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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

Print version ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.40 no.98 São Paulo Jan./June 2020

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

O brincar e a escola: um estudo sobre o lúdico no primeiro ano do ensino fundamental

 

Playing and school: a study of the ludic in the first year of elementary school

 

El juego y la escuela: Un estudio sobre lo lúdico en la transición de la educación fundamental

 

 

Tiago Efrem AdreetaI; Luana Carramillo GoingII; Cleusa Kazue SakamotoIII

IMestre em Práticas Docentes no Ensino Fundamental pela Universidade Metropolitana de Santos (UNIMES). Professor de Educação Básica da Prefeitura de Santos-SP. Rua São Paulo, 40A, Vila Mathias, Santos/SP. E-mail: prof.tiagoefrem@gmail.com, ORCID 0000-0002-8394-321X
IIDoutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano e Psicologia Escolar – IP/USP; Doutora em Educação: Currículo – PUC/SP. Professora do Mestrado Psicologia, Desenvolvimento e Políticas Públicas da Universidade Católica de Santos. Av. Conselheiro Nébias, 300, Vila Mathias, Santos/SP. E-mail: luanagoing@gmail.com, ORCID 0000-0002-2884-0920
IIIDoutora em Psicologia do Desenvolvimento Humano – IP/USP. Professora do Curso de Comunicação Social e Filosofia da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM) – Rua Major Maragliano, 191, Vila Mariana/São Paulo. E-mail: cleusa.sakamoto@geniocriador.com.br, ORCID 0000-0001-8727-9400

 

 


RESUMO

As matrículas de crianças em período integral vêm gradativamente aumentando, culminando na diminuição do tempo em espaços externos, como a rua. A pesquisa buscou verificar, por meio de levantamento bibliográfico, o porquê da relação tensa entre o brincar no primeiro ano do ensino fundamental com início da alfabetização A metodologia foi uma revisão bibliográfica sistemática com o levantamento na Capes e BTDB de teses e dissertações defendidas no período de 2013 a 2018. Foram selecionados dez trabalhos. Os resultados encontrados foram organizados em duas categorias: o brincar e a alfabetização em turmas de primeiro ano; o lúdico e o ensino fundamental de nove anos, sendo a última subdividida em pesquisas sobre o lúdico na perspectiva do professor e na perspectiva da criança. As pesquisas revelaram que os professores vivenciaram uma realidade em que brincar acontecia em casa e na rua, tendo a escola como espaço exclusivamente de transmissão de conhecimentos, enquanto na atualidade é preciso que o docente embase-se no conhecimento sobre o lúdico para o constructo de uma escola brincante, no qual os saberes estejam ancorados no entrelaçamento entre brincar e aprender, com foco no desenvolvimento e aprendizagem infantil.

Palavras-chave: brincar; lúdico; alfabetização; ensino fundamental; formação de professor.


ABSTRACT

The enrollment of full-time children has been gradually increasing, culminating in a decrease of time in outdoor spaces, such as the street. The research sought to verify, by means of a bibliographic survey, the reason for the strained relationship between playing in the first year of elementary school with the beginning of literacy. The methodology was a systematic bibliographic review with the survey at Capes and BTDB of theses and dissertations defended in the period from 2013 to 2018. Ten papers were selected. The results found were organized into two categories: play and literacy in first-year classes; ludic and elementary education for nine years, the latter being subdivided into research on ludic from the perspective of the teacher and from the perspective of the child. The researches revealed that the teachers experienced a reality in which playing happened at home and on the street, with the school as a space exclusively for the transmission of knowledge, whereas nowadays it is necessary that the teacher bases himself on the knowledge about the ludic for the construct of a playful school, in which knowledge is anchored in the intertwining between playing and learning, with focus on child development and learning.

Keywords: play; ludic; literacy; elementary school; teacher training.


RESUMEN

Las inscripciones de niños en tiempo integral ha ido aumentando gradualmente, resultando en la disminución del tiempo en espacios externos, como la calle. La investigación buscó verificar, por medio de una encuesta bibliográfica, la razón de la relación tensa entre jugar en el primer año de la escuela primaria con el comienzo de la alfabetización. La metodología fue una revisión bibliográfica sistemática con la encuesta Capes y BTDB de los trabajos de grados defendidos en el período de 2013 a 2018. Se seleccionaron diez obras. Los resultados encontrados se organizaron en dos categorías: juego y alfabetización en las clases de primer año; lo lúdico y la educación fundamental durante nueve años, esta última subdividida en investigación lúdica desde la perspectiva del profesor y la perspectiva del niño. Las investigaciones revelaron que los docentes experimentaron una realidad en la que el juego ocurría solo en los espacios de casa y en la calle, tendiendo a la escuela como un espacio exclusivo para la transmisión de conocimientos, mientras que en la actualidades necesario que el docente se base en el conocimiento sobre lo lúdico para la construcción de una escuela lúdica, en la que el conocimiento está entrelazado entre el jugar y aprender, con un enfoque en el desarrollo y aprendizaje infantil.

Palabras clave: jugar; lúdico; literatura; enseñanza fundamental; formación del profesorado.


