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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.37 no.92 São Paulo jan. 2017

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

Pesquisas nas comunidades indígenas: relações de justiça e igualdade

 

Research in indigenous communities: relationships of justice and equality

 

Investigación en comunidades indigenas: corte de relaciones e igualdad

 

 

Sonia GrubitI,1; Ariana SordiII,2

IUCDB/MS
IIUNIGRAN/UCDB

 

 


RESUMO

Declaração da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2007, nos levou a uma proposta de análise de questões éticas, envolvendo território, saúde, educação, gênero, entre outras. O objetivo deste trabalho é refletir sobre a relação pesquisador e populações indígenas, seus conflitos, baseadas na nossa experiência com pesquisas realizados nas etnias Guarani/Kaiowá, Terena e Kadiwéo do Estado do Mato Grosso do Sul e Bororo no Estado do Mato Grosso e através do referencial teórico da Psicologia Social. Concluímos que a consciência dos princípios fundamentais da ética, através da justiça e igualdade é um dos fatores essenciais para que a sociedade não índia conheça a história do indígena e respeite sua cultura, bem como, se aproprie e absorva seus conhecimentos, pois ainda tem muito a aprender com os indígenas e mais, permita a interintegração do indígena e o seu desenvolvimento, dentro dos princípios culturais de igualdade e justiça.

Palavras-chave: Pesquisa; Identidade; Populações indígenas.


ABSTRACT

Declaration of the United Nations (UN) on the Rights of Indigenous Peoples in 2007, led us to a proposal of analysis of ethical issues, involving territory, health, education, gender, among others. The objective of this work is to reflect on the relationship between researcher and indigenous populations, their conflicts, based on our experience with research carried out in the Guarani / Kaiowá, Terena and Kadiwéo ethnic groups of the State of Mato Grosso do Sul and Bororo in the State of Mato Grosso and through the Theoretical reference of Social Psychology. We conclude that awareness of the fundamental principles of ethics through justice and equality is one of the essential factors for non-Indian society to know the history of the indigenous and to respect their culture, as well as to appropriate and absorb their knowledge, since there is still much to learn from indigenous people and furthermore, to allow indigenous interintegration and development, within the cultural principles of equality and justice.

Keywords: Research; Identity; Indigenous populations.


RESUMEN

Declaración de las Naciones Unidas (ONU) sobre los Derechos de los Pueblos Indígenas en 2007 nos llevó a un proyecto de análisis de las cuestiones éticas que implican territorio, salud, educación, género, entre otros. El objetivo de este trabajo es discutir la relación de investigación y los indígenas, sus conflictos, basado en nuestra nuestra experiencia con la investigación llevada a cabo en la etnia Guaraní / Kaiowá, Terena y Kadiwéo de Mato Grosso do Sul y Bororo en el estado de Mato Grosso y a través el marco teórico de la Psicología Social. Llegamos a la conclusión de que los principios fundamentales de la ética, a través de la justicia y la igualdad es un factor esencial para la sociedad conoce la historia de la India indígenas y el respeto de su cultura, así como de apropiarse y absorber sus conocimientos, que todavía tiene mucho aprender de los indígenas y más interintegração permitir a los indígenas y su desarrollo dentro de los principios culturales de la igualdad y la justicia.

Palabras clave: investigación; la identidad; los pueblos indígenas.


 

 

Introdução

Para iniciar o artigo propomos alguns Destaques da Declaração da Organização das Nações Unidas - ONU (2007) sobre os Direitos dos Povos Indígenas: Reconheceu as injustiças passadas cometidas contra os Povos Indígenas e que afetam suas vidas e bem estar no presente (portanto constitui importante elemento para a conscientização dessa opressão histórica contra os Povos Indígenas); afirma que os Povos Indígenas além de estarem aqui presentes também querem preservar suas culturas, e tradições (rompendo com a mentalidade assimilacionista e com o estereotipo e preconceito contra a identidade e cultura indígena).

Afirma também que os Povos Indígenas são seres humanos e têm direitos iguais (os Povos Indígenas são protegidos pelos demais instrumentos internacionais de direitos humanos), que os Povos Indígenas têm o direito de existir e de continuar a tomar suas próprias decisões sobre como eles querem viver e se desenvolver, não estabelece direitos, mas apenas reconhece e afirma os direitos inerentes dos Povos Indígenas.

