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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.39 no.97 São Paulo jul./dez. 2019

 

II. RESENHAS DE LIVROS

 

Trinca, Walter. O filósofo ou A procura do encanto da vida. São Paulo: Lemos Editorial, 1997, 1ª.ed.. Curitiba: Appris, 2017, 2ª. ed., rev

 

 

Denir Camargo FreitasI

IMestre em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo e membro filiado ao Instituto Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

 

 

TRINCA, WALTER. O filósofo ou A procura do encanto da vida. São Paulo: Lemos Editorial, 1997, 1ª.ed.. Curitiba: Appris, 2017, 2. ed., rev..

"Cores esmaecidas, Sol poente,
Verde-ouro fugidio, vegetação rasteira.
Flores fugazes balançando-se à brisa.
Na visão, a leveza de um perfume;
No mundo, as cores da fantasia;
E na alma, um vivo movimento.
O exterior recebe o interior:
Fluorescentes pétalas de ametista"
(Tomás Andreas, p.260. 2017)

Agradeço ao Walter Trinca pela oportunidade de resenhar este seu corajoso trabalho sobre a procura do encanto da vida. Dentre os vários livros por ele escritos com relevantes contribuições à teoria psicanalítica, trata-se, desta vez de um livro que faz parte de uma trilogia2, em que a psicanálise está nas entrelinhas e não expressa na forma teórica e conceitual. O romance prima pela mistura instigante de vários gêneros literários, o de prosa, diário, poesia e ensaio. Ao ler o livro a primeira associação que me ocorreu foi do filme "Os Belos Dias de Aranjuez", do Wim Wenders, lançado no Brasil em 2017, que assisti e fiquei muito bem impressionada. No norte da França, um escritor alemão começa a escrever os esboços para o seu próximo livro e desenvolve, como ponto de partida, um diálogo entre um homem e uma mulher, que se encontram em um belo jardim para discutir, entre outras coisas, questões como sexualidade, amor, infância e também suas memórias e a vida em si. Os personagens falam o tempo inteiro sobre imagens que não existem, e nem poderiam existir, como a sensação de um raio de sol banhando o corpo, a tristeza do fim de um relacionamento, um dia em Aranjuez, na Espanha. Ao invés de retratar os sentimentos de maneira referencial e óbvia – mostrando, por exemplo, o raio de sol e o castelo espanhol – Wenders, assim como Walter em seu livro, apresenta uma narrativa movida por imagens mentais. Vemos o autor do livro no filme, diante de uma velha máquina de escrever numa saleta no interior da casa observando, através da porta aberta, seus personagens dialogando no jardim. Da mesma forma conseguimos nitidamente imaginar o protagonista do O Filósofo, Tomás Andreas, narrando seus amores e seus conflitos existenciais mais profundos num jardim, com belas flores, pássaros, borboletas e até podemos "escutar o vento", tal é a narrativa clara e descritiva usada por W.Trinca. A ampliação da mente além da sensorialidade, do eu sensorial, a luta para se libertar da coisificação e chegar à humanização, à imaterialidade, à espiritualidade, são os temas centrais da trama. Walter, através de seu personagem, constrói numa linha do tempo, um arcabouço constitutivo das lembranças conscientes do seu personagem na tentativa de diferenciar repetição e ressignificação:

"Mas por que isso vinha de novo à tona da consciência? Tanto tempo já se passado! Repetição? Ressignificação? Reesquecimento? Vistos à distância, os fatos passados pareciam perder a sua realidade. Subsistiam somente as lembranças e os sentimentos, que se entranhavam e se metamorfoseavam no seu ser atual. Os acontecimentos em si mesmos desfizeram-se em poeira. Entretanto tinham ainda um sentido...." (p.116).

Estão expostas várias questões reflexivas sobre filosofia, cultura e arte na formulação do protagonista. O ganho do leitor com tudo isso é grande com a imersão nas questões que ora atormentam e ora deliciam o ser humano desde as mais básicas até as mais complexas. A estória se divide em cinco capítulos. Apenas na primeira edição todos com uma ilustração de abertura do capítulo com magníficas aquarelas de David Cimrot3. O protagonista é um homem de seu tempo, inserido no atual show do eu, que ao dar-se conta de que vive num "mundo escuro, degradante em cegueira, trevas e carência de sentido."(p.19)o leva a um sentimento de aprisionamento e invasão pela concretude, o que o impede de criar, transformando-se num homem-coisa, como vemos no trecho abaixo:

"Nestes meandros de abandono, caminhante da aurora e do crepúsculo, Tomás Andreas observava. O quê? Indescritivelmente vulgar era a azáfama dos mais fortes, que corriam de cá para lá, como formigas excitadas, para se enriquecer, consumir, manobrar, dominar... Superficiais e grosseiros, causavam a impressão de estar participando de um esporte, de um divertimento. Os mais fracos entupiam-se de baboseiras, tinham as opiniões da moda e comoviam-se com os bem-encenados espetáculos de mídia. (...) De todos, caso se esperasse uma percepção mais fina, acurada e verdadeira, morreriam de tédio. Não saberiam fazer nada da vida sem os entretenimentos."(p.20)

Tomás é um 'livreiro', herdara a livraria do pai, que nos finais de semana pintava quadros. Casado e com um filho adulto jovem. Um homem atormentado que está em busca de si mesmo para encontrar o encanto da vida:

"Dentro de mim há muita morte. Entrego-me a ela, não à vida. Por isso a morte me ronda e espreita. Habitualmente, eu 'vivo a morte', e isso é o que há de mais cruel em tudo o que faço comigo. Se antes não havia alternativa, agora parece evidente que posso mudar, usando a vida que está dentro de mim e em toda parte" (p.18).

