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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.39 no.97 São Paulo July/Dec. 2019

 

IV. MEMÓRIA

 

Vida e Obra de Roberto Mange

 

 

Escrever sobre a vida e a obra de Roberto Mange é tarefa não somente importante, como também agradável. Escrever sobre esta eminente personalidade é reconhecer seus méritos de empreendedor incansável, de pessoa visionária, de profissional atualizado, de professor emérito: engenheiro, com amplo sentido humanístico, identificado plenamente com os valores e necessidades do nosso país. Difícil é resumir, em poucas linhas a grande obra de Mange, mas o faço com autêntica satisfação, destacando suas valiosas realizações que perduram, muitas delas, até nossos dias.

Nascido na Suíça, com formação técnica universitária e estudos complementados em outros países europeus, como Portugal e Alemanha, chegou ao Brasil em 1924, quando contava 27 anos, a pedido do Prof. Francisco de Paula Souza, então Diretor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, para, na qualidade de Professor Convidado, lecionar nesta instituição. A disciplina que lhe era designada, Mecânica Aplicada às Máquinas, foi ministrada por ele durante, nada menos, que 40 anos.

Roberto Mange foi muito além dessas atividades docentes, marcando desde seus primeiros tempos no Brasil, um movimento decisivo para o progresso do ensino industrial no país. Transcendentes foram suas realizações ao longo dos 42 anos, em várias frentes que enfeixaram na Psicologia como ciência e profissão. Faleceu no Brasil. em um período ainda altamente produtivo em sua vida profissional, aos 69 anos de idade (31-05-1955).

Em sua obra, altamente frutífera e de múltiplas realizações, como docente diretor, organizador e administrador de organizações, além de promotor de serviços comunitários, destacam-se reconhecidos valores de humanista e psicólogo. Sua energia, determinação, organização e visão preditiva, estiveram sempre presentes em suas ações.

Já em 1924, nos seus primeiros tempos em nosso país, fundou o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Profissional de Mecânica. Seis anos após, vemos Mange organizando o Serviço de Ensino e Seleção Profissional na Estrada de Ferro Sorocabana, onde se revela como verdadeiro psicólogo, valorizando e aprovando o uso de provas psicológicas para a seleção de aprendizes. No ano seguinte (1931), Mange se envolve em outro empreendimento de vulto. Juntamente com paulistas ilustres, funda o IDORT, com à finalidade de aplicar os princípios e processos de organização científica do trabalho, em nossas empresas.

Em 1934, Mange organiza e ministra o primeiro curso de Psicotécnica, na recém fundada Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde divulgou, entre outras abordagens, a então chamada Administração Científica do Trabalho, em vigor na época. Esse curso formou vários profissionais que passaram a utilizar os conceitos aprendidos em organizações de São Paulo. Nesse mesmo ano, participa destacadamente da fundação do Centro Ferroviário de Ensino e Seleção Profissional. Centro que foi praticamente um desdobramento do Serviço de Ensino Profissional da Estrada de Ferro Sorocabana e se destinava ao preparo de mão-de-obra para as ferrovias brasileiras. Em 1937, o incansável Mange organiza o Gabinete de Psicotécnica, na Escola Técnica "Getúlio Vargas", aqui em São Paulo. No mesmo ano, funda o Gabinete de Psicotécnica no Instituto Profissional Masculino de São Paulo.

Todas essas atividades, esse dinamismo, essas realizações notáveis, projetaram Mange no cenário do país e chamaram a atenção dos dirigentes, em nível federal. Assim, ele foi convidado a participar dos estudos relativos ao preparo e desenvolvimento da mão-de-obra para a indústria, no Brasil. Esses contatos e trabalho resultaram na fundação do SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, em 1942, Nesse mesmo ano, foi designado primeiro Diretor Regional do SENAI - 6º Região. Foi tão produtiva sua atuação frente a este trabalho, onde permaneceu até seu falecimento, que, nesses 13 anos de atuação, Mange deixou como legado e em funcionamento, 27 escolas SENAI, na 6º Região, que abrangia, além do Estado de São Paulo, também Mato Grosso, Goiás, alcançando até o então território de Guaporé, hoje Estado de Rondônia. A vocação de psicólogo desse eminente profissional o incentivou a implantar, no SENAI; o Serviço de Seleção e Orientação Profissional, ainda hoje em pleno funcionamento.

