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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.37 no.93 São Paulo jul. 2017

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

O desejo do apaixonado nas relações conjugais e extraconjugais: uma revisão narrativa da literatura?

 

The passionate's one desire in marital and extramarital relations: a narrative review of literature?

 

El deseo del apasionado en las relaciones conyugales y extraconjugales: una revisión narrativa de la literatura?

 

 

Renata Runavicius Toledo1; Francisco Baptista Assumpção Jr. (Cad.17)2

 

 


RESUMO

A paixão amorosa apresenta como característica principal a experiência excessiva, difícil de ser controlada pela razão. Nas relações conjugais e extraconjugais o desejo do apaixonado pode ter um destino patológico/narcísico ou saudável. Para realizar esta revisão narrativa foram utilizados artigos de revistas impressas e/ou eletrônicas dos últimos dezoito anos de publicação. Os termos de busca (palavras chave) considerados foram: paixão; relacionamentos conjugais, relacionamentos extraconjugais e desejo. As bases de dados acessadas: Index Psi, PsycINFO, Web of Science, Medline, SciELO, Bireme e BVS-Psi. Foram consideradas nesta revisão onze publicações em revistas brasileiras e também literatura publicada em livros e textos clássicos que refletem de alguma maneira a questão do apaixonamento, do desejo do apaixonado e as relações conjugais e extraconjugais. Levar-se-á em conta um modelo antropológico de homem desejante e faltante. A maioria dos artigos descreveram a paixão associando -a ora à psicopatologia do elo amoroso ora à vivencia narcísica. Não foram encontrados artigos que apresentassem a paixão amorosa compreendida somente em configurações de saúde. O termo de busca "relação extraconjugal" nas bases de dados pesquisadas apresentou, em sua maioria, a extraconjugalidade associada à perversão (o outro objetificado), ou como infidelidade à moral social (infringir leis sociais) ou, ainda, infidelidade ao outro. Conclui-se que os apaixonados vivendo a paixão na conjugalidade encontram maior liberdade no atendimento de seu desejo, opostamente ao apaixonado que vivencia a paixão extraconjugalmente que, embora atenda seu desejo, encontra-se ensimesmado pelas demandas sociais.

Palavras-chave: Paixão amorosa; Desejo; Relações conjugais; Relações extraconjugais.


ABSTRACT

The main characteristic of passionate love is excessive experience, difficult to control by reason. In marital and extramarital relations, the desire of the lover may have a pathological / narcissistic or healthy destiny. To carry out this narrative review, articles of printed and / or electronic magazines of the last eighteen years of publication were used. The search terms (keywords) considered were: passion; marital relationships, extramarital relationships, and desire. The databases accessed: Index Psi, PsycINFO, Web of Science, Medline, SciELO, Bireme and BVS-Psi. Eleven publications in Brazilian journals and also literature published in classic books and texts have been considered in this review, reflecting in some way the question of passion, desire of the lover and marital and extramarital relations. An anthropological model of a desiring and missing man is being taken into account. Most of the articles described the passion associating - as well to the psychopathology of the love link or narcissistic experience. No articles were found that presented the love passion understood only in health settings. The search term "extramarital relationship" in the searched databases presented, for the most part, the extraconjugality associated with perversion (the other objectified), or as infidelity to social morality (breaking social laws) or, also, infidelity to the other. It is concluded that passionate people living the passion in conjugality find greater freedom in the fulfillment of their desires, in opposition to the passionate one who experiences the extra-marvelous passion that, although it fulfills his/her desire, finds him/herself entangled by the social demands.

Keywords: Passionate love; Desire; Marital relations; Extramarital relations.


RESUMEN

La pasión amorosa presenta como característica principal la experiencia excesiva, difícil de ser controlada por la razón. En las relaciones conyugales y extraconjugales el deseo del apasionado puede tener un destino patológico / narcisista o sano.Para realizar esta revisión narrativa se utilizaron artículos de revistas impresas y / o electrónicas de los últimos dieciocho años de publicación. Los términos de búsqueda (palabras clave) considerados fueron: pasión; las relaciones conyugales, las relaciones extramatrimoniales y el deseo. Las bases de datos accedidas: Index Psi, PsycINFO, Web of Science, Medline, SciELO, Bireme y BVS-Psi. En esta revisión se consideró en once publicaciones en revistas brasileñas y también literatura publicada en libros y textos clásicos que reflejan de alguna manera la cuestión del apasionamiento, del deseo del apasionado y las relaciones conyugales y extraconjugales. Se tomará en cuenta un modelo antropológico de hombre deseante y faltante. La mayoría de los artículos describieron la pasión asociando -la ora a la psicopatología del eslabón amoroso ora a la vivencia narcisista. No se encontraron artículos que presentaran la pasión amorosa comprendida solamente en configuraciones de salud. El término de búsqueda "relación extraconjugal" en las bases de datos investigadas presentó, en su mayoría, la extraconjugalidad asociada a la perversión (el otro objetivado), o como infidelidad a la moral social (infringiendo leyes sociales) o, aún, infidelidad al otro. Se concluye que los apasionados viviendo la pasión en la conyugalidad encuentran mayor libertad en la atención de su deseo, contrariamente al apasionado que vive la pasión extraconjugalmente que, aunque atienda su deseo, se encuentra ensimismado por las demandas sociales.