 

 

Introdução

Com as mudanças ocorridas na sociedade brasileira atual, à escola não é permitido manter-se a mesma de décadas atrás. As crianças aproximam-se cada vez mais das informações por meio da tecnologia e, em uma proporção diretamente inversa, as brincadeiras que envolvem o corpo e a coletividade diminuem. As justificativas recaem sobre a crescente violência urbana que impõe um confinamento em ambientes fechados e sobre as famílias cada vez menores, cujos membros, preocupados em conseguir sustento, permanecem fora de casa grande parte do tempo. Nesse cenário, vêm crescendo o número de matrículas das crianças em escolas de tempo integral, sendo esse o espaço de maior integração com outras pessoas, principalmente de idades próximas. Diante do exposto, percebe-se a necessidade de proporcionar relacionamentos significativos no âmbito escolar, com trocas que incluam brincadeiras e contato físico, principalmente no primeiro ano, quando a idade e o estágio de desenvolvimento das crianças ainda enaltecem experimentações cognitivas e expressões sociais e afetivas que privilegiam a concretude das situações. Entretanto, nem sempre essa necessidade infantil é levada em conta. O presente estudo busca estudar por meio de levantamento bibliográfico, o porquê da tensa relação entre a entrada no ensino fundamental e o brincar, cujo período se caracteriza por experiências lúdicas espontâneas no cotidiano das crianças, que deixaram recentemente a educação infantil, e ainda interagem e se comunicam predominantemente por meio do lúdico.

Chegou a hora da alfabetização! Acabou a brincadeira!

A criação do primeiro ano do ensino fundamental a partir da Lei º 11.274 (Republica Federativa do Brasil, 2006), com prazo de implantação até 2010, determinou o ingresso das crianças aos seis anos de idade, com vistas a atingir resultados superiores àqueles encontrados quando a entrada ocorria somente aos sete anos, prevendo maior tempo voltado à alfabetização e ao letramento, porém não se reduzindo simplesmente a essas aprendizagens (Beauchamp, Pagel & Nascimento, 2007). Isso, mais do que simplesmente inseri-las um ano a mais na educação escolar, influencia o processo de desenvolvimento e aprendizagem, reconhecendo suas especificidades enquanto crianças (Beauchamp et al., 2007).

A escola tradicional – historicamente vista como espaço exclusivo para o trabalho com conceitos, organizada em classes, com professor transmissor de conteúdos e alunos em silêncio realizando exercícios mecânicos – geralmente considera o lúdico, ou seja, as atividades realizadas por prazer, uma perda de tempo diante dos conteúdos que devem ser trabalhados (Medeiros, 2015). A autora verifica nas instituições educativas, em geral, a marginalização de experiências envolvendo o brincar, tidas como preenchimento do tempo livre, em detrimento das que privilegiam a alfabetização. Observação semelhante foi feita por Neves, Gouvêa e Castanheira (2011) durante o acompanhamento de uma turma de alunos na transição entre as duas primeiras etapas da educação básica. Nesse trabalho, constatou-se que as atividades lúdicas diminuíram com a chegada da alfabetização, causando um hiato entre educação infantil e ensino fundamental na visão dos alunos, principalmente pela divergência entre seus interesses e a permissão do brincar, renegada à segundo plano, o que favorece a cultura escolar intelectualizada.

As autoras presenciaram uma situação em que os alunos, diante de uma atividade que deveriam ligar e pintar figuras de sorvetes (atividade mecânica, da cultura escolar), passaram a oferecer "sorvetes" uns aos outros, trazendo à tona uma representação simbólica criada por meio da imaginação e criação infantis, embasadas na realidade conhecida e valorizada por elas (Neves et al, 2011). As relações comerciais representadas pelas crianças (vendas de sorvetes) advêm de seus conhecimentos trazidos do mundo extraescolar. Piaget ([1945]/2014) aborda que, na fase do período pré-operatório em que essas crianças se encontram (que vai dos 2 a 6 ou 7 anos, aproximadamente), observa-se a não reversibilidade, a não conservação numérica, de massa e de volume e que possui como característica da etapa, no desenvolvimento simbólico, a assimilação deformante, ou seja, a realidade é assimilada por analogia a algo inventado pela criança. Os "sorvetes" foram oferecidos pelos alunos aos colegas em um exercício imaginativo, substituindo o objeto real por uma representação (Macedo, Petty & Passos, 1997).

Enquanto as crianças da pesquisa (Neves et al, 2011) brincavam, a professora questionou se estavam fazendo recreio na sala. Essa visão de que o brincar só deve ocorrer em determinado momento programado, leva à reflexão se as características da infância são respeitadas em todos os momentos na escola. Neste sentido, Going (1997) afirma que muitas vezes, nesse espaço, se esquece que o sujeito é um todo, em busca dos seus interesses. Como se fosse possível construir para os alunos na entrada da sala de aula, ao lado do porta-guarda-chuva, um 'porta' necessidades e um 'porta' sentimentos, para dar lugar aos interesses da escola. Em outra pesquisa, Kramer, Nunes e Corsino (2011) observaram o adultocentrismo explicitado na determinação de atividades, no posicionamento docente e em murais, onde frases, poemas, folhas mimeografadas e outros elementos da cultura adulta sobressaíram às criações infantis.

Essas situações exemplificam a visão de primeiro ano que muitos professores possuem, criada sobre aquelas as quais foram expostas enquanto alunos. Imbernón (2000), no entanto, observa uma necessidade da escola que vise mudar a educação, tendo como uma de suas fundamentais preocupações, o desejo de ajudar os alunos a se desenvolverem como pessoas, na aquisição das  habilidades  sociais, autônomas e cognitivas. Essa escola detalhada pelo autor considera uma visão de aluno integral. Segundo Calçada-Kohatsu (2017), esse tipo de educação busca articular de forma interdisciplinar sujeitos, saberes, tempos e espaços dentro e fora da escola, por meio do currículo que contemple os componentes obrigatórios e as atividades específicas regionais, promovendo aos alunos aprendizagens significativas e dinâmicas.