Reconhece que os Povos Indígenas têm direitos enquanto comunidades, nações ou povos, faz menção a direitos coletivos dos Povos Indígenas ademais dos direitos individuais; Chama os Estados a tomarem medidas para ajudar e garantir que os Povos Indígenas sejam verdadeiramente livres, detendo livre determinação, para reparar os erros e injustiças do passado cometidas contra os Povos Indígenas, e - quando necessário e desejado pelos Povos Indígenas - para que o Estado não se envolva nas decisões dos Povos Indígenas em assuntos que lhes dizem respeito enquanto Povos Indígenas.

Partindo dos referidos destaques da Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas (2007) propomos uma análise da prática de pesquisa com grupos indígenas de Mato Grosso, os Bororo e Mato Grosso do Sul, Guarani/ Kaiowá, Terena e Kadiwéu.

No Brasil, a lei a lei nº 6.001, de 19 de dezembro (1973), dispõe sobre o Estatuto do Índio tendo princípios e definições que indicam questões referentes a cultura, relações com a sociedade brasileira de um modo geral:

Como observamos no título I Art. 1º o propósito de preservar a cultura indígena e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à sociedade nacional. Entendemos que a proposta ao mesmo tempo em que pontua a preservação da cultura, propõe uma integração progressiva e harmoniosa a sociedade não índia e finalmente estende a proteção das leis que se aplicam aos brasileiros às comunidades indígenas.

No Art. 2° determina que "Cumpre à União, aos Estados e aos Municípios, bem como aos órgãos das respectivas administrações indiretas, nos limites de sua competência, a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos".

Assim estender aos índios os benefícios da legislação comum, sempre que possível a sua aplicação; determina a prestação de assistência aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados à sociedade nacional; propõe proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, as peculiaridades inerentes à sua condição; assegura aos índios a possibilidade de livre escolha dos seus meios de vida e subsistência; garante aos índios a permanência voluntária no seu habitat, proporcionando-lhes ali recursos para seu desenvolvimento e progresso; determina respeito no processo de integração do índio à sociedade nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes;

Propõe também a execução, sempre que possível mediante a colaboração dos índios, dos programas e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas, assim como a utilização da cooperação, do espírito de iniciativa e das qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento;

Finalmente, garante aos índios e comunidades indígenas, nos termos da Constituição, a posse permanente das terras que habitam, reconhecendo-lhes o direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilidades naquelas terras existentes; garante aos índios o pleno exercício dos direitos civis e políticos que em face da legislação lhes couberem.

 

Pesquisa e populações indígenas

Ao lado de uma legislação protecionista evidenciando uma tutela do Estado, encontramos situações abusivas nas pesquisas e intervenções com grupos indígenas que indicam uma história de relação entre grupos indígenas e os não indígenas de completa desigualdade, muitas vezes confirmada pela atuação de pesquisadores, em outras situações criando resistência e prejudicando os contatos de um modo geral.

Segundo Rogers e Ballantyne (2008) a pesquisa com populações vulneráveis, como o grupo indígena, traz questões importantes para os pesquisadores e os comitês de ética em pesquisa. A vulnerabilidade estaria relacionada com relações de poder desiguais, como quando os participantes têm relativamente menos poder quando comparados aos pesquisadores. As autoras citam fatores extrínsecos, como pobreza e pouca escolaridade, ou fatores intrínsecos, como doença grave ou deficiência intelectual. Atualmente crianças e jovens indígenas estudam em escolas com currículo adaptado à cultura inclusive idioma do grupo, caso seja possível. Mesmo assim ainda buscam as universidades necessitando de acompanhamento para suprir suas dificuldades. A Universidade Católica Dom Bosco de MS, em Campo Grande criou a rede dos saberes para que as mesmas tenham um espaço para complementar seus estudos.

Em seu trabalho sobre ética, antropologia e multidisciplinaridade Heilborn (2004) cita a distinção proposta por Ruben Oliven, entre pesquisas "com seres humanos e pesquisas em seres humanos", em que o autor considera essencial para um aumento da sensibilidade das pessoas e instituições que atuam nesse campo, assim como entender especificidades do fazer científico das diferentes áreas de conhecimento que convergem para a análise da saúde, como no caso da psicologia. Aponta para a importância de desenvolver níveis de avaliação nas pesquisas em saúde, destacando aquelas de caráter sociológico no sentido mais amplo.