Palabras clave: Pasión amorosa; Deseo; Relaciones conyugales; Relaciones extramatrimoniales.


 

 

Introdução

Freud em "Introdução ao Narcisismo" (1914) e em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921) utilizou o termo alemão Verliebtheitpara para se referir à paixão. Esse termo também foi traduzido por enamoramento, estar apaixonado, estar amando, estado de fascinação e relação amorosa. O autor explica a paixão pelo narcisismo primário vivido nas experiências infantis precoces nas quais a criança, ao buscar uma relação na vida adulta, revive a relação primária com as figuras parentais. Para ele, estar apaixonado significa investir toda sua libido em um único objeto, elevando-o ao objeto sexual ideal. Assim, a fonte da vida amorosa está na fixação da ternura que a criança sentia em relação a sua mãe (objeto de amor original).

Estudos de Sternberg (1986) permitiram conceber a paixão como uma união com grande excitação em que as pessoas possuem atração física e sexual, vontade de estarem juntas e viverem o romance. Para o autor, "Decisão/ Compromisso", por sua vez, está relacionado à decisão de amar e à vontade de que a relação se mantenha por longo prazo.

Para Barros e Silva (2002), a força transgressora característica da paixão não passa de um ir que nunca chega, nem ao menos permanece onde quis chegar.

O objeto do desejo nas relações de apaixonamento adquire a dimensão de um objeto de prazer e necessidade. Nesse sentido, as pesquisas de Aulagnier (1984) apontaram que, nas relações passionais, o objeto do desejo para o Eu se converte numa fonte exclusiva de todo prazer e se transporta para o registro das necessidades. Portanto, para a autora, o termo paixão define o vínculo que une o sujeito ao objeto do seu desejo. É uma exigência vital daquilo que preenche momentaneamente a falta existencial, considerando as necessidades e, na ausência dessas vivências, gera ansiedade e desejo de novas experiências.

Não foram encontradas pesquisas que abordam as manifestações do desejo do apaixonado nos relacionamentos conjugais e extraconjugais, principalmente no que se refere à vivência do apaixonamento em uma configuração saudável.

Tendo em vista a escassez de artigos ou investigações na literatura que abordam a temática do desejo do apaixonado nas relações conjugais e extraconjugais, considerando a paixão em um viés saudável, o presente estudo objetivou rever a narrativa das publicações com o intuito de refletir sobre a paixão amorosa, observando o desejo do apaixonado nos relacionamentos conjugais e extraconjugais. O conhecimento resultante do presente estudo pode viabilizar o embasamento e o aprimoramento de futuras pesquisas e intervenções na clínica.

 

Método

Esta revisão narrativa tem como objetivo realizar uma reflexão a partir uma análise de literatura sobre o desejo do apaixonado considerando a paixão amorosa nos relacionamentos conjugais e extraconjugais. Para isso foram utilizados artigos de revista impressas e/ou eletrônicas dos últimos dezoito anos de publicação. Os termos de busca (palavras chave) considerados foram: paixão; relacionamentos conjugais, relacionamentos extraconjugais e desejo. Bases de dados acessadas: Index Psi, PsycINFO, Web of Science, Medline, SciELO, Bireme e BVS-Psi. Foram consideradas nesta revisão onze publicações em revistas brasileiras e também literatura publicada em livros, textos clássicos que refletem de alguma maneira a questão do apaixonamento, do desejo do apaixonado e as relações conjugais e extraconjugais. Levar-se-á em conta um modelo antropológico de homem desejante e faltante, ou seja, o modelo de homem da psicanálise freudiana, determinado pelo inconsciente e delimitado por algo sobre o qual não tem domínio.

O critério utilizado para inclusão das publicações foi ter as expressões utilizadas nas buscas no título ou palavras-chave, ou ter explícito no resumo que o texto se relaciona à associação da paixão amorosa, ao desejo do apaixonado, aos relacionamentos conjugais e aos relacionamentos extraconjugais do indivíduo faltante e desejante. Os artigos excluídos não apresentavam o critério de inclusão estabelecido.

 

Resultados

No decorrer da presente revisão, não foram encontrados artigos que discutissem aspectos relacionados ao desejo do apaixonado nas relações conjugais e extraconjugais. Esse fato possivelmente reflete a dificuldade em se estabelecer um método sistemático para reunir as pesquisas existentes relacionadas ao tema, uma vez que tais publicações ainda são pouco numerosas.

O levantamento das bases bibliográficas e dos textos completos publicados possibilitou verificar que a maioria das publicações abordou o tema da paixão, em uma leitura psicanalítica, como sinônimo de sofrimento proveniente da incompletude (homem faltante), característica do narcisismo descrito por Freud (1914).

Malavolta (2000) se referiu às conclusões da psicanalista Maria Cristina Magalhães que compreende que a ligação entre paixão e sofrimento está na origem etimológica da palavra, cuja raiz é equivalente à de padecer.

Assim, os artigos abordam com maior frequência o passional e o patológico relacionando a paixão à psicopatologia ou ao sofrimento pela incessante busca narcísica de uma inalcançável e ilusória completude.

