uma vez definidas enquanto experiências subjetivas acessíveis ao investigador através de relatos de primeira-mão e indícios circunstanciais, sua investigação independe de crenças apriorísticas sobre a natureza última dos episódios. Assim, enquanto eventos de ordem subjetiva, os dados relacionados podem ser sistematizados como quaisquer outros com os quais a psicologia e áreas afins estão habituadas a trabalhar (Almeida & Lotufo, 2003), o que possibilita e legitima seu estudo, a despeito de sua aparente estranheza.

As experiências anômalas têm sido cada vez mais investigadas, ampliando progressivamente o leque de experiências humanas familiares à ciência. Há quase duas décadas emergiu a chamada psicologia anomalística, como área dedicada especificamente ao estudo desses episódios e de temas associados, como crenças, perfis psicológicos dos protagonistas etc. (Holt, Simmonds-Moore, Luke & French, 2012). Contudo, é danosa aos interesses da psicologia a lacuna de conhecimento sobre uma categoria propriamente contemporânea de experiência anômala: aquela referente a alegados contatos com "alienígenas" e "objetos voadores não identificados" (óvnis ou UFOs, para o equivalente inglês Unidentified Flying Objects). Assim como a psicologia anomalística se ocupa de visões de pretensos seres sobrenaturais, alegadas viagens a mundos espirituais, estados alterados de consciência e presumidas percepções além do tempo e do espaço cotidianos, é legítimo que se ocupe também de alegadas interações com seres anômalos tidos pelos protagonistas como "alienígenas" ou termos afins, assim como de propaladas viagens no interior de suas naves, experiências "paranormais" induzidas à ocasião e diversas outras formas de vivências estranhas relacionadas. Em todos os casos, tratam-se, ao menos, de experiências subjetivas e a supracitada definição de experiência anômala é preenchida. Para fins parcimoniosos, tais episódios serão aqui agrupados sob o termo "experiência ufológica".

Como indicadores da referida lacuna de conhecimento, trabalhos acadêmicos diretamente relacionados aos ícones "óvni" e "alienígena" são muito pouco conhecidos, especialmente no Brasil, onde também se mostram raros. Enquanto a presente revisão da literatura apurou 47 teses de doutorado, 37 dissertações de mestrado e cursos avançados equivalentes, e 44 trabalhos em outras formas de pós-graduação, totalizando 128 obras, quase 90% foram escritas em universidades norte-americanas e apenas oito o foram no Brasil, das quais apenas duas em psicologia (i.e., Martins, 2011b, 2015). Tal realidade se repete quanto a artigos científicos em periódicos indexados.

De forma contrastante à sua escassa produção acadêmica relacionada, o Brasil é informalmente referido na mídia nacional e internacional como um dos países mais ricos em experiências ufológicas (e.g., Martins, 2015; Suenaga, 1999). A experiência de dezoito anos deste autor entrevistando protagonistas desses episódios confirma parcialmente as menções informais, dada sua ampla facilidade em encontrar elevada quantidade de relatos ufológicos de primeira mão em incursões de campo, tanto em regiões urbanas quanto rurais. Evidentemente, diante da informalidade das estimativas, sugere-se a necessidade de estudos sistemáticos para avaliar a prevalência das experiências ufológicas em contexto brasileiro. Quanto à sua prevalência em outros contextos culturais, pesquisas majoritariamente encontraram índices ao redor de 10% (cf. predominância em Schuessler, 2000), com extremos de 5% e 25% (Dewan, 2006a; Hough & Rogers, 2007/2008; Schuessler, 2000), de protagonistas entre a população em vários países e em contextos mais específicos.

Por sua vez, as experiências ufológicas tendem a produzir significativo impacto intra e intersubjetivo na contemporaneidade, com implicações sociais, clínicas e científicas que merecem ser mais bem discutidas, como a formação de grupos, a edificação de crenças que orientam a vida dos envolvidos, por vezes sutis distinções entre experiências anômalas saudáveis e transtornos mentais, a influência da personalidade na susceptibilidade a tais experiências, entre outros (e.g., Marçolla & Mahfoud, 2002; Martins, 2011b, 2014; 2015; Martins & Zangari, 2012, 2013; Suenaga, 1999). Como sugeriu Dewan (2006b), os relatos sobre alienígenas compõem a categoria mais importante na atualidade de narrativas sobre luzes anômalas quanto à mobilização social relacionada, abrangendo crenças e experiências diversas, teorias conspiratórias, episódios de variados níveis de profundidade, interesse coletivo por ciência e vida extraterrestre, entre outros temas potencialmente interessantes às ciências humanas. Tomando as experiências como manifestação moderna de dimensões folclóricas tradicionais, Bullard (1989) aponta os óvnis como a quintessência das lendas modernas.

Visando confrontar a incoerência existente entre a abundância/relevância cultural de experiências ufológicas e crenças relacionadas no Brasil e a quase nula atenção acadêmica que essas recebem, este artigo apresenta uma revisão de literatura sobre o tema. Espera-se que tal apresentação motive novas pesquisas no contexto brasileiro, inclusive em conexão com experiências anômalas de outros tipos e com outros temas raros à psicologia como formação de crenças, memória, percepção, desconstrução cultural, entre outros cuja conexão com experiências ufológicas se pretenderá clara ao longo do texto. O recorte do artigo incide sobre o estudo de alegadas experiências em primeiramão através da psicologia e ciências aproximadas.

