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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.36 no.91 São Paulo July 2016

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

Acompanhamento terapêutico de grupo: uma alternativa em saúde mental

 

Group therapeutic accompaniment: an alternative in mental health

 

Acompañamiento terapéutico de grupo: una alternativa de salud mental

 

 

Demétrius França1

Instituto Federal de Brasília, Brasília/DF

 

 


RESUMO

O Acompanhamento Terapêutico surgiu e desenvolveu-se no Brasil inspirado em práticas oriundas da Argentina, inicialmente em apoio à prática psiquiátrica e psicanalítica de pacientes que não se adaptavam às modalidades convencionais de atendimento e internação. Sem normatização profissional até a presente data, a origem difusa desta clínica ambulante proporcionou/facilitou as condições para o surgimento de uma multiplicidade de práticas e de praticantes do Acompanhamento Terapêutico, dispondo de diferentes abordagens com objetivos terapêuticos distintos baseados em diferentes bases teóricas psicológicas, mas com predominância da teoria psicanalítica. Ao longo das últimas décadas, o Acompanhamento Terapêutico evoluiu e amadureceu, acumulando conhecimento e tornando-se uma modalidade de cuidado terapêutico independente e diferenciada que pode ser oferecida alternativamente a outras práticas, com resultados específicos. O Acompanhamento Terapêutico de Grupo integra este processo de amadurecimento, introduzindo a experiência compartilhada entre os integrantes no contexto da clínica ambulante. Ainda desconhecido por muitos profissionais de saúde, os resultados de uma prática de Acompanhamento Terapêutico de Grupo realizado em hospital-dia particular em uma cidade brasileira, apresentam as possibilidades dessa alternativa terapêutica. Os dados foram coletados através da pesquisa-ação, centrados na perspectiva do pesquisador que descreveu os fenômenos de grupo através da teoria de gênese e dinâmica de grupo de Kurt Lewin. A psicopatologia fenômeno-estrutural de Eugéne Minkowski é utilizada quanto à compreensão individual da experiência vivida do tempo e do espaço dos participantes da atividade.

Palavras-chave: dinâmica de grupo, fenomenologia, psicopatologia, terapia grupal.


ABSTRACT

Brazil's conception of Acompanhamento Terapêutico ("Therapeutic Accompaniment") emerged and developed inspired both by practices arising from Argentina and spontaneously, initially in support of psychiatric and psychoanalytic practice for patients who did not adapt to conventional care and admission procedures. The fact that it remains unregulated by any professional standards to date and the diffuse origins of the unconventional concept have led to/facilitated the emergence of a multiplicity of practices and practitioners of Therapeutic Accompaniment, each using varied approaches with distinct therapeutic goals based on different theoretical psychology backgrounds (but predominantly psychoanalytic theory). Over the past decades, Therapeutic Accompaniment evolved and matured, accumulating knowledge and becoming an independent, differentiated form of therapeutic care that can be offered alternatively to other practices and generally yields specific results. Group Therapeutic Accompaniment, which integrates the results of this maturing process, introduces shared experiences among members of the group into the context of the practice. Considering that the concept is still unknown by many health professionals, the results of a Group Therapeutic Accompaniment practice held in a private health clinic in a Brazilian city, are an important opening into the possibilities of this alternative therapy. Data were collected through action research focusing on the perspective of the researcher, who described the group phenomena observed through the theory of genesis and group dynamics of Kurt Lewin. The phenomenon-structural psychopathology of Eugène Minkowski is also used as a framework for individual understanding of the time and space experiences lived by the activity's participants.

Keywords: Genesis and group dynamics, phenomenology, psychopathology, therapeutic accompaniment, group therapeutic accompaniment.