O termo de busca "relação extraconjugal" nas bases de dados pesquisadas apresentou, em sua maioria, a extraconjugalidade associada ora à perversão (o outro objetificado), ora como infidelidade à moral social (infringir leis sociais) e ao outro da relação monogâmica (traição, infidelidade ao outro). Tal fato cristaliza a dificuldade de relacionar a vivência da paixão em relações extraconjugais, consideradas a priori "violações de princípios organizadores da sociedade".

A maioria dos artigos descreveram a paixão associando-a ora à psicopatologia do elo amoroso, ora à vivência narcísica não sendo encontrados artigos que apresentassem a paixão amorosa compreendida somente em configurações de saúde.

Malavolta (2000) menciona Menezes (1996) que corrobora para a acepção de paixão como possibilidade de lidar com o excesso não solapado pelas leis vislumbrando, assim, prazer na paixão. Associa a reflexão citando versos de Carlos Drummond de Andrade: "Amor também é cor, graça e sentido".

A paixão amorosa adulta e saudável pressupõe duas subjetividades comunicantes e, apesar da expectativa constitutiva de qualquer dupla relacional narcísica, parte-se da concepção de que o apaixonamento ocorre e se torna funcional quando o casal consegue respeitar as peculiaridades e diferenças que, ao mesmo tempo, os une de maneira que não se confundam ou se misturem. Tal situação é confirmada pela afirmação de Aulagnier (1979) que conclui que a reciprocidade associada à alteridade impede que o potencial conflitivo verificado nas relações amorosas se torne destrutivo.

Para Aulagnier (1979), a ideia de simetria no amor e assimetria na paixão amorosa atende ao critério de que, ao se constituir como faltante, o ser humano, apesar da demanda da simetria para organização pessoal, busca em uma intenção inconsciente a instabilidade ou assimetria existencial que pode ser vivida somente em relações de paixão. Nesse caso, não significa que essas relações estejam inscritas em um registro patológico, somente em um registro instável e exaltante.

A partir do momento em que a pessoa se apaixona por outra, se ocorresse a indiferenciação, o 'outro' não existiria, seria 'eu', como descrito no mito dos andróginos (Platão, 1964). Em 'O Banquete', de Platão o orador Aristófanes relata que nas origens da humanidade Zeus decidiu dividir o Andrógino em duas metades condenando-as a uma infindável caça em prol de capturar sua alma gêmea. No entanto, quando o encontro acontecia, a atração entre eles era imediata e desejavam restaurar a velha perfeição. Porém, a fusão era sempre momentânea e, assim, os encontros eram seguidos de desencontros. Assim, o encontro que visa fusão caracterizaria um funcionamento psicótico, no qual, 'eu' e 'outro' somos um. Tal situação se constitui simbolicamente antagônica à proposta do 'encontro saudável'. A proposta de apaixonamento não deve ser somente considerada disfuncional, afinal quando sustentada egoicamente não se configura como busca de completude fusional.

O excesso característico do apaixonamento, se sustentado egoicamente, fica inviabilizado de estar associado a contratos rígidos e trocas objetivas. A fuga de tal situação pode ocorrer nos moldes já citados por Magalhães e Féres-Carneiro (2003) por meio de idealização e super exigência dos pares, levando a fortes tensões na conjugalidade. O indivíduo que busca na vivência de apaixonamento ou nas relações conjugais e extraconjugais o "eu" no "outro" (paixão narcísica), já está perdido. Tal encontro da outra metade do "eu" se torna inviável por concepção e o adoecimento é o destino nessa proposta.

Todos os encontros são, ao mesmo tempo, simétricos e assimétricos. Bento (2008) afirma que o sentido da "paixão como força" deveria caminhar ao lado daquele da "paixão como fraqueza da vontade". Essa reflexão vai ao encontro do que afirmamos aqui como 'negociação saudável' do apaixonado que sustenta egoicamente o excesso do apaixonamento, característico dos encontros apaixonados adultos, à revelia das denominações históricas da paixão.

No encontro amoroso pode haver a identificação de características comuns na dupla e posterior construção de uma intersubjetividade na intersecção da dupla. Tal trama é nomeada por Magalhães e Féres-Carneiro (2003) como 'trama identificatória conjugal' caracterizada por entrelaçamento, não 'mistura/fusão' de 'eus' da conjugalidade. Sem isso, há somente 'temperaturas individuais' que também são gratificantes, no entanto, com características provenientes da criação individual, não conjugal. Há a preservação da alteridade sem a aniquilação da subjetividade de um em prol do encontro, nesse caso, de configuração saudável.

 

Discussão

Todos os textos incluídos utilizaram como modelo o homem faltante e desejante.

Outras pesquisas com enfoque na diferenciação do amor e paixão aproximam os conceitos, dificultando uma clara compreensão sobre paixão, amor, amor apaixonado e paixão amorosa.

A leitura criteriosa dos textos selecionados permitiu observar que os estudos são unânimes no que concerne à compreensão da paixão como narcísica e/ou patológica.