Diante dessa visão de educação, cabe questionar se desde o início deste século já era latente e observável a necessidade de considerar um aluno de forma integral, tendo em vista porque muitas práticas ainda remetem à recepção da criança no primeiro ano, meramente como aluno acumulador de informações. Cabe então perguntar: Por que o brincar ainda não é uma prática unânime nas aulas voltadas ao primeiro ano?

A sociedade atual, a escola e a importância da brincadeira.

Atualmente, na maioria dos lares, os adultos têm jornadas de trabalho intensas para que a família possa ser sustentada economicamente. Outra característica desta época é o aumento populacional nas cidades, gerando tráfego intenso nas ruas, oferecendo riscos à integridade física das crianças, que perderam esse espaço para brincar. Outro ponto a considerar é a violência urbana (Oliveira, 2000) que impõe barreiras à liberdade de brincar da criança pelo medo do que lhes possa acontecer ao permanecer na rua durante muito tempo. Por sua vez, se observam as características das famílias, que por serem menores do que há tempos (Bomtempo, 2006), levam à diminuição de oportunidades de brincar. Outra situação que diminui a recorrência de brincadeiras em casa é a saída dos adultos para trabalhar, matriculando as crianças por maior tempo nas escolas. Segundo Calçada-Kohatsu (2017), o município de Santos/SP atendia cerca de 21000 alunos do primeiro ao nono ano do ensino fundamental em 2017, dos quais 6700 em tempo integral nas três modalidades oferecidas: escolas de período integral, em que todas as crianças permaneciam na mesma unidade de manhã e à tarde; escolas híbridas, onde parte das crianças frequentava a unidade em período parcial e parte delas em período integral; e c) núcleos e espaços conveniados à prefeitura regidos por diretrizes da Secretaria de Educação, onde as crianças frequentam no contraturno das aulas regulares. Relata, ainda, que esse número poderia ser expandido caso fosse possível ampliar a oferta, deflagrando a existência de uma demanda a ser acolhida para tal, ou seja, a necessidade de matricular mais alunos em período maior.

Diante dessas informações, é possível perceber a escola como uma "segunda casa" para estas crianças, já que em boa parte do tempo permanecem nessa instituição. Apesar de parecer um ataque à permanência das crianças na escola, não se trata deste objetivo o foco neste trabalho. Embora existam perigos já suscitados que a sociedade atual oferece, ela funciona como um porto seguro. Entretanto, é necessário repensar o que está sendo ofertado a esses alunos.

A "negação" do lúdico nas salas de primeiro ano é preocupante, pois é por meio das brincadeiras que as crianças encontram uma forma de enfrentar o luto pertinente à perda relativa dos cuidados maternos na primeira infância, encontrando forças e desafios para desenvolver cada vez mais a autonomia (Oliveira, 2000). A escola, ao receber esses alunos, apresenta- se como um dos lugares mais férteis à socialização com outros indivíduos da mesma faixa etária e um espaço privilegiado de brincadeiras e aprendizado, semelhante ao que as ruas e demais espaços livres eram há algumas décadas. Diante da História, brincar na escola se apresenta como uma contradição ao processo de alfabetização, pois não é compreendida sua importância como uma forma de humanização da criança, valiosa para a construção de suas concepções futuras ao formar sua individualidade e sociabilidade (Oliveira, 2000). Ao professor, que nessa relação é o indivíduo dotado de saberes pedagógicos, cabe buscar conhecimentos acerca dos benefícios que essa didática brincante pode oferecer aos alunos. Bomtempo (2006) menciona que os professores não recebem formação que relacione brincar e aprender, culminando no olhar convencional do adulto que valoriza a manutenção do currículo. Além disso, a autora ressalta que a ausência do lúdico na escola advém da cobrança de um ensino acadêmico intelectualizado, ignorando a aprendizagem decorrente das brincadeiras.

Muitos docentes não conseguem defender a ideia de que, por passarem a maior parte do seu tempo na escola, as crianças necessitam de momentos em que a interação se dê de forma lúdica. Assim, as brincadeiras nesse espaço possibilitam situações de criação e imaginação, principalmente em jogos simbólicos (Piaget, [1945]/2014). Um exemplo muito presente na educação infantil e que usualmente permanece no ensino fundamental, principalmente entre crianças de seis anos, é o jogo de faz-de-conta ou o jogo imaginativo. Nesse tipo de brincadeira é possível pensar sobre algo sem que necessariamente haja contato material com o objeto imaginado naquele momento (Bomtempo, 2006). A noção de mundo da criança vai sendo construída por meio da abstração de objetos reais, onde ela pode ser a mãe e replicar todas as características observadas em sua genitora, ou ser o astronauta que conheceu em um livro ou desenho animado, entre outras  construções simbólicas.

As interpretações das crianças e o papel docente exercido durante esse momento dão margem à inferência de que, desde cedo, elas pensam sobre sua realidade e conseguem externá-la por meio do brincar, que é importante para o desenvolvimento infantil ao adaptar a imaginação simbólica aos dados da realidade, aumentando a capacidade de assimilar regras coletivas (Piaget, [1945]/2014). Ao ter contato e socializar-se com os demais por meio de jogos, a criança pode empreender a construção de regras que permite a descentração, em que gradativamente, opera a capacidade de se desvincular de uma visão egocêntrica por meio de uma conduta baseada em cooperação e respeito mútuo (Piaget, [1932]/1994), percebendo as ações do outro, algo necessário para a construção da autonomia e a vida em sociedade. Os esquemas necessários para que isso ocorra envolvem a construção de símbolos, o que vai se refletindo na organização das letras e da escrita. Assim, a brincadeira, apesar de utilizada para diversão, constitui um potente instrumento para a aprendizagem, rebatendo a ideia de que brincar é perder tempo.