Dá-se conta de que sua vida está numa fase de esterilidade criativa, de materialidades, de uma rotina insípida numa cidade de "pessoas tristes, feias, sem rosto, desnutridas, (....) como animais protegendo-se da violência (....) grave e profunda; que vinha de séculos de exploração, abuso, falta de consciência humana e brutalidade"(p.19). Os capítulos desenvolvem uma trama, na busca do personagem por maior integração psíquica – e nós vamos aproveitando e refletindo também - em que tudo é válido para exemplificar, fortalecer a ideia, seja a mitologia "Tomás vencia-se a si próprio. Não estando preso a grilhões, atingia momentos de paz e de luminosidade, nos quais a roda de Íxion era calçada" (p.229). Ou na arte musical: "A realidade em estado puro – como na melhor música de Mozart – era reencontrada em novos símbolos" (idem). Na psicanálise:

"Se Tomás fosse Freud, que tivesse de responder a Einstein sobre o que dirigia a evolução psíquica, de modo a tornar o homem mais forte contra as psicoses de ódio e destruição, diria seguramente que era a diminuição do acúmulo de sensorialidade na mente" (p.171-172).

Na poesia, em que o personagem comovido cria:

"Uma paisagem de silêncio
Criada para a eternidade.
Recordarei com a saudade
E a lonjura de espírito
De quando o tempo cessa.
A vida é marcada por cenas simples:
Uma herdade na campina,
Uma montanha primaveril,
Um bosque, uma tempestade,
Um sorriso meigo de criança
Que nos dizem muita coisa,
Porque nelas o tempo para,
E se revelam silentes para sempre.
Somos esse silêncio e essa paz."(p.139).

Numa leitura instigante acompanhamos o desenvolvimento das questões existenciais de Tomás tentando a expansão de sua mente ao dar-se conta de que

"Havia praticamente dois tipos de memória. Uma era sensorial, cumulativa e condicionada ao tempo. A outra era não sensorial, móvel na corrente vivencial e espontânea nos processos de experiência. A primeira tendia ao anacronismo paralisante e ao esmagamento da individualidade. A segunda conferia graus crescentes de hominização."(p.277)

Enfim, penso ser importante destacar que as questões do protagonista também nos reportam a várias questões filosóficas, principalmente às questões heideggerianas na busca do sentido da vida e nos ajudam a pensar as tarefas do psicanalista numa reflexão sobre a natureza do ser que ultrapassa o processo histórico. O cotidiano que provoca desenraizamento, esquecimento de si, tédio, vida funcionalizada, uma vida de ocupação que quanto mais ocupada mais é sentida como desprovida de sentido, causadoras, bem sabemos, de tantos sintomas (Figueiredo, L.C.1994).

Este livro é uma ode à vida, à reflexão, o que vem de encontro à nossa constatação de que atitudes como esperar e refletir tornaram-se atualmente obsoletas, pois tudo tem que ser realizado rapidamente, pense rápido, coma rápido, durma pouco, decida agora, aproveite já ... Sem pensar, as chances de erro são maiores. Além do erro, o medo de errar também provoca a tristeza, e a tristeza tem que ser abafada, negada. Sem pensar, corremos o risco de nos acomodarmos com uma vida insatisfatória, sem encantos. Então, surge a busca por artifícios que suplantem a tristeza, a insatisfação, tais como o excesso de tempo em conexão com a Internet e os aplicativos da rede social como o Facebook e Whats App, que dão a ilusão a seus usuários de que não estão sós (Freitas, D.C. 2018). Como se estando sós fôssemos apenas nos dar conta de nossa finitude, do nosso ser para a morte. É exatamente aí, nesta busca, que podemos colocar "O filósofo ou A procura do encanto da vida", uma mensagem de esperança, devir, amplitude, impresivibilidade e ao contrário daquilo que mais tememos, de possibilidade de uma visão da infinitude. Concluo - sem chances estar enganada porque me baseio na experiência própria - que o leitor é capturado por este romance de um amor consigo próprio em que Walter nos mostra toda sua implicação com a psicanálise, nele encarnada, sem fazer uso de explicações de conceitos sobre a teoria ou a técnica. O protagonista encontra sua resposta à questão central sobre a dolorosa busca pela vida que um dia perdeu, ou nunca teve, o seu encanto. E nós, psicólogos e psicanalistas, que sempre estamos em busca de ampliações mentais encontramos neste livro uma linguagem capaz de mediar a difícil locução na dicotomia entre sensorialidade e imaterialidade.

 

REFERÊNCIAS

Figueiredo, L. C. (1994). Escutar, recordar, dizer: Encontros heideggerianos com a clínica psicanalítica. São Paulo: Escuta.         [ Links ]

Freitas, D.C. (2018). A tristeza e a inveja na obrigação de ser feliz. Ide: psicanálise e cultura/Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, v.40, nº.65, p.97-107.         [ Links ]

 

 

2 A arte interior do psicanalista (1988) e A etérea leveza da experiência (1991).
3 David Cimrot (1944-2007) – Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e artista plástico conceituado com obras em acervos oficiais em Cuzco, Pequim, Itália e E.U.A, entre outros. Sua obra "A Morada do Tempo" encontra-se no acervo artístico da assembleia Legislativa de São Paulo.

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