Considerações práticas, assim como sobre a significação dos sistemas de representações sobre a saúde, que dizem respeito à integridade física, psíquica e moral das pessoas, deveriam ser levadas em conta, necessariamente inclusive junto às comunidades indígenas. Nesse sentido, alguns profissionais mais diretamente submetidos às orientações da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, CONEP, como pesquisadores nas comunidades indígenas passam por uma análise mais detalhada nos seus projetos.

Por outro lado, muitas etnias passaram a questionar a entrada de pesquisadores nas comunidades (aldeias), ou pelo menos veem com bastante desconfiança a presença e o trabalho de tais pessoas. Todos estes aspectos nos remetem às questões éticas, políticas e sociais, apontando para a necessidade de uma revisão das relações e da importância do diálogo.

A propósito da ética da pesquisa antropológica na interlocução com o campo jurídico, Leite (2004) entende que a politização da sociedade civil tem gerado desdobramentos na própria identidade dos pesquisadores na medida em que qualquer tema ou problema não era mais um simples exercício acadêmico, porque geralmente produz desdobramentos envolvendo autoria (aspectos subjetivos), autoridade (métodos e amostragem) e especialidade.

Atualmente a maioria dos grupos estudados exigem informações sobre objetivos e procedimento dos pesquisadores e dos resultados esperados, assim como compromissos de devolutivas acerca dos conhecimentos que têm sido produzidos neste âmbito (Silva & Grubits, 2006).

Seguindo a proposta de fazer uma análise das práticas de pesquisa com grupos indígenas, trazemos o conceito da ética proposto por Dussel (1986), a ética é uma pratica libertadora, e o momento que se processa a tomada de consciência do outro, como sujeito ético digno, afinal a ética busca a libertação pessoal e social das pessoas e das situações de injustiça e opressão, neste sentido, a busca de uma sociedade mais justa. Assim a ética vai muito além de um discurso em pesquisa cientifica, regulamentada e normatizada pelas resoluções do Conselho de ética em Pesquisa com Seres Humanos, ou mesmo, dos riscos e benefícios de um projeto de pesquisa. A ética tem como fundamento a possibilidade de transformação social.

Oliveira (2014) cita que é necessário mais do que nunca preservar os direitos indígenas "do tratamento da diversidade e da pluralidade em um mundo dos direitos universais", cujo desafio é sempre postergado. E ainda, que os direitos indígenas sempre se viram num confronto, afinal a Constituição Federal de 1988 estende os direitos universais aos povos indígenas brasileiros, colocando-os como cidadãos plenos, o que segundo o autor parece óbvio, mesmo assim não acontece. Afinal, mesmo tendo seus direitos diferenciados na legislação brasileira, como na educação, na saúde respeitando as culturas, as línguas, ou mesmo, as terras indígenas, conforme comentário inicial sobre Direitos dos Povos Indígenas da ONU e nossa legislação esses direitos não são plenamente garantidos.

Num primeiro momento, é fundamental diferenciar a moral da ética, sendo assim, a moral como afirma Durkhein é a "ciência dos costumes" (1893/1995), um conjunto de normas de comportamento estabelecidas pelas crenças e tradições culturais. Já a ética diz respeito à relação com o outro, uma relação social e neste sentido a busca de uma sociedade mais justa.

Destacamos também a proposta de interintegração e a certeza de que as sociedades indígenas também se transformam. Ao contrário de um discurso que circula e é bastante comum na sociedade não índia, o indígena não tem que estar necessariamente vivendo igual ao que ele vivia há quinhentos anos para que continue sendo índio. O problema é que a transformação da sociedade indígena se dá num processo de dominação por uma cultura alheia a sua, que se considera superior e se impõe sem respeito algum às diferenças étnicas e culturais (Silva & Grubits, 2006).

Ao mesmo tempo, a ideia do isolamento total já não parece mais viável e a questão passa a ser como transformar as relações entre populações indígenas, Estado e sociedade não índia. Ou seja, como passar de uma relação de domínio e imposição de uma cultura sobre a outra, para uma relação efetivamente de troca, respeito e autonomia cultural, social e política.

Desta forma, tomamos a posição de que o ideal seria não a integração do índio, como se tem pretendido nos últimos quinhentos anos, mas a interintegração. O primeiro conceito significa absorção de uma cultura pela outra, já o segundo quer dizer o diálogo, a complementação, respeitando as identidades, numa convivência pacífica e plural, sabendo que o Brasil, até mesmo por constituição, é pluriétnico e pluricultural.