Brincar na infância expressa [...] o desenvolvimento integral do ser humano em seus aspectos biológico, psicológico e sociocultural. Brincar é pessoal, é social, é cultural e depende das ações concretas realizadas pela mente e corpo. (Sakamoto, 2008, p. 268).

Quando, ainda assim, a escola opta por uma metodologia que priorize conteúdos em detrimento do brincar, conferindo ao lúdico o papel de desvio da atenção necessária para aprender, pode-se deixar de dar a oportunidade da criança construir, pelo imaginário, situações de interação entre seus pares. Incorrem em grave erro os educadores que optarem pela ideia de que seriedade significa mau humor, quando pelo contrário, torna-se necessário informar e formar o professor para o belo, para a riqueza do lúdico no desenvolvimento infantil. Por meio da construção simbólica de amigos, famílias, vilarejos, reinos, cidades, viagens por água, terra e ar, personagens como comerciantes, artesãos, piratas, soldados, astronautas, heróis e vilões, os quais só podem ser criados no mundo da fantasia por essa criança, é possível dar-lhe a oportunidade da troca de ideias com os outros, pois, precisam enfrentar os desafios cognitivos, afetivos e sociais que aparecem durante esse 'faz de conta'. A criança vive um universo imaginário que lhe dará oportunidade de compreender o outro e se confrontar com o próprio egocentrismo. Por meio do personagem que representa, ela terá de se descentrar para dar um sentido nessa relação espaço, tempo e causalidade, do imaginário inventado. O jogo simbólico requer o respeito mútuo e a cooperação entre seus iguais, e só assim é possível que a brincadeira ocorra e tenha um significado para o grupo que a inventou.

Piaget ([1945]/2014) demonstra a importância de brincar para o desenvolvimento infantil por meio da socialização na qual a construção simbólica individual cede para a regra coletiva ou para o símbolo representativo ou objetivo. Para Sakamoto (2008, p. 268-269), "Entre o processo de crescer e a atividade de brincar de uma criança, é possível apreciar as expressões de saúde e criatividade presentes e vislumbrar as expectativas de desenvolvimento do potencial criativo futuro [...]".

Converge com a ideia sobre a importância do brincar, a observação de Bomtempo (2006), que diante da reclamação de professores sobre a falta de atenção das crianças, defende o trabalho com conteúdo escolar por meio da brincadeira. Porém, a autora não atribui somente aos professores essa responsabilidade, mas compreende que o privilégio dado pelas escolas e sistemas aos conteúdos curriculares extremamente escolarizados dificultam a adoção de metodologias lúdicas pelos professores. A afirmação da autora revela um problema recorrente na educação: os documentos oficiais devem convergir com a prática real em sala de aula. É preciso que eles transformem a realidade da escola, com as mudanças advindas da sociedade atual e organizem normas para amparar professores e equipes gestoras, bem como os cursos de formação de professores que não conseguem incluir o brincar junto aos componentes curriculares, pois a formação docente não compreende a importância do lúdico e sua potencialidade na aprendizagem (Bomtempo, 2006), o que dificulta despertar no graduando a importância dessa forma de trabalho com as crianças.

 

Metodologia

A pesquisa teve como objetivo estudar o porquê da tensa relação entre a entrada do aluno no ensino fundamental e o início da alfabetização e a diminuição do brincar nas instituições escolares. A modalidade de pesquisa escolhida foi a revisão bibliográfica cujo procedimento de coleta de dados incluiu a busca de teses e dissertações nas bases das plataformas online do Catálogo de Teses e Dissertações da Capes e da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) defendidas no período de 2013 a 2018. Trabalhos encontrados concomitantemente em ambas as plataformas foram considerados uma única vez. No catálogo Capes, utilizaram-se as grandes áreas do conhecimento Multidisciplinar e Ciências Humanas; as áreas de conhecimento Educação, Ensino e Ensino aprendizagem; as áreas de avaliação Educação, Ensino na educação brasileira e Educação escolar, além do recorte temporal de 2013 a 2018.

O período foi estipulado com base nas leis que ampliaram a oferta do Ensino Fundamental para nove anos, que estabeleceram para 2010 o prazo para que os sistemas de ensino se adequassem a essa nova realidade. Sendo assim, o processo de inclusão para delimitar o período pesquisado, levou-se em conta o prazo mínimo de dois anos após essa consolidação considerando esse um tempo propício para a construção de pesquisas sobre o tema. Ademais, em 2013, a educação básica passou a ser obrigatória às crianças a partir de quatro anos de idade, o que levou à inferência de que as crianças envolvidas frequentaram a educação infantil e vivenciaram uma trajetória escolar lúdica.