RESUMEN

El acompañamiento terapéutico ha surgido y se ha desarrollado en Brasil inspirado en prácticas que vinieron de Argentina, y también espontáneamente, inicialmente en apoyo a la practica psiquiátrica y psicoanalítica de pacientes que no se adaptaban a las modalidades convencionales de atendimiento e internación. Sin normatización profesional hasta la fecha, el origen impreciso de esta clínica ambulante ha proporcionado/ facilitado las condiciones para el surgimiento de una multiplicidad de prácticas y practicantes del Acompañamiento Terapéutico, disponiendo de diferentes abordajes con objetivos terapéuticos distintos basados en diferentes bases teóricas psicológicas, pero con predominancia de la teoría psicoanalítica. A lo largo de las últimas décadas, el Acompañamiento Terapéutico ha evolucionado y madurado, acumulando conocimiento y volviéndose una modalidad de cuidado terapéutico independiente y diferente que puede ser ofrecida alternativamente a otras prácticas, proporcionando resultados específicos. El Acompañamiento Terapéutico de Grupo integra este proceso de maduración, introduciendo la experiencia compartida entre los integrantes en el contexto de la clínica ambulante. Aún desconocidos por muchos profesionales de la salud, los resultados de una práctica de Acompañamiento Terapéutico de Grupo en un hospital-día privado en una ciudad brasileña, se presentan las posibilidades de esta alternativa terapéutica. Los datos fueron recopilados a través de investigación-acción, centrados en la perspectiva del investigador que ha descrito los fenómenos de grupo a través de la teoría de génesis y dinámica de grupo de Kurt Lewin. La psicopatología fenómeno-estructural de Eugéne Minkowski es utilizada en cuanto a la comprensión individual de la experiencia vivida del tiempo y del espacio de los participantes de la actividad.

Palabras clave: dinámica de grupo, fenomenología, psicopatología, terapia de grupo.


 

 

Introdução

Durante aproximadamente seis meses, pôde-se participar do "Passeio da Tarde", atividade coletiva desenvolvida para os usuários do Anankê, um hospitaldia particular de Brasília - DF. Semanalmente eram realizados passeios a locais escolhidos pelos próprios participantes, usuários e equipe de saúde. A atividade era desenvolvida visando o lazer sem pretensões clínicas, uma vez que o trabalho terapêutico desses pacientes eram proporcionados para os pacientes em suas terapias de grupo e/ou individuais. Entretanto, observou-se que os usuários do hospital e as ruas de Brasília combinadas com uma equipe profissional, que proporcionava vínculo e segurança, resultaram em um grupo unido para explorar a cidade.

O centro de convivência do hospital-dia utilizado para esta pesquisa sobre o Acompanhamento Terapêutico de Grupo (ATG) replica algumas condições do setting terapêutico convencional durante suas atividades de rotina como: tranquilidade, segurança e privacidade do mundo externo para o paciente e o terapeuta (Quinet, 2007), onde todos se conhecem e convivem rotineiramente em um contexto protegido com uma série de vantagens que facilita o processo terapêutico das pessoas que fazem uso desses serviços. Por outro lado, este espaço protegido é intrinsicamente limitado quando comparado com o espaço público onde os pacientes interagem na rua com outras pessoas (transeunte, trocador de ônibus, garçom, artistas de rua, etc) em comunidade e fora de seus papéis sociais, muitas vezes estratificado, nas relações familiares (cuidadores e cuidado) ou terapêuticas (profissional e paciente).

O Anankê, foi inspirado no Instituto A Casa de São Paulo, onde o mesmo "Passeio da Tarde" também era oferecido. Gioso, Bonalume, Yabiku, Peixeiro & Aguirre (2008) expõe sobre a experiência paulista, onde os participantes, que mobilizados pela dinâmica da atividade ambulante em espaço público, trabalhavam os conteúdos despertados durante a atividade em outros espaços ativamente terapêuticos como suas terapias individuais ou de grupo.