A Psicologia pode trazer novas contribuições e temas ao debate acerca da questão indígena; a ideia não é se apossar de um campo, ou disputar conhecimentos com outras ciências, mas acrescentar, ampliar, trocar, contribuir para uma questão que tem recebido pouca contribuição da ciência psicológica. É também crescente a reivindicação por pesquisas cada vez mais comprometidas com a transformação nos discursos e nas ações políticas (cotidianas e estatais), assim como uma valorização maior dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e o seu acesso à ciência produzida pelo não índio.

Essa concepção acarreta também em uma posição em que a construção de soluções alternativas aos problemas vividos pelas populações indígenas seja um dos pilares principais de toda e qualquer pesquisa ou intervenção, que deve, portanto, buscar a autonomia dos índios, a valorização de seus saberes tradicionais e o respeito às formas escolhidas por eles para construir seus projetos de futuro, objetivando uma nova relação entre diferentes.

Podemos dizer que os índios, em geral (lembrando aqui o fato de "índios" serem uma categoria construída ocidentalmente, que engloba uma diversidade de povos e culturas extremamente heterogêneos entre si, sendo usada apenas quando não nos referimos a alguma etnia específica), têm uma profunda desconfiança em relação a qualquer pessoa de fora, não sendo diferente com os pesquisadores. Desta forma, a entrada em uma aldeia indígena não é simples. Depende de autorização dos órgãos federais considerados responsáveis fundamentalmente a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEIs), do Ministério da Saúde - mais do que isso: das próprias lideranças indígenas. Realizar uma pesquisa ou intervenção no âmbito da questão indígena é se comprometer com toda a causa indígena.

O que dizer em relação à pesquisa com grupos indígenas, nesta relação do homem não indígena, com grupos indígenas? Afinal, de um modo geral observamos uma relação desgastada, uma relação de dominação/dominado, de preconceito e exclusão social.

Alguns pesquisadores apenas se apropriaram do "saber" indígena para vantagens pessoais, ou mesmo, outros ainda, tentam contribuir com a população indígena, porém levando conceitos, "receitas prontas", já pré-estabelecidos pela nossa sociedade, esquecendo que a população indígena, como qualquer outra comunidade tem seus saberes populares e que sustentam a identidade do grupo. Como exemplo podemos citar informações obtidas junto a grupos indígenas e pessoas que trabalham com grupos indígenas. No caso dos índios Kadiwéu, por exemplo, ouvimos relatos de que após tomarem conhecimento de publicações que não haviam sido autorizadas por eles, pensaram em proibir a entrada de tais pesquisadores dentro da comunidade. Os índios Kadiwéu habitam a região da serra da Bodoquena, em Mato Grosso do Sul, numa área situada a aproximadamente 310 quilômetros de Campo Grande.

Um aspecto interessante desta relação homem não indígena com grupos indígenas fica evidente ao visitar a comunidade indígena de Dourados, Mato Grosso do Sul, pois, muito chama a atenção à quantidade de igrejas de várias denominações instaladas na referida comunidade, todos com os seus supostos saberes, na tentativa de contribuir espiritualmente com aquele grupo, visto como "primitivo", assim, quando da chegada ao Brasil, os europeus com seus supostos saberes "civilizaram" os índios que aqui viviam. A visão que o europeu tinha a respeito dos índios era de seres inferiores e grosseiros, assim, sua visão era de convertê-los ao cristianismo. E desta forma, os indígenas começaram a perder sua cultura e identidade (Silva & Grubits, 2006).

Cabe-nos a indagação: como ficam as crenças culturais do próprio indígena? As crenças específicas daquela referida etnia?

Assim acontece com muitos pesquisadores, na tentativa de contribuir acabam por interferir na dinâmica de uma comunidade, nas relações sociais e políticas, nas relações de gênero, de educação, de crenças e na própria cultura indígena, com por exemplo proposta feita para industrialização da cerâmica Kadiwéu, com uso de fornos para peças de cerâmica e porcelana e sua comercialização, sem estudos sobre as consequências em relação à originalidade do trabalho, ou entrada de turistas nas comunidades, sem uma avaliação da comunidade.