 

Descrição fenomenológica das experiências

Como etapa inicial da apresentação das experiências ufológicas, parece útil uma visão panorâmica dos episódios. Descrições fenomenológicas permitem delinear as características básicas das experiências tal como vividas por seus protagonistas, prescindindo de avaliações teóricas por parte do pesquisador. As descrições a seguir são qualitativas e se baseiam em relatos de primeira-mão apresentados na literatura acadêmica e não acadêmica (e.g., Appelle, Lynn, Newman & Malaktaris, 2014; Hopkins, 1995; Jacobs, 1998, 2002; Jung, 1988; Mack, 1994; Marçolla & Mahfoud, 2002; Martins, 2011b, 2015; Moura, 1996; Suenaga, 1999).

As experiências mais simples e fugazes são as mais comuns e descrevem luzes noturnas ou objetos metálicos diurnos pretensamente vistos a grandes distâncias se comportando, na opinião dos protagonistas, de forma em algo divergente de fenômenos naturais e artificiais familiares, como aviões, meteoros, balões etc. Assim, apresentariam padrões luminosos peculiares, trajetórias erráticas e aparentemente intencionais, acelerações e desacelerações abruptas, velocidades impraticáveis para artefatos humanos, aparecimentos e desaparecimentos, entre outras características que, combinadas ou isoladas, tendem a conferir ao protagonista a persistente conclusão de ter testemunhado fenômeno artificial, inteligentemente dirigido, alheio às possibilidades tecnológicas humanas e provenientes de fora da Terra.

Por sua vez, as experiências mais complexas aludem a supostas interações próximas com luzes/objetos voadores ou alienígenas. Assim, as experiências tendem a apresentar maior riqueza de detalhes. Os óvnis descritos tendem a três formatos típicos: esfera, disco e cilindro, com exceções relativamente raras. São comuns os elementos que sugerem aos protagonistas uma constituição artificial, entre os quais superfície aparentemente metálica, vigias ou janelas, cúpulas ou anexos discretos, feixes de luz emitidos para baixo, ausência de junções ou ligas visíveis. Frequentemente, tal riqueza de detalhes e proximidade facilita com que os protagonistas usem termos como "nave" para nomeá-los. Não raro, os óvnis são descritos também como de aparência não física, mas "energética" ou "sutil" (sic), aparentando serem luminosos, transparentes ou algo de mais difícil descrição. As dimensões costumam variar dentro de dois grupos aparentemente distintos: ora são pequenos, tipicamente entre poucos centímetros de diâmetro a um metro, quase sempre esféricos, ora são ditos de grandes dimensões, algo entre três e quinze metros de diâmetro ou extensão (ou um pouco mais), quando os demais formatos tendem a surgir. Os óvnis cilíndricos podem ser referidos com dimensões superlativas, como várias dezenas de metros de comprimento.

Já as experiências próximas com pretensos alienígenas podem ou não ser associadas à presença de um óvni. Em caso afirmativo, as entidades tipicamente são referidas dentro ou próximas a um óvni aterrissado ou que paira. Conquanto sejam apresentados dos mais diversos modos (e.g., variações expressivas em massa corporal, estatura, beleza, aparência mais ou menos animalesca), quase todos os alienígenas são antropomórficos, possuindo cabeça, tronco e quatro membros, com dedos nas extremidades. Quanto mais assemelhados a humanos, mais tendem a ser delineados portando vestimentas, essas frequentemente colantes e metálicas, em algo comparáveis aos "astronautas" (sic), ou a semelhança de leves túnicas. Quanto mais animalescos, mais tendem a ser descritos como nus ou portando poucos adereços. Sua atitude parece igualmente variar segundo o grau de antropomorfismo. Seres animalescos tendem a ser ditos arredios, enquanto os contornos mais humanos tendem a se associar à comunicação gestual, idioma incompreensível (e.g., grunhidos, zumbidos), comunicação oral convencional ou transmissão de pensamentos (telepatia).

Não raro, as experiências são acompanhadas, do que os protagonistas entendem como indícios ou mesmo provas ambientais de sua realidade concreta. Esses indícios incluem marcas circulares na vegetação, árvores quebradas ou chamuscadas, sinais e sintomas imediatamente posteriores nos protagonistas ou em animais próximos (e.g., queimaduras, ardência e sensibilidade nos olhos, fotografias, filmagens, mau-funcionamento de máquinas), entre outros.

