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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.38 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

TEORIAS, PESQUISA E ESTUDOS DE CASO

 

De objeto a sujeito: o brincar de crianças em uma brinquedoteca hospitalar

 

From object to subject: playing of children in a hospital toy library

 

De objeto a sujeto: el jugar de niños en una ludototeca hospitalaria

 

 

Priscila Mary dos Santos Bahia1; Ilka Dias Bichara2; Iris Araújo dos Santos3

Instituto de Psicologia/UFBA

 

 


RESUMO

Embora a hospitalização infantil submeta as crianças a vivências difíceis, nota-se que as mesmas mantêm nesse espaço, de forma viva, diversos comportamentos lúdicos, como as suas brincadeiras. Considerando esse aspecto, o presente trabalho teve por objetivo analisar o protagonismo das crianças em uma brinquedoteca hospitalar, identificando as suas brincadeiras e os seus enredos. Para isso, foram observados os comportamentos lúdicos de 11 crianças, com idades de seis a 12 anos, internadas em um hospital público localizado em Salvador-Ba. Os registros foram feitos no ambiente da brinquedoteca em sessões de 30 minutos. Registraram-se 41 episódios de brincadeiras variadas, associadas com outras atividades lúdicas, tais como a pintura e o desenho, sendo predominante o número de brincadeiras de faz-de-conta, com 19 episódios. Notou-se que, apesar da vivência hospitalar, as crianças não limitaram a sua existência enquanto brincantes, elas envolveram-se ativamente na construção das suas brincadeiras. Dessa forma, este estudo aponta para o protagonismo das crianças, mesmo diante de uma condição de enfermidade, protagonismo esse que a retira do lugar de objeto de cuidados e a coloca enquanto sujeito de desejo e criação.

Palavras-chave: hospital, criança, brinquedoteca, brincadeira.


ABSTRACT

Although infantile hospitalization subjects children to difficult experiences, it is noticed that they keep on in this space, in a lively way, several playful behaviors, such as their play. Considering this aspect, this paper aims to analyze the protagonism of the children in a hospital toy library, identifying their play and their entanglements. For this purpose, the recreational behavior of eleven children, from six to twelve years old, admitted to a public hospital located in Salvador- BA, was observed. The observation records were done in the hospital toy library during thirty-minute sessions. 41 episodes were registered of varied play associated with other playing activities, such as painting and drawing, with a predominance of the number of make-believe play with 19 episodes. It was noticed that, despite the hospital daily experience, it was possible to notice that kids did not change their playful existence, they got actively involved in the development of their play. Therefore, this study points out the children´s active engagement even when faced with sickness, fact that removes them from the place where they are only the object of care, and puts them in the place of subject of desires and creation.

Keywords: Hospital; Child; Toy Library; Play.


RESUMEN

Aunque la hospitalización infantil somete a los niños a vivencias difíciles, se nota que las mismas mantienen en ese espacio, de forma viva, diversos comportamientos lúdicos, como sus juegos. Considerando este aspecto, el presente trabajo tuvo por objetivo analizar el protagonismo de los niños en una ludoteca hospitalaria, identificando sus juegos y sus enredos. Para ello, se observaron los comportamientos lúdicos de 11 niños, con edades de seis a 12 años, internados en un hospital público localizado en Salvador-Bahía. Los registros se realizaron en el ambiente de la ludoteca, en sesiones de 30 minutos. Se registraron 41 episodios de juegos variados, asociados con otras actividades lúdicas, tales como la pintura y el diseño, siendo predominante el número de juegos tipo hacer de cuenta, con 19 episodios. Notase que, a pesar de la vivencia hospitalaria, los niños no limitaron su existencia como participantes de la jugueteria, se involucraron activamente en la construcción de sus juegos. De esta forma, este estudio apunta al protagonismo de los niños, incluso ante una condición de enfermedad. Protagonismo que los retira del lugar de objeto de cuidados y los coloca como sujetos de deseo y creación.

Palabras clave: hospital, niño, juguetes, juego.


 

 

Introdução

O adoecimento de um indivíduo configura-se sempre como uma ruptura nos padrões desenvolvimentais esperados e, ao ocorrer na infância, torna-se ainda mais inesperado. Este adoecimento, quando se associa com uma hospitalização, conduz a criança a uma nova e dura realidade em que há uma considerável restrição de controle sobre os eventos (Motta et al, 2015; Vasques, Bousso, & Mendes-Castillo, 2011). Com a hospitalização, a criança tem um encontro com o desconhecido, com o estranho. Ela é inserida em um ambiente totalmente diverso daqueles experimentados previamente, como a sua casa, rua, parque, escola e creche (Martins & Paduan, 2010). No seu entorno, agora, encontram-se aparelhos, fios, soros, tubos e máscaras de oxigênio (Salgado et al., 2011).