Na busca de estudos sobre o assunto foram utilizados os termos "alfabetização" + "brincar" + "primeiro ano" que gerou 27 resultados. Após leitura dos resumos, observou-se a possibilidade de filtrá-los sob os seguintes critérios de exclusão: a) trabalhos que constituíam defesas e análise puramente de métodos de alfabetização, sem considerar o brincar como fator importante; b) o brincar relacionado exclusivamente à educação infantil, desconsiderando o ensino fundamental; c) a observação da alfabetização em outros anos do ensino fundamental, sem ênfase na entrada dessa etapa da educação básica; d) trabalhos cujos objetivos não condiziam com a possível relação entre o brincar e a alfabetização no primeiro ano do ensino fundamental de nove anos.

Para complementar a pesquisa, buscou-se, nas mesmas bases, estudos com os termos "ludic*", "ludic*+ensino fundamental", "ludic*+primeiro ano do ensino fundamental" e "brincar no primeiro ano do ensino fundamental". Ressalta-se que, em linguagem de informática, o "*" tem a função de representar tudo que está contido. Aqui foi utilizado este recurso para que a pesquisa retornasse os resultados referentes aos termos "lúdico", "lúdica", "ludicamente", entre outros, relacionando-os à investigação. A pesquisa retornou 100 resultados, aos quais com a leitura de títulos e resumos, foram aplicados os seguintes critérios de exclusão: a) trabalhos que versavam sobre a educação como forma de reinserção social (medidas socioeducativas); b) trabalhos voltados exclusivamente à educação infantil, sem considerar as turmas de ensino fundamental; c) pesquisas que envolvam o lúdico para tratar de sexualidade e gênero; d) tratamento do ensino de outras disciplinas (principalmente educação física e matemática relacionadas às práticas e ao lúdico); e) não atendimento aos critérios desta pesquisa (lúdico e primeiro ano do ensino fundamental).

 

Resultados

Ao realizar a busca com os termos "alfabetização"+"brincar"+"primeiro ano" e aplicar os critérios de exclusão, foram encontrados seis resultados relevantes para esta pesquisa (Ferraresi, 2015; Medeiros, 2015; Medeiros, 2016; Orlandi, 2013; Santos, 2017; Stigert, 2016). No caso da segunda etapa da pesquisa, "ludic*+primeiro ano do ensino fundamental" após excluir os trabalhos com base nos critérios descritos, sete trabalhos foram considerados relevantes (Azevedo, 2016; Barbosa, 2015; Medeiros, 2015; Medeiros, 2016; Oliveira, 2013; Silveira, 2016; Stigert, 2016). Analisando o material de estudo, foi possível organizá-los em duas categorias: a) o brincar e a alfabetização em turmas de primeiro ano; b) o lúdico e o ensino fundamental de nove anos, sendo essa categoria subdividida em outras duas: a) pesquisas sobre o lúdico na perspectiva do professor e b) na perspectiva da criança.Foipossível observar a presença, por algumas vezes, da mesma pesquisa em alguma das buscas, pois constantemente elas se entrelaçavam, seja quanto ao tema, seja por sobreposição de filtros (palavras-chave). Os estudos foram categorizados de acordo com critérios definidos em Categoria 1 e Categoria 2.

Categoria 1. A realção entre alfabetização, brincar e primeiro ano

Foram verificadas, nos trabalhos pesquisados, as relações entre a alfabetização e o brincar nessa etapa da educação. Os resultados relevantes para este trabalho foram organizados no Quadro 1.

 

 

Como resultado das pesquisas verificou-se que, ao propor uma nova duração para o ensino fundamental sem observar legalmente uma diretriz para as práticas docentes - pois os documentos, ao tratar do tema, focaram no campo conceitual (Cardoso, 2013) - identificou-se a ideia principal de apresentar, sem determinar legalmente o que deveria ser feito. Isso corrobora com a ideia de autonomia dos sistemas de ensino que Ferraresi (2015) suscitou por meio de levantamento bibliográfico. Para ela, como as práticas dos professores apareceram nos documentos oficiais vinculadas apenas à necessidade de formação docente e reorganização dos currículos durante esse processo de ampliação do ensino fundamental, ficou a cargo dos sistemas de ensino esse atendimento, muitas vezes orientando os professores a simplesmente organizarem sua atuação pedagógica com jogos e brincadeiras a fim de haver um resgate da ludicidade. Algumas práticas transformadoras, no entanto, foram trazidas pelos autores. Ferraresi (2015) apresentou o caso de professoras que criaram espaços lúdicos em sala de aula por iniciativas próprias, destoando do restante do grupo docente, cujas práticas eram mais tradicionais. Orlandi (2013) apresentou uma situação em que uma docente disponibilizou brinquedos aos alunos, demonstrando intenção de utilizar o brincar em sala de aula, mas cujas intervenções não incentivavam a criatividade infantil.

Nesse cenário, não se pode observar um padrão nas práticas: cada uma se constrói de acordo com as vivências e conhecimentos dos professores, o que reflete naquilo que é apresentado às crianças. A formação continuada seria, então, uma maneira de unificar as considerações, porém o foco recaiu sobre as normativas, não as práticas.

Categoria 2: O lúdico e o ensino fundamental de nove anos

Após a aplicação dos critérios de exclusão, as sete pesquisas consideradas efetivas para este trabalho puderam ser classificadas em duas subcategorias. Na primeira, os trabalhos consideram a visão do professor acerca do lúdico no ensino fundamental; na segunda, recai-se sobre o que observam os alunos.