Em função de sua intrigante complexidade, as experiências de sequestro por alienígenas, conhecidas popularmente como "abduções", talvez constituam a categoria mais cientificamente investigada de experiência ufológica (e.g., revisões em Appelle e outros, 2014; Hough & Rogers, 2007/2008). As narrativas tipicamente aludem à visão de um óvni ou alienígena(s), acompanhada do ingresso involuntário dos protagonistas dentro da "nave" (sic). A seguir, os então abduzidos seriam submetidos a minuciosos procedimentos, à semelhança de exames médicos em algo privilegiando órgãos genitais e vísceras. Com menor frequência, os protagonistas seriam obrigados a manter relações sexuais com outros abduzidos, todos em estado de transe, ou mesmo com um alienígena. Muitas vezes são reportadas extrações (mais usualmente mecânicas) de sêmen e óvulos, sendo tal material usado para manufatura de "bebês híbridos" (sic) humano-alienígenas, por vezes vistos dentro da "nave" em variados estágios de desenvolvimento. As abduções tenderiam a durar entre uma e três horas, o que os protagonistas calculam por meio de indícios circunstanciais, como os horários alegadamente vistos em algum relógio quando do início e do fim da experiência, relatos de terceiros que notariam sua ausência no respectivo intervalo de tempo, o horário de chegada do protagonista em casa após o episódio (e.g., quando se esperaria seu regresso três horas antes), entre outros. Com frequência expressiva (e.g., 70% em McLeod, Corbisier & Mack, 1996), os abduzidos não possuem lembrança inicial da experiência (ao menos não "completa"), mas apenas ou principalmente angustiantes indicativos de que algo anômalo e intenso teria lhes ocorrido. Os indícios subjetivos mais corriqueiros incluem uma lacuna de memória de uma a três horas após ver um óvni ou alienígena (lacuna conhecida popularmente como "missing time", isto é, "tempo perdido"; cf. Hopkins, 1995), cicatrizes não notadas antes do evento e que sinalizariam procedimentos médicos realizados durante a abdução, sonhos reincidentes e nítidos sobre os protagonistas serem levados a um ambiente estranho e examinados por criaturas assustadoras, além de quadros ansiosos diversos, insônia, pesadelos e desenvolvimento de fobias (Appelle e outros, 2014; Hopkins, 1995; Jacobs, 1998, 2002; McLeod e outros, 1996, Mack, 1994).

Desenham-se então três grandes tendências: (1) A estranheza dos eventos não motiva maiores buscas por esclarecimento, o que não gera uma noção subjetiva de abdução; (2) a partir do conhecimento popular e da literatura ufológica, os protagonistas concluem que foram abduzidos; ou (3) os protagonistas buscam recordar o pretensamente ocorrido durante o tempo perdido (missing time), usualmente através de hipnose ou práticas alternativas que levam a alterações de consciência. Na terceira possibilidade, muitas vezes surgem detalhadas "lembranças" de abduções demoradas e complexas, com etapas razoavelmente típicas (para maiores detalhes, cf. Appelle e outros, 2014; Bullard, 1989; Hopkins, 1995; Jacobs, 1998, 2002; Mack, 1994; Moura, 1996). Com alguma frequência (e.g., 30% em McLeod e outros, 1996), os abduzidos não necessitam de hipnose ou técnicas alternativas para apresentar relatos semelhantes aos que utilizaram essas técnicas auxiliares.

Finalmente, embora sem a pretensão de esgotar o tema, outro subgrupo de experiências ufológicas remete a interações amistosas e espiritualmente edificantes com alienígenas majestosos e benevolentes. Os protagonistas de tais episódios são usualmente conhecidos como "contatados" (cf. Lewis, 1995; Suenaga, 1999). Em diversos aspectos, as experiências se assemelham a alegados contatos com espíritos e não raro associadas a alterações de consciência, transes mediúnicos, experiências fora do corpo e intuições sutis. Encontros de aparência puramente física também são narrados, mas estão se tornando cada vez mais raros (Martins, 2015). Os alienígenas tendem a ser descritos como altos, belos e brilhantes, à semelhança de "anjos" ou "espíritos de luz" (sic), apesar de características denotativas de uma origem "extraterrestre" (sic), como roupas metálicas e equipamentos. Os diálogos tendem a ser instrutivos e esotéricos, orais ou por transmissão de pensamento ("telepatia"). Alguns contatados mencionam que as entidades sequer necessitam de naves para chegar à Terra, o que os conduz a entender os óvnis como um fenômeno distinto ou mesmo inexistente.

Embora confirmem e repitam os padrões internacionais descritos acima, as experiências ufológicas brasileiras também possuem especificidade. As incursões de campo do autor confirmam fontes nacionais e estrangeiras, formais ou não (e.g., Suenaga, 1999), que sugerem ser o Brasil profícuo em experiências ufológicas repletas de particularidades, que incluem alienígenas de conformações diversas (e.g., entidades com número de olhos variando entre um e quatro, altura variando entre quinze centímetros a três metros, aparência vadiando entre animalesca e robótica), abduções truculentas, perseguições ostensivas em estradas isoladas, confrontos corpo a corpo com alienígenas (i.e., brigas físicas), ataques brutais de alienígenas a animais domésticos ou de fazenda (e.g., o notório "Chupa-cabras", que retiraria sangue de rebanhos inteiros; cf. Machado, 2001), entre outras variações.

