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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.38 no.95 São Paulo jul./dez. 2018

 

TEORIAS, PESQUISA E ESTUDOS DE CASO

 

Adolescente e migrante: um estudo sobre a construção da identidade

 

Adolescent and migrant: a study on the construction of identity

 

Adolescente y migrante: un estudio sobre la construcción de la Identidad

 

 

Eduardo Marchese Damini1,I; Hilda Rosa Capelão Avoglia2,I, II

IUniversidade Metodista de São Paulo
II
Universidade Católica de Santos

 

 


RESUMO

O presente estudo teve como objetivo analisar os aspectos psicodinâmicos subjacentes à construção da identidade de uma adolescente migrante. Trata-se de um estudo de caso, envolvendo uma adolescente de 13 anos de idade, migrante do interior do estado da Bahia, estudante da terceira série do ensino fundamental de uma escola pública da região periférica da Região do Grande ABC-SP. Foi utilizada a entrevista semidirigida, o procedimento do Desenho-Estória com Tema (DE-T) e a produção de uma fotografia que a representasse, sendo que, posteriormente, os dados foram analisados qualitativamente em uma perspectiva psicanalítica. Os resultados indicaram sentimentos de perda ligados ao afastamento da família e da terra natal que comprometem a construção de sua identidade gerando angústias diante dos desafios enfrentados para adaptar-se a nova realidade. Ao separa-se do lugar da infância depara-se com a possibilidade do desenvolvimento intelectual, o que a gratifica e enleva, ao mesmo tempo em que a angustia exigindo aprendizados e atitudes diante do ensino que ainda não possui, sendo assim, compelida a construir sua identidade em outro espaço de convivência.

Palavras-chave: Adolescência; Identidade; Migrante.


ABSTRACT

The present study aimed to analyze the psychodynamic aspects underlying the construction of the identity of a migrant adolescent. This is a case study involving a 13-year-old female migrant from the interior of the state of Bahia, a third-grade elementary school student from a public school in the peripheral region of the Greater ABC-SP region. The semi-directed interview, the Design-Story with Theme (DE-T) procedure and the production of a photograph that represented her were used, and later, the data were analyzed qualitatively from a psychoanalytic perspective. The results indicated feelings of loss linked to the separation of the family and the native land, that compromised the construction of her identity, generating anguish in the face of the challenges faced in adapting to the new reality. By separating from the place of infancy, one is faced with the possibility of intellectual development, which gratifies and enlightens it, at the same time that the anguish demands learning and attitudes in the face of the teaching that it does not yet possess, being thus compelled to construct her identity in another space of coexistence.

Keywords: Adolescence; Identity; Migrant.


RESUMEN

El presente estudio tuvo como objetivo analizar los aspectos psicodinámicos subyacentes a la construcción de la identidad de una adolescente migrante. Se trata de un estudio de caso, involucrando a una adolescente de 13 años de edad, migrante del interior del Estado de Bahía, estudiante de tercer grado de una escuela pública de la región periférica de la del Gran ABC-SP. Se utilizó la entrevista semi-estructurada, el procedimiento del Dibujo-Historia con Tema (DH-T) y la producción de una fotografía que la representaba, siendo que posteriormente los datos fueron analizados cualitativamente desde una perspectiva psicoanalítica. Los resultados indicaron sentimientos de pérdida ligados al alejamiento de la familia y de la tierra natal que comprometen la construcción de su identidad generando angustias ante los desafíos enfrentados para adaptarse a la nueva realidad. Al separarse del lugar de la infancia se depara con la posibilidad del desarrollo intelectual, lo que la gratifica y le genera encanto, al mismo tiempo que la angustia exigiendo aprendizajes y actitudes ante la enseñanza que aún no posee, siendo así, obligada a construir su identidad en otro espacio de convivencia

Palabras clave: Adolescencia; la identidad; emigrante.