O termo de busca "relação extraconjugal" nas bases de dados pesquisadas apresentou, em sua maioria, a extraconjugalidade associada à perversão (o outro objetificado), ou como infidelidade à moral social (infringir leis sociais) ou, ainda, infidelidade ao outro.

Homem desejante e faltante

O sujeito da psicanálise é concebido por Torezan & Aguiar (2011) como o sujeito do desejo, determinado pelo inconsciente, circunscrito e incitado pela falta, diverso do ser biológico e do homem da consciência filosófica.

Por ser desejante e faltante compreendemos que desde seu nascimento o homem carece da prioridade do outro em sua existência. Filósofos como Platão, Schopenhauer e Sartre enfatizaram o desejo relacionando-o à falta.

Platão, ao abordar o tema do amor, também o relacionou a essa falta. Assim, Platão escreveu: "O que não temos, o que não somos, o que nos falta, eis os objetos do desejo e do Amor" (Platão, apud Comte-Sponville, in Vários, 1999, p. 40)

Ao se pensar o homem como ser faltante, encontra-se uma justificativa para as inquietações freudianas anunciadas em um artigo a respeito da psicologia do amor intitulado "Sobre a mais geral degradação da vida amorosa" (Freud,1912), no qual o autor afirma existir algo "na própria natureza da pulsão sexual desfavorável à realização da satisfação plena". A esse respeito, em "Toten e Tabu "(Freud,1914), o autor, ao considerar as relações do sujeito com o social, ressalta que a organização do desejo ocorre por meio do estabelecimento de fronteiras com o interdito.

Ao se conceber o homem em falta, infere-se a escolha de seu objeto, inevitavelmente insatisfatório. Portanto, os encontros tornam-se desastrosos por reeditarem a situação de incompletude, mencionada no mito do Andrógino (Platão, 1964).

Na contemporaneidade, o homem, herdeiro da tradição romântica, frente à ambivalência de seu desejo que floresce em sua constituição psíquica "faltante", também busca segurança na ilusão de satisfação condicionada tão somente à constância do objeto. Tal constância pode ser simbolizada pelo bebê que obtém segurança ao se perceber, diariamente, cuidado pela mesma pessoa. O bebê, ao vislumbrar a possibilidade de experimentar um colo diferente do conhecido, se depara com uma situação desejante ambivalente: assim, alguns bebês se arriscam guiados pela fantasia de um encontro que ofereça maior satisfação e outros paralisam, pois temem, em fantasia, que a experiência os coloque em uma situação caótica e de perda. Tal qual é a simbologia da experiência de apaixonamento extraconjugal, ou melhor, uma experiência que pode ser vivida com êxtases ou com muitos pesares, uma vez que o excesso do apaixonamento é sustentado ou não egoicamente.

Para sustentar o argumento anterior, mais especificamente, o excesso da paixão passível de ser sustentado egoicamente, apontamos Silva (2007) que cita a ética aristotélica que refere a existência das paixões, faculdades e estados de caráter na alma humana ressaltando que, em si mesmas, as paixões não são consideradas virtudes ou vícios. Assim, as faculdades responsáveis pela experiência das paixões e pelos estados de caráter são passiveis de permissão a um bom ou mal posicionamento a respeito da vivência de apaixonamento, seja em relacionamentos conjugais ou extraconjugais.

Se partirmos da premissa de que o desejo se inicia com a perda do objeto originário (figuras parentais) e acrescentarmos a inevitável conflitiva que se instala com a castração edípica como elementos primordiais para o prosseguimento de um desenvolvimento saudável, o período que inaugura essa sequência de crises, em uma leitura psicanalítica, é a primeira infância. Esse período, considerado primordial na nossa existência psíquica, nos proporciona contatos intensos e constantes com experiências de insatisfação pelas frustrações e faltas, que permearão nossa existência até a morte, momento ambivalente, 'rechaçado' em função da revelação da finitude e desejado por findar a batalha pulsional que acompanhou a existência humana (Nasio,2007).

Ainda no âmbito da falta, as frustrações e a constante insatisfação do desejo inserem no homem uma contínua busca por novos objetos que possam oferecer momentos de prazer e satisfação. A esse respeito Ferreira (2004,) afirma: "O desejo, ao contrário do amor, faz parte da estrutura subjetiva. Em função da marca fundamental dessa estrutura, que é uma falta radical, o homem inventou o amor e seus mitos".

No que diz respeito ao desejo sustentado por fantasias, fica logo inviável a possibilidade de encontrar um parceiro amoroso que o satisfaça plenamente. Plenitude remete ao estabelecimento de um vínculo fusional, inviabilizado com o nascimento biológico, que castra o homem na sustentação inesgotável de vida e o inscreve em conflitos de sobrevivência. Isso é confirmado ao longo do desenvolvimento, uma vez que o homem saudável caminha rumo à independência física e psíquica. A esse respeito Winnicott (1967, p.10), afirmou:

A vida de um indivíduo saudável é caracterizada por medos, sentimentos conflitivos, dúvidas, frustrações, tanto quanto por características positivas. O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida, assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade, e sejam capazes de assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras, pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência para a independência, ou autonomia. (Winnicott, 1967a, p. 10).