 

As experiências ufológicas e seus protagonistas como objetos de estudo

Quase todos os trabalhos acadêmicos sobre óvnis e alienígenas se deram no campo das Humanidades. Abordam aplicações de testes psicológicos e avaliações clínicas em protagonistas, correlatos com folclore e religião, a psicologia da percepção e da memória sobre as experiências, a controvérsia cultural e científica sobre a ontologia das experiências, estatísticas acerca das visões, correlatos com experiências místicas e implicações do imaginário coletivo sobre a pluralidade dos mundos habitados.

Diversos estudos buscaram correlacionar as experiências a características pessoais de ordem psicobiológica como tendência a fantasiar (e.g., Bartholomew, Howard & Basterfield, 1991; Powers, 1991), propensão a falsas memórias (e.g., Clancy, McNally, Pitman, Schacter & Lenzenweger, 2002; Paley, 1997; Powers, 1991), tendência a dissociar (e.g., Holden & French, 2002; Powers, 1994), substratos neurológicos específicos (e.g., Don & Moura, 1997; Holden & French, 2002; Paley, 1997; Persinger, 1992), desordens como a paralisia do sono (e.g., Appelle e outros, 2014; Clancy e outros, 2002; Holden & French, 2002; McNally & Clancy, 2005), entre outras. Duas amplas revisões dessa literatura (French, Santomauro, Hamilton, Fox & Thalbourne, 2008; Hough & Rogers, 2007/2008), apresentadas abaixo, ilustram as divergências do campo e a necessidade de novas pesquisas. Ademais, como a grande maioria desses estudos se dedica a uma categoria particular de experiência ufológica, i.e., as abduções, são necessários trabalhos que abarquem consistentemente outras categorias de experiências.

Com base na revisão da literatura, French e outros (2008) concluíram que protagonistas de experiências ufológicas possuem perfil psicológico mais predisposto à dissociação, crenças em paranormalidade, sugestionabilidade, falsas memórias e fantasias. A seguir, os autores replicaram os achados e acrescentaram como atributo distintivo dos protagonistas a tendência a alucinar. Contudo, ao contrário dos achados prévios, não apuraram susceptibilidade maior para falsas memórias.

Hough e Rogers (2007/2008) investigaram tendência à fantasia, inteligência emocional e os cinco grandes fatores da personalidade em abduzidos. Contrariando os achados da ampla revisão de literatura que conduziram (em sintonia com os apresentados por French e outros, 2008), não apuraram diferença significativa em quase todos os construtos, de modo a sugerir que os abduzidos possuem perfil psicológico bastante semelhante ao da população geral, ao menos quanto àquelas características. A única exceção foi o fator Conscienciosidade da personalidade (i.e., em síntese, a tendência a mostrar disciplina e senso de dever), cujos escores entre os abduzidos foram significantemente mais altos que no grupo controle. Os autores sugerem ser isto um esforço dos abduzidos em parecerem testemunhas confiáveis. Finalmente, sugeriram que as diferenças apuradas em outros estudos quanto a essas e outras variáveis se deveram a deficiências metodológicas sérias como preconceito, métodos impróprios, observação tendenciosa e amostras pequenas e unificadas, que não distinguiam contatados, abduzidos e testemunhas de experiências simples.

Contrários à histórica tendência à patologização dos abduzidos e ao não reconhecimento da relevância do tema, McLeod e outros (1996) sugerem que as experiências de abdução não podem ser prontamente atribuídas a fantasias masoquistas, mentiras simples, distúrbios do sono, desejo de chamar a atenção, doença mental, trauma de nascimento ou regressões de memória tendenciosamente conduzidas, tal como aludido pela maioria dos críticos. A despeito do aceso debate sobre características psicopatológicas isoladas em abduzidos, há consenso sobre a paridade entre os protagonistas e a população geral quanto à prevalência de transtornos mentais formais (e.g., Appelle e outros, 2014; Mack, 1994).

Enquanto os estudos internacionais apresentam resultados controversos, estudos brasileiros procuram replicá-los, embora ainda de modo tímido. A partir da pesquisa de mestrado do primeiro autor (Martins, 2011b), Martins e Zangari (2012) discutem relações entre transtornos mentais, experiências espirituais e experiências anômalas que mencionam alienígenas. Foram então investigados, em contrastes a grupos, controle similares, 46 adultos brasileiros que relataram diferentes tipos de contatos com alienígenas. Para apurar a presença ou não de transtornos mentais em seu histórico e eventuais aproximações entre esses e suas experiências ufológicas, foram utilizados o instrumento diagnostico Mini International Neuropsychiatric Interview, versão detalhada (MINI PLUS) e validada para o contexto brasileiro (Amorim, 2000), além dos nove critérios qualitativos distintivos entre experiências anômalas saudáveis e transtornos mentais elaborado por Menezes Júnior e Moreira-Almeida (2009). São eles: ausência de sofrimento psicológico, ausência de prejuízos sociais e ocupacionais, duração curta da experiência, atitude crítica preservada, compatibilidade com o grupo cultural ou religioso do protagonista, ausência de comorbidades, controle sobre a experiência, crescimento pessoal ao longo do tempo e atitude de ajuda aos outros. Por fim, entrevistas qualitativas extensas buscaram levantar aspectos relevantes da biografia dos participantes, como ajustamento social e significados atribuídos aos episódios com alienígenas. Em sintonia com a literatura internacional em um dos poucos aspectos em que ela é praticamente unânime, as experiências ufológicas não se evidenciaram associadas a transtornos mentais. Contudo, o grupo de 11 abduzidos e contatados se destacou de forma significante em relação ao respectivo grupo controle em indicativos pré-mórbidos na infância e adolescência, embora tenha havido desenvolvimento psicológico ulterior sem transtornos mentais de forma destacada. Diante desse dado, os autores discutiram o papel da cultura (nesse caso, especialmente ufologia e esoterismo contemporâneo) como facilitadora de saúde psicológica ao conferir sentido a vivências ambíguas e angustiantes na infância e adolescência. Ademais, o perfil psicológico conhecido como "esquizotipia saudável" evidenciou desempenhar um papel entre abduzidos e contatados da amostra, de modo a lhes favorecer a ocorrência de tais experiências precoces ambíguas como alucinações e ideias não convencionais. A esquizotipia saudável diz respeito, justamente, ao perfil psicológico mais propenso a experimentar alucinações, delírios e outros "sintomas positivos" comuns às psicoses, mas sem a presença dos "sintomas negativos", como anedonia e ansiedade social (McCreery & Claridge, 2002).