Acredita-se que o internamento provoque uma debilidade no quadro emocional da criança em decorrência do afastamento da sua casa, familiares, amigos, objetos, animais de estimação, brinquedos, além da restrição das atividades assim como a submissão a procedimentos dolorosos e a dietas alimentares imprescindíveis ao tratamento, entre outros (Sloper, 2000).

O internamento também submete as crianças a uma passividade e a um convívio com pessoas estranhas, tais como os profissionais de saúde, outros pacientes, acompanhantes, visitantes, sendo que os membros da equipe ainda são muitas vezes representantes da dor e do sofrimento em virtude de todos os procedimentos (Oliveira, Dantas, & Fonseca, 2004). Contudo, embora haja a perda da saúde, submissão a procedimentos médicos, separação da família, dos amigos, mudança nas rotinas, adequação a novos ritmos, entre tantos outros (Motta et al, 2015), o internamento não paralisa a criança. O brincar, a sua ação simbólica no mundo, permanece vivo dentro do hospital (Reis, 2008).

Diversas pesquisas ratificam que o desejo pela brincadeira se mantém nas crianças em processo de adoecimento e/ou hospitalização (Azevêdo, 2013; Dias, Silva, Freire & Andrade, 2013; Anes & Obi, 2014). Em estudo realizado por Motta e Enumo (2004), por exemplo, as crianças identificaram o brincar tanto como a atividade presente no cotidiano de internamento como ainda o sinalizaram como a atividade principal na qual gostariam de se inserir no espaço hospitalar. Dessa forma, não se mostra imperativa que a brincadeira se faça suspensa na instituição hospitalar assim como a função do corpo que está a receber a assistência médica no internamento. Na verdade, a brincadeira deve aparecer, neste contexto, por ser a atividade que é familiar e de domínio da criança.

A brincadeira é um componente central na vida de qualquer criança, ocupando esse período desenvolvimental de maneira significativa e extensa. Desse modo, a sua existência não pode ser vista como uma coincidência. Para Pellegrini, Dupuis e Smith (2007), ela é uma importante estratégia utilizada pelas crianças para aprender e desenvolver comportamentos adaptativos ao ambiente da própria infância. Ao brincar, as crianças exploram mais ainda os ambientes que lhes são estranhos, desenvolvendo uma variedade enorme de comportamentos.

Durante o brincar, as crianças interagem, decidem, escolhem, propõem, inventam, ocupam; transformando, muitas vezes, o espaço, o tempo e as rotinas institucionais (Menezes, 2014). Entende-se que, a partir do movimento pelo cenário possibilitado pelas brincadeiras, as crianças podem desconstruir ambientes rígidos através da reinvenção criativa do instituído. No hospital, por exemplo, ao brincar, as crianças quebram com a característica de um contexto voltado quase que exclusivamente para a doença (Machado & Neves, 2013) e colocam em cheque a crença de que crianças hospitalizadas se encontram constantemente passivas, inertes e entregues aos seus leitos (Oliveira & Oliveira, 2008).

As crianças têm encontrado saídas e se manifestados como sujeitos no hospital, subvertendo o prescrito e esperado pela instituição. Por meio do brincar, por exemplo, elas aparecem, expressam- se, demonstram o que sentem e quem são, surgindo como sujeitos desejantes, não meros objetos de assistência, de cuidados (Fortuna, 2007). É importante apreender que as crianças seguem como atores sociais e protagonistas das suas vidas, mesmo doentes (Moreira & Macedo, 2003, 2009).

Aponta-se que, no espaço hospitalar em que a subjetividade é tão vetada, a brincadeira aparece como uma das vias de expressão da mesma. No brincar, a subjetividade aparece, as interações e relações acontecem – aqui se tem a sua marca, a sua expressão, o seu movimento, a sua ação. Através da observação dessa atividade dos brincantes, várias vozes podem ser escutadas e, assim, perceber a atuação e participação ativa das crianças no mundo. (Carvalho & Pontes, 2003; Pontes & Magalhães, 2003; Reis, 2008).