Além de toda a violação de seus direitos legais realizada pelo não índio, vemos pesquisadores na tentativa de fazer ciência, violar os direitos indígenas, que depois de seus estudos não retornam para os diferentes grupos para informação e discussão dos resultados. O que tem acontecido, é pesquisadores serem impedidos de entrar em determinadas reservas, afinal, este suposto saber a que muitos se julgam detentores, não acrescentam em nada para o indígena discriminado e excluído socialmente. Assim, devemos tomar cuidado a qual ideologia estamos servindo, quando o assunto é a pesquisa com as populações indígenas.

Para Strey (1998), não existe conceito mais complexo e sujeito a equívocos do que o conceito de ideologia, assim, cita que a ideologia pode ser entendida através de dois grandes eixos, a dimensão positiva e negativa. A ideologia, no sentido positivo, é entendida como um conjunto de valores, ideias e filosofias de uma pessoa ou grupo. Nesse sentido, todas as pessoas ou grupos possuem uma ideologia, pois é impossível alguém não ter ideias, ideais ou valores próprios. Agora, a ideologia no sentido negativo ou crítico (alguns usam o sentido "pejorativo"), seriam as ideias distorcidas, as ideias enganadoras, algo que ajuda a obscurecer a realidade e a enganar as pessoas; ela se apresenta como algo errôneo ou ilusório, expressando interesses dominantes e, como que, sustentando relações de dominação.

Lima (2012) cita as relações de poder e opressão no sistema capitalista que se estrutura de forma ideológica, o que é afinal um falseamento da consciência. A ideologia seria uma representação ilusória da realidade, algo que o sujeito "não sabe, ou não quer saber", levando a distorções.

Todo o pesquisador tem a obrigação de compreender que o significado de um fato ou fenômenos social ou político, extraído de uma comunidade indígena, deve a princípio ser compreendido pela dimensão do significado/sentido para aquele grupo social, pois somente quando o pesquisador consegue compreender o real sentido para aquele grupo, e não para ele mesmo, passa a entender a representação social que tem aquele fenômeno e assim, compreende a dinâmica do grupo.

Neste sentido, outro conceito importante quando o assunto é grupos indígenas é o de Moscovici (2007), sobre Representações Sociais, afinal as RS são "teorias" construídas pelo senso comum, partilhadas coletivamente com o objetivo de interpretar os fatos e fenômenos da vida cotidiana. Assim, é a maneira que um grupo social tem de pensar sobre um determinado aspecto da vida. As Representações Sociais são dinâmicas e levam os indivíduos a produzir comportamentos e interações com o meio, ações que, sem dúvida, modificam os indivíduos e o meio, o próprio grupo se articula e muda a sua forma de pensar sobre alguns aspectos. É por meio do conhecimento cotidiano que os homens dão sentido à vida, e assim, dão sua visão de mundo e uma nova forma ao conhecimento científico.

Strey (2008) cita que estudamos Representação Social, para conhecer o modo como um grupo constrói um conjunto de saberes que expressam sua identidade, as representações que ele forma sobre uma diversidade de objetos e, principalmente, o conjunto de códigos culturais que definem, em cada momento histórico, as regras de uma comunidade.

Cabe a indagação: E os pesquisadores estão tendo cuidado de não interferir nas Representações Sociais do grupo que pretendem ingressar? Estão tendo o cuidado de pensar nos sentidos e significados que estão sendo construídos socialmente? E mais, estão tendo o cuidado para não contribuir em relações ideológicas que apenas mantém o status quo das relações de dominação e opressão ao que o indígena foi submetido?

 

Psicologia Social e Interintegração

Assim, fica claro o conceito interintegração, pois o referido conceito significa respeitar as diferenças, respeitar os saberes pertencentes a cada grupo, respeitar a organização social e política de cada grupo e mais, respeitar o direito de se desenvolverem dentro da sua própria crença e cultura. Desta forma, as indagações já começam desde que o tema é definido. Ao entrar em campo nos deparamos com dois discursos principais:

a) O primeiro, que aponta para o fato de que as sociedades indígenas não estão em paz, portanto, a questão de deixá-las ou não em paz não é a questão fundamental. A questão fundamental é o fato de que estes grupos precisam de parceiros na luta pela conquista e reconquista de seu espaço (geográfico, cultural, político). Este discurso aponta o fato de que o avanço da sociedade não índia, dominante, é algo em crescente movimento e difícil de ser freado. Portanto, cada vez mais, os grupos indígenas precisam de pessoas envolvidas que estejam dispostas a lutar com eles, e apoiá-los em sua busca por uma organização que lhes garanta reconhecimento e poder de negociação, como um grupo coeso e efetivamente inserido na política nacional.

b) Por outro lado, há um discurso, pautado no fato de que as pesquisas com grupos indígenas muito pouco têm contribuído para esta luta e para um auxílio efetivo nas questões pertinentes para estes grupos; o fato de que os pesquisadores têm pouco ou nenhum envolvimento político com a questão indígena, e de que suas pesquisas servem apenas para si mesmos e não para os grupos aos quais se referem.