Ainda a partir da pesquisa de mestrado do primeiro autor (Martins, 2011b), Martins e Zangari (2013) então discutem traços de personalidade na mesma amostra de 46 protagonistas de experiências ufológicas e grupos controle. Utilizando o inventário de personalidade NEO PI-R, que investiga fatores e facetas da personalidade dentro do prestigiado modelo Big Five (Costa & McCrae, 2007), os autores refutaram sua hipótese inicial de que os grupos de protagonistas de experiências ufológicas se destacariam dos grupos controle quanto a dificuldades emocionais no enfrentamento da realidade (como parte do fator Neuroticismo), desejo por uma vida emocionante (na faceta Busca por Sensações) e tendências fantasistas (faceta Fantasia), características essas que poderiam ocasionar experiências subjetivas com alienígenas. Por sua vez, os protagonistas de tais experiências se destacaram em outros fatores e facetas de personalidades inicialmente não sugeridos, como Abertura à Experiência, Emoções Positivas, Estética, Assertividade, Sentimentos (i.e., valorização da dimensão emocional), Ideias (i.e., curiosidade intelectual e senso de contestação), Valores, Atividade (i.e., dinamismo) e Ações Variadas. Ao mesmo tempo, seus escores foram significantemente inferiores em Esforço por Realizações e Ponderação. Os autores apresentaram então hipóteses sobre como tais tendências de personalidade poderiam se manifestar por ocasião de uma experiência ufológica, recomendando pesquisas futuras para sua verificação.

Se as tendências pessoais investigadas nos diferentes estudos parecem não constituir explicações abrangentes, adequadas ou livres de controvérsia para as experiências ou uma parcela significativa delas, sintomas e sinais aparentemente secundários são referidos com alguma frequência, como reações de estresse, ansiedade generalizada, fobias, anemia, ardência e sensibilidade nos olhos, queimaduras, erupções e outras marcas na pele, complicações gastrointestinais, sede aguda, sensação de nojo de si, lapsos de memória, pesadelos recorrentes, mudanças profundas de personalidade, transtornos mentais secundários, entre outros a ainda demandarem compreensão (Appelle e outros, 2014; Bullard, 1989; Martins, 2011b, 2015; McLeod e outros, 1996; Suenaga, 1999).

Por sua vez, as experiências ufológicas podem exercer funções subjetivas das experiências anômalas em geral, como metaforizar a jornada de amadurecimento psicológico e resgatar a dimensão de mistério da vida (Bullard, 1989; Cardeña e outros, 2000; Dewan, 2006b; Jung, 1958/1988; Mack, 1994; Moura, 1996; Suenaga, 1999). Contudo, as experiências ufológicas podem diferir de modo importante das demais categorias de anomalias por serem, em uma parcela dos casos, muito mais extensas, complexas e talvez padronizadas (e.g., Appelle e outros, 2014; Mack, 1994; Moura, 1996), além de particularmente associadas a sinais e sintomas (Appelle e outros, 2014; Bullard, 1989; Martins, 2011b; McLeod e outros, 1996; Suenaga, 1999) e passíveis de interpretações cientificistas enquanto produto de tecnologias não convencionais (Bullard, 1989; Dewan, 2006b; Jung, 1958/1988), oferecendo, assim, alternativas naturalistas às interpretações sobrenaturalistas hegemônicas no campo das experiências anômalas.