 

 

Introdução

Adolescência e identidade

A visão psicanalítica descreve que o nascimento, infância e adolescência, até a fase adulta são passagens fundamentais na vida do homem, sendo que na adolescência, tema da presente pesquisa, consideram- se as mudanças físicas e psicológicas da condição de criança (Aberastury & Knobel, 1981). Assim, a adolescência significa a entrada, daquele que há pouco tempo era uma criança, no mundo dos adultos, o que gera sentimentos ambivalentes de desejo e temor. Ainda segundo os referidos autores, nesta fase tão crucial quanto conturbada para a formação do homem surgem mudanças e conflitos psicológicos relacionados a mudanças corporais, tão contundentes nesta época, inauguradas pelo início da puberdade no desenvolvimento infanto-juvenil.

A adaptação da criança à puberdade é um processo psicológico do qual decorre a maturidade física advinda de seu desenvolvimento hormonal e pode continuar seu curso independentemente do adolescente ter ou não alcançado meios psicológicos para se apropriar de tais mudanças corporais, uma vez que é o sujeito desta verdadeira transformação (Blos, 1998).

Knobel (1981) afirma que a adolescência obedece a uma determinação biológica, porém traz consigo um fator psicológico, o que resulta em um estado que denomina "Síndrome da Adolescência Normal". Para o referido autor, a diferenciação do corpo que agora assola o adolescente começou desde seu nascimento, sendo as fases de desenvolvimento verdadeiros saltos discriminativos deste percurso.

Entre 13 e 16 anos é unânime nos estudos sobre adolescência que o indivíduo alcance seu ápice no desenvolvimento motor, o que Aberastury (1983) relacionou com a autoexploração do corpo, incluindo os genitais e formando assim um novo esquema; em conjunto com esta nova percepção de si há também uma nova atividade masturbatória. O fato de, por vezes, os adolescentes parecerem descoordenados motoramente, tem sua origem na atividade masturbatória e nos conflitos provenientes deste corpo cada vez mais adulto. Trata-se de um período de luto pelo corpo infantil, sinalizado pelo sentimento de ambivalência, pois ao mesmo tempo em que experimenta a perda do corpo de criança e seu significado, toma contato com o desejo do corpo adulto, exigindo certa adaptação psicológica a esse novo momento (Aberastury, 1983). A identidade sexual, nesta fase, começa a ser construída através das masturbações com os grupos de amigos, diante dos quais os jogos e o exibicionismo são de grande importância, conforme explicou Aberastury (1983), assim, a criança explora seus genitais e, com isso, assume uma identidade como menino ou menina. O adolescente se protege do incesto por meio do comportamento masturbatório, surgindo, assim, uma nova dimensão a esta atividade que o acompanhou desde sua tenra infância e que em cada uma das fases de seu desenvolvimento ajudou-o a descobrir o próprio corpo, no sentido de incluir nele seus órgãos sexuais. Com a grande e rápida modificação corporal que marca essa fase da vida, seu esquema corporal também sofre sérias e intensas modificações (Aberastury, 1983). Segundo Erikson (1976), o adolescente precisa restaurar a uniformidade e o sentido de continuidade que perdeu, mas agora incluindo nelas sua maturidade sexual; nesse caminho passam a adotar novos ídolos e ideais que servirão de alicerce para sua nova identidade, porém antes disso, alguns adolescentes terão necessidade de revisitar conflitos anteriormente resolvidos.

O meio infantil será substituído pela sociedade, as carências sofridas pela criança serão repetidas pelo adolescente, porém, de um modo mais intenso e sem predeterminações, vividas de forma imediata. Há o receio do adolescente em assumir um compromisso que não vá ao encontro a suas crenças, em paralelo a uma necessidade de fé, já que o alicerce de sua identidade está ainda sendo construído, o que resulta em um comportamento cínico e desconfiado (Erikson, 1976).