Compreende-se que, apesar do mesmo assunto, o ponto de vista diferencia-se totalmente. As atividades lúdicas aproximam-se das atividades realizadas em sala de aula, porém envolvendo os alunos de forma divertida e prazerosa. O brincar envolve as atividades em que não há a necessidade de um fim em si mesmo, mas ocorre como uma possibilidade de integrar as crianças por meio de suas predileções, representando a realidade em que vivem e suas ideias com o uso – ou não – de objetos para tal, relacionando até mesmo aos conteúdos, mas sem a necessidade de "pedagogizar" as ações, deixando a cargo das atividades lúdicas a intenção do ensino e aprendizagem de conceitos.

Sub-Categoria 1: As pesquisas sobre o lúdico n aperspectiva do professor

A primeira subcategoria foi composta por cinco das sete pesquisas encontradas. Ao lidar com a perspectiva do professor, consideram-se a forma e os momentos para proposição/ permissão do brincar, baseando-se na atuação pedagógica para tratar do tema. Devido à proximidade conceitual, duas dessas pesquisas repetiram-se nos resultados de alfabetização e brincar (Medeiros, 2015; Stigert, 2016). Coube, neste grupo, relacionar os trabalhos que fizessem uma análise de como a atuação docente facilitou/ permitiu ou negou/ restringiu a existência do brincar nos espaços escolares, bem como a forma como foi utilizado: se os professores consideraram seu uso enquanto aparato pedagógico para introduzir conceitos a serem trabalhados, que corresponde a uma metodologia para ensinar os conteúdos ou se o lúdico esteve presente como uma forma de ocupar o tempo vago entre as atividades, ao final da aula, entre outros. Esses estudos observam as concepções que o professor possuía sobre a importância do brincar, bem como as contradições existentes entre discurso e prática, os contrapontos entre a permissão para que os alunos brincassem livremente e nas situações em que se realizavam somente brincadeiras em momentos dirigidos.

O Quadro 2 apresenta os trabalhos cujo foco recai, principalmente, sobre as ações ou considerações dos professores.

 

 

Como resultado, constatou-se que entre as duas subdivisões da Categoria 2, os trabalhos referentes ao lúdico constituiu um grupo em que a maioria das pesquisas relevantes levou a inferência de que o adultocentrismo ainda está bastante arraigado na cultura educacional, pois o papel do professor foi o foco da maioria dos casos. Não se trata de uma desvalorização, mas apenas se percebe o interesse no adulto, levando em consideração mais os conteúdos curriculares do que a escuta das crianças (Medeiros, 2015).

Verificou-se que apesar dos recém ingressantes no ensino fundamental, as crianças deparam-se com um espaço totalmente diferente, que nem sempre privilegia a liberdade de movimentos. Oliveira (2013) relatou a fala de uma professora que lecionou em sala de primeiro ano dentro de uma escola de educação infantil, revelando uma experiência que não lhe fora agradável, pois os alunos queriam brincar com o material existente, sendo impedidos devido a necessidade de alfabetizar que lhe eram impostos. Somado a esse fato, a docente queixou-se das mesas, cuja estrutura atendia quatro alunos e um permanecia de costas para a lousa, ou seja, desprivilegiava o exercício contínuo de cópia. Diante desse quadro, compreende-se que a visão do docente influencia diretamente a turma. Os materiais que proporcionavam o brincar permaneceram distantes, posto à exclusividade da alfabetização e dos conteúdos conceituais, enquanto o interesse dos alunos era outro. Assim, por não conseguirem satisfazer o que julgavam realmente interessante, ambos os lados seguiam em uma experiência frustrante.

Percebeu-se a necessidade de a visão do professor compreender a alfabetização como um processo que pode ser impulsionado pelo lúdico. Do contrário, o simples fato de alterar o cenário em que a aula ocorre não resultará em sucesso.

Sub Categoria 2: As pesquisas sobre o lúdico na perspectiva das crianças

A segunda categoria apresentou duas das sete pesquisas que versaram sobre o brincar. Nesta subdivisão, considerou-se o ponto de vista das crianças, incutindo-lhes voz ativa enquanto partícipes e, por que não dizer, principais interessados. A pesquisa  de  Medeiros  (2016),  por  atender concomitantemente as características desta e da primeira parte da pesquisa, foi relacionada em ambas.

O Quadro 3 apresenta as pesquisas que foram consideradas relevantes e observam a perspectiva das crianças nesse processo.

 

 

Em linhas gerais, pôde-se caracterizar que a visão do aluno acerca do brincar foi de algo favorável, porém submetido à rigidez de conteúdos escolares que deveriam ser trabalhados pelos professores. Verifica- se que os alunos trazem uma formação mais lúdica das instituições de educação infantil, mas parecem conformar-se que a escola é um momento exclusivo de aprendizagem, sem vínculo com a brincadeira, pois há o momento de sala de aula para aprender e o do intervalo para brincar (Barbosa, 2015). Observando a cultura infantil geralmente encontrada nas escolas nessa faixa etária, pode-se inferir que essa delimitação de espaços é reflexo das condições que lhes foram impostas, pela cultura escolar fazendo-os crer numa dicotomia necessária para que a aprendizagem possa trazer frutos. Essa inferência foi confirmada por Medeiros (2016), que apresentou a visão dos alunos sobre a realidade na qual estão inseridos no ensino fundamental. Diante da visão social e cultural de que escola é um local para aprender, as crianças tendem a defender o procedimento de necessidade irrestrita de atenção às atividades, e que brincar ficou na escola do passado (educação infantil).