Este segundo discurso aponta para a forma abusiva que tem marcado as pesquisas com grupos indígenas, pesquisas que não são necessariamente "não éticas", mas que se pautam numa compreensão de ética muitas vezes diferente da pressuposta em nossas pesquisas.

Desta forma, há três pontos importantes de reflexão relacionados às pesquisas com grupos indígenas, à luz das concepções expostas acima:

1) Quando, enquanto psicólogas sociais, elegemos a problemática indígena como uma problemática social relevante, como um campo ao qual a Psicologia Social pode ser útil de alguma forma, almejamos mudanças, trazemos conosco um referencial de como as coisas poderiam ser transformadas. Mas, almejamos uma transformação de acordo com que critérios valorativos e éticos?

Já expusemos a nossa compreensão de ética, mas qual o reflexo dessa compreensão para uma pesquisa com grupos indígenas? Assumir esse referencial ético reflete em assumir quais posições?

A nossa posição está relacionada à ideia de interintegração e a certeza de que as sociedades indígenas também se transformam. Ao contrário de um discurso que circula e é bastante comum na sociedade não índia, o índio não tem que ir para museu. Ele não tem que estar necessariamente vivendo igual ao que ele vivia há quinhentos anos, para que continue sendo índio. O problema é que a transformação da sociedade indígena se dá num processo de dominação por uma cultura alheia a sua, que se considera superior e se impõe sem respeito algum às diferenças étnicas e culturais.

Ao mesmo tempo, a ideia do isolamento total já não parece mais viável e a questão passa a ser como transformar as relações entre populações indígenas, Estado e sociedade civil. Ou seja, como passar de uma relação de domínio e imposição de uma cultura sobre a outra, para uma relação efetivamente de troca, respeito e autonomia cultural, social e política.

Desta forma, tomamos a posição de que o ideal seria não a integração do índio (como se tem pretendido nos últimos quinhentos anos), mas a interintegração. O primeiro conceito significa absorção de uma cultura pela outra, já o segundo quer dizer o diálogo, a complementação, respeitando as identidades, numa convivência pacífica e plural, sabendo que o Brasil, até mesmo por constituição, é pluriétnico e pluricultural.

Assim, a transformação almejada pauta-se nessa ideia de diferentes culturas interintegrando-se uma a outra, trocando experiências, numa relação que implique simultaneamente em igualdade de direitos e respeito às diferenças.

2) O outro ponto de reflexão diz respeito à dimensão crítica e propositiva da ética. No que essa dimensão implica para as pesquisas com populações indígenas?

Implica, por exemplo, em uma posição de crítica em relação ao saber acumulado, e a forma como esse saber tem sido produzido ao longo da História. Nós nos referimos aqui novamente a questão do abuso nas pesquisas com populações indígenas, pesquisas estas muitas vezes sem comprometimento algum com as populações estudadas e sem um retorno do saber produzido na melhoria da qualidade de vida dessas populações e na garantia de seus direitos.

Assim, embora esse conhecimento acumulado produzido principalmente pela Antropologia tenha a sua importância, a crítica a um tipo de conhecimento descomprometido e fechado no mundo da ciência do "não índio" é cada vez maior. É também crescente a reivindicação por pesquisas cada vez mais comprometidas com a transformação nos discursos e nas ações políticas, assim como uma valorização maior dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, e o seu acesso à ciência produzida pelo não índio.

Essa concepção acarreta também em uma posição em que a construção de soluções alternativas aos problemas vividos pelas populações indígenas seja um dos pilares principais de toda e qualquer pesquisa, que deve, portanto, buscar a autonomia dos índios, a valorização de seus saberes tradicionais e o respeito às formas escolhidas por eles para construir seus projetos de futuro, objetivando uma nova relação entre diferentes.