Esta dinâmica ambulante com um grupo de participantes conduzida por uma equipe de terapeutas profissionais integrados através de relações transferenciais tornou-se o elemento disparador da pesquisa por enquadrar-se na definição de Acompanhamento Terapêutico (AT) adotada por este estudo, apesar de não ser nomeado dessa forma nem pela equipe de São Paulo, nem pela equipe de Brasília. Apesar da experiência brasiliense ser conduzida por equipe que dispõe de acompanhantes terapêuticos experientes, a exclusão desta atividade do conceito de AT pode encontrar sua origem na convicção majoritária entre acompanhantes terapêuticos (at) que trata-se de um serviço dedicado exclusivamente ao atendimento individual, conforme descrito por Pelliccioli (2004).

A experiência vivida do Passeio da Tarde não provocava apenas os pacientes, mas também a equipe de saúde que encontrava-se fora do hospitaldia. De forma semelhante, Minkowski (1970) expõe uma experiência profissional onde conviveu aproximadamente dois meses com um paciente psiquiátrico sob o mesmo teto, fora do contexto clínico. A maior riqueza dessa experiência para Minkowski foi a reflexão diária comparativa entre as psiquês do paciente e de si mesmo através da relação cotidiana e intensa.

Minkowski (1966) confirma as impressões sobre o potencial terapêutico do Passeio da Tarde, quando se recusa a definir psicoterapia devido à complexidade inerente da existência humana e pontua que mesmo uma simples conversa pode apresentar resultados terapêuticos. Minkowski propõe que a psicoterapia com esquizóides siga o caminho contrário do convencional, onde os mecanismos de defesa de um paciente neurótico são combatidos, justamente porque o sofrimento do esquizoide advém de sua vulnerabilidade.

Quanto ao manejo da transferência, Minkowski cita Maeder: "A transferência afetiva do paciente sobre o médico é, portanto, mais que a projeção de atitudes infantis. Ela é ainda uma nova tentativa de estabelecer um relacionamento humano e construtivo", escreve Maeder (p. 46), e ele acrescenta: "O fato de `superacentuar' o lado erótico da transferência e de reduzir quase ao instinto sexual todas as relações entre os seres humanos certamente não contribui para o cultivo do senso de comunidade." Estamos muito próximos do "encontro pessoal" do psicoterapeuta e de seu doente do qual fala Maeder". (Minkowski, 1965).

A psicopatologia desenvolvida por Minkowski (1966) busca compreender o paciente e sua experiência vivida no mundo. Para tal, ele propõe o uso de dois eixos de percepção da existência onde a psicopatologia pode manifestar-se: tempo e espaço. Ambos os eixos são percebidos de forma pessoal, aprendidas e desenvolvidas ao longo da vida.

As expectativas não se apresentam na consciência humana dentro de uma linha temporal, mas como um horizonte aberto de possibilidades. Para Minkowski (1966), o futuro se apresenta mais importante na experiência do tempo porque se constitui principalmente como expectativa, enquanto o passado funciona mais como arcabouço de conhecimento que como dimensão existencial. O passado, presente e futuro como conceitos podem ser associados e compreendidos, sem que, todavia sejam vividos desta forma. Como exemplo, Minkowski (1938) cita experiência particular onde desistiu de convencer um paciente que ele não corria nenhum risco de vida após três noites seguidas sem dormir, observando que "Faltava a este sujeito a habilidade de integrar os diferentes aspectos do tempo e perceber alternativas em seu futuro, restando apenas o sofrimento" (França, 2009). A mesma regra se aplica quanto à vivência do espaço, conforme Minkowski (1970) cita o exemplo de um paciente angustiado com o delírio que seu psiquiatra acessava a todos os seus pensamentos.

Além do método de pesquisa-ação (Mailhiot, 1970) manter afinidade com a psicopatologia de Minkowski (2000), a escolha foi realizada porque pressupõe a participação e interferência do pesquisador como variável conhecida e natural, sem perseguir uma almejada "neutralidade". Kurt Lewin (Mailhiot, 1970), questionava as simulações de eventos sociais porque a simulação em si já remove a espontaneidade do evento. A própria reprodução dessa atividade fora do hospital-dia teria implicações éticas, considerando que usuários de saúde mental poderiam responder negativamente ao estresse de iniciar uma atividade com pacientes e pesquisadores sem vínculos construídos.