Migrante

Sobre o indivíduo migrante, que muda de uma região para outra por tempo indeterminado (Michaellis, 2015) é possível relacioná-lo com o "estrangeiro" descrito por Freud (1919/2016), uma vez que o autor destaca o sentimento de estranheza que existe dentro de si mesmo, denominado unheimlic. Entre o familiar e o não familiar, continua o referido autor, o indivíduo não se reconhece, perde sua subjetividade e, de certa forma, se desorganiza psiquicamente não encontrando um caminho para seu percurso de vida. No que tange aos sentimentos despertados pela vivência desse deslocamento territorial, nem sempre espontâneo, Rosa, Berta, Carignato e Alencar (2009) consideram a necessidade de se pensar nas dimensões dessa escolha, motivadas tanto por questões de natureza política e social, de violência e miséria, como pela necessidade de buscar novas conquistas, romper com modelos de vida inertes e desvitalizados. Nesse contexto, destacam as autoras há fragilidade do vínculo e sentimentos de desproteção. Desse modo, destaca-se a perda das referências que, até então, garantiam a identidade, provocando angústia pelo tempo que levará até localizar-se no novo espaço, com implicações na construção de sua subjetividade, como explicam Berta e Rosa (2005).

O impacto sofrido pelo processo migratório, segundo Durham (1984) alcança toda a família, uma vez que os elementos que determinaram o movimento migratório do indivíduo se relacionam a família como um todo, sendo a dimensão essencial desse processo. O referido autor destaca que a migração ocorre dentro da dimensão das relações interpessoais e, apesar de todos os membros da família serem afetados, no caso das crianças a situação é mais complexa, pois estão mais expostas ao impacto provocado pelo fenômeno.

O Conselho Federal de Psicologia (2003), ao discutir sobre Direitos Humanos, aponta para a desconstrução que marca a trajetória do migrante em sua existência, constituindo-se em uma experiência traumática que interfere diretamente em sua subjetividade.

 

Método

Trata-se de um estudo de caso, qualitativo e interpretativo, que contou com a participação de uma adolescente de 13 anos de idade, que frequentava a 3ª série do ensino fundamental em uma escola pública do município de Santo André, Região do Grande ABC-SP, onde os dados foram coletados.

Como instrumentos, o estudo utilizou-se da entrevista semidirigida (Bleger, 1998; Ocampo & Arzeno, 1986); do procedimento do Desenho-Estória com Tema (DE-T), cujas consignas disparadoras, conforme propõe o procedimento, foram: 1ª. produção: "Desenhe uma adolescente"; 2ª. produção: "Desenhe uma adolescente que mora neste bairro e estuda nesta escola". Na sequência de cada desenho, foi solicitado que a participante contasse livremente uma história sobre o desenho elaborado e lhe atribuísse um título, que também foi registrado por escrito pelo pesquisador. Esta última fase de inquérito e título (Tardivo, 1997; Aiello-Vaisberg & Ambrósio, 2013) complementou as informações trazidas pelo participante no desenho. Além destes procedimentos, solicitou-se à adolescente a produção de uma fotografia que a representasse, considerando-se as afirmações de Justo e Vasconcelos (2009), ao argumentarem sobre o valor da fotografia na compreensão da subjetividade, embora seu uso ainda seja escasso no caso da investigação científica em Psicologia. Alguns estudos reconhecem a fotografia enquanto estratégia metodológica facilitadora da expressão (Neiva-Silva & Koller, 2002; Gil & Tardivo, 2011; Maurente & Tittoni, 2007). Diante da imagem produzida pela participante na máquina fotográfica a ela oferecida, a mesma foi convidada a contar uma história a respeito da imagem que produziu na fotografia e atribuir-lhe um título.

A análise do procedimento de DE-T foi elaborada a partir dos indicadores apontados por Tardivo (1997), considerando-se ainda as interpretações dos aspectos gráficos apresentados por Van Kolck (1984) e Hammer (1991). De modo integrado, o conteúdo gráfico-verbal, envolvendo a entrevista, os desenhos, as histórias narradas mediante os desenhos e a fotografia, foi analisado qualitativamente em uma perspectiva psicanalítica de escola kleiniana. A pesquisa da qual a adolescente participou e de onde destacamos o presente caso, foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Metodista de São Paulo, conforme Parecer Consubstanciado 1.306.794, tendo sido devidamente assinados o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE), assim como o Termo de Assentimento.