Seguindo essa perspectiva, a falta constatada leva o desejo do sujeito em direção a vários objetos que certamente não oferecerão experiência ideal de plenitude. No entanto, é somente na vida adulta que o homem lida de maneira mais tranquila com sua falta, após recorrentes frustrações na busca de parceiros amorosos.

A respeito do binômio desejo/fantasia, Ferreira (2004) afirma: "O desejo, ao contrário do amor, faz parte da estrutura subjetiva. Em função da marca fundamental dessa estrutura, que é uma falta radical, o homem inventou o amor e seus "mitos". Tal reflexão nos leva à constatação de que as relações amorosas com pessoas que despertam nosso desejo não ocorrem pelo fato de o outro poder oferecer a experiência de fusão, mas, pela fantasia que mantém o desejo amoroso. Em conformidade com isso, as palavras de Lacan (1964) corroboram a reflexão: "A fantasia é a sustentação do desejo, não é o objeto que é a sustentação do desejo".

O objeto do desejo nas relações de apaixonamento adquire a dimensão de um objeto de prazer e necessidade. Nesse sentido, Aulagnier (1984) observa que, nas relações passionais, o objeto do desejo para o Eu se converte numa fonte exclusiva de todo prazer e se transporta para o registro das necessidades. Portanto, o termo paixão define o vínculo que une o sujeito ao objeto do seu desejo. É uma exigência vital daquilo que preenche momentaneamente a falta existencial, considerando as necessidades e, na ausência dessas vivências, gera ansiedade e desejo de novas experiências.

Ainda a respeito do desejo em " Mal-estar na Civilização", Freud (1930) anunciou a dificuldade do homem de conviver em sociedade e atender seus desejos. Como consequência, ocorrem as transgressões e atitudes antissociais que tornam o homem inimigo da civilização. As regras da sociedade aprisionam o desejo humano, embora tenham sido descritas pelos próprios homens, caracterizando, portanto, um grande paradoxo. Tal questão pode ser exemplificada com a censura do ato transgressor que é objeto de discussões e críticas. Atende os desejos ocultos daqueles que o censuram e, ao mesmo tempo, limita o desejo de outros. Isso caracteriza o paradoxo da rigidez superegoica que se manifesta algoz e vítima.

O ser humano, portador de necessidades biopsicossociais, precisa atender a todas as esferas sociais e manter-se em equilíbrio. Pessoalmente, acaba transgredindo para atender seu desejo poligâmico, muitas vezes colocando em risco relações contratadas como o casamento, garantia de estabilidade familiar e social. A formação do casal, oriunda da construção da família tradicional, com vistas à procriação e ao amparo familiar, atenderia à constituição monogâmica da ordem social. Assim, o asseguramento da monogamia inviabilizaria a poligamia do desejo, evitando transgressões.

Amor x Paixão x Amor apaixonado x Paixão amorosa

A compreensão da paixão deve, necessariamente, levar em consideração os conceitos de amor, já explorados e considerados pelos estudiosos do assunto como um fenômeno encontrado em todas as culturas, portanto, universal. Para Aulignier (1985) o amor permite diversificar alguns destinatários de suas demandas de prazer, não necessariamente sexuais.

A pluralização do uso da palavra amor (amor de pai, pelos bens materiais...) modificou o conceito primário, atribuindo-lhe predicados diversos. As paixões, apesar do movimento semelhante de pluralização do conceito, mantêm imutável sua característica descritiva principal: o excesso. Tal fato facilita o interjogo com outros predicados. Assim, compreendemos que o amor apaixonado não pode ser relacionado à ideia de paixão amorosa aqui apresentada.

Por anteceder o predicado paixão, o "amor apaixonado" não é paixão no seu todo, sendo somente, uma característica do "amor". No entanto, a paixão amorosa é paixão no "todo" e comporta o "amor" como característica que fortalece esse tema.

Jean Paul Sartre (1905 - 1980) acreditava que o ser humano poderia, a cada momento, escolher o que faria de sua vida, sem um destino previamente concebido " acreditava que o amor estaria destinado ao fracasso. Segundo ele, o amor complementar levaria à decepção porque precisa reduzir o sujeito a um objeto. Qualquer situação que ofereça a ilusão de completar a falta humana, tal qual a paixão narcísica descrita anteriormente, está fadada à invalidação, afinal o amor ou paixão que completam são por definição utópicos e permitem, somente, a existência de um. Tal situação não nos remete a saúde e foge ao foco desta reflexão.

As teorizações de Sartre (1943) referem ser conflituoso o amor entre dois sujeitos completos. O autor justificou que ambos teriam que ser o tudo, o infinito e exigiriam isso um do outro, apesar de não existirem dois infinitos. Para ele, o amor é um "ideal irrealizável", uma vez que queremos algo impossível das pessoas que amamos. Os amantes são atraídos pela liberdade e pela independência que detectam no parceiro, mas ficam tão amedrontados que tentam privá-lo desses atributos quando estabelecem uma relação amorosa.