W. C. Schutz (Mailhiot, 1960) nomeia como necessidades interpessoais de controle, afeição e inclusão os elementos obrigatórios que permeiam todas as relações e comunicações dentro de um grupo. Mesmo que essas necessidades sejam inerentes para todas as pessoas, a satisfação delas é aprendida e amadurecida ao longo da vida. Então o passeio da tarde, campo de pesquisa, mostra-se como mais um lugar para que os pacientes possam aprimorar suas ferramentas sociais para satisfazer suas necessidades interpessoais.

As necessidades interpessoais (Mailhiot, 1960) são de inclusão, controle e afeição. A necessidade de inclusão comparece quando uma pessoa sente a necessidade de sentir-se acolhida e reconhecida dentro de um novo grupo. A necessidade de controle reflete a necessidade que uma pessoa tem de compreender o funcionamento do grupo em que encontra-se inserido e quais os papéis de seus integrantes. A necessidade de afeto manifesta-se quando é importante para um indivíduo confirmar que seja aceito e reconhecido dentro do grupo social, seja porque detém alguma competência, seja porque é valorizado como pessoa.

O acompanhamento terapêutico surgiu de forma espontânea em diversos locais e com uma diversidade de práticas associadas com diferentes teorias. Entretanto, independente da diversidade e da falta de padronização, essas diferentes práticas apresentam dois princípios fundamentais que definem o acompanhamento terapêutico (Coelho, 2008):

• Contrato terapêutico do paciente com o acompanhante, fixando as condições da atividade quanto ao valor, frequência e duração das atividades;

• A "rua" como setting terapêutico ambulante pode ocorrer em qualquer lugar, desde que ocorra fora do consultório ou da instituição.

Apesar da falta de padronização e de uma regulamentação formal da profissão de acompanhante terapêutico, o atendimento individual aparece como uma regra não escrita (Pelliccioli, 2004). Em 2012, realizei pesquisa bibliográfica nos bancos de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e dissertações - Ibict, da Biblioteca Virtual em Saúde do Brasil, da Biblioteca Virtual em Saúde Psicologia do Brasil e da Scientific Eletronic Library Online (SCIELO). Estes repositórios foram pesquisados com os termos "acompanhamento terapêutico de grupo", "acompanhamento terapêutico" e "grupo" + "passeio" na busca por trabalhos de ATG com afinidade clínica, mas encontrei apenas duas publicações sobre o tema: um ensaio coletivo produzido e disponibilizado na internet pelo Instituto A Casa - SP em 2005, e uma dissertação de mestrado da Pontifícia Universidade Católica defendida por Eduardo Pelliccioli em 2004. Entretanto, cabe observar também que somente Pelliccioli nomeia como acompanhamento terapêutico em grupo. Benatto (2014) também não encontrou incidências sobre o ATG que justificassem a citação desta categoria de AT em sua revisão bibliográfica sistemática, fortalecendo os indicadores que falta produção científica sobre o assunto.

A equipe do Instituto A Casa (Gioso, Bonalume, Yabiku, Peixeiro & Aguirre, 2005) fala sobre o passeio desenvolvido há mais de dez anos, mas fixa-se quanto a um passeio específico para frisar quanto aos seguintes elementos da atividade: a importância do contrato que estabelece o consenso coletivo para definir quanto ao local e o que fazer durante o passeio; a segurança proporcionada pelo grupo para explorar a cidade; e finalmente, quanto à sedução e desafios proporcionados pela cidade.