 

Resultados e discussão

Inicia-se a apresentação do caso relatando fragmentos da entrevista realizada com a participante que se encontrava no horário de saída da escola e vestida com o uniforme. Contou que morava naquele mesmo bairro junto com sua mãe e o padrasto. A família chegou da Bahia há um ano, o que disse ter sido uma mudança "ruim...porque lá era legal" (referindo-se à sua cidade natal), e porque seu irmão de 10 anos ficou morando na Bahia com sua avó. Segundo a adolescente, lá onde morava não havia aula: "era ruim, a pessoa não aprende".

As observações do pesquisador indicam que a participante mostrou-se tímida e com sinais de ansiedade manifesta, pois recusa-se a dizer sua idade, parecendo envergonhada diante dos pesquisadores e sorri com aparente nervosismo; além disso e demonstra certo incômodo diante da situação. Inicialmente não aceita fazer a fotografia que lhe fora solicitada, mas aquiesce no segundo convite. Em meio ao contato durante a entrevista, a participante se expressa de forma muito entrecortada, dizendo frases como "ai meu Deus"; "eu não sei contar história"; "eu não tenho nada".

Sobre a primeira unidade de produção gráfica ("Desenhe uma adolescente") elabora uma figura humana representativa de uma menina, vista de frente, com ausência de detalhes, das mãos e com cabelos escassos. Diante do desenho, narra a seguinte história:

"Vou inventar qualquer história. Menina muito alegre (nesse ponto a participante balança a folha do desenho com as mãos, faz uma careta e sorri) [...] gostava muito de brincar, gostava muito de passear, de estar com os amigos, e só".

No que se refere a segunda produção gráfica, a adolescente desenha uma figura feminina, muito similar ao primeiro desenho, destacando-se a presença da boca com dentes aparentes. Conta então, a história:

"Eu?[...] Tá horrível (a participante arruma os cabelos, a camiseta e faz uma expressão de aparente preocupação). A menina gosta muito de estudar (se emociona e fica com os olhos marejados). Era muito feliz com seus pais [...] não sei mais dessa história".

A imagem fotográfica produzida é da biblioteca de sua escola, apresentando as estantes com livros coloridos e devidamente organizados. Ao ser solicitada a história, verbaliza: "Era uma biblioteca muito legal [...] pode ser [...] Não estava acontecendo nada, vai ficar sem história". Destaca-se que em nenhuma das produções a participante atribuiu título, nem aos desenhos nem a fotografia, alegando ser uma tarefa difícil, o que concorre com a aparente desorganização psíquica que a participante demonstrou durante todo o contato com o pesquisador; sua resposta diante da solicitação de título para sua fotografia parece revelar a situação: "não consigo nem dar história, também não do título". Quando perguntada porque havia fotografado a biblioteca, ela respondeu: "eu não sei nada de história de biblioteca".

Diante dos dados, a análise integrada envolve o material gráfico, fotográfico e temático, assim sendo, identifica-se que a participante veio de uma região afastada dos grandes centros urbanos do país, com pouco acesso à educação formal e cultural e manifesta conflitos diante de sua condição de migrante, uma vez que metade de sua família não a acompanhou nesta mudança, demonstrando intenso ressentimento em relação ao afastamento da vida familiar, aos familiares e amigos. Tal sofrimento é proposto por Durhan (1984), ao explicar que, embora a migração afete toda a família, são as crianças as mais atingidas, uma vez que a dimensão das relações interpessoais é devastada e, tratando-se da adolescente participante, a migração se apresenta ainda mais impactante neste ponto, pois a priva das bases onde construiu sua identidade até então. Conforme destaca Erikson (1976), nesta fase o meio infantil será substituído pela sociedade, as carências sofridas pela criança serão repetidas pelo adolescente, porém, de um modo mais intenso e sem predeterminações, vividas de forma imediata, havendo receio do adolescente em assumir um compromisso que não vá ao encontro a suas crenças, em paralelo a uma necessidade de fé, já que o alicerce de sua identidade está ainda sendo construído, o que resulta em um comportamento cínico.