Em 1945, Roberto Mange foi convidado pela Profa. Annita de Castillo Cabral, docente do Departamento de Psicologia, da então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, para participar de uma reunião, cujo objetivo era criar uma associação de Psicologia em São Paulo. A entidade foi fundada nesse mesmo ano, denominando-se Sociedade de Psicologia de São Paulo, tendo sido Mange eleito seu primeiro presidente. Tal associação está completando hoje 56 anos de existência e continua ativa.

Mange ainda encontrava tempo para dedicar-se a entidades de caráter social e assistencial. Assim prestou sua colaboração à Liga das Senhoras Católicas, ao Educandário Dom Duarte, à Associação de Assistência à Criança Defeituosa e ao Instituto de Menores do Estado de São Paulo. Não podemos deixar de mencionar, também, a contribuição do extraordinário colega por ocasião da Revolução de 1932. Nessa oportunidade, valendo-se de sua criatividade, conhecimentos técnicos, dinamismo e coragem (visto que não era cidadão brasileiro), liderou equipe na construção de máquinas para fabricar material bélico com a urgência que a situação requeria. Quatro anos depois, o Governo do Brasil concedeu-lhe, merecidamente, o título de Cidadão Brasileiro.

Com seu profundo sentimento humanístico, implantou, no SENAI de São Paulo, o Serviço de Adaptação Profissional de Cegos, em 1953. Esse serviço tornou-se modelo para outros órgãos regionais do SENAI, ao facilitar que centenas de cegos e amblíopes fossem contratados por empresas industriais.

A verdade é que essa decisão de Paula Souza de convidar Mange, e ele aceitar vir para o Brasil, significou uma enorme contribuição em várias áreas, permitindo mudar os rumos do ensino profissional e de incentivar a pesquisa e as aplicações da ciência psicológica acelerando, fortemente, o processo de modernização de nossas ferrovias e de nosso parque industrial. Mange teve a antevisão do crescimento do transporte ferroviário no Brasil, dadas as nossas dimensões continentais, o que teve seu período áureo, estando hoje em decadência.

Atualmente, nossa malha ferroviária, que não pode a rigor ser chamada de malha, melhor seria dizer: nossa sucata ferroviária; está clamando aos céus pela vinda de um novo Mange para tirá-la dessa condição desalentadora, a que foi relegada. A consequência direta desse desinteresse governamental é o preço que o país está pagando pelo transporte de cargas pesadas, por rodovias. Isso sem falarmos no transporte de passageiros de média e longas distâncias, em que pasmem, foi extinto nas ferrovias paulistas.

A obra de Mange não desapareceu, os resultados de seu portentoso trabalho se mantém em sua essência, como a grande e efetiva realização do SENAI, e outras obras de significação por ele instaladas e orientadas. Deixou escola e seguidores, como o signatário desta exposição. Mesmo já tendo decorrido 46 anos de seu falecimento, estão à vista de todos suas realizações e produzindo frutos. A atuação de Roberto Mange, como psicólogo, abriu caminhos para o desenvolvimento da Psicologia do Trabalho no Brasil, formou profissionais de renome, estimulou a criação de serviços de Psicologia nas empresas, promovendo, desse modo, novos campos de atuação para os psicólogos que o sucederam.

Considero grande honra para a Academia Paulista de Psicologia contar, entre seus Patronos, com esse brasileiro ilustre, que se chamou ao nascer, Robert Auguste Edmond Mange.

 

Waldecy Alberto Miranda
Cadeira nº 15, "Roberto Mange"
(Boletim APP ano XXI, nº 2/01, pp.4-6)

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