Um dos espaços dentro do hospital para o brincar é a brinquedoteca. A partir da lei nº. 11.104/05, tornou-se obrigatória no Brasil à existência desse aparato nas instituições hospitalares que oferecem atendimento pediátrico em regime de internamento. Para efeitos da lei, a brinquedoteca é considerada um ambiente munido de brinquedos e jogos de cunho educativo cuja finalidade é estimular as crianças e seus responsáveis a brincar dentro do hospital.

Angelo e Vieira (2010) complementam a definição trazida pela lei 11.104/05, afirmando que a brinquedoteca não representa apenas um lugar para brincar. Ela é um espaço em que as crianças e adolescentes aprendem a dividir também histórias, sentimentos e emoções relacionados à situação de hospitalização assim como desenvolvem aspectos de socialização e cidadania.

A brinquedoteca tem a capacidade de tornar a instituição mais acolhedora bem como proporciona momentos de socialização e de desenvolvimento das capacidades dos pacientes, como a cognição, por exemplo (Souza & Martins, 2013). Essa perspectiva da socialização traz à tona o hospital como um microssistema também de interação da criança, principalmente aquela portadora de doença crônica.

Sendo um microssistema de interação da criança, é importante entender que a mesma se relaciona efetivamente sim com o espaço hospitalar, inclusive apropriando-se dele para o desenvolvimento das suas brincadeiras visto continuar sendo, apesar do adoecimento e da hospitalização, sujeito que constroe e é construído nos seus múltiplos encontros e interações sociais, onde quer que estes ocorram (Moreira & Macedo, 2009).

Diante dessas relações ativas estabelecidas com o espaço hospitalar, o objetivo do presente estudo foi analisar como as crianças apropriam-se da brinquedoteca de um hospital público da cidade de Salvador -BA, ressignificando a si mesmas como sujeitos de direitos enquanto brincam.

 

Método

Tratou-se de um estudo exploratório descritivo de caráter qualitativo. Esta natureza permitiu um olhar amplo sobre o campo e objeto de estudo, possibilitando uma melhor compreensão dos fenômenos emergidos (Triviños, 1987).

Participantes

Onze crianças, sendo seis do sexo feminino e cinco do sexo masculino, que foram observadas no espaço da brinquedoteca hospitalar, distribuídas nas seguintes idades conforme exposto na tabela 1.

 

 

Os critérios para a seleção dos participantes foram pertencer à faixa etária de 6 a 12 anos e não possuir qualquer tipo de comprometimento cognitivo, que trouxesse algum prejuízo na interação da criança com o seu entorno, acrescentando características que escapavam ao objetivo do trabalho.

Destaca-se que a escolha desta faixa etária se deu pelo fato das crianças desse grupo já terem iniciado contatos mais sólidos e sistematizados com a linguagem, o que lhes possibilita formas mais vastas de comunicação, expressão e percepção do seu entorno, "permitindo um reajustamento dos seus papéis enquanto actores sociais" (Saramago, 2001, p. 12). Aspecto que se fazia necessário para o alcance dos objetivos da pesquisa.

Todas as crianças, que participaram, tiveram inicialmente a sua participação consentida por um responsável através do termo de consentimento livre e esclarecido e subsequentemente pelas próprias através do termo de assentimento. Todos os participantes tiveram a sua identidade preservada através de nomes fictícios.

Local do estudo

A pesquisa foi desenvolvida em uma brinquedoteca de um hospital público da cidade de Salvador-Ba, instituição que presta assistência tanto ambulatorial quanto em unidades de enfermaria e de terapia intensiva a pacientes adultos e pediátricos.

As crianças assistidas nessa instituição são pacientes com diagnóstico de cardiopatia, congênita ou adquirida, em tratamento clínico ou cirúrgico, bem como pacientes nefropatas inscritos no programa de transplante renal, também na condição clínica ou cirúrgica.

A brinquedoteca hospitalar localiza-se no 3º andar, próxima a única enfermaria pediátrica da instituição, em um corredor paralelo. Possui, na sua estrutura, dois armários, sendo um deles repleto de brinquedos e de livre acesso das crianças; já o outro encontra-se repleto de livros na sua divisória externa e possui brinquedos e outros materiais na sua divisória interna, sendo esta última parte indisponível para os brincantes em virtude de permanecer fechada. Além dos armários, na brinquedoteca, há também uma estante de brinquedos com diversas prateleiras, tatames e almofadas assim como mesinhas, cadeirinhas e brinquedos dispersos no chão.