 

Discussão

Constata-se que, apesar de a literatura apresentada defender o brincar em sala de aula, a maioria das pesquisas aqui presentes demonstra que há, nas escolas, uma dissociação com a aprendizagem propriamente dita, realizada pela cultura existente de que esse lugar serve unicamente para aprender. Das pesquisas consideradas relevantes, grande parte direciona-se à prevalência de uma prática adultocêntrica, cujo professor é detentor do saber e autoridade máxima frente ao grupo. Desta forma, brincar depende de sua aprovação, independentemente de ser uma característica da criança e de sua condição infantil.

Observa-se uma tendência a valorizar o brincar quando relacionado a algum conteúdo pedagógico a ser trabalhado (Orlandi, 2013). Isso desvela uma realidade em que brincar satisfaz mais as ideias do adulto, pois ele é quem determina o momento e as situações para que ocorra (Medeiros, 2015). Quando acontece livremente é devido a permissão dos adultos em momento que não prejudique o andamento das atividades intelectuais. Assim, o lúdico não está presente como disparador dos conteúdos por meio de atividades prazerosas aos alunos. Utilizar essas atividades para que os alunos aprendam de forma mais divertida, expressando-se, movimentando-se, agindo sobre a aprendizagem e construindo-a se torna uma possibilidade de apresentar o lúdico diminuindo as tensões às quais Medeiros (2015) se referiu: ser criança e tornar-se aluno. Por isso a formação dos professores é crucial para incluir o lúdico em sala de aula. Ainda que não tenham tido, em sua infância, contato com práticas que o preconizasse; a discussão com pares e as vivências e reflexões permitem construir uma nova forma de pensar. Ferraresi (2015) destaca o relato de uma professora de primeiro ano da rede municipal paulistana sobre sua participação em uma formação continuada a distância, onde alega ter mudado sua maneira de pensar. Contudo, Stigert (2016) encontrou um trabalho com três professores que possuíam hábitos constantes de pesquisa e interesse em continuar estudando que não realizaram um processo contínuo de estudo e prática, pois demanda tempo e discussão, que precisam ser disponibilizados por escolas e Secretarias. O professor pode buscar esse conhecimento, mas ao fazê-lo sozinho fica restrito aos seus saberes e pesquisas solitárias, repetindo práticas em que o brincar é sobrepujado pela alfabetização e por outros conteúdos trazidos como mais importantes.

Esse desconhecimento do lúdico na prática pedagógica é observado na dicotomia entre prática e discurso, algo recorrente nas pesquisas (Medeiros, 2015; Orlandi, 2013; Santos, 2017), levando à inferência que, apesar de saber da importância do brincar tal qual dos conteúdos e da alfabetização, não é simples observar a possibilidade de, por meio de brincadeiras, o aluno aprender. Somado a esse fato, encontram-se as pressões externas feitas por escola e sociedade que priorizam a rigidez no trabalho com conteúdo, repetição e atividades descontextualizadas. Stigert (2016), ao analisar questionários respondidos por professores, verifica profissionais que consideram importante o brincar, porém, preocupam-se com a dificuldade de trabalhar a relação existente entre a linguagem do brincar e a da alfabetização e o letramento, sem prejudicar a aprendizagem das crianças.

O dilema trazido por professores "brincar é importante, mas "sou obrigado" a alfabetizar. E agora?", estimulando a dúvida nos docentes de qual ação privilegiar, é uma clara ilustração à dicotomia apresentada. Muitas vezes a escola concebe como díspares os momentos de brincar e de aprender, alicerçada nas práticas docentes tradicionais que os dividem, sem apresentar uma convergência entre ambos. Ferraresi (2015) apresenta que, segundo os levantamentos realizados em pesquisas sobre o tema, as práticas docentes conferiram pouca valorização do brincar, bastante restrito as sobras de tempo ou às aulas de Educação Física. Nesse embate entre o que é importante para adultos e o que é para crianças, surgem as atividades escolares disfarçadas com o uso de imagens próprias do cotidiano e/ou do imaginário infantil, mas que servem apenas para que os alunos copiem escritas prontas ou realizem atividades mecanicamente, sem desafios ou construções simbólicas; estas atividades objetivam mais "agradar" e distrair os estudantes durante sua realização do que funcionar como instrumento de aprendizagem em si. Apesar de parecerem lúdicas, pois "brincam" com as crianças, não há a interação necessária para tal. O brincar como introdução ou encaminhamento das atividades pode transformar uma atividade em algo interessante e lúdico aos alunos.

Quando se considera brincar somente no tempo livre, explicita-se a ideia de ócio, ou seja, brincar em sala de aula como uma perda de tempo valioso para realização de atividades acadêmicas mais importantes para o aprendizado (Oliveira, 2013). Apesar da aceitação da rotina escolar, as crianças deram destaque às aulas de Informática, seguida de Educação Física, Arte e Inglês como suas preferidas (Medeiros, 2016). Essa predileção escancarou que atividades ambientadas que extrapolam ou ressignificam o espaço da sala de aula, como nas atividades artísticas que, mesmo dentro da sala de aula as reorganizam de outra forma, são as que mais lhes chamou a atenção, bem como aquelas em que há reforço contínuo de aprendizagem menos lúdica foram renegadas a segundo plano, principalmente quando professores agiam supervalorizando a aprendizagem extremamente formal. Assim, demonstram preferência por atividades próximas da cultura infantil, ou seja, aulas em que as crianças brincam, sem perceber que estão aprendendo, desvirtuando da estrutura tradicional de aula.