Por fim, considerando que toda nossa postura implica em uma dimensão ética, e nossa ética vai se diferenciar de acordo com nossa relação diante do outro, e é a este aspecto (da ética enquanto ética das relações) que se refere o próximo ponto de reflexão.

3) Desta forma, o que podemos falar da ética na relação entre índios e não índios num contexto de uma prática de pesquisa?

Há, em relação a este tópico, inúmeros aspectos a serem discutidos. Inicialmente, podemos falar da questão da desconfiança que existe por parte dos índios em relação aos pesquisadores. Essa desconfiança se remete a questão ética justamente pelo caráter de relação e por essa relação ser marcada por um sentimento particular e bastante intenso.

Sintetizando as análises de Silva e Grubits (2006), podemos dizer que realizar uma pesquisa ou intervenção no âmbito da questão indígena é se comprometer com toda a causa indígena mais ampla buscando:

- Comprometer-se com uma transformação da visão que se tem dos índios, do papel que eles exercem dentro do contexto político nacional;

- Rever as relações baseadas no princípio da tutela;

- Promover o diálogo intercultural e a interintegração entre sociedades indígenas e sociedade não índia;

- Acesso pleno das etnias indígenas ao saber que tem sido produzido sobre elas pelo não índio ao longo de todos esses anos;

- Contribuir para que o não índio também perceba que, para se relacionar com os povos indígenas, necessita aprender com eles sobre eles;

- Possibilitar também o acesso das etnias indígenas a todos os outros saberes que possam auxiliá-los em seu processo de autonomia política, cultural, econômica, na garantia de suas terras e no respeito aos seus direitos.

- Articular uma rede mais ampla de discussão em relação aos direitos indígenas e as transformações necessárias, para que esses direitos sejam ampliados e respeitados integralmente.

 

Conclusões

Para finalizar, fazer pesquisa com grupos indígenas sempre cabe a indagação: Para quem este saber é produzido? Afinal, as organizações sociais e políticas numa sociedade indígena são voltadas ao coletivo, principalmente, quando dizem respeito à produção do conhecimento. Quando encontramos um indígena na Universidade, nos cursos de graduação ou de pós-graduação, é comum em seu discurso externar seu desejo pelo conhecimento com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento da sua comunidade, e assim acontece, pois após se graduarem, muitos voltam para sua comunidade de origem para trabalhar, sem levar na devida consideração os conhecimentos adquiridos em benefício do bem-estar e desenvolvimento do seu povo.

Dessa forma, é compreensível que algumas lideranças indígenas barrem entrada, nas suas reservas, de pesquisadores que supõem nada contribuir para sua comunidade, ou mesmo, que ao contrário de contribuir, façam como os europeus do período colonial do Brasil: interfiram em sua dinâmica social e na construção de sua identidade. Faz-se necessário, que o pesquisador tenha a consciência de preservar a importância da cultura da comunidade indígena, a qual se dispõe a pesquisar, fazendo com que possam conhecer suas próprias raízes, por muitos violadas e esquecidas, buscando assim, contribuir para a preservação da cultura indígena.

Além disso, que o pesquisador tenha conhecimento e consciência dos princípios fundamentais da ética, a fim de preservar valores sociais de justiça e igualdade, contribuindo para que a sociedade não indígena conheça melhor a história do indígena e respeite sua cultura, bem como, se aproprie e absorva seus conhecimentos, pois ainda teria muito a aprender com eles, e, mais, permitiria a interintegração do indígena e o seu desenvolvimento dentro dos princípios culturais de igualdade e justiça.

 

Referências

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Recebido: 16/01/2017 / Corrigido: 17/06/2017 / Aprovado: 17/06/2017.

 

 

1 Doutora em Semiótica pela Sorbonne/Paris 8, Doutora em Saúde Mental pela Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, professora e pesquisadora da Universidade Católica Dom Bosco UCDB/MS. Endereço: Av. Mato Grosso, 759, Campo Grande, MS. CEP 79002-231. Tel.:(67) 3324-4778; Universidade Católica Dom Bosco: (67) 3312-3605. E-mail: sgrubits@uol.com.br . Apoio do CNPq.
2 Mestre em Psicologia, Doutoranda no programa de Pós Graduação Mestrado e Doutorado da UCDB, professora do curso de Graduação da UNIGRAN capital.

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