A esse respeito Bruckner (2013), na contemporaneidade, sugere que a expectativa de amor perfeito, ideal impede as relações conjugais. Para o autor, a busca do sublime nos distancia da vivência das paixões e nos torna "robôs afoitos à procura de algo inencontrável". Para ele, há um solapamento dos sentimentos em função dos contratos sociais. O autor reforça que as paixões são antídoto para a angústia diante do inatingível. O amor paixão torna-se breve e fugidio e se manifesta intenso e pleno, enquanto perdura. Assim, os êxtases estrondosos típicos da paixão devem ser substituídos pela harmonia e regularidade encontradas no amor companheiro nomeado pelo mesmo autor como "amor suave", encontrado no casamento.

Hendrick & Hendrick (2006) relacionou o interesse pela compreensão do amor apaixonado a uma experiência de tempestade emocional.

As pesquisas de Marazziti e Baroni (2012) se referem ao ato de se apaixonar como uma condição de vida estressante.

O interesse por seu aprimoramento também foi evidenciado no estudo de Hatfield & Sprecher (2010) que abordaram o amor apaixonado que se manifesta nas relações românticas como um estado intenso de desejo de união com o outro, incluindo estimativa ou apreciações, sentimentos subjetivos, processos fisiológicos padronizados, tendência à ação e comportamentos instrumentais. As autoras se referem a um amor recíproco associado ao preenchimento e ao êxtase. Assim, quando o amor não é correspondido associa-se ao vazio, à ansiedade e ao desespero. A personalidade voraz dos apaixonados, incestuosa, se contrapõe à segurança inibidora da criatividade dos amantes.

Paixão narcísica e/ou patológica

A busca de novos encontros ou possibilidades pode se manifestar como destino das paixões amorosas transgressoras que, como todo fenômeno humano ligado à voracidade do desejo, podem levar a um desequilíbrio patologizante. A respeito deste último, Neri (2007), ao pesquisar "amor bandido", avaliou a paixão que pode levar à transgressão e ao descontrole dos crimes passionais. Para a autora, o "amor bandido", tema recorrente na mídia e vinculado ao tema da paixão, aponta para exaltação emocional intensa que toma a forma de uma compulsão e pode conduzir a uma violenta passagem ao ato criminal.

É possível inferir que a pulsão sexual parcial, impossibilitada de satisfação plena, já referida por Freud em 1912, nos remete diretamente à inviabilidade de satisfação plena em qualquer encontro apaixonado. Encontros em que não há contratos (relacionamentos extraconjugais) se libertam das cobranças de satisfação plena e os excessos podem ser vivenciados sem, portanto, tornarem-se patológicos. Só pode se tornar patológico o que perde contorno e invade o espaço ao qual não pertence. Como a paixão não especifica o lugar de cada um dos amantes, também não há possibilidade de contorno.

O "amor bandido" se apresenta como uma estrutura aditiva e conduz o sujeito à servidão, revela uma angústia diante do desamparo primordial. A tentativa de encontrar outro a quem se entregar, se oferecer em uma situação de submissão, revela, por um lado, uma saída desesperada para evitar o desamparo e, por outro, o temor de uma vivência de devastação diante da possibilidade de perdê-lo (Neri, 2007).

A paixão, enquanto uma forma patológica da vida amorosa caracterizada pela impossibilidade de coexistência das duas subjetividades, foi abordada por Rocha (2002) como uma perversão do amor e pelos autores Barros e Silva (2002) como uma emoção que domina o sujeito, podendo chegar ao excesso de uma transgressão ou de uma perversão.

Para Neri (2007), quando se avalia a paixão como perversão, não se está mais na ordem do desejo, mas na ordem da necessidade, ou seja, da ânsia de fazer perdurar a relação arcaica de fusão e de submissão às figuras parentais tidas como onipotentes. Para a autora, se o objeto da paixão é necessário, a relação revela seu caráter imperioso, próximo às relações aditivas, tornando o objeto insubstituível, consequentemente, sua perda implicaria o aniquilamento do sujeito.

Para Gori (2004), a alienação de si mesmo atrelada ao aprisionamento psíquico e ao objeto de desejo configura a dimensão psicopatológica da paixão que, em psicanálise, está estreitamente vinculada ao conceito de narcisismo. A paixão é caracterizada por um despojar-se de tudo em benefício do objeto, falir, desvencilhar-se de apoios narcísicos que são fenômenos constantes observados na 'psicopatologia' da vida amorosa. Para a autora, a paixão não é "desrazão", nem pode ser referenciada por uma lógica racional. Assim, o sujeito capturado pela paixão se apresenta, a si próprio e aos espectadores, como despossuído de si mesmo, sem domínio de seus pensamentos nem de seus atos. Inebriado e aprisionado ao objeto, o apaixonado é capaz de se fechar para o mundo externo, recolhendo-se em sua fantasia.

Lejarraga (2002) discorda da ideia de Freud de que a constância e a dependência do objeto implicam satisfação plena. Para exemplificar, a autora menciona os toxicômanos que insistem na dependência dos seus objetos. Tanto quanto os toxicômanos os apaixonados patológicos não vivem em parceria com o outro (relacionamento saudável) e muito menos consigo mesmos, já que não vislumbram o outro e têm uma compreensão distorcida da própria existência

Relacionamentos conjugais (casamento) e extraconjugais

Ferreira (2004) apresenta como definição de 'Casamento' no "Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa': "ato solene de união entre duas pessoas de sexos diferentes, capazes e habilitadas, com legitimação religiosa e, ou, civil".