Embora as experiências ufológicas se mostrem sob contornos tecnológicos parcialmente familiares (e.g., naves, trajes espaciais), e embora pareçam atemporais em essência, assinalando visões similares em todos os locais e épocas (Jung, 1958/1988; Suenaga, 1999), frequentemente as experiências se apresentam chocantes e destoantes da visão de mundo de pessoas e grupos a ponto de atuarem como uma desconstrução cultural, confrontando crenças hegemônicas científicas e religiosas, e angustiando protagonistas (Bullard, 1989; Martins, 2015; McLeod e outros, 1996; Suenaga, 1999). Isso sugere outra distinção relevante para com a maioria das demais categorias de experiência anômala, que costumam se adequar melhor à visão de mundo de seus protagonistas e de seu meio social, ser passíveis de certo controle e gerar menos sofrimento psicológico ou prejuízo funcional no cotidiano (cf. Cardeña e outros, 2014; Menezes Júnior & Moreira-Almeida, 2009). Ademais, enquanto a tendência a fantasiar e outras características de personalidade parecem conexas a alguns tipos de experiência anômala (cf. Cardeña e outros, 2014), o mesmo talvez não possa ser dito quanto às abduções (como vimos anteriormente com Hough & Rogers, 2007/2008).

Dewan (2006b) sugere que as experiências ufológicas partilham elementos essenciais e distintos de outras formas de experiência anômala, como visões de fantasmas, anjos, demônios etc. As experiências ufológicas seriam edificadas em vivências estranhas, mas reais cultural e individualmente, que formam e são formadas pelas tradições culturais e esquemas mentais específicos (i.e., crenças, expectativas, memórias e vieses perceptuais próprios). Assim, produziriam alarde para alavancá-las à condição de categoria mais importante de experiência anômala contemporânea relativa a luzes.

Bullard (1989) distingue nas experiências ufológicas a interface com tradições folclóricas em aparência e função, mas indica que a adaptação dessas para o contexto atual torna os óvnis a matéria quintessencial das lendas modernas ao miscigenar tópicos contemporâneos (e.g., astronomia, engenharia genética, preocupações ecológicas, conspirações em escala global, tecnologia) e ancestrais (e.g., medos básicos, a jornada de amadurecimento psicológico, a busca por transcendência). Contudo, cabe ressalvar que as experiências tendem a possuir caráter primário em relação às construções culturais (Bullard, 1989; Dewan, 2006; Marçolla & Mahfoud, 2002, Martins, 2015), delimitando contornos essenciais de convicção sobre sua realidade objetiva e características que então alcançarão a coletividade e com ela construirão uma relação dialética.

Discutindo aproximações entre experiências ufológicas e religiosas, Lewis (1995) propõe que os episódios atuais sobre óvnis e alienígenas tenham distinguidos seus elementos religiosos tradicionais. O autor lembra que a dessacralização da terra em detrimento do céu, típica nas religiões ocidentais, torna potencialmente divinizáveis fenômenos celestes aparentemente incomuns. Do mesmo modo, alienígenas e a divindade são essencialmente misteriosos (ou numinosos, como em Jung, 1958/1988), considerados mais poderosos que o ser humano, capazes de "milagres" (e.g., curar, flutuar, aparecer e desaparecer, comunicar-se mentalmente, transpassar paredes, atravessar distâncias cósmicas). Em sua faceta oposta e complementar, as mesmas capacidades sobre-humanas, ao serem ligadas à aparência repugnante ou a intenções questionáveis de alienígenas (como em sofridas abduções), pode torná-los objeto de demonização. Assim, extraterrestres se tornariam depositários de projeções religiosas diversas, boa parte das quais inconscientes. Os óvnis e as inteligências ditas responsáveis se tornariam promessa de salvação para a humanidade e o planeta, donos de poderes sobre-humanos inimagináveis, sábios "irmãos cósmicos" prontos a guiar e mesmo arrebatar a humanidade (mas apenas os terráqueos "escolhidos") no auge do colapso planetário, enviados do próprio Lúcifer nas vésperas do Juízo Final etc. Em sintonia com Jung (1958/1988) e Bullard (1989), Lewis conclui que os alienígenas e óvnis de hoje cumprem funções atribuídas a seres sobrenaturais, tornando-se "anjos tecnológicos" (Lewis, 1995, p. XIII).

Em um dos primeiros trabalhos acadêmicos a abordar os óvnis, Jung (1958/ 1988) buscou compreender o então emergente boato sobre objetos estranhos no céu enquanto projeção resultante, nos grandes centros urbanos, da combinação de arquétipos específicos e da tensão daquele momento histórico pós Segunda Guerra Mundial e do enfraquecimento da religião. Assim, os óvnis seriam um mito moderno decorrente da necessidade psicológica de apaziguamento de tal tensão. Mas os padrões então embrionários das experiências ufológicas e as nuances daquele momento histórico foram decisivas em suas teorizações.

Passados mais de cinquenta anos, Martins (2011a) discutiu impactos das mudanças subsequentes e significativas no ambiente cultural (com o fim da Guerra Fria) e nas experiências ufológicas (com destaque para os episódios brasileiros) sobre as propostas originais de Jung (1958/1988). Em síntese, concluiu que o papel teórico exercido pela Guerra Fria na análise junguiana poderia ser exercido por tensões coletivas atuais. Contudo, com a subsequente crise do racionalismo, a recuperação cultural das religiões e do esoterismo, e os alienígenas atuais exercendo explicitamente funções intra e intersubjetivas outrora e concomitantemente divinas, enfraqueceu-se a necessidade de mecanismos projetivos tal como sugeridos por Jung, o que contrasta com a proficuidade de experiências ufológicas atuais. Isso sinaliza a necessidade, ao menos em termos estritamente junguianos, de se considerar uma mudança essencial na compreensão da emergência dessas experiências subjetivas.