Observa-se certa cisão entre sua vida em família na Bahia e sua vida atual em São Paulo ("Era muito feliz com seus pais [...] não sei mais dessa história"). Em seu relato, a adolescente lembra com afeto de seu passado em outro Estado, embora esta recordação esteja perpassada por sentimentos de perda, atribuídas a infelicidade diante da nova vida que teve de enfrentar; neste ponto, podemos destacar o proposto por Freud (1919/2016), ao destacar o sentimento de estranheza experimentado, quando o indivíduo se sente inserido no que não lhe é familiar, não se reconhecendo e perdendo sua subjetividade, o que de certa forma, o desorganiza psiquicamente, não encontrando um caminho para seu percurso de vida. Faz uso da racionalização como recurso diante da angústia justificando a mudança territorial à falta de educação formal em razão da decisão de seus pais em mudar de Estado. Rosa et al (2009) destacam os processos migratórios como sendo, muitas vezes, motivados pela necessidade de progressos, neste caso, pela busca de melhores condições econômicas para a família e, com isso, ampliaram-se as perspectivas educacionais para a adolescente. A identificação do sentimento de perda na análise do material pode ser associada a perda do corpo infantil que, segundo Aberastury (1983), também associam-se a perda da antiga relação que o adolescente tem com seus pais. Neste caso, separou-se dos pais, dos irmãos e do lugar da infância, sendo agora compelida a construir sua identidade em um outro espaço de convivência. A presença de pressões e repressões advindas da escola e da sociedade, neste momento, seriam altamente prejudiciais para o desenvolvimento da adolescente, como adverte a referida autora. O relato da participante nas frases "[...] não sei contar histórias" e "não consigo nem dar história, também não o título" indica a possibilidade que isto esteja ocorrendo, em função de suas dificuldades para acompanhar os processos de aprendizagem escolares.

Por um lado, a adolescente utilizou-se da racionalização defensiva, ponderando que era bom morar na Bahia, mas era ruim não ter acesso a educação, por outro, pela projeção, a participante manifesta grande dificuldade em aceitar sua condição atual de migrante, inclusive atribuindo aos pais a razão de sua inadequação diante das exigências da escola, pois não se sente preparada para os desafios relacionados à aprendizagem escolar, uma vez que se encontra muito atrasada em seus estudos e competências. Com base nos estudos de Berta e Rosa (2005) identifica- se a perda das referências que asseguravam a identidade da participante gerando angústia diante do processo de construção subjetiva na nova escola, o que certamente compromete o desenvolvimento de sua aprendizagem. Seja pelo passado, seja pelo presente, a participante demonstrou lançar mão de mecanismos de defesa como a racionalização, negação e fantasia para lidar com as perdas que cada uma destas distintas fases de sua vida traziam e trazem. De certa forma estes mecanismos de defesa também tem como objetivo aliviar a angústia, além de procurar por gratificação em meio às dificuldades de seus parcos recursos egoicos, possíveis de serem associados a pobreza no grafismo, além de sua própria verbalização usando tempo verbal passado, o que pode ser entendido como uma idealização do que viveu na Bahia, atenuando sentimentos de perda em relação ao afastamento de seu irmão, conforme relatado na entrevista, quando em dado momento expressou: "lá era legal", se referindo a sua vida na Bahia e continuou a entrevista comunicando que seu irmão de 10 anos, ficou morando com sua avó. Na segunda produção, a instrução pode ser entendida como mais mobilizadora em termos psicodinâmicos para a participante, que por sua vez, teve seus sentimentos de perda exacerbados pela identificação com sua vida atual. A mobilização destes sentimentos se mostrou intensa, inibindo ainda mais sua expressão verbal, como observado nas frases: "eu não sei contar história"; "eu não tenho nada", sendo este um dos traços relevantes observados na participante durante o período da aplicação dos procedimentos. No segundo relato, observamos certa similaridade com a primeira história inventada pela participante, porém, destacou- se esta produção pela citação aos pais como provedores da felicidade da personagem.