Essas crianças de seis anos de idade, que até há pouco mais de uma década estariam na etapa anterior, segundo as pesquisas (Barbosa, 2015; Medeiros, 2016) trazem dentro de si a vontade de brincar e buscam externá-la por meio de subversão às regras impostas. Não se trata de ausência da noção de regras, mas respeitar o período pré-operatório, a função simbólica, da criança (Piaget, [1951]/1994), e busca realizar aquilo que lhe é agradável, pois as pesquisas que versam sobre a visão da criança sobre o brincar apresentam uma ideia comparativa entre educação infantil e ensino fundamental, dada a proximidade temporal das crianças com ambas, culminando em uma dicotomia entre ser criança (referindo-se à primeira etapa) e ser aluno (segunda etapa). As relações de poder estabelecidas  na escola não permitem ao professor considerar positivo esse "levante" dos alunos sob pena de perda de controle da turma, tido como necessário para a manutenção da ordem em um modelo de escola centrado nos conteúdos científicos e no saber docente, estrutura que as crianças internalizam devido à alta e constante exposição direta: os resultados das pesquisas tratadas aqui (Barbosa, 2015; Medeiros, 2016) direcionam a ideia de alunos que aceitam a escola que renega o brincar, considerando que se divide em duas: a sala de aula, espaço em que ocorre a aprendizagem, e o recreio, curto espaço de tempo destinado ao brincar livre (Barbosa, 2015) – ainda que essa liberdade seja cerceada por não lhes permitir correr ou se expressarem livremente.

Stigert (2016), no entanto, verifica que seus encontros e momentos de troca com os professores levaram à reflexão sobre o tema, contrastando com as demais pesquisas, que revelaram que os professores não possuíam conhecimento suficiente para lidar com propriedade com o brincar. Esse despreparo, segundo os próprios docentes, advém da baixa qualidade da formação inicial que pouco explora o tema, conduzindo à ideia de que brincar na escola é perda de tempo, o que pode ser modificado caso o tema fosse mais bem explorado na formação do professor, embasando-o para tal.

 

Considerações finais

Diante da necessidade de saída dos adultos para trabalhar e a gradativa ampliação de vagas em período integral, as escolas constituem, para muitas crianças, o espaço em que permanecerão pelo maior tempo do seu dia, não lhes sendo possível gozar das brincadeiras em outros espaços e grupos, como as crianças de décadas atrás faziam. Considerando que a brincadeira constitui um importante fator para o desenvolvimento da inteligência, imaginação e criatividade infantil, o objetivo da pesquisa foi investigar se os professores, por sua formação e preparação para docência, adotam práticas lúdicas no trato com alunos do primeiro ano do ensino fundamental, que são aqueles que geralmente têm contato com essas práticas na educação infantil recém- concluída.

A pesquisa bibliográfica realizada com base na delimitação de período de 5 anos e com foco nos estudos de crianças que se encontram no ensino fundamental e nos estudos envolvendo a ludicidade, apresentou o resultado de dez pesquisas que foram divididas em duas categorias, tendo uma delas duas subcategorias. A análise das pesquisas encontradas possibilitou observar que uma prática tradicional de ensino e mais intelectualizada contrasta com o que as crianças encontram nos momentos em que estão em suas residências. A internet apresenta cada vez mais informações que precisam ser discutidas em sala de aula, ao invés de serem trabalhadas como um conteúdo desconhecido. A análise das pesquisas indicou que a formação continuada de professores é imprescindível para que possam discutir e construir novas formas de trabalho pautadas no lúdico e nas brincadeiras, posto que a reflexão individual é pouco eficaz diante do conhecimento construído durante toda sua vida. Esse conhecimento é necessário, pois, apesar da maioria dos docentes ter brincado durante sua infância e conhecer a experiência, a prática profissional deve vir alicerçada em pressupostos teóricos. O professor necessita planejar suas aulas, e para isso é preciso conhecimento sobre as crianças e de conteúdos teóricos, em busca de atender às reais necessidades dos alunos. Do contrário, a proposta de brincadeiras como preenchimento de tempo livre servirá somente para que a visão de escola como espaço exclusivamente de transmissão de conteúdos tome força para dirimir quaisquer práticas lúdicas de seu interior. Ao docente cabe buscar compreender como o lúdico pode ser o fio que tece a interdisciplinaridade entre os saberes, rompendo o paradigma histórico de escola como espaço rígido, cujos alunos devem permanecer estáticos em seus lugares recebendo e processando informações. Esta nova concepção do docente assinalará outro pensamento, o de que crianças livres são aquelas que selecionam o próprio conhecimento, na experiência de construção de sua autonomia. A escola é um exemplo ímpar acerca da importância do ambiente para o desenvolvimento da individualidade e criatividade. Csikszentmihalyi (1992, p. 313) afirma que um ambiente facilitador é aquele que promove a integração "com outras pessoas e com os valores universais" e propicia um sentimento de "congruência" pessoal capaz de atribuir um sentido para a própria vida. Uma forma efetiva de tornar o ambiente um magnífico suporte à construção da subjetividade da criança é utilizar do lúdico já tão citado por diversos pesquisadores, como fator nos jogos simbólicos e de regras, na oralidade, nos contos de fadas e na literatura de um modo geral, além das brincadeiras com o próprio corpo, com música e dança, para tornar o mundo um lugar prazeroso e estimulante. Professores e pesquisadores são convidados para a observação da possibilidade de novas práticas docentes, inovadas e transformadoras, que incluem o lúdico como forma de trabalho interdisciplinar dos saberes nos anos iniciais do ensino fundamental.

 

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Recebido: 03.10.2019
Corrigido: 17.03.2020
Aprovado: 09.04.2020

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