O próprio Jung forneceu então uma hipótese que antecipou tal mudança cultural: tratar-se-iam de visões embasadas no profundo desejo também consciente de se ter tais experiências. De qualquer modo, a função mitológica dos óvnis se evidenciou ainda presente e comumente favorável ao processo de amadurecimento psicológico dos protagonistas.

Interessado especificamente no simbolismo da morte discutido de modo muito breve por Jung (1958/1988) com base em escassos sonhos e visões então disponíveis, Martins (2011c) utilizou a farta coleção de episódios atuais, novamente com ênfase no contexto brasileiro, para rever a questão. Concluiu que os alienígenas se tornaram ao longo das décadas subsequentes à obra junguiana original uma representação contemporânea da morte tanto literal quanto simbólica. Assim, experiências invasivas tendem a ser elaboradas pelos protagonistas como ameaças concretas à sua integridade física e psicológica, assim como os alienígenas da ficção científica e dos cenários projetados pela ciência para contato futuro com a humanidade são frequentemente tomados como invasores e destruidores em potencial. Por sua vez, experiências complexas como as abduções encenam a arquetípica jornada do herói, nas quais protagonistas experimentam amadurecimento através de um processo de "morte" de antigos padrões psicológicos e "renascimento" com novos padrões.

Em perspectiva fenomenológica, entre as raras pesquisas brasileiras, Marçolla e Mahfoud (2002) estudaram relatos sobre luzes anômalas em Caeté, Minas Gerais. Os autores sugerem que as experiências no local são típicas de moradores idosos e tendem ser elaboradas em termos religiosos como divinos, malignos ou definitivamente misteriosos, inomináveis. Sua veracidade não é questionada pelos protagonistas; o que se põe em dúvida, embora não se negue, são experiências de terceiros e as explicações disseminadas na cultura. Com Halbwachs (1990), discutem os relatos como produto das memórias individual e coletiva. A memória individual robustece o vínculo social, resgata e presentifica a tradição. Já a memória coletiva sanciona a individual, oferece-lhe contexto e complementa lacunas. Com Taylor (1997), apontam que a dimensão do sagrado fornece à razão contexto para reconhecer plausibilidade nas experiências, que, sem isso, soariam implausíveis.

Ainda quanto ao sentido das experiências, Martins (2014) investigou como três contextos religiosos / esotéricos brasileiros centrados em contatos com alienígenas significam a questão do sofrimento humano. O sofrimento é compreendido em todos os contextos como resultante do materialismo e da postura mental "atrasada" que caracteriza a Terra, a qual é, pois, dessacralizada. Os três situam os alienígenas como "irmãos cósmicos", sob orientação divina, oferecem à humanidade condições para a liberação do sofrimento e salvação da alma, através do resgate do corpo físico em naves espaciais e transporte para um planeta melhor, pela facilitação de encarnações posteriores em um planeta mais evoluído espiritualmente, ou pela "transmutação", isto é, a conversão do corpo físico em "energia espiritual" sem passar pela morte física. Assim, os alienígenas novamente ocupam papéis outrora e concomitantemente divinos em meio a crises de confiança de tais pessoas na ciência e nas religiões hegemônicas, sendo que os próprios grupos assumem diversos contornos religiosos. Veronese (2012) chegou a semelhante conclusão sob uma perspectiva sociológica e macroscópica.

Em sua pesquisa de doutorado, Martins (2015) investigou aspectos intra e intersubjetivos envolvidos na emergência de experiências ufológicas, contemplando, inclusive, a mencionada hipótese junguiana sobre a busca consciente por tais visões. Através do método etnográfico, Martins investigou grupos e regiões marcados pela elevada frequência de experiências ufológicas. Foi então possível comparar os diferentes contextos quanto aos tipos de episódio, suas dimensões religiosas e variáveis psicológicas e culturais envolvidas. Em síntese, o autor concluiu que as experiências ufológicas partilham elementos essenciais a partir dos quais são impressas variações que revelam tensões explícitas e implícitas em suas culturas de origem.

 

Sugestões para o campo

Esta revisão de literatura pretendeu não apenas fornecer um panorama razoável do campo, mas instigar dúvidas e sugerir a relevância das experiências ufológicas para a psicologia e para ciências próximas. As pesquisas tratam temas fundamentais como percepção, memória, crença, sugestionabilidade, saúde mental, mentira, validação subjetiva, imaginário, dinâmica cultural, tradição, modernidade, religião, experiências anômalas, entre outros. Ademais, as próprias experiências ufológicas constituem enigma, dada a ausência de respostas generalizáveis e consensuais sobre como e porque acontecem, especialmente os episódios mais complexos e detalhados.