Essa sensibilidade intensa pode também estar relacionada em termos gráficos, pois, em ambos os desenhos elaborados observa-se a ausência do pescoço nas figuras humanas significando a perda do controle, desamparo perante os impulsos e imaturidade, como indicou Van Kolck (1984), ou ainda, certo grau de imaturidade como interpretou Buck (2009). A adolescente recobrir e reforçar as linhas nos desenhos com traços mais intensos denota sinais de elevada ansiedade (Van Kolck, 1984).

Sobre sua fotografia, retratou a biblioteca da escola, que pode ser compreendida como a condensação das inquietações apresentadas em suas outras produções, no caso, as gráficas, pois, a biblioteca, por sua própria natureza, encerra a imagem representativa de um espaço de conhecimento e organização, características ambicionadas pela participante, expressadas anteriormente. Além disso, a biblioteca como imagem escolhida representa o ganho obtido pela participante ao mudar de Estado, porém, quando verbaliza: "Não estava acontecendo nada, vai ficar sem história", pode-se compreender que a adolescente experimenta intensos sentimentos de angústia, diante da expectativa de seu desenvolvimento em relação ao aprendizado escolar, representando simbolicamente a cisão, também percebida nos relatos anteriores, referentes a primeira e a segunda produção gráfica. Também podemos considerar que esta angústia interfere e amplia a inibição de sua expressão verbal, uma vez que se identificou certo constrangimento diante de seu sotaque nordestino e vocabulário escasso.

A inibição e o constrangimento analisados acima podem articular-se ao sentimento de inferioridade, desconfiança e inadequação manifestados por um severo bloqueio, como explica Van Kolck (1984) ao relaciona-los com a atitude negativa e a resistência perante a tarefa proposta: "ai meu Deus"; "eu não sei contar história"; "eu não tenho nada"; "eu não sei nada de história de biblioteca"; "não estava acontecendo nada". Da mesma forma, ainda conforme a mesma autora, a escassez na representação do desenho dos cabelos como descrito nas duas figuras, demonstra insegurança e certa debilidade, diferentemente do cabelo abundante e comprido que seria esperado para a produção gráfica da adolescente do sexo feminino, como é o caso da participante, como explica a referida autora. Esse estado emocional articula-se a condição de migrante marcada pela fragilidade de vínculos e pelo sentimento de estranheza, como argumenta Rosa et al (2009) e, ainda, como o proposto por Erikson (1976), o adolescente precisa restaurar a uniformidade e o sentido de continuidade que perdeu, mas agora, incluindo sua maturidade sexual, sendo que neste caminho passa a adotar novos ídolos e ideais que servirão de alicerce para sua nova identidade, porém antes disso, alguns adolescentes terão necessidade de revisitar conflitos anteriormente resolvidos.