As crianças podem permanecer nesse espaço sem a presença do seu responsável no internamento e têm o direito de levar brinquedos emprestados para a enfermaria, contudo destaca-se que os brincantes não têm acesso livre à brinquedoteca e o seu uso é permitido apenas na presença de algum profissional vinculado à Psicologia Hospitalar.

Procedimento de produção de dados

Os dados foram obtidos, no período de maio de 2015 a fevereiro de 2016, através da observação direta do comportamento durante o período de brincadeira livre na brinquedoteca, no qual as crianças desenvolviam as suas atividades lúdicas sem o direcionamento de adultos.

Para a observação das brincadeiras, foi utilizado o registro cursivo focal, com o uso da folha de registro especialmente construída para a investigação. Por meio desse registro, foram anotadas todas as atividades desenvolvidas pelas crianças bem como as suas falas, os seus pares de contato e interação social.

O registro era iniciado imediatamente após a chegada do sujeito focal na brinquedoteca e foi realizado por uma psicóloga treinada em observação visto que a pesquisadora ficava responsável pelos cuidados aos pacientes, como retorno de algumas crianças à enfermaria para procedimento. Destaca-se que a observadora se deslocava pelo espaço, acompanhando os sujeitos focais, mantendo-se próxima às suas cenas lúdicas para registro dos episódios, porém sem interferir nas atividades.

Cada sessão observacional durava o tempo de 30 minutos e ocorria nos turnos matutino e vespertino em dias distintos da semana, inclusive feriados e finais-de-semana.

Análise dos dados

Os registros observacionais foram recortados a partir da identificação dos episódios de brincadeira, cujos critérios para defini-los como tal foram os sinalizados por Jenvey, V. e Jenvey, H. (2002): (1) comportamentais (afeto positivo, não-literalidade e espontaneidade), (2) motivacionais (prática, comunicação e cooperação) e (3) contextuais (presença de brinquedos e adereços). Vistos em conjunto, tais critérios ofereceram as informações sobre se as crianças realmente brincavam como também do que brincavam.

Com a identificação dos episódios, buscouse categorizar as brincadeiras quanto ao caráter predominante da ação de acordo com a classificação trazida por Morais e Otta (2003), a partir de uma combinação dos critérios de Parker (1984) e Piaget (1945/1971): brincadeiras de exercício físico, de contingência social, de construção, turbulenta, faz-deconta e regras.

Questões éticas

O estudo aqui relatado faz parte de um projeto maior que foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição hospitalar na qual se realizou o trabalho através do CAAE 43112615.9.00000.0045. Todos os cuidados relacionados à proteção e sigilo dos participantes foram tomados, tendo sido respeitada a resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, que trata de pesquisas e testes em seres humanos.

 

Resultados e discussão

Foram realizadas 11 sessões de observação na brinquedoteca, resultando em 330 minutos de registro, e, em todas, houve a observação de atividades lúdicas. Em nove sessões, foram verificadas brincadeiras associadas com outras atividades, tais como a contação de histórias, a leitura de livros, e, em duas, o registro foi exclusivo de pintura e desenho. Desse modo, foram totalizados 41 episódios de brincadeira, sendo 11 de meninas, 22 de meninos e oito de grupos mistos.

Constata-se, no estudo, assim como já citado na literatura (Azevêdo, 2013; Anes & Obi, 2014), a manutenção do desejo das crianças pela brincadeira, mesmo diante de um processo de internamento. Embora todas as reconfigurações impostas pela hospitalização, o brincar permaneceu como a atividade de domínio e de uso das crianças hospitalizadas. Aponta- se que o internamento não pode ser visto como incapacitante para a criança uma vez que se acredita que é sempre possível utilizar e expressar o seu potencial criativo de alguma forma afinal está se falando de um ser em desenvolvimento, ser que existe no espaço e o explora ativamente (Carvalho & Pontes, 2003; Fonseca, 2010; Pontes & Magalhães, 2003).

Mas como as crianças apropriaram-se do espaço, de objetos e do que brincaram? Houve um predomínio das brincadeiras de faz-de-conta, com um total de 19 episódios, seguidos de brincadeiras de regras com dez, de exercício físico com cinco, de contingência social e construção, ambas com três episódios, e turbulenta, com apenas um. As brincadeiras brincadas e as suas respectivas modalidades encontram-se sumarizadas na tabela 2.