A dissertação de Eduardo Pelliccioli (2004) descreve a implantação e desenvolvimento do serviço de acompanhamento terapêutico em grupo no Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental - CAIS-Mental do município de Viamão - RS. O principal elemento motivador para a oferta do acompanhamento terapêutico em grupo foi a necessidade de apresentar uma alternativa viável para a popularização desta modalidade terapêutica e atendimento da demanda da instituição onde a intervenção foi realizada.

Apesar de compreender a necessidade de oferecer um serviço de grupo, Pelliccioli (2004) relata como um desafio a necessária desconstrução da definição que atribuía ao acompanhamento terapêutico como serviço exclusivamente individual. Outro elemento complicador foi a ausência de bibliografia e suporte teórico para embasar o acompanhamento terapêutico de grupo. A necessária mudança na convicção quanto ao alcance do acompanhamento terapêutico e a falta de bibliografia conhecido sobre o assunto proporcionaram diversos atropelos e dificuldades ao desenvolvimento e estabelecimento da atividade com regularidade.

Após colher os resultados positivos quanto aos pacientes e quanto à formação de duas técnicas de enfermagem como acompanhantes terapêuticos, Pelliccioli (2004) desenvolve uma reflexão sobre o acompanhamento terapêutico, que para ser aplicado no contexto do SUS onde os recursos são limitados e a universalidade do serviço é uma demanda, deve ser adaptado de forma a tornarse viável. Assim como a Psicanálise precisou ser adaptada para o contexto institucional da saúde mental e escolar, entre outros ambientes, o autor justifica a flexibilização do acompanhamento terapêutico tradicionalmente individual para a modalidade grupal como estratégia necessária para sua popularização.

Além desses dois trabalhos, João do Rio (2008), poeta e jornalista, escreve sobre a rua em 1905, o setting do acompanhante terapêutico. Ele já reconhecia naquela época as possibilidades terapêuticas das ruas através da arte de flanar1.

 

Método

A coleta de dados ocorreu através de narrativas detalhadas escritas imediatamente após o passeio, embasadas com pequenas anotações realizadas durante a atividade. Os relatos foram escritos buscando sempre compreender a percepção dos outros envolvidos através de questionamento simples sobre o assunto com pacientes e profissionais que tinham conhecimento de minha pesquisa. Mailhot (1970) propõe a pesquisa-ação utilizando a teoria de Kurt Lewin, buscando registrar os episódios vividos dentro da subjetividade dos participantes e contextualizados no campo social.

Os participantes

A equipe profissional era composta por terapeutas e pacientes em uma relação aproximada de dois pacientes para cada terapeuta. Apesar da clínica de apresentar orientação psicanalítica, de acordo com o CID-10: 47% dos pacientes eram portadores de transtornos esquizofrênicos, 30 % portadores de transtornos de humor e os restantes 23% eram portadores de transtornos diversos.

 

Resultados

Os registros de participação dos passeios foram realizados de sete de dezembro de 2007 até vinte e sete de junho de 2008, totalizando dezessete atividades em que o autor participou. A atividade é precedida por uma reunião da equipe de saúde onde o passeio é planejado e são compartilhadas informações sobre os pacientes. Em seguida, pacientes e equipe iniciam o passeio, geralmente se reunindo do lado de fora do hospital-dia para em seguida caminhar juntos para o ponto de ônibus. Após utilizar o transporte público e chegar ao local do passeio, todos conversam e se divertem juntos ou em grupos menores e em separado, mas geralmente se reúnem todos novamente para lanchar. Após o lanche, pacientes que se deslocam sozinhos seguem para suas casas enquanto a equipe e o restante dos pacientes retornam para a clínica. Após a atividade, mais uma reunião da equipe é realizada para encerrar o dia, discutir e refletir sobre o passeio. Todos os verdadeiros nomes dos envolvidos foram substituídos de forma a preservar a privacidade. Segue breve relato (França, 2009) para exemplificar como as relações se desenvolvem na atividade:

No dia 21 de junho de 2008 fomos à Exposição Darwin2, realizada próximo ao Teatro Nacional de Brasília. Enquanto aguardávamos o ônibus, Maria apoiou a cabeça em meu ombro e queixou-se que já sentia fome. Enquanto Felipe me perguntava sobre o percurso que seguiríamos para chegar ao destino de nosso passeio, Carlos seguia minha orientação para comprar um copo de água para tomar a medicação que estava atrasada. Após me pedir para segurar sua jaqueta e seu copo de água, brincou que hoje era o meu dia de mordomo e todos rimos um pouco.