McLeod e outros (1996) indicam, através do estudo das abduções, benefícios à psicologia em temas ainda difíceis como a compreensão da memória em situações de emoção extrema, a intersubjetividade na construção de realidades complexas e estados alterados de consciência, assim como se beneficiaria de tais e novos estudos o significativo número de pessoas que passa por tais experiências e é objeto de diagnósticos e tratamentos equivocados de profissionais de saúde despreparados. Em sintonia com Appelle e outros. (2014), alertam também que o pouco conhecimento sobre os mecanismos associados às abduções conduz terapeutas a endossarem falsas memórias em seus clientes por meio de técnicas controversas (como as regressões hipnóticas) e/ou reforço subjetivo (inconscientemente ou não), com implicações acentuadas na vida ulterior daquele que passa a se identificar como um abduzido (Appelle e outros, 2014; Hopkins, 1995; Jacobs, 1998, 2002; Mack, 1994; Martins, 2011b, 2015; Moura, 1996).

Diante das experiências ufológicas, Dewan (2006b) assinala ganhos significativos para a psicologia quanto ao estudo das convergências e divergências entre testemunhas de eventos incomuns, da relação entre crença, cognição e experiência, das mudanças de visão de mundo e de outras nuances da percepção de ocorrências anômalas. A partir do referencial cognitivocomportamental, Pereira (2007) sugere a relevância do tema para o estudo psicossocial das crenças.

Como visto, os alienígenas, enquanto ícone, são propensos a desempenhar funções subjetivas importantes, notadamente diante do anseio espiritual por vezes não satisfeito na ciência e na religião, o que pode contribuir para acarretar e/ou ampliar experiências. Assim, a constelação de temas tradicionais ligadas a experiências ufológicas, como crenças, messianismo, profecias, doutrinas e experiências anômalas, ligados a ideários propriamente recentes que mesclam ficção científica, ecologia, cultura new age, misticismo, ciência e religião, tornaos objetos de estudo atraentes sobre projeções psicológicas, nascimento e consolidação de concepções e movimentos religiosos, especialmente no contexto contemporâneo, entre muitos outros temas interessantes talvez especialmente à psicologia social.

Ainda que uma parcela expressiva da população não acredite na existência concreta de alienígenas e outra ainda maior não tenha vivenciado experiências relacionadas e tampouco levado o assunto em consideração, Saliba (1995) rebate a eventual crítica sobre a pouca relevância do assunto pontuando que tais experiências e crenças evidenciam, direta e indiretamente, realidades humanas maiores e essenciais nos domínios psicológico, sociológico e histórico, tais como a adaptabilidade da cultura, seu senso religioso e a compatibilização de opostos psico-sócio-históricos como religião e ciência, fé e razão, antigo e moderno, entre outros.

Marçolla e Mahfoud (2002) sustentaram a investigação de narrativas sobre luzes anômalas na comunidade do Morro Vermelho, na cidade mineira de Caeté, pelo argumento da busca do novo, que é "a alma de qualquer pesquisa" (p.87). Assim, as experiências ufológicas compõem fenômeno radicalmente novo, não quanto à sua ocorrência, mas ao reconhecimento de seu potencial como próspero objeto de estudo. Diferentes contextos em território brasileiro, férteis em tais episódios, ampliam tais possibilidades investigativas. Desenha-se, pois, um fenômeno individual e coletivo relevante, provocativo e pouco explorado.

 

Conclusões

As experiências ufológicas, das mais fugazes às mais complexas e demoradas, podem produzir impactos intra e intersubjetivos nos domínios clínico, de produção de conhecimento e do cotidiano dos protagonistas e seus círculos sociais próximos ou amplos. Por sua vez, não podem ser reduzidas a categorias mais bem conhecidas de experiência anômala ou fenômeno cultural. Assim, a psicologia e outras áreas do saber científico podem progressivamente se beneficiar de seu estudo. Dada a complexidade do tema, estudos multi e interdisciplinares são também recomendados.

A lacuna de literatura e de conhecimento a respeito do tema aponta não para sua irrelevância científica e mesmo para a ausência de ferramentas e de "matéria-prima". Em um campo onde a discrepância entre as perguntas e as respostas é superlativa, persiste a questão adicional sobre porque tão poucas investigações acadêmicas sobre experiências ufológicas, sobretudo no Brasil.

 

Agradecimento

O autor agradece ao CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Brasil, e à FAPESP, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo apoio financeiro.

 

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Recebido: 19/09/2016 / Corrigido: 26/09/2016 / Aceito: 26/09/2016.

 

 

1 Uma versão menor e desatualizada deste manuscrito foi publicada em Martins, L. B. (2011).Variedades da Experiência Contemporânea: A Psicologia diante dos alegados Óvnis e Alienígenas. VII Encontro Psi: Pesquisa Psi e Psicologia Anomalística - Livro de Registro dos Trabalhos Apresentados. Curitiba: Projeto UNIBEM, p. 41-51. Versões parciais da presente revisão de literatura, mas mais sofisticadas que a citada acima, foram apresentadas na dissertação de mestrado (Martins, 2011) e na tese de doutorado (Martins, 2015) do autor.
2 Doutor e mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo. Endereço para correspondência: Avenida Prof. Mello Moraes, 1721, sala 111, Cidade Universitária, São Paulo, SP. CEP: 05508-900. Telefone: (31) 99801-5045. E-mail: leobremartins@usp.br

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