 

 

A grande variabilidade de brincadeiras evidencia a inventividade das crianças participantes que superaram o processo de adoecimento e hospitalização, ao qual estavam submetidas, e vivenciaram a experiência hospitalar enquanto sujeitos ativos. A partir da análise da tabela 2, percebe-se que os brincantes envolveramse em diversas brincadeiras, explorando e ampliando os recursos ofertados pela brinquedoteca para o desenvolvimento das suas ações, dos seus movimentos.

Como citado anteriormente, as brincadeiras de faz- de-conta foram as mais registradas no estudo. Desse modo, realizou-se a classificação dos seus temas para um maior detalhamento das narrativas desenvolvidas pelas crianças nos episódios. Foram identificadas dez categorias que se encontram descritas na tabela 3. Alguns episódios apresentaram mais de uma temática, sendo considerado o enredo principal para a definição da categoria a qual a brincadeira pertencia.

 

 

Das categorias de temas relacionados na tabela 3, a referente à alimentação foi a que teve um maior número de episódios, com um total de quatro. Seguidamente, tiveram as relativas a transporte e passeio, com três cada uma, e a da beleza e personagens, ambas com dois episódios. Todas as outras categorias tiveram uma única brincadeira representativa.

A seguir, são exemplificados dois episódios de faz- de-conta:

Episódio: Macarrão com feijão (Alimentação)

Liane dirige-se a um fogão de brinquedo e diz: "Vou fazer um feijão com macarrão". Afasta-se temporariamente do mesmo e fica mexendo numa cesta de brinquedos quando de repente fala: "Eta, tá queimando, tá queimando", retornando imediatamente ao fogão.

Episódio: Meu carrão (Transporte)

Felipe senta no carrinho e pede para Vando que o empurre, porém este segue brincando de bola. Felipe então começa a brincar no carrinho e externaliza: "Dá de ré, dá ré" e emite o som de um carro. Passado um período, solicita de novo a Vando que o empurre e complementa: "Bora, moço. Bora, moço, no meu carrão", emitindo mais uma vez o som de um carro.

Chama a atenção que as categorias dos episódios de faz-de-conta foram majoritariamente de temas do dia-a-dia, com irrisório atravessamento da vivência hospitalar – apenas um episódio representou uma situação de adoecimento. Possivelmente, por ser ofertado na brinquedoteca aquilo que é familiar, de domínio das crianças, as mesmas tenham se sentido, por um momento na instituição, para além da condição de enfermas e trouxeram isso para as suas cenas lúdicas.

Um estudo, realizado em ambiente ambulatorial, também encontrou uma frequência alta de brincadeiras com temas gerais, demonstrando que o espaço e a situação imediata vivida pelas crianças não é determinante para os episódios (Vieira & Carneiro, 2006). Acredita-se que, as mesmas tendem a ampliar os significados de se estar numa instituição hospitalar, logo se portam nas brincadeiras como se estivessem em casa, na escola, na rua, brincando de tudo que lhes cabe.

Como destacaram Moreira e Macedo (2003, 2009), ao mesmo tempo em que o hospital representa um contexto de cuidados com a doença, de intervenções, é também um contexto de sociabilidade das crianças em que relações são estabelecidas e que espaços, onde elas podem agir como crianças normais, são criados por meio do brincar.

As brincadeiras de regras, que apresentaram o segundo maior número de episódios na brinquedoteca, com um total de dez, concentraram-se tanto em atividades que pouco demandavam a movimentação das crianças, o jogo de argolas e o uno por exemplo, como aquelas que provocavam uma intensa movimentação, tais como a tabelinha e a disputa entre carrinhos.

Episódios ilustrativos dessas brincadeiras de regras encontram-se a seguir:

Episódio: 01, 02, 03, 04, 05! Acertei 05!

Carlos encontra-se dentro da brinquedoteca brincando com a mãe de jogo de argolas. Ambos então sentados em um dos tatames do espaço. A mãe de Carlos termina uma jogada e diz: "Vai. Acertei 01, 02, 03". Carlos então começa a contar: "01, 02, 03, 04, 05" e pergunta para a mãe: "Acertou quantos, hein?", que lhe responde: "03. Você ganhou".

Episódio: A disputa entre carrinhos no corredor

Emile e Natália estão fora da brinquedoteca brincando em um dos carrinhos, uma sentada no mesmo e a outra empurrando. Ao retornar à brinquedoteca, Cristina senta-se no outro carrinho, que se encontra próximo ao das outras meninas, e passado um tempo começa a disputa entre os carrinhos de Cristina e o de Emile e Natália em pleno corredor.