Fères-Carneiro (1998) interessada na compreensão da união de pessoas apaixonadas ou não no casamento alertou sobre o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Para a autora, a dificuldade de ser casal jaz no fato de que com o casamento se estabelece uma condição a três, sendo duas individualidades e uma conjugalidade. O fato de "tornar-se um" ou de passar a ter uma "identidade conjugal" desconstrói sua individualidade e exige uma nova configuração que será estabelecida nos limites contratuais. A única saída mais saudável em uma avaliação consciente é "aceitar" as regras matrimoniais e obter prazer, o que será para sempre.

A esse respeito, a autora menciona Berger e Kellner (1970) por denominarem o casamento como um ato dramático, no qual dois estranhos com passados individuais diferentes se encontram e se redefinem. Assim, o drama do ato é internamente antecipado e socialmente legitimado muito antes de ele acontecer na biografia dos indivíduos, sendo que a reconstrução do mundo no casamento ocorre no discurso. Com isso, os parceiros confirmam e reconfirmam a realidade objetiva internalizada por eles e para isso precisam reconstruir a realidade passada e aceitar uma realidade acordada para o casal.

A pesquisa de Gomes (2009) aborda que a reconstrução do passado de ambos vem carregada de imagos transgeracionais (outros modelos de apaixonamento e casamento) que participarão ativamente como fantasmas que rodeiam essa nova identidade conjugal. Como todo fantasma, traz aflições, dúvidas, ansiedades e até paranoia.

No artigo 'Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade', Terezinha Féres-Carneiro (1998) cita os autores Berger e Kellner (1970) que, com relação à importância institucional do casamento, relembram que Durkheim o considera lugar-comum da sociologia familiar, oferecendo proteção à anomia da pessoa. O casamento, ao ofertar uma função social ao indivíduo, proporciona a experiência de ordem e sentido àquele que casa. Os autores acrescentam que o matrimônio propicia, assim, um lugar privilegiado em meio às relações significativas da sociedade. Considerado instituição monogâmica, não permite a vivência poligâmica e transgressora, características do desejo humano, impedindo, assim, o atendimento da demanda libidinal. Apesar de sua significativa função econômica e social, se mantém como zona de segurança psicológica. Por não manter os êxtases possibilitados pelo apaixonamento em função de seu objetivo de estabilidade, pode desmotivar os envolvidos, que acabam por buscar relacionamentos extraconjugais para viver o excesso característico da paixão, inviabilizado pelos contratos.

Na contemporaneidade os modelos de relacionamentos amorosos (conjugais e extraconjugais), bem como diversos conceitos de rígida tradição na sociedade, têm sido questionados e criticados pelas novas gerações. Tal fato ocorre em função da desenfreada e conflitante busca de individuação, mencionada pelos autores Rossi (2003) e Marodin (1997), em que a felicidade se encontra diretamente vinculada às realizações pessoal, sexual e profissional.

Nas configurações matrimoniais, ou melhor, nos relacionamentos conjugais monogâmicos, há uma tendência da fragmentação dos ideais de amor romântico e eterno. O casamento que permite segurança, satisfação e afeto é considerado socialmente um 'amor equilibrado', ou ainda, 'amor conjugal' como já fora mencionado por Hatfield (1988). Tal concepção, por definição, inviabiliza os excessos que caracterizam o 'amor-paixão' tornando a vivência de apaixonamento possível fora do casamento (relacionamentos extraconjugais), transgredindo as normas sociais.

No encontro amoroso pode haver a identificação de características comuns na dupla e posterior construção de uma intersubjetividade na intersecção da dupla. Tal trama é nomeada por Magalhães e Féres-Carneiro (2003) como 'trama identificatória conjugal' caracterizada por entrelaçamento, não 'mistura/fusão' de 'eus' da conjugalidade. Sem isso, há somente 'temperaturas individuais' que também são gratificantes, no entanto, com características provenientes da criação individual, não conjugal. Há a preservação da alteridade sem a aniquilação da subjetividade de um em prol do encontro, nesse caso, de configuração saudável.

No texto "Sobre o Narcisismo", Freud (1914) menciona dois tipos de ligações na escolha de objeto que são: anaclítica que remete às figuras de cuidado originárias (pai e mãe ou cuidadores) e a narcísica que remete à escolha de um objeto semelhante a si mesmo.

O tema do narcisismo nas relações conjugais e extraconjugais não se esvai. É importante mencionar as escolhas amorosas que se configuram no modelo fusional, nas quais há repetição de padrões infantis. Vínculos amorosos saudáveis partem do pressuposto de que a dupla amorosa possa constituir duas subjetividades para, a partir disso, configurar conjugalidade que facilite ganhos individuais. Tal modelo pretende negar o atendimento da promessa estabelecida nos casamentos cristãos, nos quais o juiz religioso pede ao casal votos de "tornarem-se um" a partir do momento de união de corpos contratada no templo religioso. Tal promessa soa patológica e minimamente impraticável em termos psíquicos saudáveis.