Observa-se ainda o primitivismo nas produções gráficas da participante, o que nos remete a considerar que a relação da criança com seu corpo trás um importante cabedal de informações acerca de sua estrutura egoica, pois, a elaboração diante da perda do corpo infantil pode ser expressa pelo desenho (Aberastury, 1983). Estes aspectos nos possibilitam pensar que a participante atravessa um período de latência da sexualidade, como explica Aberastury (1983), quando a criança vai se desprendendo de sua família e se voltando para as atividades escolares. Entretanto, especificamente neste caso, o contexto de vida da participante impôs seu desligamento da família e a vinda da Bahia para São Paulo, não se constituindo, portanto, em uma situação favorável e em conformidade com o percurso do desenvolvimento, mas sim, como uma condição que foi imposta e geradora de desconforto, sentimento de perda e menos valia. O processo de construção da identidade da participante mostrou sinais de comprometimento, haja vista que foi desencadeado no interior da Bahia em condições socioeconômicas precárias, abalado pelos desafios que agora tenta superar na atual cidade e escola, onde vive e estuda, como na fala: "Era muito feliz com seus pais [...] não sei mais dessa história". Segundo Aberastury (1983), o adolescente precisaria tanto da vigilância dos pais quanto da necessidade de afastar-se deles e, afirma ainda que esse conflito será mais ou menos intenso, a depender da qualidade de sua organização psíquica desde o início da vida até os dias atuais, sendo atravessada pela cultura, pela sociedade e por sua própria história.

A relação estabelecida com a escola, incluindo a dinâmica psíquica marcada pela presença de defesas primitivas, se justifica também pelo fato de que a adolescente parece não apossar-se dos estudos como uma possibilidade de ascensão social, como seria esperado para jovens de classe social menos favorecida (Domingues & Alvarenga, 1997). Os autores discutem que os estudos se constituem na maior atribuição da adolescência. Neste caso, ao vir para São Paulo por decisão de sua família, parece cumprir o papel prescrito pelos pais, contudo, a partir do material analisado, identificou-se que ela mesma não se apropria dessa perspectiva.

O processo de aprendizagem, valores e conhecimentos adquiridos na primeira fase de sua vida, quando residia na Bahia, mostram-se insuficientes para abarcar as exigências do cotidiano atual. Concorrendo com esta situação, a fase da adolescência vivida pela participante, os valores de sua infância, que já se mostravam abalados pelas diferenças culturais, reclamam por outros nos quais possa se apoiar para elaborar as demandas de seu desenvolvimento psicológico, gerando uma sobrecarga egoica e dificultando o aprendizado que recebe na nova escola e no novo meio social no qual está inserida.

 

Considerações finais

O objetivo deste estudo voltou-se para a compreensão da construção da identidade de uma adolescente migrante, assim, a análise integrada do material gráfico, temático e fotográfico produzido pela participante apontou para uma identidade atravessada pelo impacto da mudança territorial e suas implicações na subjetividade.

A construção da identidade pressupõe a necessidade de relações sociais e familiares, ou seja, certa noção de pertencimento e convivência que neste caso, a participante parece não poder contar, o que desencadeia fragilidades na organização psicoafetiva. Articulada tal circunstância aos fatores sociais e aos fenômenos relativos às relações interpessoais advindos do processo migratório, potencializam-se a perda de referenciais para a construção de sua identidade, dificultando a configuração de vínculos nesse novo espaço.

Destaca-se ainda que a utilização da expressão fotográfica, atrelada a procedimentos gráfico temáticos, mostrou-se favorável e enriquecedora na prática investigativa adotada neste caso, podendo ser aplicada a contextos similares tanto no âmbito da pesquisa quanto na compreensão clínica. A reflexão gerada pela realização deste trabalho assinala a importância de estudos na perspectiva desenvolvimentista, uma vez que deslocamentos migratórios incluindo crianças e adolescentes são frequentes em nosso país, motivados por fatores sociais e econômicos e, não raramente, provocando experiências traumáticas.

 

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Recebido: 03.08.18 / Corrigido: 29.08.18 / Aprovado: 03.09.18

 

 

1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: eduardodamini@gmail.com , endereço: Av. Dom Jaime de Barros Câmara, 1000, Planalto, São Bernardo do Campo - SP ,CEP: 09895-400, celular: (11) 9.9862.7540.
2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo e da Universidade Católica de Santos. E-mail: hilda.avoglia@metodista.br , endereço: Rua José Benedetti, 237 apto.102, São Caetano do Sul – SP – CEP 09531-000, celular: (11) 9. 9635.5506.

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