Episódio: Tabelinha no corredor

Felipe e Vando pegam uma bola e começam a jogá -la no corredor, passando a mesma um para o outro.

Além de representarem episódios com maior movimentação e maior ação das crianças pelo espaço, as últimas duas brincadeiras demarcaram uma transgressão dos brincantes ao que é frequentemente normatizado como comportamento esperado na instituição hospitalar já que os corpos se envolveram em atividades vigorosas, se movimentaram, se desafiaram, ocuparam áreas/lugares e romperam com o silêncio prescrito. Dessa forma, essas brincadeiras convocam a quebrar com o imaginário coletivo do hospital como uma instituição estática e de crianças adoecidas como assujeitadas a um leito de hospital e as suas terapêuticas, sem qualquer ação, exploração e criação.

Deve-se registrar também que esses episódios promoveram a circulação das crianças para além do espaço interno da brinquedoteca, o que sinaliza uma ampliação consciente desse ambiente pelas crianças no intuito de terem área suficiente para as suas brincadeiras. O corredor tornou-se um espaço concreto de brincadeiras. Inclusive pondera-se que essa expansão dos limites da brinquedoteca tenha influenciado em uma alta frequência de brincadeiras mais vivas, mais ativas no hospital.

A apropriação do corredor demonstra toda a ocupação criativa das crianças, que não desaparece com o adoecimento. Mediante o desejo pela brincadeira, as mesmas expandiram o espaço lúdico ofertado pelo hospital, apropriando-se do seu entorno, transformando, dessa forma, o espaço de dentro e de fora da brinquedoteca em uma só e ampla zona lúdica. Esse movimento percebido nos brincantes da pesquisa ratifica a construção ativa destes, ainda que hospitalizados, sobre os seus espaços de brincadeiras, de fazer e de ser (Adams, 2014; Nicholson et al., 2015).

 

Conclusões

A instituição hospitalar consiste em um lócus de interação, de sociabilidade para as crianças hospitalizadas visto que se localiza para além das intervenções terapêuticas. Nesse espaço, as mesmas também estabelecem e desenvolvem relações com a equipe de saúde, com os acompanhantes, visitantes e, principalmente, com os seus pares, assim como convivem com regras, normas e rotinas. Por ser então um microssistema de interação, as crianças relacionam-se ativamente com o cenário hospitalar, movimentam-se pelo seu espaço, inclusive o movimentando e, muitas vezes, o desconstruindo a partir das suas brincadeiras.

O nosso estudo demonstra que, apesar da vivência hospitalar, as crianças não limitaram a sua existência enquanto sujeitos brincantes. Elas envolveram- se ativamente na construção das suas brincadeiras, adequando-se à realidade institucional, mas também rompendo a tradição disciplinar do hospital ao se envolver em brincadeiras, como a disputa entre carrinhos e a tabelinha em pleno corredor. Aponta-se assim para um protagonismo infantil, mesmo diante de uma condição de enfermidade, e esse protagonismo retira as crianças do lugar estático de objeto de cuidados e as colocam enquanto sujeitos de desejo, que se apropriam, agem, criam e ressignificam.

A partir das constatações acima relatadas, ressalta- se a necessidade de mais pesquisas que busquem explorar esse protagonismo infantil objetivando compreender suas ações, a exemplo do que é feito em outros contextos. Assim, compreender como lidam com os espaços, como estabelecem seus lugares de brincadeira, como estabelecem suas interações entre pares, como negociam com adultos os limites desse protagonismo, entre outras questões, se constitui em interessante programa de pesquisa e interrogações importantes sobre a vivência infantil no contexto hospitalar.

 

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Recebido: 04.09.17 / Corrigido: 29.06.18 / Aprovado: 12.09.18

 

 

1 Mestra em Psicologia/POSPSI/UFBA. Rua Henrique Dias, 319. Salvador/BA. CEP 40415-275. prisbahia@yahoo.com.br.
2 Doutora em Psicologia, Professora Associada do Instituto de Psicologia/UFBA. Largo do Campo Grande, número 33, apt. 201. Salvador/ BA. CEP 40080-121. ilkadb@ufba.br.
3 Mestranda em Psicologia/POSPSI/UFBA. Rua Manoel Barros de Azevedo, 142, térreo. Salvador/BA. CEP 40455-010. iris_araujo25@hotmail.com.

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