Dentro da cena descrita, somente as necessidades de controle e afeição podem ser exemplificadas, porque a necessidade de inclusão somente pode ser observada durante a entrada de um novo membro no grupo. Durante a inclusão, o novato busca conversar com as pessoas para "medir" se sua voz é ouvida e que sua participação é aceita dentro do grupo. A necessidade de controle foi perceptível dentro do grupo quando os três pacientes citados se reportaram a mim para informar sobre o remédio, a fome ou mesmo questionar qual o percurso a ser seguido. Controle é a necessidade que temos de conhecer o papel de cada um dentro do grupo. Neste caso, como parte da equipe de saúde eu desempenhava um papel de liderança, e era comum que participantes reportassem a mim sobre suas expectativas e necessidades.

Quanto à necessidade de afeição, ela designa a necessidade que temos de nos sentirmos valorizados e insubstituíveis no grupo. Como a satisfação dessas necessidades são aprendidas, elas podem se apresentar de forma imatura ou desequilibrada, como Gilberto, que permaneceu atrás de uma terapeuta durante todo o passeio demandando uma relação hiperpessoal apesar dela estar ocupada assistindo a uma paciente idosa. Outro aspecto dessa hiperpessoalidade, é que ele mostrou-se indiferente ou mesmo irritado, rejeitando quando outros terapeutas ou pacientes que ofereceram diálogo e apoio a ele. Somente o objeto do afeto dele poderia satisfazê-lo, o que indica um prejuízo social diante de outras possibilidades para novas amizades, ou infelicidade quando a pessoa desejada não encontra-se disponível.

Além desses elementos de dinâmica de grupo, gostaria de retomar a questão da psicopatologia e como ela se apresenta na atividade extra consultório. Nadir é uma paciente que ocupou espaço importante em minha pesquisa porque proporcionou não apenas situações interessantes para análise mas, também, porque seu impacto no grupo era marcante. Ela é bastante carinhosa para abraçar e beijar as pessoas, mas muitas vezes pode ser invasiva tentando espremer espinhas ou apertando as nádegas das pessoas. Por outro lado ela pode mostrarse violenta se tentarem tirar uma foto ou simplesmente tocá-la retribuindo o abraço. Segue episódio de um passeio (França, 2009) com adaptações:

Nadir tem uma forma bastante peculiar de lidar com dinheiro. Geralmente faz piadas, se faz de desentendida, dá a entender que não tem dinheiro, procura mobilizar a simpatia do vendedor para ganhar algum brinde. E eventualmente sai silenciosamente sem pagar como se fosse um engano, demandando a atenção da equipe para evitar a repetição de constrangimentos para o grupo do passeio.
Subimos no ônibus e pedi a Nadir que pagasse sua passagem para não termos problemas para descer em nossa parada. Ela se mostrou contrariada, mas procurou bastante na bolsa como se não tivesse dinheiro até finalmente achar uma nota de vinte reais. Então explicoume que não poderia pagar porque tinha apenas aquela nota. Respondi rindo que ela poderia pagar a passagem de dois reais e receber o troco sem problemas. A trocadora devolveu dezoito reais para Nadir que recebeu satisfeita o dinheiro. Então, separou uma nota de dois reais do troco e ofereceu para a trocadora, pedindo de volta a nota de vinte reais que havia dado a ela. A trocadora riu, porque Nadir ficaria com trinta e oito reais se a troca se efetivasse, e respondeu que esta troca era impossível.