As pesquisas de Alvarenga (1996), no artigo "Uma leitura psicanalítica do laço conjugal, afirma que o encontro de subjetividades na conjugalidade, dá margem à repetição (via repetitiva de satisfação libidinal) ou à renovação, considerada como premissa de um encontro saudável. Essa ideia vai ao encontro do que a autora ressalta a respeito da conjugalidade, se configurando como via de satisfação libidinal e ao amor como busca neurótica de equilíbrio. A respeito disso, a autora acrescenta que a relação conjugal ganha em dinamismo quando se transforma em espaço de articulação de diferenças, permitindo, assim, um questionamento constante de seu equilíbrio. Tal ideia nega o desejo regressivo fusional e valoriza o sujeito, protegendo sua subjetividade e permitindo que o mesmo usufrua das qualidades respectivas à subjetividade do objeto de paixão amorosa.

Os resultados destas pesquisas sugeriram que o encontro de duas pessoas e a possibilidade de usufruir das qualidades subjetivas possibilita o estabelecimento da temperatura da conjugalidade.

O interesse por seu aprimoramento também foi evidenciado no estudo em que Féres-Carneiro (1998) relata que na contemporaneidade os ideais em uma relação conjugal têm ênfase maior na autonomia e na satisfação de cada cônjuge do que os laços de dependência entre eles.

As pesquisas de Kaës (2001) mostram que o encontro e a interação de subjetividades podem transformar o material psíquico. Tal transformação pode manter o sujeito apaixonado desejante, fiel ao seu relacionamento conjugal, ou inseri-lo na busca da vivência de apaixonamento em uma relação extraconjugal.

Um estudo selecionado de Magalhães e Féres-Carneiro (2003) se refere à 'trama identificatória conjugal', que se realiza por meio de processos criativos que preservam a alteridade e não aniquilam a subjetividade de um em prol do encontro, nesse caso, de configuração saudável. O encontro aí referido pode ser vivido nas duas relações mencionadas, conjugais e extraconjugais, afinal a qualidade da trama depende dos indivíduos envolvidos, não dos contratos estabelecidos pela dupla.

Em 1998 Féres-Carneiro sugeriu que o encontro de duas pessoas e a possibilidade de usufruir das qualidades subjetivas possibilita o estabelecimento da temperatura da conjugalidade.

Alvarenga (1994) nos remete à ideia de Jablonski (2001) de que a sociedade estimula nos indivíduos expectativas matrimoniais aquém de serem alcançadas. Assim, espera-se que o indivíduo direcione sua libido (energia da sexualidade) ao outro do matrimônio (relação conjugal) e não ao outro desejado (objeto do seu desejo) que pode não ser o cônjuge do matrimônio (relação extraconjugal).

 

Considerações Finais

Essa revisão narrativa da literatura apresentou o atual panorama das publicações referentes à paixão amorosa e as relações extraconjugais.

O fato de a paixão ter como característica principal a experiência excessiva, difícil de ser controlada pela razão nos permite reverenciá-la em diversos delineamentos e leituras. Apesar da pesquisa a respeito do tema apresentar resultados preponderantes que remetem a um destino patológico e narcísico, há possibilidade de contemplar o tema em um delineamento saudável, em que, o excesso da paixão é sustentado egoicamente, tendo em conta o modelo de homem da psicanálise.

A irresistível busca pelo prazer, anunciada pela psicanálise freudiana, oferece risco à ordem social monogâmica. Afinal, a busca de atendimento dos desejos e a obtenção do prazer se sobrepõem às normas estabelecidas e moralmente corretas, podendo colapsar a subjetividade do homem apaixonado,

A sentença de organização monogâmica dos relacionamentos acaba, inevitavelmente, colidindo com a poligamia do desejo humano, apontando, assim, para o conflito 'indivíduo X sociedade'.

O alimento do desejo do apaixonado não é a segurança, mas, sim, a inconstância pulsional, inviabilizada de ser contornada por um contrato. O apaixonado só pode experimentar novas sensações na liberdade pulsional de um relacionamento em que o excesso não esteja ameaçado de ser solapado pelas leis.

Conclui-se que os apaixonados vivendo a paixão na conjugalidade encontram maior liberdade no atendimento de seu desejo, opostamente ao apaixonado que vivencia a paixão extraconjugalmente que, embora atenda seu desejo, encontra-se ensimesmado pelas demandas sociais.

 

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Recebido: 07/08/2017 / Corrigido: 07/11/2017 / Aceito: 13/11/2017.

 

 

1 Psicóloga especialista em Psicoterapia Psicanalítica da USP, Mestra em Psicologia Clínica da USP - São Paulo - Brasil. Contato: Rua: Pará, 76 cjs.101/102 - Higienópolis. São Paulo/SP-Brasil. CEP 01243-020 -Tel: (11) 3214-3271 -E-mail: renatatoledo@usp.br
2 Médico Psiquiatra; Professor livre docente pela FMUSP, Professor Associado, Departamento de Psicologia Clínica. Doutor, Instituto de Psicologia da USP. São Paulo -Brasil. Membro da Academia Paulista de Psicologia. Email: cassiterides@bol.com.br

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