A relação de Nadir com o dinheiro é tema recorrente no passeio porque o valor que ela atribui ao dinheiro não corresponde ao seu valor de mercado. A gargalhada da trocadora e a experiência do autor durante o episódio foram típicas de pessoas em sintonia com a realidade (Minkowski, 1933). Afinal, entendemos a proposta como absurda e cômica. Em outra ocasião, ela agrediu um paciente porque ele andava atrás dela e "iria comer seu cú" (SIC). A perda de contato vital com a realidade descrita na psicopatologia de Minkowski (1970) mostra-se evidente quando demonstramos como é a vivência de Nadir quanto ao eixo existencial do espaço. O dinheiro e ela não podem ser tocados ou dispostos sob risco de perder a própria integridade, apesar que ela mostre-se tranquila para tocar o outro. Para Minkowski (1970), a transferência terapêutica é essencial para facilitar ou estimular a retomada do contato vital através das experiências vividas.

 

Considerações

O Acompanhamento Terapêutico de Grupo possibilita situações riquíssimas e provocantes que revitalizam o grupo, proporcionando uma verdadeira resposta ao que Mailhiot (1970) descreve como necrose social, quando ocorre a completa estagnação social e é impossível satisfazer suas necessidades sociais (fato recorrente entre pacientes crônicos).

Mesmo minha comunicação com Nadir costumeiramente monossilábica transcendeu o simples carinho para diálogos sobre seus gostos e outras questões durante os passeios. A relação de Nadir com o dinheiro, e sua corporeidade somente pôde ser observada mais explicitamente através do passeio, uma vez que a rotina do hospital-dia não envolve dinheiro. Não é uma questão de identificar se o paciente sabe ou não sabe utilizar o dinheiro, mas qual o valor e sentido que ele atribui ao objeto. Estes momentos e situações permitem, ou facilitam a criação e fortalecimento da relação transferencial entre paciente e terapeuta (Minkowski,1970), permitindo ao paciente fazer contato com a realidade através dessas trocas afetivas com as pessoas e com o mundo.

O ensaio do Instituto A Casa (Gioso, Bonalume, Yabiku, Peixeiro & Aguirre, 2005) reforça em sua conclusão que os passeios provocam reações e reflexões nos pacientes que podem surgir durante o passeio, e que podem ecoar depois positivamente no hospital-dia, na psicoterapia e em suas vidas. Fica uma provocação quanto a necessidade de maiores estudos sobre o Acompanhamento Terapêutico em Grupo, não se limitando a mera atividade recreativa, mas buscando provocar ativamente um efeito terapêutico nos usuários de saúde mental.

Há que se ressaltar a importância de ampliar a discussão acadêmica sobre o ATG tanto na perspectiva quantitativa quanto na qualitativa. Novos estudos de caráter quantitativo podem proporcionar levantamentos concretos sobre o perfil do ATG e como é praticado, incluindo a frequência e população indicada. Considerando a natureza do trabalho clínico, novos estudos qualitativos poderão fomentar o diálogo quanto ao alcance e as possibilidades terapêuticas do ATG, um campo ainda inexplorado.

 

Referências

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Recebido: 20/09/2016 / Corrigido: 25/09/2016 / Aceito: 01/10/2016.

 

 

* Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília -UnB. Doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo - USP, Professor de Psicologia do Instituto Federal de Brasília. Contato: Campus São Sebastião -Centro de Múltiplas Funções, Área Especial 03 São Sebasião/DF - Brasil. Telefone: +55(61)98171-6560, E-mail: demetrius.franca@ifb.edu.br
1 Passear ociosamente, sem destino. (Micro-Dicionário Luft, 2000)
2Exposição sobre o cientista Darwin e a teoria evolucionista que ocorreu temporariamente em 336 Brasília.

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